A Origem da Desigualdade Social no Pensamento de Rousseau

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THE ORIGIN OF SOCIAL INEQUALITY IN ROUSSEAU’S THOUGHT

 

Versalhes Enos Nunes Ferreira – Mestrando em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional – Centro Universitário do Estado do Pará. Especialista em Direito do Trabalho – Universidade da Amazônia. Bacharel em Direito – Universidade Federal do Pará. Serventuário da Justiça – Tribunal de Justiça do Estado do Pará. E-mail: [email protected]

 

Resumo

O propósito do artigo é inserir o leitor no pensamento filosófico de Jean-Jacques Rousseau, marco teórico da presente exposição, revelado no ensaio intitulado “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, publicado em 1755. Rousseau analisou o desenvolvimento do homem, de seu estado de natureza até alcançar o estado de sociedade, viabilizado pela perfectibilidade, buscando racionalizar as causas e a origem da desigualdade social, bem como, chegando à conclusão que o desenvolvimento moral e social dos seres humanos em coletividade contribuiu para sua própria deterioração. O estudo está dividido em três partes. A primeira, trará breves notas acerca do filósofo genebrino. Em seguida, abordar-se-á caracteres do homem da natureza e do homem natural. Por fim, o texto irá debruçar-se sobre o homem social, período que converge para a formação da causa primordial responsável pela gênese da desigualdade entre os homens. A pesquisa apresenta abordagem qualitativa, baseando-se em fontes bibliográficas.

Palavras-chave: Rousseau. Estado de natureza. Estado de sociedade. Propriedade. Desigualdade social.

 

Abstract

The purpose of the article is to insert the reader into the philosophical thought of Jean-Jacques Rousseau, the theoretical framework of this exposition, revealed in the essay entitled “Discourse on the origin and foundations of inequality among men”, published in 1755. Rousseau analyzed the development man, from his state of nature until he reached the state of society, made possible by perfectibility, seeking to rationalize the causes and origin of social inequality, as well as, arriving at the conclusion that the moral and social development of human beings collectively contributed to his deterioration. The study is divided into three parts. The first one will bring brief notes about the Genevan philosopher. Next, we will approach the characters of the man of nature and the natural man. Finally, the text will focus on the social man, a period that converges for the formation of the primary cause responsible for the genesis of inequality among men. The research presents a qualitative approach, based on bibliographic sources.

Keywords: Rousseau. State of nature. State of society. Property. Social inequality.

 

Sumário: Introdução. 1. Notas sobre Jean-Jacques Rousseau. 2. O homem da natureza e o homem natural no II Discurso. 3. O homem social e a origem da desigualdade. Conclusão. Referências.

Introdução

Escrita por Jean-Jacques Rousseau para responder a uma questão da Academia das Ciências, Artes e Belas Letras de Dijon – “Qual é a origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural?” -, a obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” de 1755, procura descrever a gênese histórica da desigualdade social, realizando, antes, uma análise hipotética do ser humano no estado de natureza, demonstrando que a ingenuidade natural e bondade foram, com o tempo, substituídas pela impureza.

Rousseau concebe o estado de natureza como um estado do homem marcado pelo que lhe foi atribuído e fornecido pela própria natureza, motivo pelo qual, momento mais oportuno à fruição e compatibilização da liberdade e da igualdade, pois, os homens não tinham nem vícios e nem virtudes, portanto, não podiam ser nem bons, nem maus, e não eram maus precisamente porque não sabiam o que era ser bom. A calma das paixões e a ignorância dos vícios os impedia de fazerem o mal. Não conheciam a vaidade, a estima, a consideração, o desprezo. O amoralismo era a marca deste momento histórico na percepção de Rousseau.

Todavia, a capacidade de aperfeiçoamento do homem o fez evoluir. E, sua evolução não trouxe apenas progressos, mais, também, significou a perda de sua ingenuidade natural e o caminhar para sua própria deterioração ética, moral e social, de onde a propriedade surge como fonte de violência, de desarmonia e desigualdade social, e será, por isso, atacada por Rousseau. Defende, em suas linhas, uma conexão entre a inexistência de propriedade privada e a virtude cívica de seu povo imaginário. A propriedade privada foi a causa irreversível do surgimento e da extensão da desigualdade social e de todos os males dela decorrentes (ROUSSEAU, 2008).

Nesse estudo, objetiva-se analisar a obra de Rousseau conhecida como seu II Discurso, em especial no que tange à origem da desigualdade entre os homens, trazendo algumas das ideias expostas nas duas partes centrais que compõem o ensaio. A base téorica apóia-se no pensamento de Rousseau. A pesquisa terá abordagem qualitativa, baseando-se em fontes bibliográficas. Quanto à estrutura, a primeira parte trará breves notas acerca do filósofo genebrino. Em seguida, abordar-se-ão caracteres do homem da natureza e do homem natural no texto do II Discurso. Por fim, o texto irá debruçar-se sobre o homem social, período que converge para a formação da causa primordial responsável pela gênese da desigualdade entre os homens.

 

  1. Notas sobre Jean-Jacques Rousseau

Jean-Jacques Rousseau nasceu na cidade de Genebra, na Suíça, em 28 de junho de 1712, filho de Isaac Rousseau e Suzana Bernard. Sua família era da burguesia de relojoeiros, tendo perdido sua mãe uma semana após seu nascimento, em decorrência de complicações após o parto. Ficou sob os cuidados de seu pai, com quem desenvolveu o gosto pela leitura e pela reflexão literária (LIMA, 2014).

No ano de 1749, na cidade de Paris, França, em uma de suas caminhadas, deparou-se com um anúncio sobre um concurso de escrita da Academia de Dijon, consistente no questionamento se o progresso das ciências e das artes havia contribuído para corromper ou apurar os costumes (STANGUE, 2017). Rousseau descreveria, anos depois, que a tomada de conhecimento sobre o concurso funcionou como uma luz que naquele momento se fez na sua mente e que decidiu da orientação da sua doutrina.

A obra “O discurso sobre as ciências e as artes”, de 1750, conhecida como o I Discurso, constituiu-se em texto de grande êxito, levando-o a ser premiado pela Academia de Dijon (ABBAGNANO, 2000). Lima (2014) aduz que, com a publicação, Rousseau tornou-se famoso nos meios culturais.

A Academia de Dijon propôs, então, uma nova questão: “Qual a fonte de desigualdade entre os homens? É ela autorizada pela lei natural?”. Para replicar o questionamento, Rousseau escreveu o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, conhecido como o II Discurso, defendendo a liberdade e a igualdade entre os homens no estado de natureza, sendo que, a desigualdade é criada pela própria civilização, chegando a ser algo convencional. Não ganhou o prêmio ofertado, todavia, ratificou sua fama no meio social, escrevendo, nos anos seguintes, diversas outras obras relevantes (LIMA, 2014).

Rousseau faleceu em 02 de julho de 1778, em Ermenonville, França (NASCIMENTO, 2001), deixando um legado de escritos nos quais atacava a sociedade de seu tempo, o que rendeu-lhe muitos inimigos e a hostilidade dos poderes estabelecidos. Para ele, a sociedade de sua época era ruim, motivo que desencadeou sua vontade de descobrir a origem da infelicidade contemporânea e defender uma renúncia aos interesses pessoais e união de todos a todos (DUROZOI & ROUSSEL, 1993).

Fleischacker (2006) assevera que Rousseau inspirou, como ninguém antes dele, programas políticos em benefício dos pobres, podendo ser considerado, com a possível exceção de Platão, o maior de todos os escritores na história do pensamento político. Suas maiores contribuições para a questão do distributivismo residem na sugestão de que os problemas sociais podem ser resolvidos na esfera política e na necessidade de conceder maior atenção àqueles que estão em pior situação. Outrossim, afirma que os revolucionários franceses de 1789 declararam ter aprendido com Rousseau a lição de que é dever do Estado retificar as desigualdades sociais.

Rousseau viveu no período conhecido como século das luzes, em decorrência da coincidência temporal com o movimento intitulado Iluminismo –  que defendia o esclarecimento e tinha em Rousseau um de seus expoentes -, e que teve seu marco político maior com a Revolução Francesa de 1789, processo político e social ocorrido na França que, apesar de ter sofrido influência do pensamento rousseauniano, não fora por este presenciado.

Fleischacker (2006) alega que os revolucionários franceses sempre citaram o nome de Rousseau como precursor dos ideais basilares defendidos pela Revolução, e que, sua presença permeou todo o período revolucionário, apesar de seu falecimento em 1778. Foi eleito Patrono da Revolução Francesa e considerado o primeiro revolucionário (LIMA, 2014). Paradoxalmente, sua notoriedade adveio de suas percepções contrárias às tendências e ao pensamento de seu tempo, o que despertara críticas em torno do que defendia em suas linhas filosóficas.

Apesar disso, “foi o principal arauto da democracia na França” (LIMA, 2014, p. 31). Concebeu a organização política do povo baseando-se na livre e efetiva participação de todos os integrantes da sociedade, fazendo disto um postulado de onde extraía que a lei somente poderia ser considerada legítima quando expressasse a vontade geral e a autoridade somente poderia ser tomada como válida quando fruto da escolha popular (LIMA, 2014).

É característico do pensamento político de Rousseau o empenho em conjugar a liberdade do cidadão com o Estado, de modo que o cidadão só é considerado livre se viver em sociedade civil. Assim, propôs que o exercício do poder soberano estivesse nas mãos do povo ou da vontade geral, esta representava a expressão global dos interesses e sentimentos do cidadão e da própria sociedade em vista do bem comum, pois, para ele, o exercício da soberania pelo povo era a condição primeira para sua libertação, e mais, a constituição era o instrumento apto à limitação do poder do Estado nos moldes do absolutismo (QUADROS, 2016).

Rousseau pensou a relação humana ideal como uma relação de igualdade, e não de hierarquia, e reconheceu na conversação entre pessoas iguais, e não na sabedoria de uma elite, a forma ideal para a tomada de decisões políticas. A pobreza e a desigualdade, em Rousseau, ganham relevância na medida em que afetam a política, era seu objetivo criar um ambiente propício ao bom e regular desenvolvimento desta condição definitiva para um sistema equitativo de justiça, alicerçado em leis que deveriam refletir a igualdade de todos os cidadãos (FLEISCHACKER, 2006).

O ideal político de Rousseau, diz Stangue (2017), passa por defender a constituição de um Estado em que o poder fosse legitimado pela participação popular na tomada de decisões, em vez da concentração do poder nas mãos de um soberano ou de uma classe política. Em “Do Contrato social” ele realiza uma apologia explícita à igualdade de direitos e à liberdade civil como ideais que, efetivamente, legitimariam o poder. Com isso, ele estabelecera os princípios do direito político.

Rousseau defendera, ao lado de Hobbes e Locke, que a origem da sociedade e do correlato poder político estariam num contrato, num acordo tácito ou explícito entre aqueles que aceitariam fazer parte dessa sociedade, submetendo-se a esse poder, em que cada um perderia sua liberdade natural, recebendo em troca a liberdade civil sob um governo que se aspiraria ser justo e legítimo (LIMONGI, 2015). Essa corrente de pensamento influenciou gerações, a ponto de inspirar John Rawls (2002) na formulação de sua teoria da justiça como equidade.

Para Lima (2014), Rousseau elegeu como tema central de sua filosofia o homem, voltando-se para ele e criticando seu caminhar, suas escolhas, a sociedade em que estava inserido. É inegável sua contribuição no sentido de avocar a problemática do ser humano para o centro de suas discussões, trazendo, outrossim, para seu contexto, o Estado e suas finalidades essenciais.

O II Discurso, a seguir delineado, traz uma visão para a história da humanidade, buscando, pelo que se depreende, explicar como a infelicidade nasceu, cresceu e generalizou-se entre as pessoas. E o faz explicitando esse caminhar em, basicamente, três momentos, quais sejam: o homem da natureza; o homem natural e o homem social.

 

  1. O homem da natureza e o homem natural no II Discurso

Publicado em 1755, o ensaio intitulado “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, foi elaborado por Rousseau em resposta à questão formulada pela Academia de Dijon em 1753, que exigia que se pensasse sobre qual é a origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural. Dividida em 06 partes (Dedicatória, Prefácio, Intróito, Primeira Parte, Segunda Parte e Notas), o texto tem como desígnio “mostrar como o mal apareceu na história” (RUSS, 2015, p. 219), descortinar a origem histórica da desigualdade entre os homens.

Rousseau (2008) declara a dificuldade de resolver a questão posta, pois ela, para ser bem respondida, remete o autor para um estado que não existe mais, que talvez nunca tenha existido, mas, sobre o qual é necessário ter noções justas para bem avaliar a sociedade à sua época. A obra, deste modo, pertence à tradição utópica, em virtude de sua descrição de um mundo humano idílico e pré-social, localizado num passado remoto. Por conta disso, utilizará raciocínios e conjecturas na intenção de buscar respostas às suas inquietações.

Anuncia que, na espécie humana, existem dois tipos de desigualdades: I) A natural ou física, que é estabelecida pela natureza, aonde temos as diferenças de idade, de saúde, de força, dentre outras; e, II) A moral ou política, que decorre dos diferentes privilégios que alguns usufruem em detrimento dos outros, aonde alguns são mais ricos, mais honrados, mais poderosos que outros (ROUSSEAU, 2008).

Para Rousseau (2008), é impossível ser, verdadeiramente, livre aonde impera a desigualdade. Ocorre que, a desigualdade que se origina da natureza das coisas não é um problema, pois, ela é inevitável e insuperável, não carreando maiores consequências sociais e morais aos indivíduos. A questão primordial é quanto à desigualdade convencional, que, em seu pensamento, deve ser afastada, combatida, porque corrompe as pessoas, porque ela nasce da diferença de poder, de riqueza, de propriedade, e isso é inaceitável.

Por este motivo, o que vai interessar à discussão será a desigualdade moral ou política, pois, será ela quem submeterá um homem a outro. E, o propósito da obra será, justamente, marcar no progresso das coisas o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza humana foi submetida à lei; explicar por quais encadeamentos portentosos pôde o forte decidir servir-se do fraco e pôde o povo comprar um repouso imaginário ao preço de uma felicidade real. Buscou estudar como se deu a passagem da desigualdade natural para a desigualdade política ou moral, a antítese entre natureza ou civilização. Demonstrará preocupação com a degeneração do homem a partir da instituição da propriedade privada.

A primeira parte da obra é uma imersão ao estado natural do homem, uma descrição de um homem honesto, livre e satisfeito que vivia no estado de natureza, visto pelo autor como um estado de equilíbrio, motivo pelo qual será tomado como parâmetro para a busca da natureza humana original, eis que a sociedade civil à sua época estava muito afastada da noção de sociedade primitiva ou de selvagens.

O autor, ao longo da primeira parte, vai contrastar as características da natureza humana original a seus aspectos degradados na sociedade existente, com o objetivo de evidenciar a distância irreversível que separa esses dois momentos históricos distintos (RUSS, 2015). Isso porque, “Rousseau olha para o homem como um pacote de potencial – potencial para o bem ou para o mal. Em seus escritos, Rousseau procura entender o que a natureza faz o homem capaz de se tornar e, em seguida, o que o estado e a sociedade realmente fizeram dele”[1] (BIRKHEAD, 1994-1995, on line).

No estado de natureza, o homem tinha uma existência próxima à dos animais e dependia, de maneira absoluta, da natureza para sobreviver. Declarou que os inimigos mais temíveis ao ser humano eram as enfermidades naturais, a infância, a velhice e as doenças de toda espécie. A vida na natureza, sem remédios, sem habitação, sem roupas, sem drogas, tornava o homem natural forte, corajoso, independente (ROUSSEAU, 2008).

Russ (2015) leciona que a descrição do homem no estado de natureza, objeto da primeira parte da obra rousseauniana, desempenha um papel capital em seu intento, pois, rejeitando a origem da desigualdade baseada no mérito moral ou político, o autor buscará o momento preciso em que a natureza humana submeteu-se à lei, dando condições para a criação da sociedade civil e do direito.

Aduziu Rousseau (2008) que a diferença fundamental entre os seres humanos e os animais reside em duas faculdades naturais e originais: a liberdade e a perfectibilidade. Ambas são propriedades distintivas e constitutivas dos homens, e, por serem inatas, também não precisam da atividade racional para serem reconhecidas, bastando o sentimento interior.

A primeira qualidade definidora que integra a natureza essencial do ser humano é a liberdade.  Ao contrário dos animais que escolhem ou rejeitam por instinto, o homem tem o poder de decidir entre as alternativas possíveis, frear seus impulsos imediatos ou iniciar uma ação deliberada. O ser humano pode contrariar os ditames naturais porque a sua vontade é livre de constrangimentos externos.

Além da liberdade, os seres humanos são distintos dos animais em virtude da perfectibilidade, que é a faculdade ou a disposição natural para o aperfeiçoamento pessoal. A perfectibilidade pode ser traduzida como uma capacidade de adaptação desenvolvida pelas necessidades ou como uma potência de transformação efetivada pelas circunstâncias. O ser humano pode aumentar o seu repertório de comportamentos e adquirir um estoque de conhecimentos.

Todavia, alega Rousseau (2008) que será a perfectibilidade, ou seja, a faculdade de aperfeiçoar-se, a fonte de todas as infelicidades do homem, pois é ela quem vai tirá-lo da condição originária na qual passaria dias tranquilos e inocentes, é ela quem transformará, com o tempo, o homem em um tirano de si mesmo e da natureza. Com a perfectibilidade, o homem perderá sua ingenuidade, construirá o progresso e desencadeará a desigualdade no meio social. Em complemento, Rehm (2012, p. 143, on line) assevera:

A “meta-faculdade” que permite ao homem ajustar-se à mudança é o que Rousseau chama de “perfectibilidade” (“perfectibilité”).

A perfectibilidade, juntamente com a liberdade, é o que distingue os homens dos animais. Não se refere à habilidade simples, por exemplo, de evitar urtigas depois de um primeiro contato ignorante e prejudicial, i. e., não é apenas aprender com a experiência, comum a homens e animais. O que é especial sobre perfectibilidade é que é “uma faculdade que, com a ajuda das circunstâncias, sucessivamente desenvolve todos os outros”; traz à tona faculdades que o homem potencialmente possui, mas que, segundo Rousseau, ele não precisa, desde o início, de sociabilidade ou racionalidade[2].

Ghiraldelli Junior (2012) preleciona que, em Rousseau, o ser humano é naturalmente bom, e o que vai depravá-lo serão as mudanças sobrevindas em sua constituição, os progressos conquistados e os conhecimentos que ele vai adquirir com o passar do tempo. Será a própria sociedade e seus progressos que levarão, necessariamente, os homens a se odiarem, notadamente, quando seus interesses se cruzarem. Diz-se que a sociedade fora construída com base na vantagem sobre o prejuízo. As perdas de uns fazendo quase sempre a prosperidade do outro.

O filósofo aduz que no estado de natureza os únicos bens que o homem selvagem conhece no universo são o alimento, uma fêmea e o repouso. E, os únicos males que teme são a dor e a fome. O isolamento e a existência de riquezas naturais suficientes fazem com que o homem não esteja apegado a nada, nem sequer à sua fêmea nem a suas crias, não tendo uma verdadeira linguagem e inexistindo possibilidade de progresso por acúmulo de conhecimento (RUSS, 2015).

No estado de natureza, os homens não possuíam nenhuma espécie de relação moral nem deveres conhecidos, não tinham nem vícios nem virtudes, portanto, não podiam ser nem bons nem maus. Era o estado mais apropriado à paz e o mais conveniente ao gênero humano (ROUSSEAU, 2008). Não conheciam a vaidade, a estima, a consideração, o desprezo, nenhuma noção verdadeira de justiça.

Rousseau (1999) lança luzes à questão do instinto de conservação de si mesmo do homem no estado de natureza, refletindo uma espécie de amor a si. Este homem primitivo conhece um amor a si imediato, porém, isento de verdadeiro egoísmo. A naturalidade deste amor a si, forma do instinto de conservação, acabará por degradar-se em amor-próprio no estado de civilização. Para ele, este é o “primeiro princípio da moral natural” (1999, p. 17).

Traz à discussão a questão da virtude natural existente no homem, qual seja, a piedade, que considera o “segundo princípio da moral natural” (1999, p. 17). Para ele, a piedade é um sentimento humano que, ao proporcionar a identificação com o outro, estabelece os primeiros laços que os unem entre si. Através dela, o homem sofre no sofrimento do outro, pois percebe que pode padecer dos mesmos males.

A piedade é um conceito essencial na obra de Rousseau, na medida em que, enquanto impulso natural, proporciona verdadeiros laços de fraternidade e amizade nas primeiras sociedades. No mundo moderno, por outro lado, as relações humanas são marcadas pelas vaidades do amor-próprio, pela competição e construção de uma sociedade desagregada e corrupta. A piedade representa, dentro desse diagnóstico pessimista da sociedade moderna, uma natureza esquecida, um elemento agregativo que o homem ainda pode aprender a desenvolver.

Rousseau (2008) assevera que os homens selvagens, vagando nas florestas sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligações, viviam em ambiente aonde a desigualdade não era realidade. No estado de natureza não havia dependência mútua entre os homens e nem necessidades recíprocas, motivo pelo qual não haviam laços de servidão, nem jugo e nem lei do mais forte.

O homem da natureza em Rousseau, pode ser caracterizado como animal pré-social, na medida em que vivia sozinho, desprovido de pensamento, linguagem, guiado por um instinto de conservação e satisfazendo-se do produto da natureza. A ausência de comunicação entre esses homens corroborava para sua não evolução (DUROZOI & ROUSSEL, 1993).

Extrai-se, do homem da natureza, um amoralismo integral aonde aquele não é nem bom nem mau, ignora tanto as virtudes quantos os vícios. O estado de natureza é o mais vantajoso para ele e lhe proporciona mais felicidade do que o estado social. Além disso, a moral natural baseia-se no instinto de conservação de si mesmo e na piedade, que acaba por prendê-lo a outrem, mesmo sem uma razão como fio condutor. No estado de natureza, é suficiente apenas o instinto.

Ocorre que, a razão humana se aperfeiçoou. Ao acaso coube a tarefa de aperfeiçoar essa razão levando o homem a tornar-se sociável. Várias causas particulares contribuíram para que o homem saísse de sua condição primitiva, chegando ao estado civil que significaria sua própria deterioração. A necessidade foi a motivação para o homem adquirir novos conhecimentos e evoluir. A passagem do homem natural ao homem social, não pode ser obra do próprio homem, mas sim, do conjunto de várias causas externas que resultaram nessa evolução social.

A perfectibilidade, ou seja, a capacidade de mudar em decorrência das circunstâncias, fez com que os homens, para sobreviver, se unissem e daí formassem as primeiras sociedades. As constantes modificações em seu ambiente, seja pelo clima, seja pela vegetação, ocasionou a necessidade deste homem da natureza evoluir. Então, a partir do momento que este homem da natureza adquiriu qualidades como a linguagem, o pensamento, os sentimentos, passou a viver em harmonia com outrem, fundando famílias e relações sociais. Durozoi & Roussel (1993), ao trabalharem com esta passagem do homem da natureza para o homem natural, lecionam que o trabalhar no solo tornou-se a justificativa para possuí-lo.

Neste momento, o homem natural já era uma realidade. E o primitivismo ficou para trás. Todavia, “essa verdadeira idade do ouro” (DUROZOI & ROUSSEL, 1993, p. 415), com avanços evolutivos, não poderia perdurar por muito tempo, na medida em que continuaria a existirem desigualdades estritamente físicas entre os homens, e estas acarretaram a “degenerescência das relações e a perversão generalizada das qualidades humanas” (DUROZOI & ROUSSEL, 1993, p. 415).

O homem natural não conseguiu controlar os efeitos negativos de sua própria natureza. Seu pensar e seu agir levaram-no a alcançar um novo estágio evolutivo, o de um homem social inserido em uma sociedade que apenas reflete um ser deteriorado. Assim, o que se extraí das linhas filosóficas de Rousseau é que toda a miséria humana decorre do próprio homem, ele é o responsável direto pelo mal no mundo. E, pari passu, a instituição da propriedade privada protagonizada por este homem exsurge como “fonte da pobreza, da opressão, do crime e das guerras” (FLEISCHACKER, 2006, p. 86).

A ideia de Rousseau é que o estado de natureza é um estado de autossuficiência, sem educação nem progresso, uma vida experimentada no próprio instante da necessidade. A evolução do ser humano viabilizou avanços, notadamente quanto à sua interação com outras pessoas, o que auxilia no nascimento de relações sociais cada vez mais complexas e na formação de grupos familiares. Quanto à desigualdade, apenas a natural ou biológica fazia parte da sociedade primitiva, passando a exercer, cada vez mais, influência sobre as pessoas, corroborando para o desenvolvimento de uma sociedade civil marcadamente desigual e para a deterioração do homem.

 

  1. O homem social e a origem da desigualdade

Rousseau (2008, p. 80) declina que “O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. Alega que crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não ocorreriam se alguém, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Não escutem esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém!”.

Para o filósofo, a propriedade privada se tornou o elemento fundador da sociedade civil e que, a inércia dos homens que perceberam a decisão tomada e nada fizeram colaborou para a disseminação da prática de apropriação individual, gerando misérias que alcançaram a humanidade. Enfatiza que a ideia de propriedade privada não se forma de repente, foram necessários uma sucessão de acontecimentos e de conhecimentos para se chegar ao seu conceito completo, que representa o termo final do estado de natureza.

Mas, o que levará o ser humano a sair do estado de natureza? A resposta é encontrada nas circunstâncias fortuitas que conduzirão o homem a utilizar, realmente, suas capacidades. Neste sentido, o ser humano nascente, governado por sensações, ingressará na história por razões contingentes. A necessidade fez com que cessasse a inatividade de sua capacidade, tornando-a ativa, e seu aperfeiçoamento corroborou para os avanços que, mais tarde, custariam sua própria liberdade e igualdade.

As dificuldades que se apresentaram no meio natural fizeram este homem aperfeiçoar-se e buscar novos conhecimentos, e, com isso, temos os primeiros progressos. O homem selvagem tornou-se ágil, rápido, vigoroso, transformou galhos de árvores e pedras em armas. O acaso os fez conhecer o fogo, e usaram-no para combater o frio e preparar as carnes. E, tem-se um ser superior aos demais animais. Um ser que passou a olhar para si mesmo e sentir orgulho. E caminhava para ser o primeiro como indivíduo. Todos esses progressos contribuíram para que outros progressos fossem alcançados (ROUSSEAU, 2008).

E a indústria do homem primitivo se modernizava. A construção de habitações ou abrigos é vista como uma revolução (ROUSSEAU, 2008). E, as famílias distinguiam-se e a habitação comum fazia nascer a situação de homens e mulheres vivendo sob o mesmo teto, passando mais tempo juntos. E o viver junto fez surgir o amor conjugal e o amor paterno. Surgem formas de linguagem mais compreensíveis. Os homens, então, aproximam-se, seja pela expansão demográfica, pelas dificuldades, pelos problemas de interesse comum. Os vínculos formados, as moradias precárias e as linguagens primitivas aprimoram-se e as relações humanas são fortalecidas. Para Rousseau (2008), este era o estágio no qual o homem deveria ter parado. Laskar (2013, on line) assevera:

Antes do Contrato Social, a vida no Estado da Natureza era feliz e havia igualdade entre os homens. Com o passar do tempo, no entanto, a humanidade enfrentou certas mudanças. À medida que a população geral aumentava, os meios pelos quais as pessoas podiam satisfazer suas necessidades precisavam mudar. As pessoas começaram lentamente a viver juntas em famílias pequenas e depois em pequenas comunidades. Divisões do trabalho foram introduzidas, tanto dentro como entre as famílias, e descobertas e invenções facilitaram a vida, dando origem ao tempo de lazer. Esse tempo de lazer inevitavelmente levou as pessoas a fazer comparações entre si e os outros, resultando em valores públicos, levando à vergonha e inveja, orgulho e desprezo. Mais importante, no entanto, de acordo com Rousseau, foi a invenção da propriedade privada, que constituiu o momento crucial na evolução da humanidade de um estado simples e puro em um, caracterizado pela ganância, competição, vaidade, desigualdade e vício[3].

Deste modo, a fase das sociedades “primitivas” ou “selvagens” é ficada para trás, dando lugar à sociedade civil (RUSS, 2015). Com a lenta e gradual evolução, como disse Laskar, homens conheceram outros homens e novas comunidades surgiram. As ligações se estendem e os laços se estreitam. A pequena comunidade sentada à volta da fogueira cantando e dançando começa a se enxergar. Os homens passaram a se comparar, o melhor caçador, o mais forte, o mais bonito, o mais hábil começa a se destacar, e o ser e o parecer tornam-se diferentes. A vaidade e o desprezo, a vergonha e a inveja, disso temos o primeiro passo para a desigualdade e para o vício.

E as afrontas e o desprezo tornam-se motivo de vingança. E a crueldade tomou conta da conduta humana. Os homens tinham como único juiz a sua própria consciência. E cada qual sendo juiz a sua maneira tem início o estado de guerra de todos contra todos. Vingança e crueldade aparecem e ganham forma e força, pois, as comunidades estão desprovidas de leis (ROUSSEAU, 2008).

Paralelamente, surge a agricultura e a metalurgia, evento ao qual Rousseau (2008) atribui ser uma revolução. Com estes eventos surge a divisão do trabalho, a noção de propriedade se enraíza e passam a existir homens ricos e homens pobres, que dependerão doravante uns dos outros. É dentro deste contexto, de avanços, de violência crescente, de divisão da terra, que a ideia de propriedade amadurece irreversivelmente. O surgimento da propriedade e, com ela, a miséria, a desigualdade e a escravidão, fizeram com que a igualdade desaparecesse. E cresce a necessidade de se criar regras de justiça destinadas a protegê-la.

Com o progresso, a violência generalizou-se, seja com as usurpações por parte dos ricos, seja com o banditismo oriundo dos pobres por conta da crescente desigualdade. Se a metalurgia, a agricultura e a divisão do trabalho puseram fim às sociedades primitivas, marcadas pela igualdade e liberdade entre seus habitantes, a passagem ao estado civil, balizado pela propriedade privada, inaugura uma era de deterioração desses ideais políticos (RUSS, 2015).

Enfim, a ambição devoradora, a vontade de elevar sua fortuna relativa, menos por uma verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens uma sombria tendência a se prejudicarem mutuamente, um ciúme secreto que é tanto mais perigoso quanto, para desferir seu golpe com segurança, assume seguidamente a máscara da benevolência. Em suma: por um lado, concorrência e rivalidade; por outro lado, oposição de interesse e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem.

A propriedade, em Rousseau, foi uma fonte de violência e de desarmonia social, pois, abriu a porta à miséria e à escravidão, fazendo desaparecer a igualdade (RUSS, 2015). E os ricos, que conheceram o poder de dominar, passaram então a subjugar e escravizar aqueles desprovidos de terra, de gado, extraindo o bem de outrem, como lobos famintos querendo devorar homens.

Contudo, inexistia garantia, segurança, tranquilidade em sociedade. Neste contexto, o rico, pressionado pela necessidade, concebeu um projeto: empregar em seu favor as forças daqueles mesmos que o atacavam, transformar seus adversários em defensores. E, para se proteger da opressão, para conter os ambiciosos e garantir a propriedade de cada um, pensou-se na instituição de regras de justiça e de paz, às quais obrigariam a todos (RUSS, 2015).

E, um contrato social foi pensado “pela astúcia dos poderes“ (RUSS, 2015, p. 222), para estabelecer uma sociedade provida de instituições estáveis com um poder supremo governado por leis. Criou-se um pacto que impôs leis que serviram de fundamento à sociedade civil, leis que interessavam aos próprios ricos e poderosos à sua época. Confiou-se a alguns indivíduos o encargo da autoridade pública (chefes), incumbindo a magistrados (ministros da lei) a tarefa de fazer observar as deliberações do povo.

Logo, seria preciso sacrificar uma parte de sua liberdade para a conservação da outra parte e, talvez essa tenha sido, efetivamente, a origem da sociedade e das leis, tendo como consequência a destruição da liberdade natural e a fixação, para sempre, da lei da propriedade e da desigualdade (ROUSSEAU, 2008). O pacto institucionalizou a desigualdade e legalizou a desigualdade dos bens.

Salgado (2008) assevera que o contratualismo, em Rousseau, exsurge como fundamento para o poder político, para a fundação do Estado, legitimando o exercício do poder de um homem sobre os demais a partir da concordância dos indivíduos através de uma análise racional, afastando-se, assim, de justificativas pautadas na natureza das coisas ou na vontade de Deus. O consentimento racional do homem permitiu que esse se organizasse em uma sociedade política e se submetesse a uma autoridade.

E Rousseau (2008) passa a indagar quais os tipos de governos podem ter surgido. De antemão descarta a possibilidade de um governo despótico ter sido o iniciador do processo, pois o sentimento de liberdade do homem não o permitiria. Diz que os governantes devem ter surgido de forma eletiva, isto é, se em uma comunidade uma única pessoa era considerada digna e capacitada para governá-la surgiria um estado monárquico; se várias pessoas usufruíam, ao mesmo tempo, de condições para tal surgiria um estado aristocrático, porém se todas as pessoas possuíam qualidades homogêneas e resolvessem administrar conjuntamente surgiria uma democracia. O desvirtuamento dessas formas de governo pela ambição de alguns é que deram origem a estados autoritários e despóticos.

De qualquer das formas, a sociedade civil solidificou-se e se tornou irreversível. Porém, o pacto inicial degenerou-se rapidamente em violências. Então, a autoridade é atribuída a alguns magistrados. Os magistrados transformam-se, com o tempo, em déspotas. E a busca pela segurança conduziu homens à escravidão. Todavia, apesar da desigualdade, a sociedade progrediu em todos os domínios, singularmente na esfera econômica, acabando por fortalecer o despotismo (RUSS, 2015). O direito desaparece em proveito da força e a liberdade é extinta.

Para Rousseau (1999), a humanidade passou por estágios no seu desenvolvimento, todos marcados por um novo crescimento da desigualdade. O primeiro estágio está ligado ao estado de natureza e os primeiros progressos, ligado às dificuldades que se apresentaram no meio natural. O segundo é a idade do ouro, marcada pela habitação, aperfeiçoamento da linguagem, nascimento das relações de vizinhança, dentre outros. Em consequência, temos a constituição da família, de uma primeira forma de propriedade e o próprio desenvolvimento psicológico do homem.

O terceiro estágio coincide com o primeiro progresso da desigualdade, isto é, a propriedade privada. Esta vai separar os ricos dos pobres, suscitando a formação das primeiras sociedades civis, baseadas em leis. Como causas, tem-se o desenvolvimento da metalurgia e da agricultura, que faz com que a cultura de terras leve à divisão. Aqui, o homem torna-se escravo das suas próprias necessidades e de seus semelhantes. Não podendo garantir sua propriedade, os ricos, para legitimarem sua posse, dão aos homens instituições e tem-se a formação de associações e de governantes. Aqui, perde-se a liberdade e o direito natural (ROUSSEAU, 1999).

O quarto estágio encaixa-se com o segundo progresso da desigualdade, que é a existência dos magistrados. Com esta criação, a sociedade criou poderosos e fracos. Como o primeiro pacto, pelo qual os indivíduos se constituem em sociedade, não fora suficiente, um segundo pacto mostrava-se necessário, qual seja, a sociedade se dar um Governo. Cabendo aos magistrados oferecer garantias às deliberações do povo (ROUSSEAU, 1999).

Porém, quando o poder legítimo se transfigura em poder arbitrário, temos o quinto estágio e a terceira grande forma de desigualdade, qual seja, o despotismo e a ideia de senhor e escravo. O despotismo fecha o círculo da evolução, e reencontra todos os caracteres do estado de natureza. Deste modo, os homens são iguais, justamente, por não valerem mais nada, porque o direito do mais forte vence; a moralidade reduziu-se a uma obediência cega e não existem mais virtudes, nem noção de bem; o homem natural, simplesmente, desapareceu (ROUSSEAU, 1999).

Rousseau (2008) afirma que se vemos um punhado de poderosos e ricos no topo das grandezas e da fortuna, enquanto a multidão rasteja na obscuridade e na miséria, é porque os primeiros só valorizam as coisas de que usufruem à medida que os outros são privados delas e porque, sem mudar de situação, deixariam de ser felizes se o povo não fosse mais miserável. Goldoni acentua esta característica, dizendo da inviabilidade de ser rico e, ao mesmo tempo, virtuoso. Aduz o autor:

A confutação deste argumento por Rousseau é implacável: é impossível ser rico e virtuoso, ou rico e feliz. A lógica por trás da acumulação de riqueza é a negação da humanidade dos pobres; a condição humana de afluência nega a possibilidade de autonomia individual, porque os ricos acabam nas garras de sua lógica. Da mesma forma, em um fragmento sobre o luxo e as artes, possivelmente escrito na mesma época do DPE, Rousseau explicita as fontes de gratificação ligadas à condição de riqueza pessoal. O principal benefício da riqueza é o privilégio, isto é, a valorização do supérfluo através da exclusão dos pobres. Pode-se apreciar o status de ser rico apenas enquanto houver outros excluídos dele[4].

E, do surgimento de governos temos governantes e governados, e do nascimento de estados despóticos, temos senhores e escravos. E as noções do bem e os princípios da justiça desaparecem mais uma vez. E tudo se resume à lei do mais forte. E a corrupção impera. O advento da propriedade dividiu os homens entre ricos e pobres. “Para Rousseau, a invenção da propriedade constitui a “queda da graça” da humanidade fora do Estado da Natureza”[5]. (LASKAR, 2013, on line).

Rousseau demonstrou ter uma preocupação com a desigualdade e a pobreza sociais, discutindo, deste modo, a igualdade e vendo em sua realização um meio para construção de uma sociedade política ordenada, marcada pela justiça e bem-estar de sua população. Já a desigualdade moral ou política, em Rousseau, tem como ponto de partida a alteração da alma, da essência dos seres humanos, que os transformou e os fizeram transformar a natureza humana. As paixões humanas fizeram o homem natural desaparecer e, em seu lugar, a artificialidade imperar e a virtude se desfazer.

Rousseau (2008) expõe que a desigualdade é quase nula no estado de natureza, limitava-se à esfera física, obtendo força e crescimento com o desenvolvimento de nossas faculdades e os progressos do espírito humano, tornando-se estável pelo estabelecimento da propriedade e das leis. A acumulação excessiva da propriedade criou uma relação de dominação e servidão que não podia ser tolerada frente a valores como igualdade e liberdade. E, conforme se depreende em seus escritos, tais valores receberam singular importância em sua filosofia.

O diagnóstico de Rousseau foi no sentido de que a origem da desigualdade está na instituição da propriedade. Propriedade ilegítima que substituiu a justa posse. Para ele, a riqueza, que gera a vaidade, corrompe a moralidade e a desigualdade, que gera a inveja e o ódio, corrompe a política. Ora, se a instituição da propriedade foi a responsável pelo ódio, conflito e pobreza em sociedade, impor limites ou abolir a referida propriedade pode também ser um caminho para eliminar o ódio, o conflito e a pobreza.

Por outro lado, se a eliminação da propriedade revela-se medida inalcançável ao tempo de Rousseau e ao momento presente, mostra-se razoável para o alcance de uma justiça distributiva, tão propalada por filósofos a exemplo de John Rawls, a ideia de uma redistribuição dessa propriedade objetivando minimizar, conter ou erradicar a pobreza latente no seio da sociedade. A leitura que se faz de Rousseau é de alguém preocupado com a desigualdade na sociedade, de alguém que visualizou na propriedade a origem da desigualdade, isso porque aquela faz desenvolver uma competição frenética entre as pessoas, levando ao aparecimento de conflitos e de relações espúrias de dominação e dependência.

É bom frisar também que Rousseau não propôs um retorno ao mundo pré-social. Ele desejava que a sociedade, ao menos, reconquistasse algumas das virtudes de sua imaginada condição primitiva. Fleischacker (2006) diz que Rousseau acreditava que, o que a sociedade fez, ela é capaz de desfazer, e ela seria capaz de mudar aquelas características da natureza humana que tornaram impossível a igualdade socioeconômica, e mais, afirma que Rousseau nunca disse que a justiça demandava que a sociedade se refizesse à imagem do estado de natureza.

O intento de Rousseau, ao escrever o seu II Discurso, não era provocar mudanças políticas radicais na época, mas, sim, “inspirar nas pessoas o sentimento de que todos têm de assumir a responsabilidade por sua sociedade e de que todos têm a responsabilidade de ser cidadãos ativos” (FLEISCHACKER, 2006, p. 84).

Rousseau deixou, para as gerações posteriores, lições sobre participação política, responsabilidade moral, consciência ética, um aglomerado de percepções que, extraídas de suas obras e bem interpretadas, levam a pensar a construção de um novo amanhã, de uma nova sociedade e de um novo ser humano capaz de olhar o próximo como igual, como extensão de si mesmo, e não como um simples “meio”.

 

Conclusão

O estudo do II Discurso de Rousseau, para além de nos revelar uma distopia, mostra que o ser humano é portador, naturalmente, de qualidades potenciais e inatas tais como a virtude, a bondade, a piedade, a liberdade, esta exercida no curso histórico, ainda que possa desviá-lo do caminho para o qual está naturalmente inclinado a seguir. Esta natureza humana, pelo que se depreende das linhas escritas pelo autor, não depende da cultura ou da sociedade em que esteja inserido, ela individualiza as pessoas, tornando-as únicas e distintas dos demais animais.

A potencialidade do ser humano o fez evoluir, deixando o estado de dispersão para formar a sociedade civil. Porém, a vida em sociedade foi-lhe desfavorável. Ela frustrou o desenvolvimento de suas virtudes essenciais e conduziu-o à deterioração, à perda da liberdade e da condição de igual. Quando o homem abandonou o estado de natureza, aonde vivia livre e em paz, caiu, irreversivelmente, em um cotejo de perversidade, e seu engenho induziu-o a praticar desigualdades, colaborando para a construção de uma civilização marcada pela miséria, pobreza e escravidão.

Rousseau propôs explicitar, em sua obra, a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade, passando pela perfectibilidade e alcançando o desenvolvimento e, pari passu, a degeneração, através da instituição da propriedade. Trouxe um homem primitivo que desconhecia o bem ou o mal, era livre e não experimentara nenhuma forma de desigualdade moral ou política, a não ser a biológica. Em seguida, por circunstâncias meramente fortuitas este ser humano é levado para fora deste estado de paz, aonde acaba criando as sociedades primitivas, ainda sem instituições, onde tem-se uma desigualdade ainda precária. Da aparição da agricultura e da metalurgia surgem infortúnios, que o conduziram à divisão do trabalho e, ao desenvolvimento da ideia da propriedade privada, aonde tem-se a origem da desigualdade social entre os homens.

Num terceiro momento, existindo a propriedade privada, instaura-se a desigualdade e a violência sem limites, que levam os homens e a própria sociedade a tornarem-se instáveis. No quarto, temos a existência dos magistrados e, de sua criação, a sociedade criou poderosos e fracos. Chega-se à última etapa em que o despotismo retira a liberdade do homem, cabendo a este apenas obedecer. Desaparece a ideia de homem natural, livre e igual, solidifica-se os homens iguais, não pelo valor político, mas pelo fato de não serem mais nada.

Para o pensador genebrino é inadmissível que uma pessoa possa dominar outra por força da riqueza e do poder, visto que essa relação de dominação faz nascer uma servidão ofensiva à liberdade do indivíduo, gerando, por consequência, a corrupção e a própria decadência do Estado. A diferença de riqueza, em Rousseau, não pode ser tamanha que permita que alguém possa, simplesmente, comprar outrem ou que alguém precise se vender.

Rousseau (2008) disse que falaria de homens, para outros homens, e que iria honrar a verdade. Falou do estado de natureza até a constituição da sociedade civil. Do primitivismo até o desenvolvimento do engenho humano. Da ingenuidade até a degeneração, passando pela perfectibilidade. Da liberdade até a escravidão. E, da igualdade até a origem da desigualdade social por intermédio da instituição da propriedade privada, fonte da pobreza, opressão, crimes e guerras entre os homens.

O ataque de Rousseau à propriedade privada e às mazelas que advieram com ela deveu-se à ideia de que a desigualdade socioeconômica sempre conferiria influência desproporcional a alguns, refletindo na elaboração das leis e na divisão dos benefícios sociais, ocasionado desequilíbrios e, por consequência, injustiça social. Assim, ele via a desigualdade, nascida da propriedade, como um obstáculo à consolidação da verdadeira democracia (FLEISCHACKER, 2006).

Revelou verdades inconvenientes, a exemplo de que a desgraça e a miséria humanas são causadas pelo próprio homem, que as mazelas sociais encontram o seu ponto de ignição nas ações e omissões do próprio homem, e que a desigualdade social, ainda que tendo origem na instituição da propriedade privada, perpetuou-se por vontade deste homem. E, somente através deste é que a sociedade poderá reencontrar a liberdade e igualdade, reconstruindo-as. Preocupou-se com o ser humano, não apenas pelo fato de ser humano, e sim, pelo fato de ser um cidadão, agente transformador da sociedade em que vive.

Os problemas da sociedade podem ser resolvidos pela própria sociedade, através de suas entidades políticas, através de cada um de seus membros, sendo possível se construir um Estado justo, equilibrado, democrático, com mulheres e homens conscientes de seus direitos e deveres, e com o firme propósito de superar, praticamente, todos os males sociais e construir um novo amanhã, com mais paz.

 

Referências

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DUROZOI, Gérard & ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia. Tradução: Marina Appenzeller – Campinas, SP: Papirus, 1993.

FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo. A filosofia como medicina da alma. Barueri, SP: Manole, 2012.

GOLDONI, Marco. Rousseau’s Radical Constitutionalism and Its Legacy (May 22, 2017). In: Dowdle, M. W. and Wilkinson, M. A. (eds.) Constitutionalism Beyond Liberalism. Cambridge University Press: Cambridge. ISBN 9781107112759. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2971995. Acesso em: 07 jun. 2018.

LASKAR, Manzoor. Summary of Social Contract Theory by Hobbes, Locke and Rousseau (April 4, 2013). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2410525 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2410525. Acesso em: 06 jun. 2018.

LIMA, Rômulo de Araújo. 10 lições sobre Rousseau. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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REHM, Michaela. Obligation in Rousseau: making natural law history. Jahrbuch fur Recht und Ethik20 (2012): p. 139-154. HeinOnline, https://heinonline.org/HOL/P?h=hein.journals/jaret20&i=152. Acesso em: 24 jul. 2018.

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STANGUE, Fábio. Tópicos de filosofia moderna. Curitiba: InterSaberes, 2017.

 

[1] No original: “Rousseau looks at man as a bundle of potential-potential for good or for ill. In his writings, Rousseau seeks to understand what nature makes man capable of becoming and then what the state and society have actually made him into.” (BIRKHEAD, 1994-1995, on line).

[2] No original: “The “meta-faculty” that enables man to adjust to change is what Rousseau calls “perfectibility” (“perfectibilité’). Perfectibility, along with free agency, is what distinguishes men from animals. It does not refer to the simple ability, say, to avoid stinging nettles after a first ignorant and hurtful contact, i. e., it is not just learning from experience, common to men and animals alike. What is special about perfectibility is that it is “a faculty which, with the aid of circumstances, successively develops all the others”; it brings forward faculties man potentially has, but that according to Rousseau he does not need from the start such as sociability or rationality.” (Rehm (2012, p. 143, on line).

[3] No original: “Prior to the Social Contract, the life in the State of Nature was happy and there was equality among men. As time passed, however, humanity faced certain changes. As the overall population increased, the means by which people could satisfy their needs had to change. People slowly began to live together in small families, and then in small communities. Divisions of labour were introduced, both within and between families, and discoveries and inventions made life easier, giving rise to leisure time. Such leisure time inevitably led people to make comparisons between themselves and others, resulting in public values, leading to shame and envy, pride and contempt. Most importantly however, according to Rousseau, was the invention of private property, which constituted the pivotal moment in humanity’s evolution out of a simple, pure state into one, characterized by greed, competition, vanity, inequality and vice.” (Laskar, 2013, on line).

[4] No original: “Rousseau’s confutation of this argument is merciless: it is impossible to be rich and virtuous, or rich and happy. The logic behind the accumulation of wealth is the denial of the humanity of the poor; the human condition of affluence denies the possibility of individual autonomy because the rich end up in the grip of its logic. Similarly, in a fragment on luxury and the arts, possibly written around the same time of the DPE, Rousseau makes explicit the sources of gratification attached to the condition of personal affluence. The main benefit given by wealth is privilege, that is, the valorisation of the superfluous through the exclusion of the poor. One can enjoy the status of being wealthy only as long as there are others excluded from it” (GOLDONI, 2017, on line).

[5] No original: “For Rousseau the invention of property constitutes humanity’s ‘fall from grace’ out of the State of Nature” (LASKAR, 2013, on line).

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