Recente acórdão proferido nos autos do Habeas Corpus pela Primeira Turma do STF abre um perigoso precedente contra a jurisprudência consolidada às duras penas no Pretório Excelso Nacional em matéria de ação penal na pendência de discussão administrativa do crédito tributário.
Na vigência da Lei de Sonegação Fiscal, Lei nº 4.729, de 14-7-1965, formou-se uma forte corrente doutrinária e jurisprudencial no sentido da independência da esfera fiscal em relação à esfera penal.
De fato, o tipo criminal era de mera conduta independendo do resultado, supressão parcial ou total do crédito tributário.
Com o advento da Lei nº 8.137, de 27-12-1990, que definiu o crime contra a ordem tributária, o tipo criminal passou a ser de resultado, isto é, passou a constituir-se em um crime material.
Efetivamente, dispõe o art. 1º, da lei 8.137/90 que constitui “crime contra ordem tributária suprimir ou reduzir tributo” mediante as condutas descritas nos seus incisos I a V. A Lei anterior definia como crime de sonegação fiscal as condutas descritas nos incisos I a IV do art. 1º (Lei 4.729/65), desde que praticadas com a intenção de exonerar-se do pagamento total ou parcial de tributos.
Contudo, apesar da mudança do tipo criminal – crime de mera conduta para crime de resultado – nos primeiros anos de vigência da Lei nº 8.137/90 não houve alteração jurisprudencial. Os tribunais permitiam o prosseguimento da ação penal independentemente da ultimação do processo administrativo onde se discutia a subsistência ou não do crédito tributário constituído pelo lançamento. Somente o pedido de parcelamento do débito antes do oferecimento da denúncia, ou antes do recebimento dela, conforme a legislação de natureza temporária vigente à época, acarretava a extinção da punibilidade.
Por conta desse posicionamento jurisprudencial houve abusos do fisco que, concomitantemente à lavratura do auto de infração para a constituição do crédito tributário promovia a representação ao Ministério Público para fins penais. Essa representação funcionava, pois, como um instrumento de coação indireta para o contribuinte autuado abrir mão do princípio constitucional do contraditório e ampla defesa.
Os abusos foram de tal ordem que o legislador federal inseriu o art. 83 no corpo da Lei nº 9.430, de 27-12-1966, prescrevendo que a representação penal fosse formulada apenas depois do término da discussão administrativa do crédito tributário.
O Procurador-Geral da República propôs ação direta de inconstitucionalidade do citado art. 83 visando a suspensão de seus efeitos. Todavia, o Plenário do Supremo Tribunal Federal indeferiu a medida liminar em 20-3-97 e, por maioria de votos, julgou improcedente a ação, confirmando a constitucionalidade do art. 83 da referida Lei (Adin nº 1571/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ, de 19-12-2003).
Dispositivo semelhante existe na legislação do Estado de São Paulo (Lei Complementar nº 970, de 11-1-2005).
A posição atual do Supremo Tribunal Federal é no sentido da prejudicialidade da ação penal na pendência de discussão do crédito tributário na esfera administrativa, como se verifica de inúmeros acórdãos que ensejaram a edição de Súmula Vinculante nº 24 nos seguintes termos:
“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
Duas observações cumpre fazer em relação a essa súmula. Primeiramente, apesar de o enunciado referir-se apenas aos incisos I ao IV, deve-se entender como abrangido, também, a conduta do inciso V, que indiscutivelmente está abrangida pelo rol de condutas tipificadoras dos crimes contra a ordem tributária.
Em segundo lugar, a expressão “antes do lançamento definitivo do tributo” está a significar antes do encerramento definitivo do processo administrativo tributário onde se discute o crédito tributário, cuja constituição definitiva se dá pela notificação do lançamento ao sujeito passivo, nos termos do art. 145 do CTN.
Realmente, notificado o contribuinte do crédito tributário regularmente constituído pelo lançamento ele tem duas opções:
(a) efetua o pagamento do valor exigido, extinguindo o crédito tributário;
(b) opõe resistência à pretensão do fisco apresentando a impugnação do crédito tributário, dando nascimento ao processo administrativo tributário para solução da lide.
Essa jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal, entretanto, recentemente sofreu uma flexibilização no julgamento levado a efeito pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Abriu-se um perigoso precedente permitindo a instauração de processo criminal resultante de representação fiscal antes do término da fase administrativa em que se discute o crédito tributário, sob argumento de que é preciso perquirir caso a caso a necessidade de esgotamento do processo administrativo fiscal. Prescreve a sua ementa:
“Crime tributário – Processo administrativo – Persecução criminal – Necessidade.
Caso a caso, é preciso perquirir a necessidade de esgotamento do processo administrativo-fiscal para iniciar-se a persecução criminal. Vale notar que, no tocante aos crimes tributários, a ordem jurídica constitucional não prevê a fase administrativa para ter-se a judicialização. Crime tributário – Justa causa. Surge a configurar a existência de justa causa situação concreta em que o Ministério Público haja atuado a partir de provocação da Receita Federal tendo em conta auto de infração relativo à sonegação de informações tributárias a desaguarem em débito do contribuinte.
(HC 108.037, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. 29-11-2011, DJe-022 Public 01-02-2012).
Com todas as vênias, esse julgado fere não apenas o art. 83 da Lei nº 9.430/96, que condiciona a representação fiscal para fins penais ao término do processo administrativo tributário, como também, a Súmula Vinculante nº 24 aplicável ao órgão fracionário de qualquer tribunal.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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