Resumo: Elaborado pelo alemão Claus Roxin, em 1964, baseado no brocardo minima non curat praetor, o Princípio da Insignificância, originado a partir das diversas vertentes da intervenção mínima, ante o caráter fragmentário da ciência do direito penal, nasce com a fundamental tarefa de auxiliar o intérprete na análise da ocorrência ou não do crime e de se evitar o excesso no uso do poder punitivo estatal. Isso porque, o mencionado princípio tem o condão de afastar o fato típico (um dos elementos do crime), excluindo da incidência das leis, situações materialmente não lesivas a bens jurídicos e irrelevantes para a sociedade, que surgem no momento da elaboração da norma penal, quando o legislador descreve abstratamente a conduta típica, tentando alcançar o maior número possível de condutas. Face estas imperfeições legislativas, condutas tidas como irrelevantes para o direito penal são abarcadas pelo princípio da legalidade (formal), quando não era objetivo do legislador, que visa alcançar somente os fatos sociais significantes para os bens jurídicos tutelados. A legislação castrense prevê, em seu bojo, até de forma pioneira, sinais da possibilidade de aplicação do princípio em tela. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, vem admitindo sua aplicabilidade, sobretudo, deixando de observar a tutela mediata do bem jurídico protegido pela norma e em detrimento dos princípios da hierarquia e disciplina, estes, pilares básicos do ordenamento militar e reguladores das relações interpessoais no âmbito da caserna, o que tem acarretado em verdadeiros embates de opiniões na doutrina e nos tribunais. Será dada ênfase na possibilidade da aplicação do princípio da insignificância nos crimes militares de furto e se a sua incidência afeta a convivência, a segurança jurídica e a tutela da regularidade das instituições militares.
Palavras-Chave: Direito Penal Militar-Insignificância Furto
Abstract: Prepared by the German Claus Roxin in 1964, based on the maxim minimum non curat praetor, the Principle of Bickering, originated from the various strands of minimal intervention, compared to the fragmentary nature of the science of criminal law, is born with the fundamental task of assisting the performer in the analysis of the occurrence or not of the crime and to avoid excessive use of the punitive power of the state. This is because the mentioned principle has the power to dispel the fact typical (one of the elements of the crime), excluding the impact of laws, situations not materially detrimental to property and legal irrelevant to society that arise in the development of standard criminal when the legislature abstractly describes the typical conduct, trying to reach the largest possible number of conduits. Given these imperfections laws, pipelines seen as irrelevant to the criminal law are covered by the principle of legality (formal), when there was the legislator's goal, which aims to achieve significant social facts only to the legally protected interests. The legislation provides castrense in its wake, even as pioneers, signals the possibility of applying the principle in screen. However, the Supreme Court, assuming its applicability is mainly observed leaving the tutelage mediate the legal interest protected by the standard and to the detriment of the principles of hierarchy and discipline, these, basic pillars of military planning and regulating interpersonal relationships within the barracks, which has led to clashes of opinions on the true doctrine and the courts. Emphasis will be placed on the possibility of applying the principle of military insignificance in the crimes of theft and its impact affects cohabitation, legal certainty and the protection of the regularity of military institutions.
Keywords: Criminal Law, Military Bickering – Theft
Sumário: Introdução. 1. Definição de Militar. 1.1. Organização da Justiça Militar. 1.1.1. Da Justiça Militar da União e dos Estados. 2. Aspectos de direito material. 2.1. Análise Histórica. 2.2. Conceito de Crime. 2.3. Crime Militar. 2.4. Classificação dos Crimes Militares. 2.5. O crime de furto no Código Penal Militar. 3. Dos Princípios Jurídicos. 3.1. Aplicação dos Princípios Constitucionais no Direito Penal Militar. 3.2. Origem Histórica. 3.3. Fundamentos do Princípio da Insignificância. 3.3.1. Princípio da Igualdade. 3.3.2. Princípio da Liberdade. 3.3.3. Princípio da Fragmentariedade. 3.3.4. Princípio da Proporcionalidade. 3.4. Critérios de Reconhecimento do Princípio da Insignificância. Conclusão . Referências.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo consiste na análise da aplicação do princípio da insignificância, na ocorrência do crime militar de furto, previsto no Art. 240 do Código Penal Militar. Inicialmente, será esclarecido ao leitor, o que vem a ser um militar e como funciona a aplicação e a organização da Justiça militar. Ainda será esclarecido quando se dá a ocorrência de um crime militar, dada à sua especificidade.
Os crimes militares podem ser próprios ou impróprios. Serão próprios quando forem previstos somente no código penal militar e exijam do seu sujeito ativo a qualidade de militar que atua violando os princípios da hierarquia e disciplina e o dever militar, por seu turno, serão impróprios quando estiverem previstos tanto na legislação militar quanto na legislação comum e somente ganham a qualificação de militar quando são atraídos por força do Art. 9º, do Código Penal Militar, a exemplo, do delito de furto, objeto do presente trabalho.
Em um segundo momento, será estudado o delito de furto, desde os seus primórdios, passando-se pela distinção entre posse e propriedade de bens móveis, até a sua previsão na legislação castrense, para daí poder se inferir da viabilidade ou não da aplicação do princípio da insignificância pelos operadores do direito e se sua utilização influência no funcionamento das instituições militares, quando da ocorrência da afetação de um bem jurídico patrimonial, que encontra guarida no Art. 240 do Código Penal Militar.
Haja vista a existência de princípios exclusivos do Direito Penal Militar será destinada um enfoque especial no estudo da coexistência destes com o princípio da insignificância, previsto, até de forma pioneira no Código Penal Militar, que data de 1969.
Com efeito, o princípio da hierarquia consiste na ordenação da autoridade em níveis diferentes, tendo como base o espírito de acatamento a sequencia de autoridade, no estrutura militar se manifesta na divisão por postos ou graduações. Poe ser facilmente reconhecido em diversos dispositivos da legislação infraconstitucional, mas, por sua importância, encontra previsão constitucional – Art. 42, da Constituição Federal.
A hierarquia em muito se relaciona com outro princípio típico do direito penal militar, qual seja, o princípio da disciplina correspondo ao poder deferido aos superiores hierárquicos de impor condutas e dar ordens aos inferiores, correlativamente, significando, o dever de obediência dos inferiores aos superiores.
Se por um lado o patrimônio é bem jurídico imediatamente tutelado pelo tipo penal de furto, mesmo no direito militar, o bem mediato corresponde a junção dos princípios da hierarquia e disciplina na formação da regularidade e eficiência das instituições militares, ou seja, refere ao próprio cumprimentos dos fins constitucionais da estrutura militar, daí porque a controvérsia quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância.
A relevância do estudo em comento reside na polêmica que vem causando as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, nas quais se admite a aplicação do princípio da insignificância em delitos previstos no Código Penal Militar, especificamente no crime militar de furto, Art. 240, em detrimento da segurança jurídica da legislação castrense, por ferir princípios específicos desta, pondo em risco a manutenção das instituições militares.
1. Definição de Militar
Busca-se iniciar este estudo esclarecendo ao leitor o que vem a ser um militar, figura tão presente e importante no seio da sociedade brasileira. A palavra militar deriva do latim e quer dizer “andar em mil” homens, ou militar, relativo à guerra, a soldado[1].
No ordenamento pátrio sua definição encontra-se no Art. 22 do Código Penal Militar[2]2, segundo o qual se enquadra nesta condição todo cidadão, que em tempo de guerra ou de paz, seja incorporado as Forças Armadas, para nela servir, ou sujeitar – se à disciplina militar. Os militares no Brasil são divididos em duas categorias, militares estaduais e federais.
A definição de militar estadual está prevista no Art. 42 da nossa lex legum[3], e nela se enquadram os integrantes das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros Militares, dos Estados, do Distrito Federal e dos territórios, que porventura venham a ser criados pela União.
A definição de militar federal está contida no Art. 142, caput, da Carta Magna do país[4], que assevera que os membros das Forças Armadas são denominados militares. As Forças Armadas são compostas pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, e são instituições que possuem a missão de defender a pátria, mantendo-a independente e soberana, além de zelar pela garantia da integridade territorial e a paz interna do país.
O Exército representa o segmento terrestre das Forças Armadas, sendo responsável por repelir as agressões e ameaças a soberania, a integridade territorial, o patrimônio, interesses da nação, apoiar a política externa do país e garantir os poderes constitucionais[5].
A Aeronáutica representa o ramo aéreo na segurança nacional, sendo de sua responsabilidade a defesa do espaço aéreo, impedindo-o que seja utilizado para a prática de atos hostis ou contrários aos interesses do país[6].
A Marinha é a força militar responsável pelas operações navais, tendo a missão de proteger a imensa costa do território brasileiro, as plataformas petrolíferas, guardar as águas territoriais, além de prestar apoio a Aeronáutica[7].
De acordo com a Lei Complementar nº. 97, de 09 de junho de 1999, que disciplina as atribuições subsidiárias das Forças Armadas, estas só poderão atuar e serem empregadas em questões de segurança nacional, quando esgotados todos os recursos destinados à preservação da ordem pública[8].
A definição dos integrantes das Forças Armadas está disciplinada na Lei nº 6.880/80, nos seus artigos 3º, 4º, e 6º. Encontram-se nesta situação os militares da ativa que são de carreira; os incorporados para prestação de serviço inicial, durante os prazos previstos em lei, ou durante as prorrogações destes prazos; os componentes da reserva, quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados; os alunos que estiverem em formação da ativa e da reserva; e ainda em tempo de guerra, todo e qualquer cidadão brasileiro convocado para o serviço da ativa nas Forças Armadas. Na inatividade serão considerados militares os da reserva remunerada, que percebam remuneração da União, porém sujeitos, ainda, a prestação de serviços na ativa, mediante convocação ou mobilização; os reformados dispensados da prestação de serviço na ativa, mas que continuem a perceber remuneração da União; os da reserva remunerada, e, excepcionalmente os reformados, executando tarefa por tempo certo, de acordo com o regulamento de cada força.
São considerados como reserva das Forças Armadas, os militares que estiverem na reserva remunerada e os cidadãos que reúnam condições para serem convocados ou mobilizados para a situação ativa. Ainda compõe o quadro da reserva das Forças Armadas, as Polícias Militares; os Corpos de Bombeiros Militares; a Marinha Mercante e seu pessoal; a Aviação Civil e seus integrantes; empresas devotadas as finalidades precípuas das Forças Militares.
Percebe-se facilmente a partir da leitura do texto, que outras categorias de profissionais integrantes do aparato de segurança do Brasil, não se enquadram na definição de militar, apesar de usarem fardas e serem regidos por hierarquia, como: Policiais Rodoviários Federais, Policiais Ferroviários Federais, Policiais Civis, Agentes Penitenciários e Guardas Municipais. Pedro Lenza bem sintetiza o descrito:
“Apenas para explicitar, devemos destacar que os militares não são só os integrantes das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica – Art. 142), como os integrantes das Forças Auxiliares e reserva do Exército (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares- Art. 42, caput, c/c Art. 144, §6º). Os primeiros estão organizados em nível federal (como vimos as Forças Armadas são instituições nacionais), enquanto os membros das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas, também, com base na hierarquia e disciplina, em nível estadual, distrital, ou dos Territórios”[9].
É importante lembrar que a figura do assemelhado, prevista no Art. 21 do Código Penal Militar (CPM), não mais existe, tendo surgido no ordenamento brasileiro no texto constitucional de 1934, no seu artigo 84[10].
Como bem se refere Ricardo Henrique Alves Giuliane, assemelhado era a denominação utilizada para se referir aos servidores civis que executavam suas atividades laborais em uma das armas militares, submetendo-se a batuta do ordenamento disciplinar militar e assim também, capazes de cometerem crimes militares. Hodiernamente, os civis não se submetem ao regime disciplinar das Forças Armadas e auxiliares, e são considerados civis para aplicação da lei penal militar. Frise-se que existem servidores civis trabalhando nos quadros das instituições militares, contudo, sem serem regidos pelos estatutos e regulamentos da vida castrense, mas por legislação específica[11].
1.1. Organização da Justiça Militar.
Com o surgimento das primeiras sociedades, paralelamente apareceram as instituições militares, que tem seu berço na Grécia, com a função precípua de defender os agrupamentos humanos de grupos rivais. Sobre esta época, observe-se o que diz José Luiz Campos Júnior:
“(…) a justiça militar estava entregue a um juiz sacerdote, entitulado de Archonte, que, conhecendo o princípio dos delitos militares, sancionava-os com as penas cabíveis. Com o passar dos tempos, o exame de tais crimes coube aos Strateges e, afinal aos Taxiarcas, sendo que ambos apenas instruíam o processo, cujo julgamento competia à Assembléia dos Helenitas, constituída por cidadãos da Attica, e dividida em Câmaras, conforme grupos de delitos[12]
Contudo, foi em Roma que a Justiça Militar se firmou e passou a influenciar todo o mundo. Continua o autor:
“A doutrina costuma dividir a história da Justiça Militar romana em quatro fases distintas: a da realeza, a época dos Cônsules e Tribunos, o período de Augusto e o de Constantino(…)Na primeira fase a Justiça Militar romana, que tal como nos primórdios da Grécia antiga não possuía autonomia em relação à civil, era exercida pelo Rei com o auxílio de um conselho de Patrícios, concentrando-se, porém, na majestade toda sorte de poderes. Com o transcorrer dos tempos, na Justiça Militar, ora centralizadora, ora não, passou-se a admitir a provocatio ad populiam, isto é, a decisão dos recursos criminais em última instância pelo povo e sob a direção dos duovire perduellionis, bem como a sujeição quase absoluta das tropas ao seu comandante, os tribuni celerum. Finda a época dos Tarquínios, inicia-se a segunda fase.No princípio, os Cônsules, que exerciam o imperium majes, julgavam, além das causas cíveis, as militares. Posteriormente estas couberam aqueles somente; aquelas, aos pretores. Entretanto, nas causas respectivas, os Cônsules não podiam, sem consultar previamente seus companheiros militares, impor a pena de morte a soldadesca.Imediatamente abaixo dos Cônsules, havia os Tribunos que, nomeados por aqueles e pelo povo, exerciam o imperium militiae que simbolizava uma dupla reunião: a participação no comando militar e na administração da justiça. Na seqüência, respeitando-se a ordem hierárquica, exercia-se a jurisdição disciplinar. Com o Império, teve início o terceiro período da Justiça Militar Romano-Castrense. Nessa fase, mesmo já havendo a delegação de poderes aos promagistratus, Augusto confiou aos Prefeitos do Pretório um poder ilimitado, salvo, apenas, nas causas relativas ao oficialato superior. Competindo-lhes o conhecimento de todas as apelações, suas decisões, antes recorríveis, passaram a ser inatacáveis, restando aos condenados a indulgência imperial. Nas Províncias do Imperador, havia uma divisão qualitativa, de maior ou menor grau, relativamente ao julgamento dos casos criminais. Aos legatus, comandante das legiões, competiam o julgamento e punições destes. Aqueles, ao Presidente da Província.
Quanto às Províncias do Senado, aos Procônsules, competia a jurisdição militar, sendo que, relativamente a condenação a pena capital, somente a poderiam infligir se por delegação do Imperador.
À época de Constantino, verifica-se o epílogo na história da Justiça Militar da Roma antiga. Em virtude da grande força política que as legiões romanas haviam adquiridas, o imperador visando a quebrantá-la, multipartiu-as, quebrando-lhes a consciência da própria força. Por corolário, houve a necessidade de modificação na Justiça Militar, o que fez retirando-se o poder militar dos Prefeitos do Pretório e delegando-o a duas espécies de juízes, os Magistri Peditum e os Magistri Equitum, que com o passar dos tempos forma confundidos sob a denominação de Magistri Militum, sendo auxiliados por um Consilium, cuja manifestação, em que pese obrigatória por vezes, era meramente consultiva. Os magistri militum apreciavam quase todos os recursos pertinentes aos soldados, inclusive causas da esfera civil de menor gravidade, pois as de maior importância eram destinadas aos Magistri per Províncias.
Quanto as causas secundárias, seus julgamentos cabiam aos Condes e Duques, assistidos pelo consistorium, auditorium, meramente consultivo”[13].
Os primeiros vestígios do surgimento do princípio da insignificância, para parte da doutrina, datam do Direito Romano, pois, como se vê, o Pretor não apreciava delitos de menor gravidade, o que gerou o brocardo minimis non curat praetor (O Pretor não cuida de casos pequenos)[14].
Mas, foi somente com a Revolução Francesa em 1789, que a Justiça Militar ganhou os sinais dos contornos hoje existentes, como seus princípios e a restrição de foro em razão das pessoas e da matéria[15].
No Brasil, assim como nos demais órgãos do Poder Judiciário, a Justiça Militar é organizada em Tribunais Superiores e, em primeira instância, por Juízes Auditores e os Conselhos de Justiça, como bem descreve o Art. 122, Inc. I e II da CF[16].
Como visto anteriormente, os servidores militares foram divididos em duas categorias: Federais e Estaduais. Por uma questão lógica, o legislador constituinte também fez uma distinção entre a Justiça Militar Federal (Art. 124 CF), e a Justiça Militar Estadual (Art 125, §4º CF).
O organograma abaixo muito bem ilustra a questão. Confira-se:
1.1.1. Da Justiça Militar da União e dos Estados
A organização da Justiça Militar da União está prevista na Lei nº 8.457, de 04 setembro, de 1992. Em primeira instância, a Justiça Militar da União é composta pelo Conselho de Justiça Especial, competente para processar e julgar os oficiais (Coronéis, Tenentes-Coronéis, Majores, Capitães e Tenentes, exceto os Generais que são julgados pelo Superior Tribunal Militar), pelo Conselho de Justiça Permanente, competente para processar e julgar os Praças (Sub – Tenentes, Sargentos, Cabos e Soldados), e por Juízes Auditores. Estes Conselhos são órgãos colegiados e funcionam nas sedes das auditorias militares[17].
Em segunda instância da Justiça Militar Federal tem-se o Superior Tribunal Militar (STM), que é composto por quinze ministros vitalícios, distribuídos da seguinte forma: 03 (três) oficiais Generais da Marinha, 04 (quatro) oficiais Generais do Exército, 03 (três) oficiais Generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, 05 (cinco) civis, dentre estes 03 (três) advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, 01 (um) escolhido entre os juízes auditores e 01 (um) membro do Ministério Público da Justiça Militar. Os Ministros são indicados pelo Presidente da República, e deverão ser aprovados pela maioria simples do Senado Federal, onde passarão por uma sabatina, para posteriormente serem nomeados. O Superior Tribunal Militar, em hipótese alguma aprecia matéria oriunda da Justiça Militar Estadual[18].
A Justiça Militar da União, que tem competência exclusivamente penal, é encarregada de julgar os militares das Forças Armadas, como também civis que pratiquem crimes contra o patrimônio ou lugar sob a administração militar, contra militar em atividade, ou contra funcionários do Ministério Militar ou da Justiça Militar no exercício de suas funções. Encontra-se dividida em doze circunscrições judiciárias militares, abrangendo todos os Estados da federação. Observe-se:
1ª – Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo (quatro auditorias);
2ª – Estado de São Paulo (duas auditorias);
3ª – Estado do Rio Grande do Sul (três auditorias);
4ª – Estado de Minas Gerais;
5º – Estados do Paraná e Santa Catarina;
6ª – Estados da Bahia e Sergipe;
7ª – Estados de Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba;
8ª – Estados do Pará, Amapá e Maranhão;
9ª – Estados do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso;
10ª – Estados do Ceará e Piauí;
11ª – Estados de Goiás, Tocantins e o Distrito Federal;[19]
12ª – Estados do Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia.
Assim como na Justiça Militar Federal, a primeira instância da Justiça Militar Estadual, também possui os Conselhos de Justiça Especial e Permanente e os Juízes- Auditores.
Na segunda instância para os Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, que possuem contingente superior a 20.000 (vinte mil) integrantes, existe o Tribunal de Justiça Militar (TJM). Nos Estados que não possuem o TJM, o Tribunal de Justiça é responsável pelo exercício do duplo grau de jurisdição, conforme o §3º, Art 125 da CF[20].
A Justiça Militar Estadual é responsável por processar e julgar os militares dos Estados nos crimes militares, cabendo ao Tribunal de Justiça decidir sobre a perda do posto e da patente dos Oficiais e da graduação das Praças. Diferentemente da Justiça Militar Federal, a Justiça Estadual não julga civis. Saliente-se que nos crimes dolosos contra a vida, os militares serão julgados pela Justiça Co mum[21].
Para a fixação da competência da Justiça Militar Estadual não é necessária somente a prática de crime militar, o autor obrigatoriamente tem que ser um Policial ou Bombeiro Militar, mesmo ocorrendo casos de conexão e continência[22].
É importante também frisar, que não cabe recurso das decisões do Tribunal de Justiça Militar ou do Tribunal de Justiça, para o Superior Tribunal Militar. Contudo, dependendo do conteúdo do acórdão, caberá recurso ao Supremo Tribunal Federal e/ou Superior Tribunal de Justiça. É de inteira competência dos juízes de direito da Justiça Militar processar e julgar, singularmente, os crimes definidos como militares, praticados contra civis, exceto os crimes dolosos contra a vida, e aos Conselhos, os demais crimes militares[23].
2. Aspectos de direito material.
2.1. Análise Histórica.
Antes de adentrar de forma mais detalhada no estudo do delito de furto, é de suma importância a realização de uma análise histórica do Direito Penal, para se poder compreender seus institutos, como o princípio da insignificância, e ter-se uma idéia de sua evolução no decorrer da história da humanidade.
Desde os tempos primitivos, o direito surgiu como uma idéia de se manter em equilíbrio a convivência do homem com os seus semelhantes, como um ser social que é. Nas sociedades antigas, o poder de impor o que era devido, ao que se poderia exigir e a culpa era fundada inicialmente no princípio do parentesco, conforme se aprende da lição de Tércio Ferraz Júnior:
“Ora, em sociedades primitivas, esse poder está dominado pelo elemento organizador, fundado primariamente no princípio do parentesco. Todas as estruturas sociais, que aliás não se especificam claramente, deixam-se penetrar por esse princípio, valendo tanto para as relações políticas como para as econômicas e para as culturais, produzindo uma segmentação que organiza a comunidade em famílias, grupos de famílias, clãs e grupos de clãs. Dentro da comunidade, todos são parentes, o não parente é uma figura esdrúxula. As alternativas de comportamento são, assim, pobres, resumindo-se num ‟ou isto ou aquilo‟, num „tudo ou nada‟. O indivíduo dentro da comunidade, só é alguém por sua pertinência parental ao clã. O poder de estabelecer o equilíbrio social liga-se ao parentesco. No horizonte do direito arcaico, só há lugar para uma única ordem: a existente, que é a única possível, a querida pela divindade e, por isso, sagrada (…)”[24].
De acordo com a posição de cada ente na comunidade, era estabelecido o que lhe era devido, assim o direito era utilizado como forma de distribuição social e caso surgisse algum elemento estranho no próprio grupo, como um infrator, este era sumariamente banido da comunidade, sendo jogado a própria sorte, ficando a mercê dos demais grupos, o que, invariavelmente, acarretaria em sua morte. Logo, punia-se o infrator para desagravar a divindade. Quando este era de um grupo social rival, a pena aplicada era a máxima, ou seja, o sacrifício de sua própria vida, sem haver qualquer preocupação com o elemento justiça. Assim, acreditava-se que o desejo da divindade era satisfeito, pela ofensa que sofrera com o delito. Os castigos eram cruéis, aplicados por delegação divina, pelos sacerdotes ou juízes esporádicos, e tinham como objetivo a purificação da alma dos criminosos[25].
Com o passar dos tempos afirma Bitencourt que na tentativa de se evitar a extinção das tribos, surgiu a reação proporcional a agressão praticada. Era a época do “olho por olho dente por dente”, prevista na lei de talião, adotada na Babilônia, pelo Código de Hamurabi; no Êxodo, pelos Hebreus; e em Roma na lei das XII Tábuas. A marca destas leis era o tratamento igualitário em que eram colocados vítima e infrator. Na lei das XII Tábuas, o crime de furto era separado em manifesto e não manifesto. Ocorria o furto manifesto quando o agente era surpreendido praticando a ação ou no local em que esta fora praticada se dava o flagrante delito. As penas aplicadas para estes casos eram de natureza corpórea. As demais condutas se enquadravam no furto não manifesto, sendo-lhes aplicadas penas de natureza pecuniária. Face o crescente número de infratores e a conseqüente deformação da população pela aplicação da lei talional, evoluiu-se para o sistema de composição. Através deste sistema, o criminoso compraria sua liberdade para se livrar do castigo. São os primeiros sinais das penas pecuniárias no Direito Penal[26].
Com o desenvolvimento das sociedades, pelo aumento da complexidade das interações humanas possíveis, e pelo decorrente aumento quantitativo de pessoas, estes sistemas foram sendo substituídos, passando-se a se ter como base a organização social. Surgiram os centros de administração, que passaram a deter o domínio político. Eram as comunidades se organizando como polis. Muda-se então a forma de tratar o infrator. Os comportamentos encarados como desviantes eram submetidos a procedimentos decisórios regulados, surgindo os juízes, tribunais, partes, advogados, etc. Era a procedimentalização do direito que fez surgir um grupo especializado no assunto, os juristas. Entra-se na era da vingança pública[27].
Nesta época, a civilização romana, tornou-se a mais importante do mundo ocidental, dada a idéia de caráter sagrado que era atribuído a fundação, uma vez que algo fosse criado, permaneceria obrigatória a sua manutenção para as gerações que estavam por vir. Surgiu o conceito de autoridade, como bem leciona Hannah Arentd:
“Foi nesse contexto que a palavra e o conceito de autoridade apareceram originariamente. A palavra auctoritas é derivada do verbo augere, „aumentar‟, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os anciãos, o senado ou os patres, os quais a obtinham por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores. A autoridade dos vivos era sempre derivativa, dependendo, como o coloca Plínio, dos auctores imperii Romani conditoresque, da autoridade dos fundadores que não mais se contavam no número dos vivos. A autoridade em contraposição ao poder (potesta), tinha suas raízes no passado, mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade que o poder e a força dos vivos”[28].
Foi na civilização romana que nasceu a distinção entre crimes públicos e privados. Esclarece Bitencourt que os crimes públicos consistiam na traição ou conspiração política contra o Estado, além do assassinato. Seus julgamentos eram de competência estatal, realizados através de um juiz, em tribunais especiais, cuja pena aplicada era a pena de morte. Os crimes privados eram constituídos pelas ofensas ao indivíduo, onde aí se inclui o crime de furto. Seus julgamentos eram atribuídos à própria vítima, participando o Estado somente na regulação do seu exercício[29].
Continua o autor discorrendo que no final da República no Império Romano, são editadas as Leges Corneliae e Juliae, que foram responsáveis pela criação da tipologia de diversos delitos da época. As Leges Corneliae tratavam dos crimes provenientes das relações interpessoais, como as patrimoniais (inclui-se o furto) e pessoais. Enquanto a Leges Juliae, dos crimes praticados contra o Estado, quer fossem pelos particulares ou pelos administradores. É importante ainda destacar nesta época, o ressurgiment o da pena de morte, com o aparecimento dos crimes extraordinários, onde aí se inclui o furto qualificado, aliado aos crimes essencialmente religiosos, como a bruxaria[30].
Com a queda do Império Romano a igreja, como instituição política, reclamou para si a auctoritas, ou seja, a herança espiritual e política de Roma, tendo nos apóstolos os responsáveis por aumentar a fundação. Era uma espécie de engrandecimento do passado. Já a potesta, que estava ligado ao que fazer com uma preocupação futura, ficou a cargo dos governantes[31].
Durante a idade média, o pensamento jurídico foi se formando em torno do poder real, pois, os juristas foram sendo os responsáveis por oferecerem uma fundamentação jurídica aos desejos de soberania dos príncipes. Assim, o respeito às leis tornou-se uma crescente no seio da população da época, pois se constituía em algo primário para a boa relação de governo, que tinha como escopo o bem comum, e isto só poderia ocorrer com a obediência às leis. Notam-se aqui traços dogmáticos, onde o direito tem origem divina, devendo ser aceito e interpretado pela exegese jurídica[32].
Com o advento do Renascimento, o direito passa por um processo de dessacralização, sendo agora encarado como reconstrutor das regras de convivência, sendo assimilado ao fenômeno do Estado Moderno, aparecendo como um regulador racional e supranacional capaz de ser utilizado em todas as circunstâncias, apesar das diferenças nacionais e religiosas[33].
O período compreendido entre os séculos XVI e XVIII, é marcado pelo grande crescimento da quantidade de leis provindas do poder constituído. Pouco a pouco o direito passou a se tornar escrito em detrimento da relevância do costume, tendo contribuído bastante para tal o surgimento do Estado Absolutista, que concentrava o poder de legislar. A queda do regime absolutista fez nascer a teoria da divisão de poderes, proveniente da substituição do rei pela nação, como também a idéia de um poder judiciário com características próprias e autônomas, com atuação limitada. Foi a consagração da separação entre política e direito e o conseqüente nascimento deste como ciência. Como bem se observa no texto de Tércio Ferraz Júnior descrito abaixo:
“A concepção da lei como principal fonte do direito chamará a atenção para a possibilidade de o direito mudar toda vez que mudar a legislação. Destarte, em comparação com o passado, o direito deixa de ser um ponto de vista em nome do qual mudanças e transformações são rechaçadas. Em todos os tempos, o direito sempre fora percebido como algo estável face as mudanças do mundo, fosse o fundamento desta estabilidade a tradição, como para os romanos, a revelação divina, na Idade Média, ou a razão na Idade Moderna. Para a consciência social do século XIX, a mutabilidade do direito passa a ser a usual: a idéia de que, em princípio, todo o direito muda torna-se a regra , e que algum direito não muda, a exceção. Essa verdadeira institucionalização na mutabilidade do direito na cultura de então corresponderá ao chamado fenômeno da positivação do direito” (Luhmann, 1972)[34].
2.2. Conceito de Crime.
Com os conhecimentos adquiridos sobre o que vem a ser um militar e como funciona a Justiça encarregada de julgar os delitos cometidos por esta categoria, passa- se a enfocar a definição de crime, crime militar e seus componentes.
A Lei de Introdução ao Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 3914/41), no seu Art. 1º, definiu crime da seguinte forma: “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambos, alternat iva ou cumulativamente”. Correto Cezar Roberto Bitencourt, quando afirma que o legislador não teve nenhuma preocupação científico-doutrinária, para estabelecer o conceito supracitado, destacando apenas as características que diferenciam crimes das contravenções, cabendo a doutrina preencher esta lacuna[35].
Preocupado em ampliar a conceituação oferecida, sobretudo no seu aspecto cultural, Roque de Brito Alves, definiu crime como “conduta anti-social, moralmente reprovável e punível por lei”. Justifica-se:
“O delito é sempre um desvalor ético-social. O crime existe como algo pré-existente à norma penal, em função da norma de cultura do grupo social, em razão da convicção cultural da sociedade.Não é porque existem leis que existem crimes, que os mesmos surgiram e sim, ao contrário, existem leis porque existem anteriormente, originariamente, fatos lesivos de bens ou interesses sociais e individuais que se tornam “delituosos” pela lei. O fato ou a conduta que é reprovada moral e socialmente torna-se, depois, um fato punível por lei, criminoso, penalmente típico. Logo, em 1º lugar, uma certa conduta humana é censurada, é reprovada pelo povo, pela opinião pública, pela sociedade por atentar contra a norma de cultura do povo, e a seguir, vai receber a reprovação jurídica e legal, tornando-se um fato punível por lei, uma infração penal para receber, então e somente após ter sido definido e proibido por lei, uma pena”[36].
Como bem apregoa Fernando Capez, o conceito de crime pode ser definido sob os aspectos: material, formal e analítico. No aspecto formal, seria considerado crime tudo o que fosse proibido por lei, decorrente de ação ou omissão humana, sem se considerar a essência ou lesividade material. Seria o puro e simples enquadramento da conduta do agente ao tipo penal. No aspecto material são levados em consideração os valores e interesses da sociedade para uma vida harmoniosa em coletividade. Procura-se estabelecer o porquê do fato ser considerado crime, quais são os seus parâmetros de definição. Já a definição analítica, conceitua crime como sendo toda ação típica, antijurídica e culpável. É a concepção quadripartide do delito[37].
A ação é um procedimento voluntário realizado pelo homem com um objetivo, logo, só e somente só, pode ser sujeito ativo de um delito, o ser humano. Para ser passível do alcance da norma, a ação tem que ser exteriorizada, não sendo puníveis aquelas ações que se limitem a mera vontade não exteriorrizada. A doutrina assevera que não existe ação, em seu sentido jurídico, quando ocorre a coação irresistível, o estado de inconsciência, como detectado, por exemplo, no sonambulismo, e em movimentos reflexos, como nos casos de ataque epiléptico[38].
A atual compreensão de tipicidade foi cunhada por Beling, no ano de 1906, cuja função era meramente descritiva, apartada da antijuridicidade e da culpabilidade. O primeiro objetivo do tipo era expor com precisão o delito, apontar o bem jur ídico a ser protegido. Depois de constatada a compatibilidade do fato ocorrido com a norma penal, passar-se-ia a uma segunda etapa, a análise valorativa da conduta e posteriormente para a sua reprovabilidade. Ao discorrer sobre o tema, Bitencourt, nos ensina que tipo é a reunião dos elementos do fato punível inseridos na norma penal, com a função de limitar e individualizar as condutas humanas relevantes para o direito penal[39]. Damásio de Jesus diz que Fato típico ―é o comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca um resultado (em regra) e é previsto na lei penal como infração, que é composto pelos seguintes elementos: conduta humana dolosa ou culposa, resultado (salvo nos crimes de mera conduta e formais), nexo entre a conduta e o resultado (salvo nos crimes de mera conduta e formais) e enquadramento do fato material (conduta, resultado e nexo) a uma norma penal incriminadora[40]. Volta-se a tratar deste assunto de forma mais detalhada no Capítulo III, pois é através da exclusão da tipicidade material que ocorre uma das principais formas de atuação do princípio da insignificância.
O ordenamento jurídico penal, em sua maioria, é composto por normas que proíbem a realização de determinadas condutas. No entanto, é patente a permissividade de outras normas que impedem a ação das normas negativas, possuidoras de um cunho mais abstrato. Quando isso ocorre, a doutrina entende que houve uma causa de exclusão da antijuridicidade, descaracterizando o fato como criminoso. Em outras palavras, a conduta afronta uma norma positivada (tipicidade), mas não ofende o ordenamento como um todo, é a contradição entre uma conduta e o ordenamento jurídico. Faz-se necessário que a conduta tenha um caráter de reprovabilidade social, que atinja o cerne do bem que o legislador quis proteger para se configurar o delito. Exemplifica Mirabete:
“A lei penal brasileira dispõe que “ não há crime” quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal, ou no exercício regular do direito (Art. 23). Além das normas permissivas da parte geral, todavia, existem algumas na parte especial, como, por exemplo, a possibilidade de o médico praticar aborto se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro(Art. 128); a ofensa irrogada em juízo na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador; a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica e o conceito favorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever de ofício (Art. 142) etc”[41].
A última característica do conceito analítico do crime é a culpabilidade. Esta se refere à possibilidade do agente que incorrer num fato típico e antijurídico, vir a receber uma pena. Para isso, alguns requisitos formais devem ser preenchidos, tais como: a consciência da ilicitude, a exigibilidade da conduta e a capacidade de culpabilidade. Na consciência da ilicitude, o agente tem que ter conhecimento da proibição da ação. A exigibilidade da conduta consiste na possibilidade do agente ao conhecer o injusto, diante do fato concreto, poder tomar uma decisão. A capacidade de culpabilidade é a possibilidade penalmente de responder por seus atos. Assim, exige-se que o agente goze de saúde e de maturidade mental, que no caso de nosso ordenamento pátrio, atinge-se aos dezoito anos. Assim manifesta-se Roque de Brito Alves:
“Pela teoria normativa, a culpabilidade é a vontade ilícita, é reprovabilidade, é a vontade do agente opondo-se a vontade da norma penal. É uma vontade que o agente não deveria ter porque viola o dever jurídico resultante da norma e capaz, então, de provocar a reprovação da ordem jurídica. Em consequência, além da relação psicológica entre o fato e o agente, exige-se para a culpabilidade existir em outro nexo, qual seja o nexo entre o sujeito e a norma. O agente está em desacordo com a norma, a sua vontade está contra a vontade legal, não devia querer ou produzir o fato que realizou livre e conscientemente. Reprova-se o agente por sua contrariedade ao dever. A reprovação é a essência da culpabilidade”[42].
Passa-se adiante a se ter uma visão do que vem a ser um crime militar e o que o diferencia do crime comum.
2.3. Crime Militar
O delito militar diferencia-se do delito comum na medida em que o órgão encarregado de aplicar o direito, por força de previsão constitucional dos Art. 122, 124 e 125, §4º, são diversos, bem como na natureza do bem jurídico tutelado.
O crime militar constitui-se na violação aos preceitos, aos valores e ao funcionamento das instituições militares, contidas na lei penal militar. Para corroborar com este entendimento, extrai-se da obra de Célio Lobão o seguinte:
“Os crimes distinguem-se, como qualquer entre, quer por seus elementos essenciais, constitutivos da sua espécie, quer por condições particulares, constitutivas da sua individualidade: aqueles elementos são comuns a todos os crimes da mesma espécie, ao passo que estas condições não são comuns a todos e, aliás, são próprias de uma certa classe. Todo o crime supõe um ente humano, uma intenção dolosa, um fato punível, mas há crimes que, além desses elementos essenciais, comuns, são caracterizados por atributos do próprio agente, atributos que os distinguem e individualizam”.[43]
Alexandre Saraiva diz que “crime militar é uma conduta típica e antijurídica”, já que a culpabilidade faria parte de um segundo momento em um raciocínio jurídico penal (teoria de Wezel). Justifica-se salientando que o legislador adotou duas espécies para o instituto do estado de necessidade no Código Penal Militar. Uma prevista no Art 39, que exclui a culpabilidade, e outra no Art. 43 do mesmo diploma legal, que exclui o crime (antijuridicidade)[44].
Para um crime ser considerado militar ele deve estar tipificado no Código Penal Militar (ratione legis), e deve ocorrer a incidência dos artigos 9º e 10º do CPM (ratione materiae, ratione personae, ratione loci, ratione temporis), comentados a seguir [45].
Em tempo de paz serão considerados crimes militares os tratados no Código Penal Militar, quando definidos de forma diversa na lei penal comum, ou nela não constante, independente do sujeito ativo do delito, salvo disposição especial. Estes crimes dizem respeito aos propriamente militares e os impropriamente militares praticados por civil constantes no Inciso I, do Art. 9º.
Ainda são crimes militares os tipificados no Código Penal Militar, com definição igual na lei comum quando cometidos por militar em atividade em lugar sujeito a administração, contra militar da reserva, ou reformado ou civil. Quando cometidos por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, em formatura, mesmo que em lugar não sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; por militar em período de manobras, ou exercício, contra militar da reserva ou reformado ou civil; por militar em situação de atividade, contra o patrimônio sujeito a administração militar, ou a ordem administrativa militar. Saliente-se que os crimes dolosos contra a vida cometidos contra civil serão de competência da Justiça Comum. Para configuração destes crimes, basta que o sujeito ativo e o passivo sejam militares, que incidirão no Inc II do Art. 9º.
Finalmente os crimes cujo sujeito ativo seja militares da reserva ou reformado, ou civil, em desfavor das instituições militares, incidindo contra o patrimônio destinado à administração militar, em lugar sujeito à administração contra militar em atividade ou contra funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de suas atribuições inerentes ao seu cargo; contra miliciano em formatura, prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras, e mesmo que fora de lugar destinado à administração militar, em desfavor de militar em função da natureza militar, ou no desempenho de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando requisitada para aquele fim ou até em cumprimento a ordem legal superior. Estes crimes constantes no Inc III do Art.9º, dizem respeito aos crimes praticados por civis, uma vez que o militar da reserva e/ou reformado será considerado civil para aplicação da lei penal.
Em tempo de guerra serão crimes militares os previstos no Código Penal Militar, os contidos para o tempo de paz; os previstos no Código Penal Militar, com definição igual na lei penal comum ou especial praticados independentemente do agente em território brasileiro ou estrangeiro militarmente ocupado, independente do lugar, mas que comprometam ou assim o possam a preparação, eficiência, ou operações militares, ou atentem contra a segurança externa do país ou possam expô-la a perigo; os delitos definidos na lei penal comum ou especial, não previstos no Código Penal Militar, mas praticados em zonas de operações militares ou território estrangeiro, militarmente ocupado.
2.4. Classificação dos Crimes Militares.
A doutrina costuma classificar os crimes militares em próprios e impróprios, porém Clóvis Beviláqua dividiu-os em três categorias: os essencialmente militares ou próprios, por compreensão normal da função militar ou impróprio e os acidentalmente militares[46].
Os crimes propriamente militares são entendidos pela maioria da doutrina, como aqueles previstos somente no Código Penal Militar e que só podem figurar como autor o militar, ao violar a hierarquia e disciplina e o dever militar.
Discorda deste entendimento, o Promotor da Justiça Militar Federal Alexandre Saraiva, ao incluir neste grupo, os crimes de insubmissão (Art. 183), criação ou simulação de incapacidade física (Art. 184), e substituição a convocação (Art. 185), todos necessariamente praticados por civis[47]. No mesmo esteio segue o Superior Tribunal Militar e o Supremo Tribunal Federal, ao entenderem que o civil comete crime propriamente militar em co-autoria, conforme julgados do STM 2000.01006744-8 UF RJ. Recurso Criminal Min. Rel José Sampaio Maia, HC nº 81.438/RJ[48] – Min. Nelson Jobim.
Os crimes militares próprios encontram sua previsão legal no Art. 5º, Inc. LXI, da Constituição Federal[49], quando expressa que ninguém poderá ser preso, salvo em flagrante delito ou por ordem de autoridade de Poder Judiciário, devidamente, escrito e fundamentado, com exceção dos crimes propriamente militares definidos em lei ou transgressão militar.
Os crimes militares impróprios são aqueles que estão contidos tanto no Código Penal Militar como no Código Penal Comum, e que só ganham a especialidade de militar quando atraídos por força do Art. 9º do CPM. Como exemplo o delito de furto, que encontra sua previsão legal no Código Penal (Art. 155) e no Código Penal Militar (Art. 240).
Quanto aos crimes de insubmissão, criação ou simulação de incapacidade física e substituição a convocação, estes são enquadrados por Célio Lobão [50] e Ricardo Henrique Alves Giuliane[51] como impróprios, embora falte a previsão para estes no Código Penal, mas por serem praticados por civil, isso os excluiria dos crimes propriamente militares.
Já Jorge César de Assis, entende que quando o civil comete um crime militar, este se configura como acidentalmente militar[52].
Ainda enxerga Célio Lobão, três espécies de crimes impropriamente militares, no Código Penal Militar: os que possuem a mesma definição no Código Penal Comum e no Código Penal Militar, os previstos exclusivamente no Código Militar e os definidos diferentemente na lei penal comum. A competência para apuração destes crimes é firmada pela condição do agente, se militar ou não. Quando agente militar somente é necessário que o delito esteja previsto na parte especial do Código castrense, desde que não constante no Código Comum ou nele definido de modo diferente (ratione legis). Já quando o delito tiver igual definição em ambos os ordenamentos penais, algumas circunstâncias deverão ser observadas, tais como: o autor e a vítima do delito serem militares (ratione materiae); o local do crime estar sujeito administração militar, sem se considerar os sujeitos do delito; a ameaça ser a patrimônio militar ou a sua ordem administrativa (ratione loci); militar em serviço (ratione personae). Como citado anteriormente, nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a competência será do Tribunal do Júri[53].
Em caso de ser um civil o agente do delito, terão que estar presentes os requisitos do Inc III, Art. 9º do CPM, ou seja, ofensa a patrimônio sob a administração militar e a ordem administrativa militar, ofensa a militar em local sob a administração militar, ofensa a militar em função de natureza militar ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa e judiciária.
Exemplo interessante é o caso de um civil subtrair para si ou para outrem coisa alheia, que esteja sob administração militar. Se o bem pertencer a um dos entes das Forças Armadas, o juízo competente seria o da Auditoria da Justiça Militar Federal. Se o bem pertencer a uma Polícia Militar Estadual, ter-se-ia aparentemente um conflito de competência.
A Justiça da União seria incompetente para o julgamento por não ter sido atingido nenhum bem pertencido as Forças Armadas. A Justiça Estadual seria incompetente, pois, apenas é encarregada de julgar Policiais Militares e Bombeiros Militares. Quanto a Justiça Comum, faltar-lhe-ia a previsão constitucional para o julgamento de crimes militares.
Conclui o autor que o legislador constituinte não quis proteger as instituições militares estaduais do delito cujo sujeito ativo seja civil. Assim, não haveria crime militar de furto praticado por civil contra instituições militares estaduais, que simplesmente não teriam o caráter de militar para caracterização de crime militar. Porém, o exemplo descrito possui previsão na legislação comum, podendo ser julgado pelo juízo criminal comum[54].
2.5. O crime de furto no Código Penal Militar.
O Direito Penal é dividido doutrinariamente no Brasil em comum e especial. A mencionada divisão encontra esteio segundo Damásio de Jesus, na diversidade do órgão que jurisdicionalmente deve aplicar o direito. O Direito Penal Militar pode ser apontado como exemplo do Direito Penal Especial, já que a sua aplicação ocorre através de órgãos previstos na constituição, aos quais cabem exclusivamente a instrução e o julgamento do processo relativo a uma classe ou categoria de indivíduos[55].
Acrescenta a este entendimento Célio Lobão, que por ser a lei penal aplicada por órgão especial, este fato somente não a especializa, devendo ser somado ao mesmo a natureza do bem jurídico tutelado, visto que devem ser consideradas as atribuições constitucionais delegadas as instituições militares, bem como, as peculiaridades do seu dia-a-dia, que precisam de uma regulamentação específica para a obtenção dos seus objetivos[56].
Para Mirabete o Direito Penal Comum é aquele aplicado, sem distinção, a todas as pessoas e aos atos delitivos em geral. Já o Direito Especial é direcionado a uma classe de indivíduos conforme sua qualidade especial e a certos atos ilícitos particularizados. Salienta ainda que não é fácil a distinção entre ambos, sendo marcada pelo órgão encarregado de aplicar o direito objetivo comum ou especial.
“Nesse aspecto, são de direito penal comum o Código Penal e as leis extravagantes (lei das contravenções penais, lei da economia popular, lei de tóxicos, lei de imprensa, etc.) Sujeitos a aplicação pela Justiça Comum. São de Direito Especial o Código Penal Militar, a lei de impeachment do Presidente da República, dos Prefeitos municipais, etc. Aplicáveis pelas Câmaras Legislativas”[57].
O furto se constitui como crime militar impróprio, vez que se encontra presente tanto na legislação castrense como na legislação comum. Originariamente é um crime comum, ganhando especialidade quando houver a incidência dos incisos II e III do Art 9º do CPM. Como mencionado anteriormente, o bem tutelado é o patrimônio, porém, no Direito Militar é lhe acrescido um novo enfoque, a regularidade das instituições militares. Esta regularidade consiste nas condições necessárias que os órgãos militares necessitam para o cumprimento de suas atribuições constitucionais, quais sejam: as atividades relacionadas a defesa civil (Corpo de Bombeiros), o policiamento ostensivo (Polícia Militar), a manutenção da soberania e dos poderes constitucionais (Forças Armadas).
Para uma melhor compreensão das disposições atinentes ao crime militar de furto, mister se faz estudar a diferenciação entre posse e propriedade, visto que a objetividade jurídica penal é a tutela do direito ao patrimônio, protegendo diretamente a posse e indiretamente a propriedade.
Diversas foram as tentativas para explicar a origem da posse, porém, o Código Civil Brasileiro de 2002, adotou a Teoria Objetiva de Ihering. Segundo Maria Helena Diniz a procedência da teoria remonta ao Direito Romano, onde o Pretor, diante da contenda, concedia discricionariamente a um dos pólos, a guarda ou a detenção da coisa litigiosa. Com o passar dos anos, a discricionariedade foi sendo substituída por critérios mais justos e lógicos, e aquele que oferecesse provas mais robustas receberia a outorga da coisa litigiosa[58].
Para Sílvio de Salvo Venosa necessário se faz entender os dois elementos integrantes do conceito de posse, o corpus e o animus. A existência do poder físico sobre o bem para se ter a constituição da posse, é o que se denomina de corpus, em outras palavras, a exteriorização da propriedade. Já o animus domini consiste na intenção de exercer sobre a coisa o direito de propriedade. Através desta teoria pode-se considerar como possuidores o locatário, o comodatário e o depositário. Além destas condições citadas, para se constituir a posse no Direito Brasileiro, é necessário que o agente seja capaz, a existência da coisa corpórea e que haja uma relação entre o sujeito e o objeto de dominação[59].
O conteúdo de propriedade está descrito no Art.1.228 do Código Civil[60], e passa pelo direito que possuía a pessoa física ou jurídica, dentro da lei, de usar, gozar e dispor da coisa (bem) seja ela corpórea ou incorpórea, e até de reavê-la caso esteja injustamente em poder de outrem. O direito de usar, o jus utendi, como ensina Sílvio de Salvo Venosa é tirar proveito da coisa sem modificar-lhe a substância. O direto de gozar, jus fruendi, consiste na percepção dos frutos e no uso dos produtos da coisa. O direito de dispor, o jus abutendi ou disponendi, que se configura no mais abrangente, é o direito de vender, doar, consumir, e de gravar com ônus a coisa[61]. Assim, posse e propriedade estão intimamente ligadas, permitindo aquela a possibilidade e o exercício desta.
Conhecendo-se os conceitos de posse e propriedade, infere-se que somente pode ser objeto do crime de furto coisa móvel, e que coisas que não pertençam a ninguém (res nullius); assim como coisas de uso comum (res comune omnium), como o ar e a água dos rios; e como coisas abandonadas (res derelicta) pelo dono e por ele declaradas sem valor, não são alcançadas pelo ordenamento, justamente pela falta dos elementos corpus e animus, que caracterizam a posse. Ainda não podem ser objetos de furto os direitos pessoais.
O sujeito ativo no delito de furto pode ser qualquer pessoa, militar ou civil, não se admitindo a figura do proprietário ou possuidor, pois a descrição do tipo penal menciona “coisa alheia”, ou seja, o que pertence a outrem. Quanto ao civil, este, nas palavras de Jorge César de Assis, “somente responderá por crime militar nas hipóteses do Inc III do referido Art. 9º, ou seja, nos crimes praticados contra as Instituições militares, excetuadas, desde já, as estaduais e do Distrito Federal, ante a competência restrita do Art 125, §3º e 4º da Carta Magna”[62].
O sujeito passivo pode ser o proprietário, o possuidor, pessoa jurídica ou até o detentor que possua interesse sobre a coisa subtraída.
O verbo nuclear do tipo é subtrair, não bastando para configuração do delito somente a retirada da coisa, que tem que ser móvel, mas a finalidade de dispô -la definitivamente para si ou para outrem, ao retirá-la do raio de vigilância do sujeito passivo.
Conforme Dioclesiano Torrieri Guimarães entende-se por móvel “todas as coisas que podem ser transportadas de um lugar para outro, sem prejuízo e alteração de sua forma e substância, compreendidos os semoventes”[63]. Vale ressaltar que para fins penais, navios e aeronaves, podem ser objetos de furto, apesar da natureza jurídica de imóvel atribuída pelo Código Civil.
O tipo subjetivo do crime ora apreciado é o dolo, que consiste num elemento psicológico, integrante da conduta humana, formada pela consciência e vontade de subtrair a coisa alheia[64]. Logo, na presente modalidade não há espaço para o furto culposo e caso ocorra o consentimento do sujeito passivo a tipicidade não estará presente.
O momento da consumação do delito se dá para Magalhães Noronha quando a coisa é retirada da esfera de atividade da vítima e esta não possa mais exercer seus atos conferidos pelo direito[65]. Para Ricardo Antônio Andreucci, ocorre a consumação quando a coisa é retirada da esfera de vigilância da vítima, não se exigindo que a posse do infrator seja definitiva e prolongada[66]. A tentativa também é admitida, desde que os atos executórios sejam interrompidos por circunstâncias alheias a vontade do agente ativo da ação.
Perscrutando o Art. 240 do CPM (furto), nota-se claramente sinais do princípio da insignificância em seu bojo, que ficam latentes quando o legislador menciona que em caso de primariedade do agente e a coisa furtada seja de pequeno o valor, o juiz poderá considerar a infração como disciplinar. O próprio ordenamento encarrega-se de definir a expressão “pequeno o valor”, ao fixá-la em no máximo de até um décimo da quantia mensal do mais alto salário mínimo do país.
Respeitando opiniões contrárias, parece que o mencionado dispositivo do código castrense, que data de 1969, não foi recepcionado pela Constituição Cidadã (1988), que veda toda e qualquer vinculação ao salário mínimo no seu Inc IV, Art 7º. Assim, os operadores do direito não deverão se ater a este valor rigorosamente, mas sim ao desvalor do resultado (objeto do princípio da insignificância).
3. Dos Princípios Jurídicos.
A palavra princípio transmite a idéia de começo, origem causa primária, regra, preceito[67].
Dado o conceito abstrato acima exposto e tentando-se encontrar uma definição a luz do direito, no pensamento de Celso Antônio de Melo, princípio vem a ser um mandamento nuclear de um sistema jurídico, o seu alicerce, que serve para harmonizá-lo, direcioná-lo, dando-lhe sentido e compreensão. Logo, o entendimento do conteúdo e do alcance dos princípios é imprescindível para compreensão das normas que compõe um ramo do direito[68].
Para José Cairo Júnior princípio é tudo aquilo que orienta o operador do direito na sua atividade interpretativa, servindo também, para guiar o legislador quando no exercício da sua função de legiferar[69].
Valendo-se das palavras de De Plácido e Silva, conclui-se que os princípios são a base fundamental do ordenamento jurídico, fornecendo um caminho a ser seguido na construção e aplicação das normas jurídicas[70].
A Lei de Introdução ao Código Civil, no seu Art.4º,[71] prevê que quando a lei for omissa, o juiz deverá decidir o caso submetido a sua apreciação, com fulcro na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito[72].
Há muito se discute sobre a natureza normativa dos princípios jurídicos.
Existe uma corrente no Direito que entende que dado o caráter vago e a formulação descritiva dos princípios, isto os desqualificaria como norma jurídica. Acredita Tércio Ferraz Júnior que os princípios não se tratam de normas, mas de elementos que fazem parte das regras estruturais do sistema conferindo-lhe coesão, sendo adotados como premissas maiores sem especificação, cuja premissa menor, esta sim, dotada de especificação, que adquire o caráter de norma geral. Observe-se:
“De qualquer modo ainda que se entenda que possam ser aplicados diretamente na solução de conflitos, trata-se não de normas, mas de princípios (…) Os princípios gerais em sua forma indefinida, compõe a estrutura do sistema, não seu repertório. São regras de coesão que constituem as relações entre as normas como um todo.
Ora, as regras estruturais são, neste sentido global, responsáveis pela imperatividade total do sistema. Nesses termos, mesmo sem admitirmos a existência do direito natural, é possível dizer que nos princípios gerais, enquanto designativos do conjunto de todas as regras estruturais do sistema, repousa a obrigatoriedade do jurídica de todo repertório normativo. Eles não são fonte do direito no mesmo sentido da legislação ou do costume ou das normas jurisprudenciais, pois são metalinguagem em relação aquelas fontes” (Cf, Carrió 1970)[73].
Diametralmente pensa Norberto Bobbio, já que entende tratar-se de normas gerais com caráter normativo. Confira-se:
“Os princípios gerais são, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre os juristas se os princípios gerais são normas como todas as outras. E esta é também a tese sustentada por Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um processo de generalização sucessiva, não se vê porque não devam ser normas também eles; se abstraio da espécie animal, obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um comportamento não-regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo a que servem as normas expressas. E por que não deveriam ser normas?”[74]
Acompanha este entendimento, Rodrigo César Rabello Pinho ao pregar que princípios são dotados de normatividade, possuindo efeito vinculante, constituindo-se em regras jurídicas efetivas.
“O importante é ressaltar que tanto as regras como os princípios são dotados de valor normativo, jurídico, são imperativos (…). Os princípios são dotados de um alto grau de generalidade e abstração e baixa densidade normativa, pois necessitam, via de regra de outras normas para que possam ser aplicadas. Além disso, são normas consideradas como informadoras do ordenamento jurídico”[75].
Por certo é que o Direito Penal apresenta fontes formais que podem ser diretas ou imediatas e indiretas ou mediatas. A única fonte direta do Direito Penal é a lei. Já como fontes indiretas têm-se os costumes e os princípios gerais do Direito. Comenta Mirabete sobre o assunto:
“Está o Direito Penal sujeito as influências desses princípios, estabelecidos com a consciência ética do povo em determinada civilização, que podem suprir lacunas e omissões da lei penal. Cita-se como exemplo de aplicação dessa fonte indireta a não punição da mãe que fura as orelhas da filha, que praticaria assim um crime de lesões corporais, quando o faz para colocar-lhes brincos”[76].
Contrário a este entendimento é Roque de Brito Alves ao entender que os princípios não são fontes do Direito Penal:
“Não podem ser consideradas fontes do Direito Penal: 1º Os princípios gerais do direito, da sistemática jurídica estatal, 2º O denominado direito natural, 3º A doutrina e a jurisprudência, 4º O costume, 5º A equidade, 6º A apologia.
Não são, em nossa compreensão, fontes do Direito Penal nem mesmo apreciadas como mediatas, indiretas, pois não possuem eficácia obrigatória, não constituindo imperativos jurídicos penais”[77].
Apregoa Ivan Luiz da Silva que os princípios jurídicos, como normas que são, possuem como objetivo serem aplicados na resolução de problemas, apresentando três funções, a saber: fundamentadora, interpretativa, e supletiva. Observe como ele as define:
“A função fundamentadora consiste em servir de base ao ordenamento jurídico, em razão de representarem os valores supremos da sociedade (…) Assim, por essa função os princípios jurídicos tanto fundam a ordem jurídica como excluem dela toda norma que lhe seja contrária. Através da função interpretativa os princípios servem de orientação ao operador jurídico na interpretação das normas para adequá- la aos valores fundamentais (…) A função supletiva incumbe aos princípios a tarefa de integrar a ordem jurídica quando constatada a inexistência de norma jurídica regulando o caso em preciação”.[78]
A Carta Maior do país, no seu Art. 5º, §2º, ampara a existência dos princípios implícitos, ao informar que os direitos e garantias constantes na Constituição não excluem outras decorrentes do regime e dos princípios por ela adotada. Os princípios constitucionais têm servido como vetores na resolução de problemas decorrentes do avanço social, assim, dentro de um aparato técnico-jurídico, não podem sua importância ser desprezada.
3.1. Aplicação dos Princípios Constitucionais no Direito Penal Militar.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu texto princípios e garantias, estas complementadas pela Convenção Americana de Direitos Humanos, mas conhecida pelo Pacto de São José da Costa Rica, que se aplicam tanto aos civis como aos militares federais e estaduais.
O Direito Militar divide-se em: Direito Processual Penal Militar, Direito Penal Militar e Direito Administrativo ou Disciplinar Militar. A não observância do ordenamento ao qual está sujeita o militar pode levá-lo a responder a um processo crime ou a um processo administrativo militar (PAD), que são regidos pelo devido processo lega l, onde as formalidades previstas na legislação devem ser respeitadas, assim como os princípios e garantias, para que o Estado possa aplicar a lei no caso concreto, sob pena de se incorrer em crime de abuso de autoridade[79].
Assim como o Direito Penal, o Direto Penal Militar possui como finalidade precípua a proteção dos bens, valores e interesses mais importantes para a manutenção da harmonia da vida em sociedade, somada a regularidade do funcionamento das instituições militares, adotando-se o instituto da pena como instrumento de coerção para proteção destes bens. Mirabete comenta o assunto:
“A norma penal é valorativa porque tutela os valores mais elevados da sociedade, dispondo-os em uma escala hierárquica e valorando os fatos de acordo com sua gravidade. Quanto mais grave o crime, o desvalor da ação, mais severa será a sanção aplicável ao autor. Tem ainda a lei penal caráter finalista, porquanto visa a proteção de bens e interesses jurídicos merecedores da tutela mais eficiente que só podem ser eficazmente protegidos pela ameaça legal de aplicação de sanções de poder intimidativo maior, como a pena. Essa prevenção é a maior finalidade do Direito Penal”[80]
Para delimitar o uso da sanção penal na proteção dos bens a serem tutelados, surgiram vários princípios que passaram a proteger o cidadão do poder punitivo estatal, dentre os quais, o mais importante é o princípio da legalidade. Para alguns autores sua origem é atribuída a Carta Inglesa de 1215, editada no governo do Rei João sem Terra, contudo, foi com os ideais iluministas que este princípio ganhou forma e passou a integrar os códigos penais dos países democráticos. Veja-se o que diz Alexandre Saraiva:
“De origem remota e por vezes discutida, o que importa é que o princípio surgiu como uma reação do pensamento liberal ao Estado Absolutista, mormente quando se considera que o nullum crimen, nulla poena sine lege (na feliz construção de Feuerbach), antes de ser um critério jurídico penal, é um princípio político-liberal, uma vez que representa um anteparo da liberdade individual em face da estabilidade medieval”[81].
Pelo princípio da legalidade, previsto no Art.5º, Inc XXXIX da CF/88, um fato não poderá ser considerado crime e nem uma pena poderá ser aplicada, sem que antes de sua ocorrência exista uma lei que o defina como crime e lhe seja cominada uma sanção correspondente. Assim manifesta-se Bitencourt:
“O princípio da legalidade ou da reserva legal constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal. Embora constitua hoje um princípio fundamental do Direito Penal, seu reconhecimento constitui um longo processo, com avanços e recuos, não passando, muitas vezes, de simples „fachada formal‟ de determinados Estados. Feuerbach, no início do século XIX consagrou o princípio da reserva legal através da fórmula latina nullum crimen ,nulla poena sine lege. O princípio da reserva legal é um imperativo que não admite desvios ou exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigências de justiça, que somente os regimes totalitários o tem negado”[82].
De acordo com Rogério Greco[83] o princípio da legalidade possui quatro funções:
1ª- Proibir a retroatividade da lei penal (nullum crime nulla poena sine lege praevia). Com fulcro no Inc XL do Art.5º da CF, a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Por este dispositivo tem-se a certeza que ninguém será punido por um fato que até então era tido como indiferente penal.
2º- Proibir a criação de penas e crimes pelos costumes (nullum crime nulla poena sine lege scripta). A fonte imediata do Direito Penal é a lei, sendo, portanto, a única forma de se proibir ou impor condutas sob a ameaça de sanção.
3º- Proibir o emprego de analogias para criar crimes, fundamentar penas ou agravar penas (nullum crime nulla poena sine lege scripta). Não sendo o fato previsto pelo legislador não pode o intérprete valer-se da analogia para abranger fatos similares aos legislados em prejuízo do agente.
4º- Proibir incriminações vagas e indeterminadas (nullum crime nulla poena sine lege certa). A definição da conduta proibida ou imposta tem que ser precisa no tipo penal incriminador.
O princípio da legalidade deve ser visto por duas vertentes, uma formal e outra material. Na legalidade formal uma norma para ingressar no ordenamento jurídico tem que atender as formas e procedimentos destinados a sua criação. Na legalidade material, o conteúdo desta norma tem que ser observado, tem-se que mensurar qual o alcance que o legislador quis dar as suas proibições e imposições. Rogério Greco assim preleciona:
“Contudo, em um Estado Constitucional de Direito, no qual se pretende adotar um modelo penal garantista, além da legalidade formal deve haver, também aquela de cunho material. Devem ser obedecidas não somente as formas e procedimentos impostos pela Constituição, mas também, e principalmente, o seu conteúdo, respeitando-se suas proibições e imposições para a garantia de nossos direitos fundamentais por ela prevista.”[84]
Assim como no processo comum, outros princípios de suma importância influenciam o Direito Militar como: do contraditório e da ampla defesa, do estado de inocência, da publicidade, da verdade real, etc. Porém, para o trabalho em comento, é imprescindível o estudo do princípio da hierarquia e disciplina, estes, constituintes da base estrutural do Direito Militar.
Observe-se como se manifesta Maria Sylvia Zanella di Pietro, sobre o que vem a ser hierarquia:
“A hierarquia corresponde a uma relação pessoal, obrigatória, de natureza pública, que se estabelece entre os titulares de órgãos hierarquicamente ordenados; é uma relação de coordenação e de subordinação de inferior frente ao superior, implicando um poder de dar ordens e o correlato dever de obediência”[85].
O conceito de hierarquia está contido no §1º, do Art.14, da lei nº6880/80[86] (Estatuto dos Militares), como sendo a ordenação da autoridade em níveis diferentes, por postos ou graduações, tendo como base o espírito de acatamento à seqüência de autoridade.
No Estado de Pernambuco a definição de hierarquia encontra-se estampada no §§1º e 2º, Art.5º, da lei nº 11.817, de 24 de Julho de 2000, Código Disciplinar dos Militares Estaduais[87].
Esmeraldino Bandeira entende que “hierarquia militar é a relação de ordem administrativa e jurídica, que existe entre pessoas subordinadas umas as outras em razão de seus postos e funções na corporação militar”. Acrescenta ainda o autor, revelando a importância deste bem jurídico a ser protegido pelo direito penal militar que “a obediência a hierarquia é, no consenso geral, o princípio maior na vida orgânica e funcional das Forças
Armadas. O ataque a esse princípio leva a dissolução da ordem e do serviço militar”[88].
Ao lado do princípio da hierarquia, o princípio da disciplina, constitui- se no alicerce do Direito Militar. O constitucionalista José Afonso da Silva definiu-o como sendo “o poder que tem os superiores hierárquicos de impor condutas e dar ordens aos inferiores. Correlativamente, significa o dever de obediência dos inferiores em relação aos superiores”[89].
A Lei nº 11.817, de 24 de Julho de 2000 (Código Disciplinar dos Militares Estaduais de Pernambuco), conceitua disciplina como sendo o acatamento integral dos ordenamentos jurídicos, responsáveis pela manutenção da regularidade das organizações militares estaduais, constituindo-se como manifestações essenciais a obediência as ordens emanadas por superiores hierárquicos, a dedicação integral ao serviço com constantes correções de atitudes, a responsabilidade consciente para prestação de serviço eficaz, contínua e de caráter essencial para sociedade[90].
Nota-se a partir do conceito de hierarquia e disciplina, que estes se entrelaçam, mas são distintos como bem observa José Afonso da Silva:
“Não se confundem, como se vê, hierarquia e disciplina, mas são termos correlatos, no sentido de que a disciplina pressupõe relação hierárquica. Somente se é obrigado a obedecer, juridicamente falando, a quem tem poder hierárquico. Onde a hierarquia, com superposição de vontades, há, correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina, isto é, no rigoroso acatamento pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide hierárquica, as ordens, normativas ou individuais, emanadas dos órgãos superiores. A disciplina é, assim um corolário de toda organização hierárquica”[91].
Sobre a importância da disciplina na vida militar, assim manifestou-se Gaston Courtois:
“A disciplina, diz o velho provérbio militar, é a força principal dos Exércitos. Ela é também a força principal de uma nação que não quer perecer. Uma reconstrução nacional exige a colaboração e a adesão de todos. Talvez haja vários caminh os para sair de uma floresta onde se está perdido. O caminho a tomar é o que o chefe, devidamente investido, escolheu. Talvez se possa, teoricamente, julgar haver melhores caminhos, mas o melhor de fato, é aquele que o chefe terá indicado, é exatamente porque ele o terá indicado, uma vez que, se cada um, segundo sua fantasia ou seu sentimento, saísse para um lado, seria o esfacelamento do grupo e logo sua morte, como grupo”[92].
O princípio da hierarquia, juntamente com o da disciplina, constitui-se nos maiores óbices para aplicação do princípio da insignificância dentro do Direito Militar e especificamente nos crimes militares de furto, pois, como visto anteriormente, o ordenamento castrense, além de proteger o patrimônio, também busca velar pela regularidade das instituições militares. No Superior Tribunal Militar, que é composto majoritariamente por militares (ver capítulo 1 – Da Organização da Justiça Militar), é pacífico o entendimento da não aplicação do princípio da insignificância no ordenamento militar, porém, o Supremo Tribunal Federal tem emanado decisões em sentido oposto – ex: Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 89624 RS[93]. Assim, comenta Giulliane sobre o tema:
A aplicação do princípio da insignificância em relação aos crimes militares tem aplicação mais restrita devido a especificidade de sua legislação e principalmente ao bem jurídico tutelado, que indiretamente afetam a hierarquia e disciplina, princípios basilares das instituições militares. (…). No STM é pacífico o entendimento de não cabimento do princípio da insignificância. O STF em decisões recentes entende que pode[94].
Como exposto, os princípios da hierarquia e da disciplina são de importância vital para a sobrevivência das instituições militares. Também foi visto que o princípio da legalidade impõe limites ao arbítrio estatal, mas não o impede totalmente de criar tipos penais iníquos e comine sanções cruéis e degradantes. Por isso, foram abarcados pela constituição, princípios implícitos e explícitos, que tem a função de orientar o legislador ordinário para adoção de um sistema de controle penal, direcionado aos direitos humanos, dentro os quais se insere o princípio da insignificância.
3.2. Origem Histórica.
A origem histórica do princípio da insignificância remonta ao brocardo minima non curat praetor, onde o Pretor (magistrado), de uma forma geral, não apreciava os delitos de pequena monta, ou seja, os delitos considerados menos lesivos a sociedade, para poder analisar as questões mais essenciais. No que tange a origem desta máxima, há controvérsia na doutrina sobre sua existência no Direito Romano antigo, fazendo nascer duas correntes, onde a primeira enxerga sua existência no Direito Romano antigo. Porém, para a segunda corrente existem duas vertentes lideradas por Maurício Ribeiro Lopes e José Luiz Guzman Dalbora[95].
Maurício Ribeiro Lopes não nega a existência do brocardo em questão no Direito Romano antigo, mas não aceita o entendimento que o princípio da insignificância seja a restauração da máxima latina. Justifica-se dizendo que o Direito Romano se desenvolveu sob a égide do direito privado, necessitando o brocardo de especificidade para justificar a inexistência de providências estatais na esfera penal, sendo seu campo de atuação o direito civil. O autor aponta como origem para o princípio da insignificância, o pensamento jurídico dos filósofos iluministas, decorrentes da própria natureza fragmentária[96] do direito penal[97].
Por sua vez, José Luiz Guzman Dalbora nega a origem romana do princípio da insignificância, expondo que o brocardo minima non curat praetor não existia no Direito Romano antigo, sendo fruto do pensamento liberal dos juristas renascentistas, pois era desconhecido dos juristas romanos antigos a idéia de insignificância e por estar ausente das compilações dos principais glosadores. Observe-se o texto de Ivan Luiz da Silva:
“Apesar de o mínima non curat praetor apresentar a característica do que denominou de brocardo ou generalia, procedimento de trabalho característico dos glosadores, ensina Guzma Dalbora, que há vários motivos para supor que não foi obra destes nem dos comentaristas. Esclarece que é ilustrativa a circunstância que dois dos maiores juristas que mais brilharam na técnica de elaboração destas dogmáticas a ela não se refiram: Azo (1230 dc) não a inclui em sua coleção de brocarda, que acompanha como apêndice seu Suma Codicis; e tão pouco figura em Glossa Magna de Acursio ( 1263 dc). Outra razão é a dificuldade de se aceitar que um glosador ou comentarista haja cunhado uma máxima que fala em Pretor, figura que havia desaparecido da administração da justiça e que não existia no seu tempo. Assim Guzma Dalbora afasta a origem romana do princípio da insignificância ao demonstrar que a máxima mínima non curat praetor em seu sentido atual era virtualmente desconhecido no Direito Romano antigo. Por outro lado, aduz que este princípio romanístico ajusta-se melhor ao pensamento liberal dos humanistas do Renascimento que com a mentalidade autoritária vigente no Direito Romano do período imperial. Assim, conclui que a formulação do minima non curat praetor é obra dos juristas do Renascimento”[98].
Após apanhado histórico sobre a origem do princípio da insignificância, mister se faz conceituá-lo a luz da doutrina, uma vez que nenhum instrumento legislativo ordinário ou constitucional o fez. Diomar Ackel entende que:
“O princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade constituem ações de bagatela, desprovida de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois, como irrelevantes. A tais ações, falta o juízo de censura penal”[99].
Prospecta-se do conceito acima que na elaboração da lei penal, o legislador descreve abstratamente a conduta típica, positiva ou negativa, tentando abso lver em sua estrutura o maior número possível de ações humanas, sob ameaça de sanções. Devido a imperfeições legislativas, condutas sem relevância para o direito penal, passam a ser consideradas formalmente típicas, quando não deveriam ser atingidas pela lei penal, já que o legislador tem, tão somente, o intuito de alcançar os fatos sociais que possam causar prejuízos significativos aos bens jurídicos tutelados[100].
Para o problema acima explicitado, a doutrina, através do alemão Claus Roxin, em 1964, esteiado no adágio minima non curat Praetor, passou a dar nova formulação para a determinação do que vem a ser o injusto penal, manifestando -se contrário ao uso da força excessiva. Ao elaborar a teoria do princípio da insignificância Claus Roxin tinha como escopo, excluir da seara penal as condutas que não apresentem um grau de lesividade mínimo ao bem jurídico protegido, já que o direito penal não deve se preocupar com ninharias, em virtude da sua natureza fragmentária. O caráter jurídico do princípio da insignificância consiste em interpretar a lei penal com lastro na equidade e na razoabilidade para restringir a amplitude abstrata do tipo penal, colimando alcançar-se o sentido material de justiça[101].
Para existência de um fato típico penal, têm que estar presente os seguintes elementos: conduta, que pode ser dolosa ou culposa, omissiva ou comissiva; haver um resultado; um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; e a tipicidade, que pode ser formal ou material[102].
A incidência do princípio da insignificância ocorre, para grande parte da doutrina, no elemento tipicidade, mas precisamente na tipicidade material. A tipicidade formal é a perfeita adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal. Em face da imprecisão legislativa e visando limitar a amplitude do tipo penal, necessário se fez atribuir-lhe um conteúdo material, que consiste na exigência da conduta típica ser concretamente lesiva ao bem jurídico tutelado. Assim, para a ocorrência de um crime, não basta a simples configuração da tipicidade formal, mas também a incidência da tipicidade material. Logo, toda conduta típica que não afetar o conteúdo material do tipo penal deverá ser excluída do âmbito da lei criminal pela sua irrelevância jurídica[103].
Cumpre registrar que ainda existe na doutrina, minoritariamente, duas correntes que consideram o princípio da insignificância como excludente da antijuridicidade material, já que ao vivermos num estado de direito deve haver a proteção da liberdade pessoal e política do cidadão, junto com a moderação do poder público (Zaffaroni, Dalbora, Juarez Tavares), e da culpabilidade, uma vez que agiria o princípio como um limite a ingerência do Estado e uma justificação ética a aplicação da pena (Abel Cornejo)[104].
3.3. Fundamentos do Princípio da Insignificância.
Questionar a fundamentação de uma norma no campo jurídico tem se demonstrado de extrema valia para o direito, pois, pode-se verificar sua razão de ser, sua posição na ordem jurídica, e relevância num dado momento. O princípio da insignificância é fundamentado nos princípios da: igualdade, liberdade, fragmentariedade e proporcionalidade. Quando se interpreta restritivamente o tipo penal, ressalta-se a concretização dos princípios fundamentais do Estado, que possuem como base a liberdade, fraternidade e igualdade[105].
3.3.1. Princípio da Igualdade.
Estabelecido no caput do Art. 5º da Carta Magna do país, o princípio da igualdade em seu conceito formal, reza que todos são iguais perante a lei. No entanto, perante condutas típicas realizadas com desigual lesividade, o operador do direito deve atribuir um sentido material ao princípio da igualdade, tratando desigualmente as situações desiguais. Assim, o intérprete penal diante de uma ação de pequena lesividade ao bem jurídico tutelado, coloca-se diante da seguinte problemática: aplicar a sanção e causar mal maior do que a reprovabilidade exige, ou admitir a impropriedade da sanção penal para excluir o caráter criminoso do fato[106].
Optando-se pela solução mais benéfica ao agente, surge o princípio da insignificância, pois, caso fosse adotado o outro caminho, o mais gravoso, o agente estaria sendo tratado desigualmente pelo Estado-Juiz, já que a conduta não teria relevância jurídica para o direito penal, nem causaria reprovabilidade social. Por isso, deve-se levar em consideração o desigual grau de ofensividade das condutas típicas praticadas[107].
3.3.2. Princípio da Liberdade.
No ordenamento máximo brasileiro, desde o seu preâmbulo, a regra é a liberdade individual em sentido amplo, manifestado pela adoção da legalidade geral. Por este motivo, toda e qualquer opção de medida restritiva de liberdade, somente é justificada em situações excepcionais. Ivan Luiz da Silva comenta a atuação do princípio da liberdade no Direito Penal e no princípio da insignificância.
“Na seara penal a liberdade que exige proteção é a liberdade física do homem, liberdade de locomoção, que pode ser atingida, direta ou indiretamente, pelo instituto da pena criminal. Esse direito de liberdade do homem é o fundamento do direito penal (…) O princípio da insignificância atua como um instrumento de proteção ao supremo valor constitucional da liberdade, uma vez que realiza o princípio da liberdade, estabelecendo ainda, um „determinado padrão de atuação ética ao Direito Penal e valorizando o princípio da dignidade da pessoa humana em sua expressão mais libertária[108].
A atuação do princípio da insignificância, num caso concreto, impede que o agente ao praticar conduta sem relevância penal tenha sua liberdade atingida ratificando o valor da liberdade individual[109].
3.3.3. Princípio da Fragmentariedade.
Após escolhidos os bens e interesses particulares e coletivos, penalmente relevantes, comprovada a lesividade e a inadequação das ações que os ofendem, estes bens e interesses farão parte de uma parcela ínfima protegida pelo Direito Penal, dando origem a sua natureza fragmentária[110].
A fragmentariedade, conseqüência do princípio da intervenção mínima, da lesividade, da adequação social, norteia o legislador no processo de criação dos tipos penais, onde apenas as ações mais graves merecem a sanção criminal, servindo de fundamento para o princípio da insignificância, quando só se admite a apenação de condutas típicas que materialmente lesionem o bem tutelado[111].
O assunto é bem sintetizado por Ivan Luiz da Silva:
“Do princípio da fragmentariedade decorre o caráter subsidiário do Direito Penal, significando que a tutela penal só deve ter lugar quando as demais medidas coercitivas cíveis e administrativas não surtirem efeito na missão de proteger o bem jurídico atacado.(…) Em razão da natureza subsidiária do Direito Penal, sendo a intervenção estatal mais grave, é última ratio extrema, ou seja, deve ser empregada apenas em último caso”[112].
O princípio da fragmentariedade é realizado no princípio da insignificância no momento da seleção qualitativo-quantitativo das condutas mais graves contra os bens jurídicos atingidos, tendo como fulcro firmar um padrão de aplicação da lei criminal, afastando as injustiças formais desta, ao fixar pressupostos de defesa dos interesses humanos fundamentais[113].
3.3.4. Princípio da Proporcionalidade
Este princípio tem por escopo proibir intervenções desnecessárias e excessivas, não justificando que uma lei afete os direitos fundamentais individuais de forma desproporcional a agressão e a importância do bem jurídico tutelado. Marco Antônio Ribeiro Lopes preleciona:
“O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se em consequência, uma inaceitável desproporção”[114].
O princípio da proporcionalidade é aplicado em sede de Direito Penal, na própria tipificação dos delitos, excluindo-se a tipicidade penal de condutas materialmente não lesivas aos bens jurídicos tutelados, como também na proporcionalidade nas sanções prolatadas. Serve este princípio de base para o princípio da insignificância à medida que incide perante condutas insignificantes para excluí-las do âmbito penal, pela ocorrência da desproporcionalidade entre o fato praticado e a resposta penal a prática[115].
3.4. Critérios de Reconhecimento do Princípio da Insignificância.
Alguns operadores do direito alegam a não existência de um critério preciso para identificação das condutas penalmente insignificantes dentre aquelas positivadas no ordenamento jurídico. A doutrina tem apresentado critérios de identificação das condutas penalmente insignificante, dentre as quais merecem destaque as de Carlos Eurico Paliero e Lycurgo de Castro Santos[116].
O Italiano Carlos Paliero apresenta dois modelos para justificativa do seu critério, o primeiro, baseado na avaliação dos índices de desvalor da ação, desvalor do resultado e culpabilidade; e o segundo na antecipada mensuração da pena. Veja-se:
“O enquadramento sistemático do crime bagatelar ou, se assim se deseja, da geringfugigkeit vista como essência jurídica da categoria deve ser, portanto realizado segundo modelos dogmáticos consolidados. Neste tema pode-se acenar apenas aos dois esquemas interpretativos atualmente preferidos pela doutrina, que exaurem, verdadeiramente, as possibilidades de uma adequada tipificação dos bagatelldelikte. Por um lado o modelo-que se pode definir 'clássico' neste campo- constituído por apenas três índices 'desvalor da ação', 'desvalor do evento' e 'culpabilidade', e direcionado a averiguação da global exequilidade do fato usando as possibilidades de graduação do ilícito penal. Por outro lado o esquema dogmático- atualmente prevalente na doutrina de língua alemã-que utiliza, ao contrário, todos os critérios de uma 'antecipada comensuração da pena' para estabelecer o 'merecimento da pena'(Straufwurdigkeit) do próprio fato. Segundo tal impostação apenas no caso em que todos os indícios de comensuração da pena se mantenham abaixo de um limite mínimo se deveria reconhecer que a conduta não merece ser punida com sanção criminal”[117].
Já o brasileiro Lycurgo Santos baseia-se numa perspectiva ex ante, onde o comportamento do agente deve ser visto como pouco relevante para provocar um dano ao bem jurídico tutelado, e ex post, pois, seria tido como definitivamente impróprio para produzir o dano idealizado pelo legislador. Observa-se:
(…) corrige-se, (…), a apreciação preliminar do desvalor da ação- que era insignificante para o Direito Penal-a partir do desvalor do resultado, tornando-se aquele, afinal, relevante. Com isso, não se está elevando o resultado a elementos da proibição, senão que, além de condicionar a punibilidade, funciona como corretor do juízo de desvalor da ação, que muitas vezes, poderá ser elaborado apenas depois do resultado ocorrido. Vale dizer, apenas poderemos afirmar a tipicidade de uma conduta, tendo-se em vista a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico protegido, se analisarmos o comportamento do agente sob uma perspectiva ex ante e ex post[118].
Ambos os critérios se aproximam, na medida em que se originam da avaliação dos índices de desvalor da ação e do resultado da conduta realizada. Ivan Luiz da Silva completa dizendo que este modelo clássico deverá ser empregado para se aferir o grau quantitativo-qualitativo da lesividade ao bem jurídico tutelado. Assim, a avaliação dos elementos da conduta é que indicarão a insignificância ou não para o Direito Penal. Avaliação esta que deverá incidir na tipicidade e antijuridicidade do crime, conforme comenta abaixo:
“Contudo, em razão de a culpabilidade não ser elemento do crime, mas apenas pressuposto da pena, entendemos que não deva integrar o critério de determinação da conduta penalmente insignificante, pois, em nosso parecer, o princípio da insignificância incide sobre os elementos que compõe a estrutura interna do delito (tipicidade e antijuridicidade). De outra sorte, o desvalor da ação e o do resultado integram a estrutura do delito, pois o legislador, objetivando evitar a realização de ações que produzam uma lesão ou uma situação de perigo ao bem jurídico tutelado, atribui uma valorização negativa à conduta proibida descrita no tipo penal. Essa valorização negativa é representada pelo desvalor da ação e do resultado, que consistem em ser a descrição das partes que caracterizam a própria conduta delitiva”[119].
Continua o autor esclarecendo que o desvalor da ação, que informa o juízo de tipicidade, refere-se ao grau de probabilidade da conduta para realizar o evento naconcreta modalidade lesiva assumida pelo agente. Ocorrendo a insignificância do desvalor da ação “quando a probabilidade de conduta realizada de lesionar ou por em perigo o bem jurídico tutelado apresentar-se material e juridicamente irrelevante”. Enquanto que o desvalor do resultado, que se refere ao juízo de antijuridicidade, é inferido da importância do bem jurídico atacado e da gravidade do dano provocado. A insignificância do desvalor do resultado ocorre quando “o ato praticado é de significado juridicamente irrelevante para o direito penal; e gravidade do dano provocado não chega sequer a pôr em perigo o bem jurídico atacado”[120].
Destarte, decorrendo a insignificância ou não da ação desses índices que qualificam o fato como irrelevante para o Direito Penal. Luiz Flávio Gomes muito bem sintetiza o assunto:
“Duas são as hipóteses de insignificância no Direito penal: (a) insignificância da conduta; (b) insignificância do resultado. No delito de arremesso de projétil (CP, art. 264: "Arremessar projétil contra veículo, em movimento, destinado ao transporte público por terra, por água ou pelo ar: pena – detenção de 1 a 6 meses"), quem arremessa contra um ônibus em movimento uma bolinha de papel pratica uma conduta absolutamente insignificante; no delito de inundação (CP, art. 254: "Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem: pena – reclusão de 3 a 6 anos, no caso de dolo, ou detenção de 6 meses a 2 anos, no caso de culpa"), quem joga um copo d´água numa represa de 10 milhões de litros de água pratica uma conduta absolutamente insignificante. Nessas hipóteses, o risco criado (absolutamente insignificante) não pode ser imputado à conduta (teoria da imputação objetiva em conjugação com o princípio da insignificância). Estamos diante de fatos atípicos. No delito de furto (CP, art. 155), quem subtrai uma cebola e uma cabeça de alho, que totaliza R$ 4,00, pratica uma conduta relevante (há desvalor da ação) mas o resultado jurídico (a lesão) é absolutamente insignificante (não há desvalor do resultado). Também nessa hipótese o fato é atípico. Não há incidência do Direito penal”[121].
Encerrada a avaliação cognitiva, e caso conclua-se que a conduta típica é insignificante, passa-se a classificar o grau de insignificância, que pode ser absoluto, quando a gravidade for nula, ou relativo, quando a gravidade for de pequena monta. Diomar Ackel Filho leciona sobre o tema:
“A primeira (insignificância absoluta) é a que exclui a tipicidade. O fato, por deveras ínfimo, não chega a expressar valoração de tutela penal, através da subsunção em um tipo. Não há reprovabilidade. A segunda espécie (insignificância relativa) pertine a outros casos de atuações mínimas, de minguada importância que, embora formalmente típicas, tem a sua antijuridicidade esvaziada, ensejando a sua contemplação pela norma penal”[122].
A Suprema Corte do Brasil para aferição do reconhecimento do princípio da insignificância, firmou alguns requisitos, tais como: a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, inexpressividade da lesão jurídica provocada[123] – HC nº 94.439/RS[124].
Conforme mencionado no bojo deste trabalho, a matéria em comento não é pacífica nos tribunais brasileiros. Em recentes decisões o Supremo tribunal Federal vem admitindo a aplicação do princípio da insignificância em sede de crimes militares.
A Ministra do STF Carmem Lúcia ao relatar o Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 89624/RS[125], deu provimento ao recurso interposto por um soldado fuzileiro naval, que havia sido denunciado por prática de crime previsto no Art. 240, caput, §6º, Inc I, do CPM, pela subtração de uma mochila contendo alguns pertences de outro soldado, totalizados em R$ 154,57, e posteriormente, após violação de um armário, furtou um par de coturnos.
Salientando que os bens constantes na mochila foram restituídos antes da instauração do inquérito policial militar, a ministra considerou que os pertences surrupiados não ocasionaram dano relevante ao patrimônio da vítima ou perigo concreto, que colocasse em risco o bem jurídico tutelado protegido pela norma penal, fazendo -se valer do princípio da insignificância para embasar sua decisão ao dar provimento ao recurso. Vale a pena salientar que o Ministro Marco Aurélio divergiu da Relatora, por considerar que o local da prática do delito foi um quartel, defendendo a inaplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes militares.
No Habeas Corpus nº. 89.104/RS[126], de relatoria do Ministro Celso de Melo, decidiu-se, cautelarmente, suspender o procedimento que tramitava na 2ª Auditoria da 3ª Circunscrição Militar, até que se analisasse o mérito do remédio constitucional, com fulcro na possibilidade de incidência do princípio da insignificância.
O caso tratava-se de um furto de um aparelho celular, no valor de R$ 59,00, que na época do delito (maio de 2004), equivalia a vinte e dois, sessenta e nove por cento do salário mínimo, e que na época da decisão correspondia a dezesseis, oitenta e cinco por cento.
As decisões supracitadas (RHC nº 89.624/RS e HC nº 89.104/RS) causaram irresignações nos doutrinadores militares, que acusaram os membros da Corte Suprema do país, de não estarem atentando para os princípios da hierarquia e disciplina, insculpidos no Art.142 da Constituição Federal, vigas mestras na regência da vida na caserna; aos valores éticos e morais que devem ter aquelas pessoas responsáveis pelo dever de defender a pátria e a ordem pública; além das peculiaridades que cercam o regime militar, que tem que acomodar a tutela da regularidade das instituições militares e os direitos de seus integrantes. Observe-se o comentário de Jorge César de Assis:
“A nosso sentir, e com a devida venia, o Supremo Tribunal Federal não vem atentando para os valores específicos vigentes na caserna – a disciplina e a hierarquia, cuja importância está estampada na própria Constituição Federal (art. 142). Também tem olvidado que „a sociedade militar é peculiar. Possui modus vivendi próprio. Esta peculiaridade exige sacrifícios extremos (a própria vida), que é mais do que simples risco de serviço das atividades tidas como penosas ou insalubres com um todo.(…).Em razão das omissões acima referidas, as decisões do STF não têm levado em conta que „qualquer que seja o bem jurídico evidentemente protegido pela norma, sempre haverá, de forma direta ou indireta, a tutela da regularidade das instituições militares, o que permite asseverar que, ao menos ela estará sempre no escopo de proteção dos tipos penais militares, levando-nos a concluir que em alguns casos teremos um bem jurídico composto como objeto de proteção do diploma penal castrense‟.Daí o perigo de se tentar traduzir em conceitos jurídicos experiências que são vitais na caserna. Com precisão, Cícero Robson Coimbra NEVES e Marcello STREINFINGER alertam que a própria seleção de bens a serem tutelados e de condutas lesivas, difere do direito Penal comum, visto que o legislador deverá pensar não só na lesão daquele que seria o bem jurídico- penal em primeira linha, senão em um bem jurídico conseqüente: o sadio desempenho das missões concernentes às forças militares‟.(…). Constata-se que as decisões do STF acima referidas vêm enveredando por um caminho que a nós parece perigoso, a avaliação (pelo magistrado) da significância do valor do bem subtraído (que pertence à vítima). (…). Já no RHC nº 89.624-RS, o Tribunal concedeu a ordem para trancar ação penal pela prática dos crimes previstos no art. 240, caput e seu § 6º, I, do CPM (furto qualificado pela pelo rompimento de obstáculo), consistindo na subtração de uma mochila, de um par de coturnos e da quantia de R$ 154,57. Ora, ao prever a possibilidade (já em 1969) da aplicação do princípio da insignificância, o Código Penal Militar o fez levando em conta o reduzido valor da res furtiva, taxando-o em 10% do salário mínimo. Não se diga que este dispositivo está derrogado pela nova ordem constitucional, pois é o próprio STF que passou a se referir a percentual do salário mínimo para aplicar a insignificância (HC 89.104-RS; RTJ 192/963-964). A decisão da Corte passou ao largo do que foi previsto no CPM, rubricado inclusive como furto atenuado (art. 240, § 1º, CPM). Por fim, no HC 89.104, a decisão do relator que concedeu a liminar suspendendo o andamento da ação penal militar, valeu-se, inclusive, de uma interpretação que desconsiderou o vigente princípio do tempus regit actum, já que considerou para aplicação do aludido princípio da insignificância – como causa supra legal de exclusão de tipicidade, o momento posterior ao crime. A ementa da decisão monocrática destacou que o valor de R$ 59,00 (de um celular furtado), equivalia a 16,85% do salário mínimo, e este percentual era o da data da decisão. O inteiro teor da decisão permite identificar, todavia, que na data do furto, o percentual era de 22,69% do salário mínimo, diga-se de passagem, os dois percentuais são superiores ao fixado pelo legislador penal militar.(…). Concluindo, entendemos como já o fez o Superior Tribunal Militar, que não é o valor monetário da res fator decisivo para selar o destino do agente, mas o relevante prejuízo para as Forças Armadas e para a sociedade em geral (STM – Ap.2005.01.049837-0-RJ).O “amigo do alheio militar” não se compara ao ladrão comum. Este, se descuidista, surrupia, conforme lhe favorece a ocasião ou, predeterminado, escala, rompe obstáculo, desprovido de qualquer obrigação que não seja a do seu ato, se descoberto. Aquele, ao se apossar do que não lhe pertence fere, ao menos, três deveres igualmente importantes: seu dever de ofício, comum a todos os servidores públicos (art.37, CF); seu dever de lealdade com a Pátria e com a sociedade que prometeu defender em juramento solene (art. 32 do Estatuto dos Militares) e; seu dever de lealdade com a Força a que pertence, lastreada na disciplina e na hierarquia (art. 142, CF).Abstraindo-se de eufemismos, não há como deixar de concluir que o furto do gatuno fardado dificilmente será insignificante”[127].
O embate ganha mais força quando se traz a lume, que o próprio CPM, apesar das críticas que sofre de ser uma legislação severa e inflexível, contém expressamente em seu conteúdo, casos para aplicação do princípio da insignificância, previstos pelo legislador, como no delito de furto.
Ocorrendo o delito de furto, caso o agente seja primário e a res furtiva seja de pequeno valor, o §1º, do Art 240, do CPM, autoriza o juiz a substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuindo-a de um a dois terços, podendo ainda considerar a infração como disciplinar. O parágrafo segundo do mesmo artigo, prevê a mesma atenuação do §1º, caso o agente primário restitua ou repare o dano antes da instauração da ação penal.
O Superior Tribunal Militar entende pela inaplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes militares de furto, pois, independente do valor do bem subtraído, deve-se punir a quebra da confiança, mantendo-se a disciplina e hierarquia[128].
CONCLUSÃO
No introito deste trabalho se procurou esclarecer o que vem a ser um militar, cuja definição pode ser devidamente encontrada no Art. 22 do CPM. Para o citado artigo será considerado militar todo cidadão que em tempo de guerra ou de paz sirva as Forças Armadas. Os militares são divididos em duas categorias: Estaduais e Federais. Os militares estaduais correspondem aos integrantes das Polícias Militares e Bombeiros Militares. Já os militares federais são aqueles que integram os contingentes do Exército, Marinha e Aeronáutica.
Sabedor do que vem a ser um militar, o leitor passou a ter noção de como surgiu a Justiça Militar dentro de uma análise ao longo da história e como funciona atualmente, sendo composta pela Justiça Militar da União e Justiça Militar Estadual. A Justiça Militar da União, que é encarregada de julgar os militares das Forças Armadas e civis que pratiquem crime militar, é composta em primeira instância pelo Conselho de Justiça Especial, Conselho de Justiça Permanente, formado por oficiais, e Juízes Auditores. Em segunda instância, pelo Superior Tribunal Militar, que possui em sua composição dez Ministros militares e cinco civis. A Justiça Militar Estadual, encarregada de julgar somente militares estaduais, também é composta, na primeira instância, por Conselhos de Justiça Especial e Permanente, formados por oficiais e Juízes Auditores. Na segunda instância, os Estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, possuem o Tribunal de Justiça Militar, já os demais Estados, os Tribunais de Justiça são responsáveis pelo duplo grau de jurisdição.
Posteriormente, definiu-se o que é um crime, que na visão analítica é toda ação típica, antijurídica e culpável. A ação é todo procedimento voluntário, exteriorizado, realizado pelo homem com um objetivo. A tipicidade é quando a lei penal prevê como infração o comportamento humano que provocou um resultado. Ocorre a antijuridicidade quando a conduta humana afronta uma norma positivada, mas não ofende o ordenamento como um todo. Já a culpabilidade consiste na possibilidade de um agente que incorrer em algum fato típico e antijurídico, vir a receber uma pena.
Já o crime militar diferencia-se do comum na medida em que o órgão encarregado de aplicar o direito é diverso, por força da previsão constitucional dos Art.122, 124 e 125, §4º, todos da Constituição Federal bem como na natureza do bem tutelado.
Os crimes militares são divididos pela doutrina em propriamente militares e impropriamente militares. Os crimes propriamente militares são aqueles constantes apenas no CPM e somente podem ser cometidos por militar ao violar a disciplina, hierarquia e o dever militar. Os crimes impropriamente militares são aqueles que estão contidos tanto no CPM como no CP, e que só adquirem qualidade de militar quando atraídos por força do Art. 9º, do CPM.
De posse do conceito do que vem a ser um militar, da base estruturante da Justiça Militar, e da diferenciação de um crime comum para um crime militar, o que permite saber qual o caminho a ser percorrido, desde o cometimento e identificação do delito, até onde será processado seu julgamento, passou-se a estudar o delito foco do trabalho em comento.
O crime de furto, previsto no Art. 240 do CPM e 155 do CP, configura-se como crime impropriamente militar. A tutela imediata do bem jurídico é o patrimônio, porém, no ordenamento militar, existe a defesa de uma tutela mediata, que é a regularidade das instituições militares, lastreada nas missões constitucionais de defesa da pátria e preservação da ordem pública, atribuída aos militares.
Pioneiramente, o CPM traz expressamente em seu bojo, sinais do princípio da insignificância ao permitir que seja afastado o caráter penal do delito de furto, para considerá-lo infração administrativa disciplinar, desde que preenchidos os requisitos de primariedade do agente e a res furtiva seja de pequeno valor, fixada em até um décimo do salário mínimo, e ainda caso a coisa seja restituída a seu dono antes de instaurada a ação penal.
Os princípios são o alicerce de um sistema jurídico, mandamentos nucleares que servem para harmonizá-lo e direcioná-lo, dando-lhe sentido e compreensão. Podem estar explícitos ou implícitos no texto do ordenamento. A Constituição Federal em seu Art.5º §2º, dá supedâneo a existência dos princípios implícitos, permitindo que estes sejam usados na resolução de problemas, com o escopo de que a legislação deve acompanhar o caráter mutável da sociedade, como no caso do princípio da insignificância no CP.
Há muito se discutia se os princípios possuíam ou não natureza de norma, no entanto, hoje está discussão parece superada, pois a maioria da doutrina entende pelo caráter normativo dos princípios.
Segundo corrente majoritária, a origem do princípio da insignificância remonta ao direito romano antigo, manifestado no brocardo minima non curat praetor, pois o pretor não concebia atenção aos delitos de pequena monta para poder se dedicar às situações mais graves.
O conceito do princípio da insignificância não foi explicitado por nenhum instrumento legislativo ordinário ou constitucional, cabendo a doutrina firmá-lo como aquele que propicia a atipicidade de fatos, que por sua inexpressividade, constituem ações desprovidas de reprovabilidade, não merecedoras de valoração pela norma penal.
Quando da elaboração da norma penal, o legislador descreve abstratamente a conduta típica, tentando abarcar o maior número possível de condutas humanas em sua estrutura. Face estas imperfeições legislativas, condutas tidas como irrelevantes para o direito penal, passam a ser abraçadas pelo princípio da legalidade, quando, na verdade, não eram frutos do objetivo do legislador, que almejava tão somente alcançar aqueles fatos sociais que causam prejuízos significativos aos bens jurídicos tutelados.
Assim, como forma de minimizar a problemática descrita, Claus Roxin, em 1964, baseado no brocardo minima non curat Praetor, passou a dar uma nova formulação para o que viria a ser o conceito de injusto penal, com o escopo de excluir da seara criminal condutas que não apresentassem lesividade aos bens jurídicos protegidos, reduzindo a amplitude abstrata do tipo penal, colimando alcançar um sentido material de justiça.
A incidência do princípio da insignificância ocorre no elemento da tipicidade material, para corrente majoritária da doutrina, eis que para uma conduta ser reconhecida como crime não basta o simples enquadramento do fato a norma (tipicidade formal). A conduta também tem que afetar o conteúdo material do tipo penal.
O princípio da insignificância é fundamentado nos princípios da igualdade, liberdade, fragmentariedade e proporcionalidade.
O princípio da igualdade confere ao princípio da insignificância o sentido material, tratando desigualmente as situações desiguais, quando se leva em consideração o diferente grau de lesividade das condutas típicas praticadas.
A regra no ordenamento brasileiro é a liberdade em seu sentido amplo, manifestada pelo princípio da legalidade geral. Assim, a adoção de medidas restritivas de liberdade somente é justificada em situações excepcionais. O princípio da insignificância atua impedindo que o agente ao praticar conduta sem relevância penal, tenha sua liberdade atingida.
O princípio da fragmentariedade informa que os bens e interesses particulares e coletivos, penalmente relevantes, fazem parte de uma parcela ínfima protegida pelo direito penal. Os demais bens e interesses devem ser protegidos pelos outros ramos do direito.
Logo, somente as ações mais graves merecem a sanção criminal, servindo a fragmentariedade de base para o princípio da insignificância quando só se admitir a punição de condutas típicas que lesionem materialmente o bem jurídico tutelado.
O princípio da proporcionalidade tem por escopo proibir intervenções desnecessárias e excessivas, não se justificando que uma lei afronte os direitos fundamentais individuais de forma desproporcional a agressão e a importância do bem jurídico tutelado. Insere-se no princípio da insignificância à medida que exclui da seara penal condutas irrelevantes.
Depois de mencionado os fundamentos do princípio da insignificância, necessário também se comentar sobre os seus critérios de reconhecimento, que se baseiam no desvalor da ação e do resultado.
O desvalor da ação, que informa o juízo de tipicidade, refere-se ao grau de probabilidade da conduta para realização do evento na concreta modalidade lesiva assumida pelo agente. O desvalor do resultado, que se refere ao juízo de antijuridicidade, é deduzido do bem jurídico atacado e da gravidade do bem.
Este critério de reconhecimento deve ser utilizado para se aferir o grau quantitativo-qualitativo da lesividade do bem jurídico tutelado. Essa avaliação indicará a insignificância do fato para o direito penal.
Após análise dos julgados, verificou-se que no âmbito do STM prevalece o entendimento do não cabimento da aplicação do princípio da insignificância na Justiça Militar. Diametralmente vem se posicionando o STF, ao entender pela possibilidade da aplicação do princípio da insignificância no ordenamento castrense, em detrimento dos princípios da disciplina e hierarquia, estampados no Art.142 da CF, bem como da tutela mediata do ordenamento militar – regularidade das instituições militares.
Destarte, é importante salientar que o próprio CPM, até de forma pioneira, prevê, expressamente, claros sinais do princípio da insignificância em seu conteúdo, em especial, no Art.240, que trata do delito de furto.
A doutrina tem defendido que os tribunais não deveriam se afastar das balizas estabelecidas pelos dispositivos penais militares, por isso, não poderiam apenas observar a tutela imediata do bem jurídico protegido, o patrimônio, não levando em consideração as peculiaridades da vida militar.
Por tudo até aqui exposto, entende-se ser de difícil configuração a aplicação do princípio da insignificância nos crimes militares de furto, salvo nos casos adstritos a lei, por todos os valores morais e deveres profissionais que cercam a sociedade militar, que serve como caixa de ressonância de virtudes para a formação do caráter de jovens e admiração de crianças, tão carentes de exemplo, de um referencial a ser seguido.
As tropas militares, no exercício de suas missões constitucionais, devem funcionar como um elo de uma corrente, onde cada membro tem importância fundamental. Caso um destes elos se rompa, pela falta de confiança, honestidade ou moral, a instituição e a sociedade podem pagar com a vida por esta decisão.
Advogado especializado em Direito Civil e Administrativo militante nas áreas de consultoria e contencioso judicial e administrativo Consultor Jurídico Servidor Público Administrador Teólogo Mestre e Doutor em Teologia. Pós-graduando em Direitos Humanos e graduando em Administração Pública e em Filosofia. Pós-doutorando PHD em Filosofia Cristã. É autor de diversos artigos jurídicos nas áreas de Direito Administrativo Civil Ambiental Processual Civil Família Trabalhista Tributário e Penal
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