Resumo: o presente estudo é uma análise da conduta de divulgar conteúdo íntimo de uma relação, sem expressa autorização da parte exposta, com fito de enquadra-la criminalmente. Consiste em um levantamento sobre a definição de Revenge Porn para conformá-la dentro das figuras típicas já previstas pelo direito pátrio. A discussão se estende aos Projetos de Lei em trâmite no Congresso Nacional sobre a matéria, com análise minuciosa do texto aprovado pela Câmara dos Deputados em 21 de fevereiro de 2017.
Palavras-chaves: Pornografia não consensual; Revenge Porn, Delitos Informáticos.
Abstract: This study is an analysis of the conduct of disclosing intimate content of a relationship, without express authorization of the exposed party, in order to criminally frame it. It consists of a survey on the definition of Revenge Porn to conform it within the typical figures already provided by the country laws. The discussion extends to the Draft Laws in progress in the National Congress on the matter, with a detailed analysis of the text approved by the Chamber of Deputies on February 21, 2017.
Key words: Non-Consensual Pornography, Revenge Porn, Computer crime.
Sumário: Introdução. 1. Revenge Porn. 2. Os Delitos Informáticos. 3. As Consequências da Pornografia Não Consensual. 4. Tipificação do Revenge Porn. 4.1. Enquadramento na Lesão Corporal. 4.2. Enquadramento na Difamação. 4.3. Enquadramento na Injúria. 5. Os Projetos de Lei. Conclusão. Referência Bibliográfica. Apêndice I.
INTRODUÇÃO
A divulgação de conteúdo pornográfico está para a internet do mesmo modo que a internet está para o computador. Os dados carecem de precisão, mas diferentes fontes de pesquisa estimam um percentil entre doze e trinta por cento da internet relacionado à pornografia. A mais citada é a publicada em 2010 pela empresa britânica Optenet com uma amostra representativa de quatro milhões de URL’s em seu banco de dados. Segundo a pesquisa, a conclusão é que cerce de 37% da internet é composta por conteúdo pornográfico. Em setembro de 2016, o Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística IBOPE[1] publicou uma pesquisa sobre o comportamento do internauta brasileiro relativamente ao entretenimento erótico na internet e conclui que 65% dos internautas brasileiros acessam conteúdo adulto enquanto navegam. Outra fonte também bastante citada é a revista americana The Week[2] que, além de indicar 12% da internet relacionado à material erótico, ainda estima um faturamento anual do setor em torno de US$ 97 bilhões. Há quem conteste essas informações, como Mark Ward da BBC Brasil[3], e aponta distorções no método de pesquisa adotado capazes de dirimir esses números. Mas é inegável que independente da porcentagem tomada como referência o acesso a conteúdo erótico é fácil e amplamente disseminado. Isso engloba tanto conteúdo com finalidade comercial – produzido e orientado para venda – como conteúdo dissociado de viés comercial – produzido por razões particular.
A facilidade de produção e divulgação de mídias através de dispositivos eletrônicos como smartphones e tablets amplia o potencial de perpetração da pornô, sobretudo o não comercial. O anglicismo sexting surge nesse contexto definindo a divulgação de conteúdo erótico através de dispositivos eletrônicos. Nude Selfies – selfies de nudez – são utilizados para flertar ou seduzir outrem através da internet, ou apenas retribuir um favor de uma mídia anteriormente recebida. A prática se tornou comum e frequentemente é utilizada por casais para seduzir a outra parte da relação, realizar fantasias, ou apenas sair da rotina.
Não há óbice ou restrição à liberdade sexual do casal. No entanto, o conteúdo erótico produzido não se extingue com o término da relação e sua publicidade pode causar prejuízos imensuráveis. São inúmeros os exemplos que podem ser citados de vazamento de conteúdo íntimo após o término da relação para ridicularizar e envergonhar a pessoa frente à sociedade, por inconformismo de uma das partes da relação ou como forma de revanche por alguma situação desagradável. A exposição da intimidade através de mídias enviadas pelas redes sociais após o término do relacionamento viola direitos fundamentais não podendo o Estado coadunar com essa conduta ao arrepio da lei.
Sob esse aspecto o presente artigo é um estudo sobre a divulgação de imagens e vídeos eróticos de forma não consensual, em especial das mídias produzidas e adquiridas por meio de relações afetivas. O objetivo principal é definir uma tipificação penal coesa e coerente com a grave exposição da intimidade e capaz de reparar ao menos parte do dano sofrido.
Para tanto a discussão se dá sobre o conceito de Revenge Porn – Pornografia de Vingança – e suas consequências, discutindo em quais tipos penais já descritos pelo ordenamento pátrio a conduta encontra conformação. Após, passamos para uma análise crítica dos Projetos de Lei em trâmite no Congresso Nacional direcionados à criminalização da exposição da intimidade no meio virtual; nesse ponto a análise mais profunda será dada acerca do texto aprovado na Câmara dos Deputados em 21 de fevereiro de 2017 do Projeto de Lei n° 5.555/2013 de João Arruda (PMDB/PR).
1. REVENGE PORN
A ameaça de se divulgar conteúdo íntimo para obtenção de alguma vantagem não é uma conduta delituosa muito recente. Mas o que outrora fora utilizado de modo anômalo como instrumento para prática de extorsão, tem hoje ampliados a forma e o contexto de atuação. Isso se deve a fácil e rotineira produção de conteúdo virtual e a célere disseminação destas informações pela internet por meio de, principalmente, redes sociais.
Nesse cenário uma nova perspectiva tem sido oferecida à divulgação de conteúdo íntimo. Frente à agilidade de envio e recebimento de dados, transitando rapidamente pela internet, o ataque à imagem com intento de imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação (Difamação) e/ou lhe ofender a intimidade ou decoro (Injúria) por meio da propalação de mídias produzidas no seio da intimidade tem sido cada vez mais recorrente na atualidade. Casos como o de Francyelle dos Santos e Carolina Portaluppi são noticiados quase que diariamente, e causam danos incalculáveis para as vítimas.
O conceito de Revenge Porn surge nesse contexto. O termo estrangeiro – traduzido como Pornô de Vingança – é utilizado no Brasil para se referir as imagens e filmes de conteúdos pornográficos adquiridos de maneira consensual, porém distribuídos sem o consentimento da vítima. Acerca dessa definição cabe ressaltar a ressalva feita pela professora Mary Anne Franks[4]. Sob o seu prisma de análise esse conceito é exíguo por não abranger a distribuição de conteúdo íntimo adquirido sem o consentimento da vítima, pois, não raro, o acesso a essas informações se dá sem a anuência do proprietário. Basta evocar o caso Carolina Dieckmann no qual informações de cunho pessoal da atriz foram obtidas sem seu assenso por hackers que as utilizaram ulteriormente para extorqui-la. Portanto, Franks (2013) sugere que “um termo mais preciso é pornografia não consensual, definida como a distribuição de imagens sexuais de indivíduos sem seu consentimento” (tradução do autor).
Pertine-nos, nesse ponto, valer-nos de certo preciosismo para definição categórica da conduta em comento. Isso porque a pornografia não consensual criou dimensões tão sobressalentes que se tornou um gênero e suas formas de se apresentar passaram tornaram-se espécies desse gênero. Rogério Sanches Cunha (2017)[5], promotor de justiça do estado de São Paulo e professor de Direito Penal, em uma recente publicação no seu canal do YouTube, aborda uma vertente da pornografia não consensual e as figuras típicas em que se enquadram. Ele analisa a nova conduta denominada pela doutrina de Sextorsão. Ela se configura na ameaça de divulgação de conteúdo íntimo, adquirido por meios lícitos ou não, com o fito de (a) obtenção de vantagem econômica, (b) satisfação da lascívia com conjunção carnal não consentida ou prática de ato libidinoso e (c) obrigar a fazer algo não permitido ou não ordenado por lei. Rogério Sanches explica que na hipótese “a” a exigência de vantagem econômica encontra enquadramento na Extorsão, descrita pelo art. 158 do Código Penal. Na hipótese “b” a exigência de conjunção carnal ou prática de ato libidinoso encontra enquadramento no Estupro, descrito no art. 213 do Código Penal. E, de forma residual, ausente elementos que atentem contra o patrimônio ou a dignidade sexual, o que implica a hipótese “c”, a conduta encontra enquadramento no Constrangimento Ilegal, descrito no art. 146 do Código Penal. Ou seja, é uma ação que, de acordo com o caso concreto, encontra conformação com vários tipos de delitos.
O revenge porn, não encontra enquadramento em nenhuma dessas situações. Pois, para sua caracterização, não há a ameaça ou exigência de alguma vantagem, seja patrimonial ou sexual. O agente ativo simplesmente dá publicidade ao conteúdo íntimo para vingar-se, de algo que lhe causou inconformismo, atacando, portanto, a honra, a dignidade e o decoro da vítima. A agressão visa lesar bem jurídico distinto daqueles possíveis de serem maculados com a sextorsão.
Não obstante essa observação, destaque especial deve ser conferido à disseminação nas redes sociais, por uma das partes de uma relação encerrada, de conteúdo adquirido ou produzido no convívio íntimo por inconformismo com o término do relacionamento, ou outro motivo qualquer, e valendo-se, à época, da confiança que lhe fora atribuída. Sob essa égide, o revenge porn é uma espécie do gênero pornografia não consensual – que traz consigo vários outros delitos distintos – utilizado com o único objetivo de se vingar, finda a relação, através da exposição da outra parte. É possível, com essa reflexão, descrever três elementos essenciais para a configuração do revenge porn, a saber: a) o delito deve ser praticado sem a exigência de qualquer vantagem, pois, nesse caso, deveria ser analisado sob o crivo da sextorsão; b) é necessário que o agente ativo tenha relações íntimas, ou as tenha tido, com a vítima – namorado, cônjuge, companheiro, etc; c) a posse do conteúdo deve ter ocorrido no âmbito dessa relação. Presentes esses três elementos, é descaracterizada qualquer outra forma de pornografia não consensual restando apenas o enquadramento no revenge porn.
As consequências dessa forma de agredir são drásticas e perenes, pois a revelação da intimidade da vítima no ambiente virtual dificilmente será revertida e reconduzida à normalidade, dado o alcance e magnitude da internet. Esse quadro é atenuado por não existir ainda no ordenamento jurídico pátrio tipificação dessa conduta, levando o judiciário a analisar os casos concretos sob o crivo de outros tipos penais com cominações de penas muitas vezes aquém dos danos causados. Isso contribui para a majoração da sensação de impunidade e de baixo teor delitivo desses atos, o que fomenta e encoraja atitudes dessa natureza.
Um estudo realizado pela ONG Cyber Civil Rights Initiative[6] (CCRI) em 2013 indica que cerca de 90% das vítimas de pornografia não consensual são mulheres. E encontramos certa lógica para esses números se examinarmos o tabu ainda reverberante na sociedade sobre a sexualidade feminina. Coexistem no âmago social, de modo até hipócrita, uma rasa antipatia à pornografia não consensual e um profundo juízo acerca da conduta da mulher que se deixou filmar ou fotografar. Conscientemente a coletividade deixa recair o entejo sobre a figura feminina e ameniza o tamanho da ofensa causada pela divulgação de seu conteúdo íntimo por outrem. A liberdade sexual feminina é mitigada recaindo sobre seus ombros o dever de se “valorizar” perante a sociedade, e passa despercebida a conduta delituosa cometida por terceiro que se valeu de relativa confiança e cumplicidade para adquirir o conteúdo e posteriormente o propalar em meios virtuais.
O debate sobre a inércia falocrática da sociedade e moral contemporânea em detrimento das liberdades femininas nos foge ao tema, mas não podemos denegar o percentil de 90% das vítimas de pornografia não consensual ser do sexo feminino e, portanto, necessitar de medidas protetivas específicas quanto essas práticas. Nesse sentido, duas peculiaridades carecem ser destacadas e discutidas antes de se propor ao debate mais profícuo: compreender melhor as infrações cometidas em meio virtual e as consequências do revenge porn.
2. OS DELITOS INFORMÁTICOS
A popularização da internet e a facilidade de acesso à informática trazem consigo, inevitavelmente, uma nova seara para o cometimento de abusos e excessos. Tais condutas podem se caracterizar por ataques a bens jurídicos das mais diversas naturezas como honra, patrimônio, inviolabilidade de segredos, propriedade imaterial, entre outros.
O surgimento da internet trouxe em seu bojo um quê de “realidade paralela” onde regras e normas positivadas pelo direito vigente são rechaçadas e não há limitação ou imputação das ações cometidas nesse cenário, principalmente no que se refere aos tipos penais, pois o princípio constitucional da legalidade exige de forma clara a tipificação da conduta para considera-la crime. Essa consciência pueril e equivocada – ou falta dela – logo encontrou cerceamento para os excessos cometidos no ambiente virtual.
Nesse sentido destaco a exposição de Allan E. V. Ferreira[7] (2010, p. 16), Juiz Federal Substituto da 13ª Vara Federal de Pernambuco. Em suas palavras a necessidade de tipificação anterior “não quer dizer que a atual legislação penal não permita a cominação de pena a esses delinquentes, uma vez que dentro dos contornos constitucionais e legais, cabe ao interprete buscar a leitura da norma conformada com a nova realidade social”. Sendo assim, a utilização de um novo modus operandi para a prática de conduta delituosa já descrita como crime prescinde da redefinição da figura típica. Logo, injuriar alguém no meio virtual é tanta injúria quanto fazê-la no meio concreto e se sujeita, de igual modo, às mesmas sanções legais. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem entendimento nesse sentido e já se manifestou a respeito. No julgamento de uma publicação de cena de sexo infanto-juvenil (E.C.A., art. 241), mediante inserção em rede BBS/Internet de computadores a decisão do excelso tribunal é que “não se trata no caso, pois, de colmatar lacuna da lei incriminadora por analogia: uma vez que se compreenda na decisão típica da conduta criminada, o meio técnico empregado para realizá-la pode até ser de invenção posterior à edição da lei penal: a invenção da pólvora não reclamou redefinição do homicídio para tornar explícito que nela se compreendia a morte dada a outrem mediante arma de fogo” (STF – HC 76689/PB – Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE – DJ 06-11-1998 PP-00003 EMENT VOL-01930-01 PP-00070).
Entretanto, peculiaridades penais e processuais carecem de esclarecimento dados a inexistência de limitação fronteiriça e o amplo alcance dos delitos informáticos. Nessa direção surgiu em 2001 na Hungria a Convenção de Budapeste, celebrada pela comunidade europeia, que tipifica os principais crimes cometidos pela internet. Nas palavras do preâmbulo trata-se de “uma política criminal comum, com o objetivo de proteger a sociedade contra a criminalidade no ciberespaço (…) reconhecendo a necessidade de uma cooperação entre os Estados e a indústria privada no combate à cibercriminalidade, bem como a necessidade de proteger os interesses legítimos ligados ao uso e desenvolvimento das tecnologias da informação”[8].
Augusto Rossini, apud Allan E. V. Ferreira (2010)[9], “registra que a maioria das sugestões de direito material existentes na Convenção de Budapeste já está tipificada no Brasil, restando poucas adaptações para que se possa aderir a ela (2004, p. 248)”. Portanto, no Brasil algumas legislações também surgiram nessa direção. Dois clássicos exemplos podem ser elucidados: a Lei n° 12.737 de 30 de Novembro de 2012 que dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, altera o Código Penal e dá outras providências; e a Lei n° 12.965 de 23 de Abril de 2014 que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil – Marco Civil da Internet. Existem outras normas mais específicas que também regulam a utilização da internet como, por exemplo, o art. 241-A da Lei n°8.069 de 13 de Julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, entre vários outros.
O supracitado artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente, em especial, merece destaque no estudo em tela por relativa similaridade com a temática aqui abordada. Frente à necessidade específica de proteção integral à criança e adolescente contra abusos pornográficos em meio virtual o legislador ordinário tipificou de forma específica o delito de – genericamente – produzir e/ou distribuir conteúdo com cena de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança ou adolescente. Tal medida visa desencorajar a prática de criação e difusão da pornografia infantil diante da indispensável atenção especial que a menoridade demanda no que se refere a abusos sexuais e acesso a esse tipo de conteúdo na rede.
Em situação párea se encontra a mulher relativamente à pornografia não consensual e em especial à prática de revenge porn. Faz-se necessária, nessa atmosfera, a criação de medidas capazes de proteger e desestimular essas condutas e, sui generis, a dilapidação da moral feminina e subjugação de sua condição frente à sociedade que ainda tem latentes ressonâncias machistas. A situação especial das mulheres já foi reconhecida pelo direito pátrio ao ser editada a Lei n° 11.340 de 07 de Agosto de 2006 que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conhecida como Lei Maria da Penha. Contudo, os abusos cometidos no ambiente virtual com objetivo de dirimir e ridicularizar a figura feminina pela exposição da sua imagem reclamam medidas de proteção da sua individualidade e intimidade mais efetivas, principalmente quando realizadas em situações capazes de caracterizar a violência doméstica.
3. AS CONSEQUÊNCIAS DA PORNOGRAFIA NÃO CONSENSUAL
O estudo realizado em 2013 pela CCRI[10] indica que 93% das vítimas afirmaram já ter sofrido problemas emocionais em decorrência do publicização de sua vida íntima. Não raro, o processo de ridicularização da pessoa é agravado com a divulgação conjunta do conteúdo íntimo a informações que permitam localizar a vítima. Dados como nome completo, endereço, telefone, e-mail e até número do seguro social são divulgados no afã de maximizar a exposição da pessoa e perpetrar o a degradação social até os mais próximos ambientes de convívio da vítima.
O alcance e poder devastador desse delito são incalculáveis. O Marco Civil da Internet no Brasil prevê a possibilidade de o conteúdo publicado ser retirado do ar pelas empresas de forma imediata assim que solicitado pela vítima. Ainda obriga o armazenamento dos registros de conexão do usuário. Contudo, essas medidas não são suficientes para garantir a completa erradicação do conteúdo exibido na internet, pois a retirada do ar não implica a exclusão cabal das mídias armazenadas em todos os dispositivos, podendo mais ou menos hora voltar à tona em qualquer parte do mundo.
As sequelas emocionais, a restrição da liberdade, a exposição íntima, entre tantos outros impactos imateriais, acarretam para as vítimas uma depreciação profunda e duradoura. Casos de suicídio – como o da jovem de 17 anos Júlia Rebeca dos Santos, na cidade de Parnaíba – oferecem uma visão real da dimensão e do nível de agressividade envolvido nessa forma de delito. A CCRI[11] identificou que 3% das vítimas de pornografia não consensual chegam ao extremo de tirar a própria vida.
Além de consequências imateriais há também sequelas materiais. Na mesma pesquisa a CCRI informa que 8% dos participantes deixaram o emprego – ou a vida escolar – e 6% foram desligados das empresas em que trabalhavam. Ainda, 13% das vítimas afirmaram dificuldades para conseguir emprego após a divulgação de seu conteúdo íntimo nas redes sociais. Rose Leonel[12], vítima de revenge porn e fundadora da ONG Marias da Internet, em entrevista à jornalista Gabriela Varela da revista Época, afirma ter perdido o vínculo empregatício após a exposição da sua intimidade, tamanha a força do ostracismo sofrido por ela.
Não há uma forma objetiva e clara de se mensurar o tamanho dos danos que podem advir com a pornografia não consensual, sejam emocionais, econômicos, ou de qualquer outra natureza. Deve se destacar ainda que a exposição não é peremptória, pois se protrai no tempo, bastando, para isso, existir um único dispositivo eletrônico no qual o conteúdo armazenado não tenha sido excluído para haver chances reais de ressurgimento da ridicularização. É praticamente impossível garantir a cessação dos efeitos decorrentes com essa prática.
É significativo também dar destaque a figura da ação de terceiros que repassam mídias de pornografia não consensual. A prática delitiva não é exaurida quando da publicização do conteúdo, mas é reexecutada a cada novo compartilhamento; isso corrobora para prolongar o sofrimento e a condição vexatória da vítima. Fato análogo pode ser observado na propagação do crime de Difamação (art. 139 do Código Penal). Nesse sentido Fernando Capez (2010, p. 300)[13] explica que “a doutrina firmou entendimento no sentido de que o propalador, na realidade, comete nova difamação”.
O direito brasileiro tem entendido a prática de revenge porn como ofensa à honra, tipificando a conduta como difamação e injúria, salvo se houver enquadramento no crime de extorsão, estupro ou constrangimento ilegal[14]. A jurisprudência mais citada que converge nessa direção é a prolatada pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná. In verbis. “3. Comete os crimes de difamação e de injúria qualificadas pelo emprego de meio que facilita a sua propagação – arts. 139 e 140, c.c. 141, II do CP – o agente que posta na Internet imagens eróticas e não autorizadas de ex-namorada. (Apelação Criminal Nº 756.367-3, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Paraná, Relator: Lilian Romero, Julgado em 07/07/2011)”. O precedente trazido por essa decisão é imperioso, pois indica, de uma vez por todas, a conduta de publicização de imagens e/ou vídeos eróticos como delito punível pelo direito pátrio.
Cabe nesse ponto inserir novamente a discussão levantada por Rogério Sanches Cunha (2017)[15]. Em outra recente publicação no seu canal do YouTube, ele aborda o revenge porn e discute em quais fatos típicos a conduta encontra subsunção. Nesse vídeo, ele defende que, em se tratando de revenge porn, quando há, em decorrência da exposição social, o surgimento de quadro depressivo ou qualquer outra patologia psíquica o delito deve ser entendido como lesão corporal e não apenas como ofensa à honra – seja difamação ou injúria. Ele defende que o delito de lesão corporal, ao ser descrito como ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem, abrange três dimensões da saúde: física, fisiológica e mental. Em seu livro Rogério Sanches (2009, p. 46-47)[16] aprofunda o tema e define o objeto jurídico da norma repressora descrita no art. 129 de Código Penal – Lesão Corporal – como “a incolumidade pessoal do indivíduo, protegendo-o a saúde corporal, fisiológica e mental (atividade intelectiva, volitiva e sentimental)”. Sendo assim, qualquer conduta capaz de afetar alguma das três dimensões é passível de ser enquadrada como lesão corporal.
Nessa mesma linha de raciocínio há o posicionamento do professor Guilherme de Sousa Nucci (2010, p. 638)[17]. Ele afirma que em se tratando de lesão corporal “para a configuração do tipo é preciso que a vítima sofra algum dano ao seu corpo, alterando-se interna ou externamente, podendo, ainda, abranger qualquer modificação prejudicial a sua saúde, transfigurando-se qualquer função orgânica ou causando-lhe abalos psíquicos comprometedores”. Logo, causando avaria nas funções psíquicas em decorrência da pornografia não consensual, o delito em análise transcende a seara de ofensa à honra e alcança a incolumidade pessoal da vítima.
Independentemente da posição adotada pela justiça e apesar de já reconhecida a conduta criminosa do revenge porn o jus puniendi do Estado ainda não alcança os agressores da forma que deveria, pois o Código Penal reserva para os crimes contra a honra, em regra, ação privada (C.P. art. 100 c.c. art. 145) e comina penas relativamente brandas pelo baixo teor ofensivo dessas condutas, não entendendo como necessária, para esses agressores, a restrição de liberdade. Ainda deve ser destacado que as indenizações morais pela exposição da imagem são processadas e julgadas na esfera civil, em outro litígio. Essa quantidade de ações judiciais em esferas distintas torna morosa, exaustiva e demasiada onerosa a pretensão das vítimas de levar ao conhecimento da justiça a agressão sofrida. No entanto, merece ser destacado que, em se tratando de ações indenizatórias, o entendimento da justiça tem sido no sentido de considerar o revenge porn como “ato ilícito indenizável consistente na exposição sem autorização de foto íntima em rede social de grande porte, sendo impossível precisar o tamanho da exposição sofrida pela autora. Dispensada a comprovação efetiva do dano, sendo suficiente a comprovação do ato ilícito e nexo de causalidade”. PRELIMINAR AFASTADA. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70052257532, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em 12/12/2012).
Merece ser ressaltado novamente nesse ponto da discussão os dados trazidos pela CCRI[18] em 2013, apontando cerca de 90% das vítimas de pornografia não consensual sendo do sexo feminino. O art. 14 da lei 11.340 atribui aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher competência cível e criminal, julgando ambos os méritos em um mesmo processo. Também afasta a necessidade de representação da vítima para a propositura da ação penal pelo Ministério Público nos crimes de lesão corporal leve ou culposa. Sob essa ótica, e assumindo a necessidade de proteção das mulheres à essa nova modalidade delituosa, torna-se indubitável a imprescindibilidade de se tratar a matéria sob a luz da Lei n° 11.340 de 2006, pois desse modo as ações cíveis e penais se processariam concomitantemente no mesmo trâmite e as sequelas psicológicas oriundas da exposição dispensariam oferecimento de representação como requisito de procedimentalidade do Ministério Público – tomando como parâmetro as considerações do professor Rogério Sanches[19]. Inegavelmente, sob o crivo dessas consequências, a prática do revenge porn tenderia a ser desestimulada.
No entanto, para a criminalização da conduta, é necessário fazer considerações no afã de esclarecer as dicotomias sobre qual tipo penal o revenge porn encontra melhor enquadramento: difamação, injúria ou lesão corporal.
4. TIPIFICAÇÃO DO REVENGE PORN
A justiça brasileira, conforme elucidado, tem entendido a prática de revenge porn como conduta conformada dentro dos limites previstos pela figura da Difamação e/ou Injúria. Tais crimes estão previstos, respectivamente, nos arts. 139 e 140 do Código Penal, enquadrados nos Crimes contra a Honra. Ambos os crimes tutelam dimensões distintas da honra. Enquanto a Difamação visa proteger a honra objetiva da pessoa, a Injúria importa-se apenas com a honra subjetiva. O professor Guilherme Nucci (2010, p. 673)[20] diferencia as duas dimensões definindo a honra objetiva como “o julgamento que a sociedade faz do indivíduo, vale dizer, é a imagem que a pessoa possui no seio social” e a honra subjetiva como “o julgamento que o individuo faz de si mesmo, ou seja, é um sentimento de autoestima, de autoimagem”. Portanto, apesar de as duas normas protegerem a honra, fazem-no sobre aspectos distintos: um global, projetivo e extrínseco – honra objetiva – e o outro pessoal, silente e intrínseco – honra subjetiva.
Também não se pode denegar o perfeito enquadramento com a lesão corporal quando da ação decorrer sequelas psíquicas para a vítima, podendo se enquadrar em quase todas as modalidades de lesão corporal – exceto a culposa – inclusive a lesão corporal seguida de morte, caso a vítima venha a cometer suicídio pela divulgação indevida de sua intimidade. Sendo assim, passemos para a análise do enquadramento do revenge porn, segundo as figuras típicas vigentes na atual estrutura penal do Brasil, buscando a conformação mais adequada da conduta à norma repressora.
4.1.Enquadramento na Lesão Corporal
Nélson Hungria apud. Rogério Greco (2011, p. 253)[21] explica que “o crime de lesão corporal consiste em qualquer dano ocasionado por alguém, sem animus necandi, à integridade física ou a saúde (fisiológica ou mental) de outrem”. Ele define a lesão corporal como toda e qualquer ofensa ao funcionamento do corpo ou organismo humano que o desvie da plena normalidade. Casos como o de Rose Leonel[22] em que o estado depressivo decorrente do repúdio social foi caracterizado encontra perfeito enquadramento com a posição da doutrina majoritária, sendo necessária, para a caracterização da lesão corporal, por essa via, a comprovação da patologia psíquica bem como do nexo de causalidade. Todavia, não necessariamente o revenge porn terá associado a si a deflagração de um estado de patologia psíquica, pois não se trata de uma consequência fechada em si.
Os dados da CCRI[23], conforme já exposto, apontam o aparecimento de problemas emocionais em 93% das vítimas de revenge porn e, esses dados, não podem ser desabonados. Contudo, a lesão corporal surge mais como um agravante do que como um elementar do tipo penal. Tratar essa conduta apenas sob o crivo da lesão corporal implica dizer que sete por cento das vítimas de pornografia não consensual foram vítimas de fato atípico, por não terem desenvolvidos, em decorrência da agressão sofrida, patologia psíquica. De igual forma é imputar ao agressor o animus laendendi ao invés do animus diffamandi vel injuriandi, o que não corresponde à veracidade da conduta. Em suma, aparecendo disfunção psicológica condizente com lesão corporal, o crime deve ser assim julgado e processado, mas na ausência de condições capazes de enquadramento no art. 129 do Código Penal é indispensável a existência de outra figura típica idônea para acomodar em seus contornos a conduta delituosa.
Sendo assim, assumindo a lesão corporal como um possível e recorrente agravante do revenge porn ainda não reconhecido pela justiça brasileira, a busca por uma norma penal incriminadora menos restritiva nos conduz à análise das tipificações sob as quais o entendimento da justiça tem recaído: Difamação e Injúria.
4.2. Enquadramento na Difamação
O Código Penal define essa figura típica como difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação. Rogério Greco (2011, p. 423)[24] explica que “os fatos considerados ofensivos à reputação da vítima não podem ser considerados como crime, fazendo, assim, com que se entenda a difamação como um delito de menor gravidade, comparativamente ao crime de calúnia”. Ele também salienta não haver margem para a discussão se o fato ofensivo imputado é ou não verídico, pois a proteção à reputação da vítima se sobrepõe ao juízo de valor da coletividade impedindo, assim, que o próprio conceito da vítima seja maculado. Isso porque “embora sem revestir caráter criminoso, o fato incide na reprovação ético-social e é, portanto, ofensivo à reputação da pessoa a quem se atribui” (HUNGRIA. apud GRECO, 2011, p. 424)[25].
É fundamental esclarecer que nesse ponto não discutimos se o revenge porn é ou não é considerado uma conduta delituosa, pois já está claro que o é. Entretanto, discutimos qual delito ele configura e, para um contorno genuíno dentro da difamação, deve existir, com a divulgação de conteúdo íntimo, imputação de fato ofensivo à reputação. Em suma, para haver difamação é necessária a existência de fato desairoso, capaz de lhe macular o conceito frente à sociedade. Portanto, para enquadrar a pornografia de vingança nessa figura típica é crucial enxergar a presença de fato ofensivo à reputação quando da prolação de fotos íntimas. Mas afinal, qual seria o fato ofensivo?
Se pensarmos em revenge porn facilmente temos duas vertentes. Há quem defenda haver imputação de fato ofensivo à reputação quando se divulga conteúdo íntimo de outra pessoa e há quem refute essa hipótese. No argumento dos que defendem esse posicionamento existe a premissa postulada sobre o caráter e moral da “pessoa que se deixou filmar / fotografar”, independentemente das circunstâncias, pois, por essa linha de pensamento, a valorização pessoal deve ser priorizada em detrimento da lubricidade do ato sexual. Logo permitir a produção de fotos ou vídeos durante o coito demonstraria uma exacerbada propensão para a luxúria, o que atribui, em especial para as mulheres, caráter lascivo à pessoa, sujeitando-se, portanto, à reprovação da sociedade. Essa forma de pensar, apesar de considerada provinciana, ainda é facilmente percebida no mundo hodierno.
Por outro lado, aqueles que não enxergam a existência de fato ofensivo à reputação da vítima, defendem existir total liberdade para a realização dos desejos sexuais não sendo reprovável produzir fotos ou vídeos sensuais ou eróticos. Grosso modo, é uma visão mais cosmopolita e libertária no tocante à sexualidade. Por essa linha de pensamento, mesmo a publicização de conteúdo íntimo agredindo de forma indubitável a vítima com a imagem violada, não há como enquadrar essa agressão dentro da difamação, pois não há imputação de fato que ofenda a reputação.
Em síntese, o mérito recaí sob o quão conservador é sua forma de pensar. Se entender existir liberdade para o casal fotografar ou filmar o próprio ato sexual, não há como enquadrar o revenge porn na difamação. Por outro lado, se entender haver limites éticos, morais, religiosos, enfim, capazes de impedir o casal de fotografar ou filmar o ato sexual, há possibilidade de enquadramento do revenge porn nos contornos da difamação.
Contudo, o Direito não deve ficar completamente a mercê de tabus sociais para interpretar o caso concreto. Havendo diferentes formas de analisar o enquadramento da figura típica, é necessário continuar a busca por interpretações severamente proibitória de questionamentos. Conclui-se então, que apesar de haver ataque à honra objetiva da vítima – com a exposição de sua intimidade para a sociedade –, o revenge porn não tem perfeito enquadramento com a difamação, pois lhe faltam elementos essenciais do tipo penal descrito. Nessa lógica, é importante destacar o posicionamento do Professor Rogério Sanches Cunha (2017)[26] que defende sem seu canal o afastamento de enquadramento do revenge porn como difamação por não haver, justamente, a imputação de fato ofensivo à alguém, ou seja, ausência de elementos essenciais do tipo.
4.3. Enquadramento na Injúria
O Código Penal define essa figura típica como injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. Fernando Capez (2010, p. 305)[27] ensina que “o bem protegido por essa norma penal é a honra subjetiva, que é constituída pelo sentimento próprio de cada pessoa acerca de seus atributos morais (chamados de honra-dignidade), intelectuais e físicos (chamados de honra-decoro)”. Guilherme Nucci (2010, p. 682)[28], em sua análise sobre o núcleo do tipo, define injuriar como praticar uma ofensa ou insulto capaz de atingir a dignidade, materializada pela respeitabilidade ou amor próprio, ou o decoro, materializado pela correção moral ou compostura. Em sua análise, explica ser indissociável, para consumação do delito, a presença do elemento volitivo da conduta. Em suas palavras “exige-se majoritariamente (doutrina e jurisprudência), o elemento subjetivo do tipo específico, que é a especial intenção de ofender, magoar, macular a honra alheia”. Sendo assim a ofensa quando proferida por agente que agiu com animus criticandi – crítica – ou animus corrigendi – corrigindo – descaracteriza a injúria, por não existir anseio de ofender a honra subjetiva da vítima.
Não há dúvida que o revenge porn atinge de forma brutal a honra subjetiva da vítima, e esse é o objeto jurídico tutelado pela norma incriminadora em comento. Também não podemos afastar o elemento subjetivo do agressor, pois sua intenção ao propalar o conteúdo em qualquer meio de ampla divulgação é, inegavelmente, vingar-se, com a diminuição da vítima, de fato anterior que o tenha causado inconformismo. Entretanto, a conformação da conduta à essa figura penal encontra incompletude, pois o dano causado à honra objetiva da vítima não é aqui apreciado. Rogério Greco (2011, p.435)[29] ressalta que “de todas as infrações penais tipificadas no Código Penal que visam proteger a honra, a injúria, na sua modalidade fundamental, é a considerada menos grave”. Em síntese, tratar a matéria como injúria é fechar os olhos para a mácula causada à reputação da vítima na sociedade e desconsiderar todo o sofrimento oriundo da exposição ante ao corpo social e do julgamento do caráter e moral da vítima.
O revenge porn não afeta apenas a honra subjetiva, mas afeta também a honra objetiva. Não existe em nosso ordenamento jurídico uma figura típica que consubstancie ambas as dimensões da honra. Sendo assim, o crime de injúria não é capaz de tutelar todos os objetos jurídicos dessa conduta, mostrando inaptidão para reprimir a pornografia não consensual em qualquer uma de suas espécies.
Frente ao crescimento dessa forma de agressão sui generis, radical e impiedosa, é imperioso conseguir moldar um tipo penal apto a desestimular essa conduta e proteger concomitantemente o binômio formado por honra objetiva e subjetiva no meio virtual. Diante dessa necessidade, surgiram no Congresso Nacional vários Projetos de Lei com intenção de criminalizar a pornografia não consensual. Analisaremos, portanto, os mais relevantes desses projetos, frente as considerações até então elucidadas.
5. OS PROJETOS DE LEI
Até o dia 21 de fevereiro do corrente ano, tramitavam no Congresso Nacional alguns Projetos de Lei orientados para a criminalização da pornografia não consensual, e, de forma particular, o revenge porn. Ao todo eram doze projetos propostos por diferentes parlamentares e com peculiaridades específicas nessa matéria. O Apêndice I desse material apresenta uma tabela com (1) número dos projetos, (2) nome do parlamentar autor da proposta, (3) data de proposição e (4) resumo da ementa. Onze dos projetos estavam apensados ao Projeto de Lei (PL) n° 5.555/2013 de João Arruda (PMDB/PR), pois foi o primeiro projeto a ser proposto nessa direção. Ele previa alterações na Lei Maria da Penha com intuito de criar mecanismos para o combate a condutas ofensivas contra a mulher na Internet ou em outros meios de propagação da informação. O organograma abaixo apresenta a lista dos projetos de lei apensados ao PL 5.555/13.
A discussão sobre o projeto do deputado João Arruda se apôs sobre o caráter pouco abrangente da proposta, pois tratando a matéria apenas sob a luz da Lei n° 11.340/2006 restringia esse tipo de violência apenas às vítimas do sexo feminino, não conformando com essa tipificação a pornografia não consensual masculina. Mesmo sendo raro encontrar esse tipo de agressão voltada para homens, não é razoável agir como se não ocorresse. Exposição da intimidade de homossexuais e transexuais, por exemplo, que violam de igual forma a integridade moral dessas vítimas – quiçá ainda mais, dado o reverberante paradigma homofóbico ainda persistente na sociedade brasileira – não estariam amparadas por essa legislação. Nesse sentido, alguns projetos surgiram tratando a matéria sob o crivo do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de Dezembro de 1940 – Código Penal –, pois a abordagem penal do assunto seria capaz de ser a mais genérica possível, podendo criminalizar a violação da intimidade não consentida de homens, mulheres ou transexuais, não restringindo a figura típica à apenas um grupo ou gênero. O primeiro projeto a surgir com esse viés, e, na opinião do autor, um dos mais completos, foi o PL n° 6.630/2013 proposto pelo senador Romário (PSB/RJ) que previa a inclusão no Código Penal do crime de Divulgação Indevida de Material Íntimo cominando pena de detenção de um a três anos e multa. A Proposta ainda previa majorantes de pena para o delito se (I) cometido com finalidade de humilhação ou vingança, se (II) cometido por agente que manteve algum relacionamento amoroso com a vítima e se (III) cometido contra menor de dezoito anos, bem como a responsabilidade de indenização por danos decorrentes da conduta, não se afastando a possibilidade de pleitear indenização civil por outras perdas e danos materiais e morais não discriminados na proposta.
Apesar das dicotomias a matéria deveria ser tratada tanto pelo Código Penal, quanto pela Lei Maria da Penha, o que nenhuma das duas propostas faziam. A penalização da matéria visa generalizar o fato típico e a introdução do seu conteúdo no rol das proteções à mulher visa desestimular a tão comum prática do revenge porn e proteger a intimidade feminina frente ao falocracismo da sociedade. Sendo assim, destaque deve ser dado ao PL 4.527/2016 proposto pelo deputado Carlos Henrique Gaguim (PMB/TO) que aborda o conteúdo por ambos os lados. Contudo, a tipificação da conduta não previa majorantes e comina pena demasiada leve para a pornografia não consensual – detenção de três meses a um ano e multa. Ou seja, faltava para o PL um aprofundamento maior na matéria e a descrição de situações atenuantes e agravantes para a conduta de acordo com os resultados advindos da prática delituosa.
Não posso negligenciar a perspicácia dos PLs n° 6.668/2016 de autoria do deputado Dilceu Sperafico (PP/PR) e n° 6.713/2013 de autoria da deputada Eliene Lima (PSD/MT) por tratarem de forma específica a pornografia de vingança, tipificando de forma expressa a conduta e cominando penalidades severas para esses delitos. Destaco o PL n° 6.668/16 por dar descrição minuciosa para vários cenários advindos do revenge porn como agravantes em caso de tentativa ou consumação de suicídio da vítima, prevendo na própria norma diferentes dimensões e contextos relacionados ao delito.
Nesse cenário, com ampla repercussão de casos informados pela mídia e com vários Projetos de Lei apensados ao PL 5.555/13, a Câmara dos Deputados aprovou em 21 de fevereiro desse ano um substitutivo para o texto original do projeto elaborado pela deputada Laura Carneiro (PMDB/RJ) em conjunto com a deputada Tia Eron (PRB/BA), relatora anterior da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Ele traz inovações tanto no âmbito da Lei Maria da Penha quanto no âmbito do Código Penal.
No que se refere à Lei Maria da Penha o substitutivo amplia o rol dos direitos assegurados à mulher no art. 3° pela inserção do direito à comunicação e garantias de condições para o exercício efetivo dos direitos assegurados. Insere também o inciso VI no art. 7° que inclui, entre as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, a violação da intimidade da mulher, entendida como a divulgação, por meio da internet ou outro meio de propagação de informações, de dados pessoais, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, sem seu expresso consentimento. Tais medidas permitem o julgamento e processamento pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de crimes relacionados à pornografia não consensual no âmbito das relações domésticas. Permitem ainda ação do Ministério Público independentemente de representação quando da conduta advier danos psicológicos como, por exemplo, depressão ou sociofobia, segundo tese do professor Rogério Sanches.
No âmbito penal o substitutivo aprovado cria o crime de Exposição Pública da Intimidade Sexual, pela inserção do art. 140-A no Código Penal, definido como “ofensa à dignidade ou ao decoro de outrem, divulgando por meio de imagem, vídeo ou qualquer outro meio, material que contenha cena de nudez ou de ato sexual de caráter privado”. A pena cominada para o crime é de reclusão de três meses a um ano com aumento de um terço à metade se o crime for cometido por motivo torpe ou contra pessoa com deficiência.
A aprovação do substitutivo implicou o arquivamento dos PL’s n°s 4.527/16, 6.630/13 e 5.822/13 por haver prejudicada a matéria. O substitutivo aguarda envio ao Senado Federal para apreciação pela casa revisora do Projeto de Lei.
CONCLUSÃO
O caráter ímpar presente no revenge porn de ataque concomitante à honra objetiva e subjetiva da pessoa, bem como as consequências avassaladoras para a vítima não encontradas em nenhum outro delito que atente contra a honra, reclama a necessidade de se instituir uma nova figura típica no Código Penal idônea para tratar a matéria com a devida equanimidade, seja para o agente ativo ou passivo da conduta, pois não há subsunção perfeita do fato a nenhuma figura típica até então prevista no ordenamento jurídico brasileiro. Frente a essa peculiaridade, surgiram, desde 2013, vários Projetos de Lei no Congresso Nacional declinados à criminalização da pornografia não consensual, em especial o revenge porn. É dito isso porque outras formas de pornografia não consensual, como a sextorsão, encontram enquadramento genuíno às normas penais repressivas, conforme o caso concreto, restando sui generis apenas o revenge porn.
Contudo, mesmo a aprovação na Câmara dos Deputados do PL 5.555/13 figurando significativo avanço para incriminar a conduta, o texto do substitutivo proposto ainda se mostra aquém das expectativas da sociedade. A norma penal, apesar de abrangente, é silente em determinados aspectos – como a obrigação de reparar o dano sofrido ou previsão de agravantes por patologias desenvolvidas em decorrência do crime bem como da possibilidade de suicídio – e a pena cominada é, do ponto de vista do criminoso, inócua por se tratar de pena demasiada branda. Na opinião do autor, não haverá, do ponto de vista prático e material, diferenças entre o tratamento da justiça antes e após a aprovação do projeto de lei. Isso porque o resultado para o criminoso, hoje ou com a lei em vigor, será o mesmo, dadas as equivalência das penas e ausência da previsão de particularidades para o crime.
O texto mostra ainda desprezar as orientações da doutrina majoritária no que se refere à consideração de patologias psíquicas como lesão corporal, não prevendo a possibilidade de agravamento da pena em razão dos resultados advindos da conduta delituosa. Peca também em não criar mecanismos para reparação do dano causado, ou retratação, desamparando a vítima.
Em síntese, o texto aprovado, apesar de acolher os anseios sociais, tipificar o delito e inserir essa espécie de pornografia não consensual no rol de crimes contra a mulher, o faz de forma rasa e prolixa.
Professor de física na educação básica e superior desde 2011 especialista em ensino e mestrando em física atômica e molecular. Integra grupo de pesquisa e aperfeiçoamento da prática pedagógica
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