Resumo: O presente trabalho destina-se a apresentar uma abordagem sobre os dilemas do que se possa entender sobre a configuração de um comportamento delitivo e a possibilidade de o Estado, em contrapartida, aplicar ao infrator uma pena em face desse seu comportamento agressivo. Analisa as fontes que se propuseram legitimadoras do poder punitivo, bem como as teorias que buscaram desvendar as finalidades da pena. Levanta, também, questionamentos acerca da delimitação do poder punitivo levando em conta a impossibilidade de se aquilatar a responsabilidade do indivíduo quando da reprovação de seu comportamento mediante análise de sua culpabilidade. Em face das incertezas legitimadoras do poder punitivo, bem como das hodiernas finalidades preventivas da pena, defende o fim da pena privativa de liberdade e o uso de penas e medidas alternativas à prisão. Analisa e rejeita o abolicionismo do sistema penal em face da instabilidade comportamental da espécie humana, que em seu atual grau de desenvolvimento ainda requer um gerenciamento mútuo e coletivo.
Palavras-chave: crime, pena, sistema penal, legitimidade, penas alternativas, abolicionismo.
Abstract: This work is intended to present an approach about the dilemmas that one can understand about the configuration of a criminal behavior and the possibility of the State, by contrast, apply a penalty to the offender in the face of his aggressive behavior. Analyzes the sources that sought legitimacy of punitive damages, as well as the theories that sought to unravel the purposes of punishment. Raises, as well, questions about the delimitation of punitive power in the light of the inability to assess the responsibility of the individual when the disapproval of their behavior through analysis of their culpability. Given the uncertainties of legitimizing punitive power, as well as preventative purposes of today's sentence, advocates the end of the sentence of imprisonment and the use of penalties and alternative measures to prison. Examines and rejects the abolition of the penal system in light of the unstable behavior of the human species, which in its present stage of development still requires a mutual and collective management.
Keywords: crime, punishment, criminal justice, legitimacy, alternative sentencing, abolitionist.
Sumário: Introdução. 1. Evolução histórica do poder de punir. 1.1. Fase da vingança divina. 1.2. Fase da vingança privada. 1.3. Fase da vingança pública. 2. teorias absolutas, relativas e eclética da pena. 2.1. Teorias absolutas. 2.2. Teorias relativas. 2.2.1. Finalidade preventiva geral. 2.2.2. Finalidade preventiva especial. 2.2.2.1. Finalidade preventiva especial negativa. 2.2.2.2. Finalidade preventiva especial positiva. 2.3. Teorias eclética. 3. Da culpabilidade. 4. Da fragilidade do sistema jurídico-penal. 5. Proposta ao sistema jurídico-penal. 5.1. A questão do que se deva entender como crime. 5.2. A questão da pena criminal. 6. Repensando o sistema penal. 6.1. Abolicionismo penal moderado. 6.2. Do abolicionismo penal radical. 7. Conclusão
Introdução
Há tempos a questão da legitimação do poder de punir atormenta juristas, filósofos, políticos, sociólogos, isto porque, em última análise, as elucubrações sobre os fins da pena dizem respeito também à crise do sistema jurídico-penal.
Aliás, não sem razão, torna-se cada vez mais eloqüente a voz daqueles que resumem que “o Direito Penal se legitima pelos fins da pena estatal”, embora ressalvando que tal assertiva não se aplique aos Estados totalitários, pois nestes, ainda que se produza um direito penal, isto é, de acordo com as leis dele emanadas, jamais serão capazes de produzir um direito justo, e a norma injusta jamais é capaz de legitimar o direito.[1]
Por isso nos orienta Figueiredo Dias acerca da importância de se debruçar sobre os questionamentos legitimadores da pena criminal, uma vez que se resume nela toda a essência, razão de ser e do próprio destino do Direito Penal.[2]
Portanto, crime e pena são conceitos que se interrelacionam, sendo a prática do crime pressuposto inarredável para a aplicação da pena, embora esta nem sempre se apresente quando do surgimento daquele.
E isto ocorre não somente pelo fato incontestável de que a grande maioria dos crimes remanessem impunes, seja pelo seu desconhecimento, seja pela falta de elementos suficientes para sua apuração ou, ainda, por questões de política criminal, como nos crimes de ação pública que se apuram e perseguem em Juízo por meio da iniciativa do particular ofendido.
Entretanto, não obstante a aproximação de ambos, a abordagem direcionada ao entendimento de cada qual deve observar determinadas diferenças. Por exemplo: Enquanto ao crime se pergunta: o que é?, À pena se indaga: por quê? E para quê?
Todavia, definir o que venha a ser crime, é um desafio já enfrentado por muitos, mas sem uma resposta definitiva, pois a complexidade do crime extrapola um mero conceito material, requerendo uma abordagem político-social a fim de que se possa vislumbrar um pouco acerca do muito que se tem debatido nessa complicada tarefa de se catalogar como deviance um dado comportamento humano.
Não se descura que o crime seja estudado sob diferentes ângulos, sendo que cada ponto de vista busca defini-lo guardando aspectos próprios de acordo com a orientação ideológica e científica de cada ramo do saber.
Desse modo, a percepção que o direito penal tem do modo de agir definido como crime não é a mesma vislumbrada pela criminologia, pois enquanto o primeiro estabelece seu modo de enxergar o crime a partir da pessoa do indivíduo, a criminologia observa o contexto social.[3]
Com efeito, é a própria sociedade quem, direta ou indiretamente, elege os comportamentos tidos como desviantes e, por conseguinte, aponta a figura do criminoso, isto é, daquele que se desvia, em seu modo de agir ou de se abster de agir, do quanto estatuído na norma incriminadora.
Sob esse aspecto, a pena é aplicada como decorrência lógica e necessária da prática delituosa, fundamenta-se na culpabilidade do agente e constitui a questão do destino do Direito Penal.[4]
Logo, a questão da legitimidade do Direito Penal acaba por ser também e a seu modo, a da legitimidade da pena, muito embora a fonte de um (crime) e de outra (pena) nem sempre seja coincidente.
Se nos atuais Estados democráticos a enumeração dos crimes e das penas decorra da lei, em tempos outros, o grupo social apontava o que se devia entender por crime, mas a punição era aplicada em nome de uma divindade, que “exigia” que a pena fosse executada em retribuição ao crime cometido para que, assim, se expiasse a culpa da sociedade pelo mal levado a cabo, restabelecendo-se a paz comunitária e a comunhão do grupo com seu deus ofendido.[5]
Obviamente que essa legitimidade fundada na autoridade divina implica em se afirmar a infalibilidade da justiça humana, uma vez que não se distingue da justiça divina, em nome da qual se executa a pena.
A toda evidência que tal modo de legitimar a pena não poderia subsistir, pois como explicita Roxin, citado por Galvão: “A máxima bíblica ‘não julgueis para que não sejais julgados’ é, assim, entendida precisamente um veto contra a híbrida crença de se conhecer o juízo divino sobre a culpa humana e poder executá-lo.[6]
Outra tentativa de se encontrar a legitimidade proveio das idéias de Kant, que encontrou na retribuição moral a suposta resposta a tal questão, asseverando que a lei penal tem seu fundamento na Ética, e conclui afirmando que a aplicação da pena é uma exigência da própria natureza humana, e a omissão da sociedade em punir o criminoso torna-a cúmplice do delito cometido.[7]
Também o tecnicismo jurídico de Arturo Rocco, que fundamenta a legitimidade do poder punitivo no direito positivado, não solucionou a contento a problemática ora questionada, pois o princípio hegeliano que procura compensar o mal do crime com o mal da pena não se sustenta, pela simples razão de que o delito não pode ser desfeito ou compensado com a pena.[8]
Como se observa, a dificuldade é dupla: primeiro em se definir o que constitua crime; depois, estabelecer a necessidade e quantidade da pena, o que nos levará a buscar na culpabilidade a medida dessa pena.
Mas novamente aqui retornamos ao ponto inicial e angustiante que nos leva a indagar: de onde exsurge a autorização que torna legítima a punição perpetrada por um ser humano ao seu semelhante, atingindo sua vontade, liberdade e vida?
O problema torna-se mais angustiante quando se busca definir a quem, quando, como e em que medida punir.
Ainda mais: qual a razão de ser da pena?
Da resposta a tais perguntas, depende todo o ordenamento penal, pois como salienta Fernando Galvão: “O porquê e o para quê da pena são questões relacionadas com o porquê e o para quê do ordenamento jurídico que a institui”.[9]
Portanto, saber se o poder punitivo encontra legitimação, e em que medida, é crucial para manutenção do sistema penal.
A idéia de legitimação, como explica Galvão, “está, inicialmente, vinculada às crenças que, em determinada época, orientam o consentimento e a obediência dos que a reconhecem”.[10]
A complexidade do tema requer o auxílio de mais de um ramo do saber, por isso se diz que “as razões que fazem justo e aceitável, moral e politicamente, a aplicação de pena ao autor de crime é de natureza filosófica”, enquanto que “a investigação sobre os argumentos que, em uma determinada sociedade, conduzam ao julgamento do que um poder deva, ou não, ser aceito e obedecido é de natureza sociológica”, mas “o aspecto jurídico da legitimidade ressalta que a transmissão do poder e seu exercício realizam-se segundo a lei”.[11]
Mas a verdade é que a busca dessa legitimação nunca encontrou consenso, variando no tempo e no espaço, desde a mais remota antiguidade.
1. Evolução histórica do poder de punir.
Didaticamente, costuma-se dividir essa busca em três fases: a) vingança divina; b) vingança privada; c) vingança pública.
1.1. Fase da vingança divina.
Na fase mais primitiva, a da vingança divina, a aplicação da pena não guardava qualquer proporcionalidade com o crime cometido e este era definido de acordo com as normas “ditadas pela divindade” e tornadas conhecidas no meio social pelos profetas e sacerdotes que assistiam perante tais divindades e se encarregavam de transmitir ao povo sua vontade.
Na cátedra de Masson, a violação de tais regras requeria a punição exemplar do criminoso, mas comumente não requeria um juízo prévio de culpabilidade, baseando-se na regra da causa (cometimento do crime) e efeito (punição do criminoso.[12]
As penas mais comuns incluíam desterro e morte, e em algumas comunidades, o efeito expansivo da condenação requeria que a aplicação da pena alcançasse os familiares, empregados e animais do infrator, impondo-lhes o mesmo castigo.
Bem verdade que esse efeito amplo era mais característico das sociedades patriarcais, onde o chefe da família era proprietário não somente dos bens materiais, como também de todos aqueles que viviam sob sua proteção, o que incluía mulher (es), filhos, empregados, atingindo também seus animais, terras, imóveis e tudo o mais que possuía.
1.2. Fase da vingança privada.
A fase seguinte atribui valoração maior à necessidade da convivência social que a supostas forças espirituais, de modo que o agravo cometido por alguém, membro do grupo ou não, era encarado como ofensa à própria comunidade, que se sentia, assim, legitimada a punir o ousado infrator por seu desrespeito à comunidade.
Nessa fase, a pena possuía um caráter aflitivo voltado à vingança, concedendo ao indivíduo vituperado pela prática delituosa o poder de se vingar do delinqüente, sem a necessidade de observar qualquer limite em sua revanche, fazendo imperar a lei do mais forte em detrimento do mais fraco.
Um tapa no rosto poderia conceder à vítima o direito de matar o agressor, sendo que a pena nessa fase ainda não havia abandonado seu efeito expansivo, alcançando outros integrantes do convívio do infrator.
Por isso se afirma que a Lei do Talião importou em uma “pioneira manifestação do princípio da proporcionalidade”, pois limitava a vingança ao tamanho da agressão sofrida.[13]
1.3. Fase da vingança pública.
Chegamos finalmente à fase da vingança pública, em que o Estado se reveste do direito ao exercício do jus puniendi em nome dos membros do corpo social, objetivando manter a ordem, a segurança e a paz.
Não obstante o distanciamento temporal da fase em que imperava a aplicação da pena como mandamento divino, as penas aplicadas ainda eram desumanas e desproporcionais se analisadas sob a ótica do direito vigente em nossos dias atuais.
Somente bem mais tarde, com o advento do Iluminismo, foi que a preocupação com o escárnio e sofrimento do infrator ganhou contornos, inicialmente, pelas idéias do Marquês de Beccaria, que, amparado no contrato social de Rousseau, escreve sua famosa obra, de 1764, “Dos delitos e das penas”, cujas letras oportunizaram a concepção dos princípios da legalidade e anterioridade, e trouxeram novas luzes sobre o princípio da proporção.
Dessas idéias iniciais despertaram os intelectuais da época para os antigos ensinamentos de Santo Agostinho sobre o livre arbítrio, com o conseqüente surgimento da culpabilidade como delimitadora da responsabilidade do agente e da resposta penal.
2. Teorias absolutas, relativas e eclética da pena.
No momento que se segue, em particular no transcorrer do século XX, as indagações atinentes ao jus puniendi fomentaram teorias que pretendiam fornecer uma explicação plausível para a questão, entre elas, destacaram-se as teorias absolutas, as relativas e a eclética da pena.
Como pontua Masson, toda perquirição engendrada pelos mais diversos estudiosos e que deram à luz variadas teorias a respeito da pena, tinham por pano de fundo desvendar o grande mistério atinente às finalidades da pena.[14]
2.1. Teorias absolutas.
As teorias absolutas têm como ponto fulcral da pena criminal seu caráter retributivo, no sentido de se buscar “compensar” o mal originado com a produção do delito, com o mal impingido ao infrator.
Não se persegue quaisquer outros efeitos, tais como intimidação geral da sociedade ou individual do infrator, nem se almeja a correção do criminoso com sua posterior reintegração social; ainda que tais efeitos exsurjam com a aplicação da pena, não se encontram insertos em suas finalidades, devendo ser entendidos como efeitos reflexos secundários e desnecessários à essência finalística da pena.
A punição decorre do simples fato da prática do crime e faz-se necessária para a purgação do mal, purificando a sociedade, fazendo recair sobre o delinqüente os efeitos por ele não desejados, mas obrigatoriamente impostos, decorrentes da violação da lei penal.
2.2. Teorias relativas.
As doutrinas relativas, por seu turno, voltam-se ao entendimento da pena como um instrumento de prevenção geral, negativa e positiva, e prevenção individual, tendentes a evitar a prática de novos delitos.
2.2.1. Finalidade preventiva geral negativa.
Sob o aspecto da prevenção geral negativa, a pena atua sobre a sociedade de forma intimidatória, isto é, visando dissuadir os integrantes do corpo social tendenciosos à prática delituosa de se absterem de iniciar sua trajetória pelas veredas do crime e se esforçarem por manter uma conduta compatível com o ordenamento jurídico e, no caso, com o ordenamento penal.
Sofre severa crítica por transformar o ser humano em instrumento da política criminal para doutrinar os demais membros da sociedade, com patente afronta à dignidade da pessoa humana.
Entretanto, essa finalidade ora esposada, encontra em Günther Jacobs sua razão de ser, e ele a desenvolve de modo a justificar a idéia de um desvestimento da referida dignidade por parte daqueles que, de forma deliberada e persistente, violam o ordenamento penal.[15]
Na visão do mencionado penalista alemão, paralelamente ao direito penal positivado como regedor da sociedade das “pessoas de bem”, haveria um direito penal exclusivo para os que se revelaram possuidores de um instinto desagregador, pernicioso e afrontoso da ordem pública e da paz social.
A tais pessoas, rotuladas por Jacobs de “inimigos” (do ordenamento jurídico e da sociedade), não se deveria aplicar as garantias penais e processuais direcionadas aos cidadãos (pessoas de bem), posto que, ao se tornarem inimigos, rejeitaram as regras da vida comunitária para se conduzirem por suas próprias regras delitivas, dando ensejo ao chamado crime organizado, cuja estrutura se coloca ao lado do Estado democrático de direito e o desafia pela força da violência. É o estado paralelo.
Eis que assim, sob o amparo e assistência do direito penal do inimigo ou do terror, a finalidade preventiva geral negativa encontra sua legitimidade, embora contestada pela maioria dos demais estudiosos do direito penal.
2.2.2. Finalidade preventiva geral positiva.
O fim aqui almejado é o de afirmar a validade, vigência e eficácia da lei penal, ou seja, a pena funciona como um sinalizador de que o direito foi violado e como conseqüência houve a imposição de um castigo ao infrator como demonstração da reação do sistema jurídico penal.
O objetivo não é a intimidação da sociedade, antes busca reforçar a crença comunitária na força operacional do direito como instrumento de pacificação dos conflitos sociais e parâmetro de comportamento individual e coletivo.
2.2.3. Finalidade preventiva especial
Essa finalidade da pena orienta o princípio da obrigatoriedade, tanto na fase da investigação, quando impõe à autoridade policial instaurar o inquérito sempre que presentes elementos mínimos que tornem possível a averiguação do crime, como na fase da persecução penal, impedindo o órgão do Ministério Público de deixar de promover a ação penal quando se deparar com elementos indicadores da prática de determinada infração penal. Também aqui encontramos duas finalidades na execução da pena, uma de cunho negativo, outra de cunho positivo.
2.2.2.1. Finalidade preventiva especial negativa.
Orienta-se a pena a evitar que o agente volte a manifestar um comportamento contrário àquele determinado pelo ordenamento jurídico-penal, ou seja, busca evitar a reincidência do condenado, para que ele não se aventure em novas empreitadas delitivas, ou seja, não reincida no exercício de novos delitos, sejam eles de que espécie e natureza forem.
2.2.2.2. Finalidade preventiva especial positiva.
Já do ponto de vista da prevenção especial positiva, a pena volta-se a corrigir o comportamento transviado do marginal, daquele que, descurando do “contrato social estipulado”, passou a viver à margem da sociedade, buscando seu regresso ou inserção no seio social.
A execução da pena não pode privar o indivíduo de seus direito, muito menos afrontar sua dignidade; o sofrimento além do quanto estipulado na lei é arbitrário e se sujeita à reprovação social, visto que o objetivo da sociedade, sob esse ponto de vista, deve ser o de trazer de volta aquele que se desviou do grupo, agindo de modo contrário ao quanto pactuado na lei penal.
A prevenção especial possui, portanto, uma finalidade complexa no sentido de que a punição é, ao mesmo tempo, meio de prevenção de reincidência criminal e de reinserção social.
2.3. Teorias eclética.
A verdade, entretanto, é que nenhuma dessas teorias, isoladamente, conseguiu responder, de modo satisfatório, o que, por que, para que e em que medida punir, de modo que, uma tentativa de se chegar a uma resposta foi mesclá-las.
Essa fusão deu ensejo ao que ficou conhecido como “teoria da união”, que medeia as teorias absolutas e relativas, albergando em si aspectos retributivos e preventivos da pena, embora nos últimos tempos a ênfase maior tenha sido orientada a encontrar os fins preventivos da pena.[16]
Essa foi a teoria adotada pelo Código Penal brasileiro, em seu artigo 59, caput.
3. Da culpabilidade
Vimos que a pena é a resposta estatal imposta ao criminoso em face do delito por ele cometido.
Vimos também que essa pena possui finalidades múltiplas, de prevenção e retribuição.
Supondo-se que houvesse consenso quanto à conceituação de crime e que as finalidades da pena fossem sempre alcançadas com sua aplicação, ainda assim resta a pergunta: qual a extensão da medida da pena?
De acordo com o pensamento corrente, a extensão é a culpabilidade do agente.
Levando-se em consideração que todos os homens são livres, isto é, dotados de livre arbítrio, cabe-lhes como conseqüência a responsabilidade pela execução de cada um de seus atos, o que implica em fazer recair sobre o agente um juízo de culpa sempre que se portar de um modo diverso daquele que naturalmente era de se esperar nas circunstâncias em que se deram os fatos.
Esse juízo de culpa varia de acordo com a responsabilidade do agente, levando-se em consideração o caso concreto e a pessoa do infrator.
Para alguns estudiosos, a culpabilidade serve de fundamento da pena a ser aplicada ao agente infrator, mas a oposição a esse entendimento tem crescido ao ponto de se afirmar que o verdadeiro papel do princípio da culpabilidade reside em se proibir ao Estado criar e aplicar penas excessivas, ou seja, que excedam o grau de responsabilidade do agente.[17]
Essa faceta da culpabilidade volta-se, assim, à delimitação do poder punitivo do Estado, vedando que se aplique uma pena desproporcional à responsabilidade do agente.
Por outras palavras, o agente que no uso de sua liberdade deu azo à manifestação do crime, ofendendo a sociedade, o Estado e a um possível particular, merece reprovação pelo seu feito e deve sofrer a imposição da sanção penal, mas somente na medida de sua responsabilidade.
Do modo que ao Estado não é dado exercer o poder punitivo ilimitadamente, devendo observar os parâmetros do princípio da culpabilidade.
De tal modo que, ao mesmo tempo em que o princípio da culpabilidade faz incidir sobre o agente infrator um juízo de reprovabilidade por não haver desempenhado uma conduta diversa da que deu origem ao crime decorrente de seu modo de agir, opera também como marco delimitador do poder punitivo do Estado, servindo como uma salvaguarda do individuo contra a imposição e aplicação de penas desproporcionais ao seu grau de culpa.[18]
Claus Roxin, ao acentuar a função delimitadora da imposição de pena, postula um conceito normativo de responsabilidade penal que permita aferir a capacidade do agente se comportar em conformidade com a norma penal por ele conhecida, ou seja, implica não só em que o agente tenha conhecimento da norma, como também que possa exercer um autocontrole de seu comportamento frente a essa norma.[19]
No mesmo diapasão segue a doutrina de Figueiredo Dias, que esclarece que “toda pena serve a finalidades exclusivas de prevenção geral e especial” e “a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpabilidade”.[20]
Ou seja, de acordo com esse modo de entender, a culpabilidade trabalha no sentido positivo de reconstrução dos valores sociais do indivíduo, fomentando sua volta ao convívio social, minimizando os riscos de reincidência, ao mesmo passo em que reafirma a supremacia do direito e educa a sociedade para exercer sua liberdade em conformidade com o ordenamento jurídico, em consonância com as teorias relativas da pena.
Parece, então, que as teorias absolutas da pena, que vislumbram a sanção como um castigo desprovido de qualquer valor distinto da mera retribuição do mal pelo mal, trazendo à lembrança a satisfação do puro sentimento de vingança, perde espaço na hodierna forma de se entender o princípio da culpabilidade, uma vez que tal princípio direciona sua força à delimitação da extensão do poder punitivo estatal e evidencia que a aplicação da pena deve procurar atender finalidades de prevenção, geral e especial.
O debate sobre a definição de crime, da liberdade de agir, das finalidades da pena e da culpabilidade é indissociável, mas, como toda discussão sobre o dever-ser, não apresenta uma resposta empiricamente aprovada, como normalmente se é de esperar que ocorra nas questões acerca do ser.
Um dilema que se abate sobre a culpabilidade é o de se encontrar o limite da pena por meio da correta aferição da responsabilidade do agente.
A normatividade da culpabilidade é desafiada pela complexidade em se medir a profundidade da índole criminosa do agente, nas condições do caso concreto, levando em consideração sua responsabilidade decorrente do uso indevido de sua liberdade de agir.
Até que ponto a subjetividade humana é influenciada pelo meio social em que está inserido o agente que enveredou pelas sendas da marginalidade, tornando-se, em alguns casos, “inimigo” da sociedade, e até que ponto essa sociedade se tornou inimiga desse cidadão desviado, por lhe negar ou não fornecer os meios e condições para que pudesse desenvolver sua personalidade nos moldes do quanto requerido pelo Estado legal?
Como se sabe, a escassez de recursos financeiros impede que o poder público atenda a totalidade da população, fornecendo a todos as mesmas oportunidades.
Entram em cena os princípios da reserva do possível e do mínimo existencial na esperança de obrigar o Estado a criar mecanismos, serviços e obras que permitam a todos os cidadãos dispor de uma base onde possam se desenvolver, mas reconhecendo a limitação desse dever estatal de agir.
Também a sociedade civil organizada encontra limitações que a impede de promover a igualdade de oportunidades de crescimento e desenvolvimento a todos que a procuram.
Em face dessa patente impotência público e privada em se possibilitar que todos tenham acesso às mesmas chances para aprimorarem suas habilidades, desenvolver o intelecto e ocupar um lugar digno na sociedade, é de se reconhecer que o modo de agir do agente é, de alguma forma, em maior ou em menor grau, afetado pelas condições de vida que lhe foram oferecidas e por ele abraçadas no transcurso de sua existência como ser pensante.
A essa situação de desigualdade, que influi de modo negativo na formação de uma pessoa, Zaffaroni chama de co-culpabilidade, querendo com isso mesmo dizer que a sociedade não pode fugir de sua parcela de responsabilidade por não haver propiciado àquele que sempre foi tratado como um desigual e que ao cometer o crime age de forma contrária ao que se esperava de um cidadão que obteve todo o bem social.[21]
Nesse modo de entender, a culpabilidade na execução do crime não pode ser atribuída integralmente ao “marginal”, posto que a própria sociedade contribuiu para seu desvirtuamento, pois, à medida em que não lhe permitiu um desenvolvimento social adequado, fez com que ele crescesse à margem da convivência comunitária, tornando-se um marginal.
Neste caso, o agente continua a responder por seus atos, mas essa culpa social deve ser levada em consideração para atenuar a pena que lhe será imposta.
Mas novamente ecoa a pergunta: como medir essa responsabilidade, seja social, seja individual.
Como saber se o agente realmente poderia ter agido de modo diverso, levando-se em consideração que cada ser humano reage às intempéries da vida com base nos princípios e valores que lhe foram ensinados e incutidos desde a mais tenra idade?
Ainda que criados na mesma família, duas pessoas sempre são diferentes por conta da particular mescla de sentimentos, sensações, emoções, enfim, de seu específico jeito de ver e entender o mundo que a rodeia, e nisto se resume sua subjetividade.
4. Da fragilidade do sistema jurídico-penal
Se levarmos em consideração o entendimento segundo o qual a culpabilidade é também fonte legitimadora da imposição penal, chegaremos à conclusão de que a incerteza acerca da maior ou menor culpabilidade acarreta um variado grau de legitimidade, o que não é possível.
Ou o Estado possui legitimidade para aplicar a pena ou não a possui, não se podendo falar que determinada pena é mais ou menos legítima. A dignidade da pessoa humana não suporta tal afronta.
Por todo o até aqui exposto, levando-se em consideração todas as argumentações acerca das finalidades da pena, temos o seguinte: se a pena é aplicada com base na culpabilidade do agente, como conseqüência da prática de um crime, visando atender finalidades de prevenção, então por que a criminalidade cresce a cada dia e o grau de reincidência continua tão alto?
São dados estatísticos que nos fazem indagar acerca da eficácia do sistema jurídico penal e da própria razão de ser do direito penal.
Segundo informado pelo Ministério da Justiça, “entre 1995 e 2005 a população carcerária do Brasil saltou de pouco mais de 148 mil presos para 361.402, o que representou um crescimento de 143,91% em uma década.”[22]
E esse número continua a crescer. Já em 2008 subiu para 451.219 encarcerados e, em 2009, alcançou o número de um total de 473.626 presos. Deste total, 174.372 pessoas cumprem pena em regime fechado, distribuídos em 1.806 presídios em todo o País.
A grande maioria desses encarcerados, em torno de 75%, estão na faixa etária abaixo dos 35 anos, ou seja, constituem parcela significativa de uma mão-de-obra inutilizada. Muitos deles, quando colocados em liberdade, não serão recrutados pelo mercado de trabalho e chegarão à velhice sem que tenham tomado parte em projetos sociais. Assim, em nada contribuíram para o crescimento econômico da nação durante o tempo em que se encontravam na faixa etária economicamente ativa da população, porque estavam encarcerados e, quando libertados, constituem ainda um ônus nacional, porque, já doentes e idosos, sobrecarregarão os sistema de saúde e a assistência social.
Claramente se observa que a parcela da população que freqüenta o interior dos cárceres é a menos abastada financeiramente, a que possui o menor grau de escolaridade e por isso mesmo dispõe de menos oportunidade no mercado de trabalho.
Com todos esses dados, não se pode negar que o sistema penitenciário seja mesmo seletivo, escolhendo seus “clientes” de forma bem objetiva.
Nas palavras de Fernando Galvão, “a constatação da existência da chamada cifra negra da criminalidade, que faz que, apenas uma minoria de indivíduos que infringiram a lei seja reconhecida pela ordem formal e, dentre esses, apenas uma parcela insignificante encontre-se recolhida ao sistema penitenciário, leva-nos à inevitável conclusão de que as atitudes da sociedade em relação ao crime e à punição são lastreadas por noções irreais.”[23]
Essa linha de pensamento é também defendida por Karam, que afirma a seletividade do sistema penal como uma necessidade de justificativa da própria sociedade em esconder sua incapacidade de solucionar seus problemas de escassez de recursos, má administração social e combate às desigualdades, chegando ela à conclusão de que a figura do criminoso é necessária para que se possa reconhecer o “cidadão de bem.”[24]
Prossegue Karam explicando que a atuação do sistema volta-se, na verdade, à ocultação desses problemas sociais, pois a aparente percepção de resposta estatal acalenta o desejo comum de justiça social.[25]
Chega-se, assim, à conclusão de que o fato de o sistema penal descurar da observância de suas finalidades preventivas e focar sua força na retribuição do mal pelo mal, isto é o mal da pena como resposta ao mal do crime, não se faz por ineficácia ou incompetência, mas por exigência de seu real objetivo de selecionar alguns e tipificá-los como criminosos responsáveis pela desordem e insegurança social, retirando, ou amenizando, a verdadeira fonte de distúrbios sócio-econômicos que angustia a todos.
Isso sem contar os enormes gastos que a sociedade desembolsa para manutenção do sistema prisional como um todo, que seriam muito melhor aproveitados se revertidos para a educação básica.[26]
Se todo esse investimento fosse mesmo capaz de promover a ressocialização do encarcerado, comprovando a eficiência do sistema, talvez se pudesse argumentar que, como toda instituição, apresenta certas deficiências, mas que o cárcere trabalha em benefício da sociedade.
Ocorre que o sistema não cumpre as finalidades preventivas da pena, mas tão-somente funciona como um castigo ao infrator.
A exatidão dessa assertiva advém das próprias estatísticas oficiais, que dão conta de que o índice de reincidência criminal dos egressos do sistema penitenciário gira em torno dos 70 a 85%.[27]
Ou seja, para cerca de 70 a 85% daqueles que foram punidos com pena privativa de liberdade e passaram anos a fio encarcerados, nenhuma vantagem social lhes foi proporcionada pela pena; ela não lhes promoveu nenhum atributo de cidadania.
Patentemente se reconhece que o cárcere atua mais eficazmente como uma escola de criminalidade que de socialização, pelo que há de se indagar acerca de sua razão de ser.
Se atualmente se reconhece que a pena deve voltar-se para o atendimento de suas finalidades preventivas, então necessário se faz repensar a função da pena privativa de liberdade, pois esta somente atua como uma retribuição ao preso pelo crime cometido, e isto com enormes custos sociais.
Perde o preso, perde a sociedade. A quem interessa um tal sistema?
Não sem propriedade assevera Karam que a pena não possui idoneidade para solucionar conflitos sociais, afirmando que “a pena só se explica – e só pode se explicar – em sua função simbólica de manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada de manutenção e reprodução deste poder.[28]
5. Proposta ao sistema jurídico-penal.
Em face de toda essa manifesta incompetência do sistema jurídico-penal em resolver o problema da criminalidade, atuando a pena apenas como um castigo ao infrator e o cárcere como uma escola de aperfeiçoamento de delinqüentes, e tudo a um alto custo financeiro para a sociedade, que em nada se beneficia, como já salientado, é que surgiram propostas de reforma do sistema.
As sugestões englobam a revisão e reestruturação das penas, aperfeiçoando as alternativas à prisão, em concomitância com a existência desta, extinção da pena privativa de liberdade, chegando àqueles que defendem mesmo a extinção do direito penal e do sistema jurídico-penal em sua globalidade.
5.1. A questão do que se deva entender como crime.
Complexa é a missão de se traçar a fisionomia do delito. Sob diversas óticas procura-se dar uma resposta que ecoe sem oscilações na comunidade científica e também na sociedade, mas tal desiderato ainda não obteve o êxito esperado.
Os conceitos formal, material, social de crime, e todos os outros fornecidos tanto pela ciência do direito, como pela criminologia, pela sociologia, pela antropologia restaram insuficientes para se firmarem como determinadores de uma definitiva explicação do fenômeno comportamental que se quer catalogar como criminoso.
Em face dessa dificuldade, coexistem os diversos conceitos, dos diversos ramos do saber, visto sob diferentes pontos de vista, mas que ao fim e ao cabo, acaba-se por se afirmar que o rol dos comportamentos desviantes e rotulados como crimes é mera questão de política criminal.
Sendo assim escolhidos ao “bel prazer” de alguns em face de todos, natural que busque atender determinadas valorações discriminantes.
Como indaga Shecaira: “… que fatores levam os homens, vivendo em sociedade, a ’promover’ um fato humano corriqueiro à condição de crime?” E continua ele: “No, entanto, o que fez com que os homens, em dado momento de sua evolução histórica, resolvessem criminalizar a conduta de corte de certas árvores, coisa que a humanidade vinha fazendo por muitos séculos, sem qualquer ação dos governos que visasse a coibir tal atitude? Ou, ainda, por que durante séculos e séculos os homens foram inamistosos caçadores e agora passaram a punir aqueles que caçam certos animais, desregradamente? Em outras palavras, o que se quer saber é: quais são os critérios ensejadores de cristalização de uma conduta como criminosa?”[29]
Comodamente atribui-se como criminosa a conduta vestida de “violência”, mas o problema por óbvio que assim não se resolve, vez que a manipulação do que se entenda por violência acaba por mistificar a figura do crime.
Relembra-nos Karam, que uma análise realista e imparcial da violência, há de apontar como criminosa toda ação ou omissão ao bem-estar geral da população sob a multifocal visão que permita identificar toda agressão à dignidade da pessoa humana em sua complexidade existencial, isto é, analisando suas necessidades físicas, biológicas, culturais, espirituais.[30]
Trata-se, portanto, de um conceito flutuável ao sabor da política criminal vigorante, que desperta suspeitas acerca da legitimidade de cada uma dessas figuras tachadas de delitivas, requerendo-se uma revisão da definição de crime.
5.2. A questão da pena criminal.
Em seu trabalho, “O sentido utópico do abolicionismo penal”, Egydio de Carvalho, baseado na filosofia orteguiana, explica a diferença entre crença e idéia e, a partir daí, volta-se para o debate que alude à intrincada questão da pena.
Segundo Carvalho, “Crença é a Verdade em que socialmente estamos, ao passo que a Idéia é a Verdade para a qual nos encaminhamos. Uma sociedade estável ampara-se em crenças firmes e arraigadas; uma sociedade dinâmica inquieta-se diante da ruína das crenças antigas e da necessidade de encontrar outra Verdade mais plena e satisfatória.”[31]
Toda evolução do direito penal acerca do crime e da pena comprova que estamos em uma sociedade dinâmica, que procura a cada momento uma nova verdade para solução do fenômeno criminal.
Sabe-se que a discussão acerca da pena não é nova, antes, tão velha quanto o reconhecimento da idéia de crime, embora muitas vezes com outra denominação, como pecado, por exemplo.[32]. Mas o debate ainda mais se acirrou a partir dos anos 60 do século passado, quando as discussões sobre a crise da política criminal impulsionaram os pensadores a encontrar uma resposta para a questão da pena, com destaque para a pena privativa de liberdade.[33]
O importante é observarmos que, a cada passo dessa evolução, paradigmas foram quebrados e juízos de certeza foram abalados pelo advento de novos conhecimentos e descobertas, de modo que não se tem por seguro categorizar que determinado instituto ou sistema deva continuar intocável ou, ao contrário, ser modificado ou até mesmo extinto, sem antes flexibilizar e colocar em debate a verdade que deles se tem.
Necessário se faz, portanto, que se chame à discussão a atual conceituação de crime e a fonte legitimadora da pena, perquirindo-se da necessidade do sistema em sua integralidade.
Da fragilidade da figura do crime já se falou.
Com relação à pena, desde os tempos do Iluminismo que se procura amenizar sua força, tornando-a menos vexatória e cruel para o executado.
6. Repensando o sistema penal.
A apuração e persecução dos crimes, bem como a aplicação de penas criminais, em uma dada sociedade se faz por meio dos critérios de controle social, que para seu exercício se arroga dos meios, temas e institutos desenvolvidos por cada um dos três pilares lhe servem de sustentáculo, quais sejam, a Criminologia, a Dogmática Penal e a Política Criminal.[34]
Ocorre que as respostas fornecidas pelo sistema de controle social já não satisfazem em vista de sua inoperabilidade, isto é, da ausência comprobatória de diminuição ou, pelo menos, de estabilização da criminalidade.
Portanto, a crise que se abate sobre o sistema penal reside no fato de sua ineficiência em resolver o problema da criminalidade, o que possibilitou o surgimento de propostas de sua reforma ou extinção, à luz do pensamento do direito penal mínimo ou mesmo de um completo abolicionismo penal.
Como sintetizado por Vera Regina, de acordo com os pensadores dessas escolas, a lógica maniqueísta em que se assenta o sistema penal é desagregadora, pois esboça e estrutura uma convivência social polarizada, colocando os “bons cidadãos” em antagonismo acirrado com os “criminosos e inimigos da sociedade”.[35]
Essa estruturação obviamente retira sua legitimação como protetor dos bens jurídicos eleitos, e camufla sua verdadeira função, não declarada, mas sorrateiramente executada, principalmente por meio do sistema carcerário.
Essa função invisível, mas plenamente atuante e violadora dos direitos humanos e do princípio da presunção de inocência, consiste em criminalizar as classes mais baixas do estrato social, elegendo os “maus,” principalmente pelo nível de escolaridade, cor e renda, ao passo em que cria privilégios e imunidades às classes que dominam o sistema pelo poder aquisitivo, nível cultural e ascendência genética.
A prisão claramente descumpre qualquer finalidade preventiva, servindo, em suma, como um castigo e um curso de doutoramento na prática da criminalidade para todos que a freqüentam.
Reproduz, incrementa e aperfeiçoa a violência das ruas, preparando o detento para melhor exercer sua função de criminoso tão logo se torne egresso do sistema.
Falaciosamente se divulgam esperanças de que a sociedade receba um tal especialista em delitos como um cidadão de bem. Nem mesmo o egresso espera isso, pois ciente de sua condição de “inimigo social”, insiste em encontrar essa sociedade, não de braços abertos, mas sim, de “mãos para cima”, e as estatísticas de reincidência, de 70 a 85%, bem demonstram isso.
E a violência prisional, que não se resume à corporal, atinge também os trabalhadores do sistema carcerário e seus familiares, como também à família do preso e a toda sociedade, afinal, quem quer um presídio próximo de sua residência.
O cárcere, não é, portanto, resposta satisfatória à legitimação do sistema penal.
6.1. Abolicionismo penal moderado.
Os pensadores desta escola defendem a existência do direito penal como inibidor da violência privada, isto é, apartado de algum sistema que, ainda que minimamente, persiga e puna a violência de um particular em face de outro.
O que se quer evitar, em curtas palavras, é o retorno à fase da justiça privada, em que cabia ao ofendido executar, ao seu modo, o ato de justiça que entendesse cabível.
A justificativa legitimante para esse direito penal mínimo repousaria, assim, em sua finalidade instrumental impeditiva da vingança privada.[36], bem como em sua função de reintegrar o infrator no convívio social.[37]
Busca-se um direito penal capaz de cumprir as finalidades preventivas da pena e desnuda da violência que hoje o marca como principal característica, em particular no que tange à violência carcerária.
Por tudo quanto já se expôs acerca dos altos custos, da violência, da ineficácia do sistema carcerário, bem como de sua patente incapacidade em regenerar o preso e prevenir novos delitos, busca o direito penal mínimo alternativas responsivas ao crime que não a pena privativa de liberdade.
Uma das soluções encontradas funda-se no uso das penas alternativas à pena de prisão, conforme orientação estabelecida nas Regras de Tóquio, oficialmente conhecidas como Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não-privativas de Liberdade (Resolução 45/110, de 14/12/1990, da Assembléia Geral dos Estados Unidos).[38]
A Reforma do Código Penal brasileiro, de 1984, contemplou algumas penas não privativas de liberdade, ainda que de modo substitutivo à pena de prisão. Posteriormente, a Lei 9.099/95 consagrou no ordenamento pátrio a pena alternativa à prisão, sendo que a Lei 9.714/98 trouxe um extenso rol de penas não privativas de liberdade.[39] Resta lembrar que as penas alternativas podem ser aplicadas de forma direta ou indireta.[40]
Segundo Damásio, citado por Luiz Flávio Gomes, pena e medida alternativa não se confundem: “penas são sanções de natureza criminal diversas da prisão, como a multa, a prestação de serviços à comunidade e as interdições temporárias de direitos (são penas distintas)”; já as medias alternativas, “visam impedir que ao autor de uma infração penal venha a ser aplicada (ou executada) pena privativa de liberdade. Ambas, entretanto, pertencem ao gênero “alternativas penais.”[41]
A eficácia das penas alternativas é comprovada estatisticamente, basta que se vejam os índices de reincidência daqueles que cumpriram alguma pena ou medida alternativa, que giram em torno de 2 a 12%.[42]
Além disso, não se pode esquecer o envolvimento da sociedade de forma mais direta e participativa no cumprimento da pena alternativa, como se dá, mais claramente, no cumprimento da pena de prestação de serviço à comunidade ou entidades públicas.
Essa sanção permite ao condenado uma aproximação da sociedade, na medida em que o cumprimento se dá em entidades que executam programas comunitários ou estatais.
Também a sociedade aufere seus benefícios, vez que a ressocialização do condenado implica em que haja menos um criminoso nas ruas, a um custo financeiro muito menor que o despendido para mantê-lo na prisão.
Portanto, levando-se em consideração as notórias desvantagens da pena privativa de liberdade em comparação com as penas e medidas alternativas, para logo se constata a necessidade de se ampliar o debate acerca do destino da pena privativa de liberdade, ao mesmo tempo em que se criam mais penas alternativas.
6.2. Do abolicionismo penal radical.
Paralelamente à proposta de um direito penal mínimo, há quem defenda a completa extinção do sistema jurídico-penal, em face de sua ilegitimidade para criar crimes e aplicar penas, tanto por sua incapacidade de resolver conflitos sociais, como por ter se revelado em defensor de uma classe dominante, cuja perpetuação no poder se faz mediante a criminalização da classe socialmente inferior, que fornecerá ao cárcere as pessoas que serão responsabilizadas pela desordem e falta de paz social, recebendo a culpa pelas mazelas, desigualdades e opressões reinantes que nem a sociedade nem o Estado conseguiram eliminar.[43]
Portanto, a proposta de extinção do sistema jurídico-penal se faz justamente por conta da perda (se é que algum dia teve) de sua legitimidade, por não cumprir os postulados almejados pelo Iluminismo, principalmente o de evitar a vingança privada.
Isto, segundo seus defensores, claramente se constata pelo fato de que somente um reduzidíssimo número de crimes são apurados e punidos e não se houve falar de generalização da vingança nos casos que restaram impunes.[44]
Pretende-se, assim, abolir o próprio conceito de crime, sustentáculo de todo sistema jurídico-penal.[45]
As demandas que hoje são tratadas nos lindes do Direito Penal, devem ser remetidas a instâncias extra penais a cargo da própria sociedade, que deve encontrar a solução para a crise sem se utilizar dos instrumentos hoje disponibilizados pelo direito penal.
Por óbvio que a proposta de extinção do Direito Penal implica também na do sistema penal, caso contrário, o que se estaria postulando seria a transferência do poder punitivo das mãos do órgão judicial para a dos demais órgãos do sistema, em especial, da polícia.[46]
A esse receio de retrocesso aos meios de vingança privada e de monopolização do poder punitivo nas mãos de grupos radicais e violentos, já noticiado por Ferrajoli, soma-se outro, de cunho mais amplo e não totalmente conhecido, que diz respeito ao advento das novas tecnologias e formas de extermínio, principalmente, terrorismo e as armas de destruição em massa, problemas para os quais o abolicionismo não apresenta solução, muito embora, como assevera Zaffaroni, também o direito penal mínimo não se apresentou para responder a tais questões.[47]
7. Conclusão
A questão da legitimidade do sistema penal requer ainda farta discussão até que se aclarem os delineamentos de um sistema que controle ou, quiçá, elimine a violência sem que se faça necessário lançar mão de mais violência para combatê-la.
Se fossem catalogadas como crime todas as formas de violência que atingem o ser humano em sua inteireza física, social e psíquica, teríamos um extenso rol impossível de se radicar.
Contudo, a escolha do que deva ser analisado como crime não pode servir aos interesses de uma classe social em detrimento de outras, para assim auferir benefícios e vantagens.
Se é complicada a questão de se afirmar como criminoso um dado comportamento, não menos angustiante são as razões e critérios para aplicação de sanções criminais.
As muitas teorias que pretendem explicar suas finalidades são insuficientes para que se possa apreender sua razão de ser, bem como sua delimitação em razão do crime perpetrado.
A culpabilidade não pode ser utilizada para legitimar a pena, mas tão-somente para traçar-lhe os contornos além dos quais o Estado não possa agir.
E o limite da culpabilidade deve ser aferido pelo grau de responsabilidade do agente, o que se confessa ser mesmo difícil, senão impossível, de se alcançar.
Uma vez que não se pode aquilatar a real medida da responsabilidade do agente, e observando-se que a violência punitiva somente faz por multiplicar a violência infracional, requer-se meios mais humanos na aplicação da pena, o que, desde já, nos leva a afirmar pela insubsistência da pena privativa de liberdade, devendo-se buscar meios alternativos.
No intuito de dar concretude a essa finalidade, o Conselho Nacional de Justiça, CNJ, criou o programa “Começar de Novo”, que tenta promover oportunidades junto à sociedade civil, órgãos governamentais e o setor privado da economia para que os egressos e condenados possam desenvolver suas atividades laborais e educacionais.[48]
A intenção é despertar a cidadania do condenado e egresso e, por via reflexa, evitar que ele volta aos recônditos da marginalização social e pratique novos crimes.
O próprio CNJ se empenha em abrir o caminho da reinserção social ao marginal (aquele que está vivendo à margem da sociedade), como bem demonstrado pelo acordo entabulado entre o presidente do CNJ, Ministro Gilmar Mendes, e o Governo Federal para que os egressos possam trabalhar nas obras da Copa do Mundo de Futebol, que acontecerá no Brasil, em 2014.[49]
Vemos assim, o direito penal mínimo como uma resposta adequada a ainda não encontrada legitimidade do direito de punir, de modo que essas penas e medidas alternativas tenham por único objetivo integrar o infrator e beneficiar a sociedade, sem nenhum cunho aflitivo.
Contudo, ainda que reconheçamos a não comprovação da legitimidade do direito penal, não endossamos o abolicionismo, em face das muitas possibilidades de se multiplicar a violência em face da inexistência de meios de gerenciamento do comportamento humano que, em muitos casos, resta imprevisível.
Analista judiciário da Justiça Federal. Graduado em Direito e Teologia. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal
O salário substituição é um tema relevante no direito do trabalho, especialmente quando se trata…
A audiência de justificação é um procedimento processual utilizado para permitir que uma parte demonstre,…
A audiência de justificação é um procedimento processual utilizado para permitir que uma parte demonstre,…
O trânsito brasileiro é um dos mais desafiadores do mundo, com altos índices de acidentes…
O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) implementou uma nova resolução que regula as especificações dos…
A partir de janeiro de 2025, uma importante mudança entrará em vigor para todos os…