Resumo: Após um silêncio médio, o sistema prisional voltou a gritar. Não se trata de uma crise pontual ou momentânea. Existe um processo que dura séculos em que o sistema fica próximo do colapso, é contido e, posteriormente, retorna ao colapso. Nesse processo muitos tentaram fazer alguma coisa, mas com maior ou menor êxito sempre esbarram em questões estruturais que amedrontam ou impedem. A sociedade só vê o sistema quando ameaça explodir, os muros altos das prisões cumprem bem o seu papel de esconder a multidão de encarcerados. A sociedade não quer falar de abolicionismo penal, não quer falar em soluções a longo prazo. A resposta política que se apresenta para solucionar a violência é exponencialmente cada vez mais violenta. Nestes contextos é imperioso dar destaque as iniciativas que visam dar visibilidade às mazelas sociais na perspectiva de trazer soluções coletivas para problemas igualmente coletivos.
Palavras chave: Sistema Prisional, Abolicionismo Penal, Visibilidade e Invisibilidade, Justiça e Paz, Direitos Humanos, Pastoral Carcerária, Execução Penal.
Abstract: After an average silence, the prison system screamed again. This is not a one-off or momentary crisis. There is a process that lasts for centuries in which the system is close to collapse, is contained and subsequently returns to collapse. In this process many have tried to do something, but to a greater or lesser degree they always run into structural issues that frighten or hinder them. The society only sees the system when it threatens to explode, the high walls of the prisons fulfill well their role of hiding the crowd of incarcerated. Society does not want to talk about penal abolitionism, it does not want to talk about long-term solutions. The political response to solving violence is exponentially increasing. In these contexts it is imperative to highlight the initiatives that aim to give visibility to social ills in the perspective of bringing collective solutions to equally collective problems.
Keywords: Prison System, Penal Abolitionism, Visibility and Invisibility, Justice and Peace, Human Rights, Prison Pastoral, Criminal Execution.
Sumário: 1. Introdução. 2. A crise econômica mundial e seus reflexos. 3. O aprisionamento como solução e não como meio. 4. Visibilidade que transforma a realidade. 5. Considerações finaisReferências
1. INTRODUÇÃO
O presente texto não é nada mais que uma partilha de impressões. Não ouve preocupação com a precisão teórica além do necessário e nem pretensão de cunhar definições e conceitos além daqueles que surgiram voluntariamente à medida que foi escrito. Mal descansamos das tragédias do ano de 2016 e surge uma nova crise, agora no Sistema Penitenciário. Duas grandes rebeliões, mais de sessenta mortos, segundo a grande mídia. O Campo mais visível desse conflito é o norte e o nordeste, mas o sistema penitenciário em todo o Brasil enfrenta uma grave crise que se arrasta há anos.
O que não contam, mas muitos sabem ou deveriam saber, é que os mortos são mais. Não são apenas aqueles anunciados no Jornal de maior audiência nacional. Além dos mortos de hoje tem os mortos de ontem. Aqueles que morrem todos os dias dentro e fora das cadeias e morrem pelo mesmo motivo, morrem porque a sociedade não está conseguindo dar uma resposta, ou uma resposta adequada, ao problema da violência. Problema antigo e sempre preocupante, mas que recebe, por parte do poder, soluções vazias de comprometimento e impregnadas de preconceitos.
Nesse período de crise surgem “arautos da moralidade” que afirmam que o problema está na complacência excessiva da Lei Penal e Processual Penal, provavelmente não conhecem nossa legislação. Outros podem dizer que a culpa é da dureza dessa mesma legislação. Outros ainda, aos quais nos aliamos, arriscam afirmar que a má utilização do regramento penal pátrio tem uma significativa parcela de culpa nesse processo de deterioração do sistema penitenciário a ponto de o mesmo entrar em colapso, mas que não está na lei o ponto central da crise.
Impossível ignorar que o Sistema Prisional é uma célula de um corpo complexo que é a sociedade humana e que nesses períodos de uma crise econômica sem precedentes, que aflige a confiabilidade das instituições e que tende a agravar uma série de outras crises, o aprisionamento em massa é visto por um grande grupo como solução para o problema da violência e não como meio de garantia da paz. Dar visibilidade as mazelas sociais é a forma mais eficaz de construir soluções para os problemas.
A Igreja Católica[1] ao longo de sua história teve mais e menos interesse em buscar respostas concretas para problemas como os levantados. Com a realização do Concilio Vaticano II e a consequente abertura para o trabalho dos leigos (mesmo que ainda engatinhando), as inciativas nesta esfera conseguiram, mesmo que com muita dificuldade, se estabelecer e estão aí, demonstrando que Jesus Cristo independente do dado da fé traz uma mensagem fundamental para a nossa relação social.
Aqui é preciso esclarecer que o conteúdo deste escrito é fruto da contemplação da realidade a luz de uma visão libertadora da fé. Partimos aqui para uma transversalidade entre a ciência do direito de um ponto de vista social e da marcante teologia que por décadas influenciou o pensamento da Igreja na América Latina. Além do esforço para apresentar um olhar sobre o Magistério contínuo da Igreja Católica, não como absoluta expressão religiosa, mas, acima de tudo, como força em uma sociedade que a professa predominantemente.
2. A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL E SEUS REFLEXOS
É sempre possível relacionar, em uma sociedade capitalista, os problemas de violência ao próprio sistema que coloca o ter em superioridade ao ser, assim ser “bandido” não é algo ruim se eu posso ter cada vez mais do que eu teria levando uma vida de “cidadão de bem”. Não importa o que eu faço ou quem eu sou, o que me define é o que eu tenho ou o que as pessoas sabem que eu tenho. Numa sociedade onde o ter é o maior valor, a corrupção em todos os seus níveis se torna o principal mecanismo de poder.
A sociedade baseada no poder, e nesse sistema no poder econômico, cria uma multidão de pobres e miseráveis. Seria determinista e reducionista afirmar que a violência e a criminalidade são absolutamente “coisa de pobre”, mas é obvio que é a esta parcela social que mais atinge. Os empobrecidos são sempre vítimas da violência quando entramos em uma análise acurada das causas e consequências. Em simples pesquisa numérica, é possível perceber que a esmagadora maioria da população carcerária, ou melhor, dos apenados em geral (incluindo aqui os apenados não presos) é composta por pobres e negros.
O mesmo se pode afirmar da multidão de presos provisórios. Crimes graves e crimes de menor relevância, criminosos contumazes e primários, são jogados nos porões do esquecimento que o governo chamou de Centros de Detenção Provisória. Acontece que pela total falência do sistema penal, muitas vezes, essa provisoriedade se converte em permanência. Em nossa atividade advocatícia, vimos muitos presos chegarem à condenação e ao aplicar o instituto da detração penal, o magistrado, chega à conclusão que a pena já se encontra cumprida ou ao menos que já está cumprido o requisito temporal para uma eventual progressão de regime, isso quando não se responde a um processo inteiro preso para ao final ser condenado a uma pena que deve ser cumprida em regime aberto.
Sobre a situação econômica mundial, a V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe, através do intitulado Documento de Aparecida, em 2007, deixou uma importante constatação: “A atual concentração de renda e riqueza acontece principalmente pelos mecanismos do sistema financeiro. A liberdade concedida aos investimentos financeiros favorecem o capital especulativo, que não tem incentivos para fazer investimentos produtivos de longo prazo, mas busca lucro imediato nos negócios com títulos públicos, moedas e derivados”. O sistema financeiro, o Capitalismo Neoliberal faz por agravar os quadros de crise, pois lucra com eles.
A construção de presídios, por exemplo, custa muito caro, e se por um lado os estados podem estar sem dinheiro para reconstruir suas unidades prisionais, por outro em uma situação de completo descontrole construir paredes e muros parece para muitos ser a última solução possível. É nesse ponto que surge o interesse da grande indústria da construção civil que lucra muito com obras estatais e, sobretudo, com as realizadas em caráter de emergência que minimizam as exigências da pouco respeitada lei de licitações e contratos.
O mesmo documento da Igreja Católica Romana acima citado, repetindo o que consta do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, afirmou: “o objeto da economia é a formação da riqueza e seu incremento progressivo, em termos não só quantitativos, mas qualitativos: tudo é moralmente correto se está orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade na qual vive e trabalha. O desenvolvimento, na verdade, não pode reduzir a mero processo de acumulação de bens e serviços. Ao contrário, a pura acumulação, ainda que para o bem comum, não é condição suficiente para a realização de uma autêntica felicidade humana”.
A afirmação de que a construção de presídios interessa e muito as grandes empreiteiras não é uma afirmação vazia ou mais uma teoria da conspiração, a famosa “Operação Lava Jato”, que investiga diversos casos de corrupção no Brasil e se desdobra em várias frentes, tem como alvo em uma delas a contratação indevida de empreiteiras para a construção de presídios, logo após a explosão de uma grave crise no sistema penitenciário de determinado Estado da Federação. Embora devam ser feitas críticas ao Marketing Judiciário e Policial em que estão envoltos alguns trabalhos de tais forças tarefas,
Não que construir presídios seja algo totalmente desnecessário, a maioria dos presídios precisa urgentemente de uma completa reestruturação e não apenas de suas instalações físicas. O Brasil precisa investir em uma nova política penitenciária, pautada no respeito à dignidade do ser humano e respeitadora do nosso ordenamento jurídico, um novo sistema que possibilite a prática da Lei de Execução Penal e que garanta o necessário para a ressocialização. Poderão discordar os mais revoltados, mas concordarão os especialistas, de que o espaço físico é capaz de realizar muitas transformações.
3. O APRISIONAMENTO COMO SOLUÇÃO E NÃO COMO MEIO
Não se pode esquecer de que o aprisonamento é a última opção, porque das formas para a repressão da violência e ressocialização do infrator penal é a forma menos eficaz, válida a lição de Eugênio Pacelli em sua obra Prisão Preventiva e Liberdade Provisória, que comentando a reforma promovida pela Lei 12.403/11, afirma categoricamente que uma das imprecisões da constituição foi dizer que existiria a Liberdade Provisória, uma vez que é a prisão que possui caráter provisório sendo regra a Liberdade do indivíduo.
Em caso de não haver outra forma de solucionar o conflito causado pela quebra do contrato social poder-se-á prender, mas é imperioso mudar a maneira de prender. Começando por processos que sigam seu iter natural – investigação, denúncia, instrução, julgamento, condenação (eventualmente) e só após cumprimento da pena – restringindo a Prisão Preventiva a casos extremamente excepcionais em que efetivamente seja necessária. Uma criação eficaz e bem sucedida a qual não se dá o devido crédito, é a aplicação de penas alternativas.
O processo ferindo seu iter normal, prendendo antes da hora. O julgamento prévio realizado pela mídia policialesca. Fatores que acabam agravando ainda mais a sensação de insegurança e colocam em cheque a imagem das diversas pessoas que com verdadeiro espírito fraterno tentam construir justiça colaborativa. Falando em sensação de insegurança, esta tem sido considerada por alguns juízes requisito para a decretação da prisão preventiva, muito embora não esteja prevista na legislação e desprestigie o princípio constitucional da presunção da inocência.
O binômio direito à liberdade e direito coletivo a segurança faz com que o estado queira dar respostas, e em uma sociedade marcada por um conservadorismo esquizofrênico, a resposta é o encarceramento em massa. Encarceramento da massa pobre e negra preferencialmente. Partindo daí às instalações prisionais, que deveriam ser dignas, passando pela separação entre os presos pela gravidade dos delitos e não por pertencimento à facção criminosa, ou pior, por ser oriundo de área dominada por determinada facção, essa separação impede que o condenado por furtar uma bicicleta aprenda como assaltar um banco e, finalmente, chegando à soluções alternativas a prisão para os crimes menos graves.
A possibilidade de remissão de pena, por estudo, trabalho, leitura e outras atividades deve ser a regra e não considerada uma benesse, a progressividade da pena deve ser criteriosamente respeitada para que o indivíduo condenado seja adequadamente preparado para retornar ao meio social, sobretudo, tendo em conta que, na atual ordem constitucional, não se admite pena de caráter perpétuo ou cruéis. Aqui é necessário fazer uma expressa menção ao regramento constitucional contido no artigo 5º e seus respectivos incisos e alíneas.
Sendo adotado, em último caso, o aprisionamento como medida mais eficaz diante de uma transgressão da norma penal, analisada pelo sistema judiciário, a Pena deverá cumprir seu duplo papel, punitivo sim, exemplar e reparativo, mas acima de tudo, educativo e reintegratório. A reprimenda penal supera a vingança, enquanto alcança um caráter transcendental e alcança a Justiça como fundamento do convívio social.
Aí se fará necessário que o Estado, detentor do poder de punir e da responsabilidade sob a ordem social, garanta que a pena sirva como efetivo mecanismo para a ressocialização do indivíduo que descumpriu o preceito jurídico negativo. Não podemos tratar nossas prisões como depósitos de indesejáveis e como em nosso sistema não existe a pena de banimento, conforme o art. 5º, inciso XLVII alínea b da Constituição Federal, a sociedade precisa estar aberta para compreender a população carcerária, seus problemas, suas origens, suas questões e etc, e se preparar para receber os egressos do sistema, dando oportunidade para que o processo reintegratório prossiga.
A mensagem de Jesus Cristo é dirigida preferencialmente para os mais empobrecidos. Os privilegiados do Reino são aqueles que não possuem na sociedade tantos privilégios. E a Igreja deve fazer essa leitura e se encaminhar para colaborar nesse anúncio de novidade junto a tais parcelas da população. Os encarcerados são destinatários do anúncio do Reino, anúncio de libertação para os cativos (Is. 6,1). Em uma virada de forma, o Papa Francisco declara o conteúdo milenar da fé, fazendo a leitura do magistério sob a ótica da caridade e em sua Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho” diz: “o Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com seus sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado”.
É indispensável reconhecer que nossa proposta final é abolicionista e mais arrojada, bom seria prescindir das prisões. No entanto é de se reconhecer que toda evolução é um processo e que somente culmina no objetivo. A situação atual do sistema prisional pode ser reflexa ao abandono da utopia que vira projeto de fazer uma sociedade livre de cárceres. Enquanto a prisão for considerada por sociedade e Estado como fim em si mesma, não atingiremos quaisquer objetivos decisivos no caminho da sociedade livre e libertada.
4. JUSTIÇA E PAZ[2]. VISIBILIDADE QUE TRANSFORMA
Seria impossível não considerar que o próprio Cristo pede que os presos sejam visitados, e em uma perspectiva cristã católica isso é doutrina da Igreja, e não só por seus parentes, nomeadamente suas mães e esposas que lotam as filas e que muitas vezes são maltratadas e humilhadas simplesmente por serem mães de detentos. Poderíamos por exemplo nos aprofundar em uma meditação do Julgamento, Condenação e Execução do Senhor, ali estavam sua mãe, seus parentes e amigos mais próximos, o evangelho deixa entender que uma maioria de mulheres. Como se repete todos os dias nos presídios foram humilhadas e humilhados, a ponto de um deles negar ser um dos seguidores de Jesus, certamente por medo de ser também preso e assassinado.
Uma leitura da parte final do Capítulo 25 do Evangelho da Comunidade de Mateus oferece uma belíssima iluminação bíblica para o assunto em diálogo. Jesus diz assim em uma parábola sobre o último julgamento: “Vinde benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e vieste ver-me”. Sempre que alguém é preso Ele é preso junto, é a afirmação mais simples a qual se pode chegar à luz do texto.
O Jesus que os Evangelhos apresentam é um homem compadecido é a expressão da misericórdia e seu discurso é impregnado de um forte envio para aqueles que fazem a opção por segui-Lo. Formamos uma coisa só, a humanidade. Quando alguém transgredir uma norma penal, estaremos diante de uma situação que afeta a humanidade em via dupla, primeiro porque compromete a paz social, a qualidade das relações humanas, sua pacificidade; e depois porque parte dessa humanidade rompeu com esse nosso pacto de convivência, a velha história de limitar o seu direito por onde começar o direito alheio, e precisará repará-lo de alguma forma, é nesse contexto que surge a pena.
É na reparação do pacto de convivência que a sociedade deve investir e a Igreja tem atuado decisivamente nessa perspectiva através de seus agentes de Pastoral Carcerária. Na abertura que cria o Direito à Assistência Religiosa aos condenados, pessoas das mais diversas origens e convicções, que acreditando na humanidade, dispõem de uma parte de suas vidas para ir ao cárcere “ver” o Cristo preso, encontrar-se com Ele. O recorte feito aqui é da citada pastoral, pois com ela tivemos maior contato. Mas poderíamos e até deveríamos ampliar significativamente o quadro: dizer Igrejas, movimentos Eclesiais e ainda citar outras convicções não eclesiais ou religiosas, mas igualmente motivadas pelo bem maior.
Esse infelizmente não é o grupo mais expressivo da Igreja, nos dias de hoje, não são as pastorais sociais a maior força eclesial no Brasil, mas certamente um fazer teológico tão significativo não pode morrer e garante para a Igreja a sua função de fazer o que crê, de expressar o Reino que é a Boa-Notícia de Jesus Cristo. É a fé que move essas pessoas. Elas não estão ali atoa, de fato acreditam que sua ação muito além de ser mecanismo de conversão a uma denominação é colaboração na transformação de vidas.
Frei Carlos Josaphat[3] em texto intitulado Justiça e Paz à Luz da Teologia Evangélica do Povo de Deus deixou dentre outras a seguinte lição: “Para o Povo de Deus, a teologia é assim a inteligência da fé, a verdade divina iluminando e guiando a mente e a vida. Ela se afirma precisamente como discernimento dos caminhos do Amor na existência e na história, a partir da ação e da contemplação. Mostra-se, em sua realidade primordial, qual é a sabedoria divina e humana, emergindo da vivência profunda da fé, difundindo-se em convivência comunitária, que se reconhece solidária e responsável da Justiça e Paz para a sociedade humana”.
Ver o invisível muda a concepção. Enquanto muros altos escondem o que é ruim, desagradável, fica-se acomodado, mas quando a realidade se torna visível, torna-se incômoda e inoportuna, impele a uma ação para que o conforto retorne. Essa ação será eficaz à medida em que procurar solucionar o problema e não escondê-lo, mesmo que seja em longo prazo e, evidentemente, permeada por medidas paliativas que solucionem o imediato, é preciso pensar a solução efetiva que perpassa o planejamento e atuação engajada das autoridades e de toda a sociedade.
A atuação da Pastoral Carcerária, retomando um pensamento que anteriormente já abordei, na minha monografia de conclusão do bacharelado em direito, que teve como tema a “Participação Popular na Gestão do Sistema Prisional”, já transcendeu o eclesial e dela emergiram muitas lideranças que se tornaram vozes fortes na luta pelos direitos da pessoa humana, tanto os encarcerados quanto outros que têm sua dignidade violada. A pastoral carcerária, encontrando-se e compadecendo-se com a realidade das prisões, é um grito para a Igreja hierárquica que precisa converter-se cada vez mais em Rosto/Misericórdia.
O Documento de Aparecida já citado, assim se refere a iniciativas eclesiais dessa natureza: “Louvamos a Deus pelos homens e mulheres da América Latina e do Caribe que, movidos por sua fé, têm trabalhado incansavelmente na defesa da dignidade da pessoa humana especialmente dos pobres e marginalizados. Em seu testemunho, levado até à entrega total, resplandece a dignidade do ser humana”. Muitos têm levado suas vidas até termo final em uma entrega plena em favor da vida dos outros em quem conseguem, seguindo sua fé ver o Cristo, pobre, rejeitado, abandonado e etc.
É nessas lideranças que aparece a solução para a nomeada crise no sistema penitenciário, me refiro ao tema do meu trabalho citado, participação popular no cumprimento da reprimenda penal. No Brasil já estão estabelecidos diversos mecanismos para isso, são conselhos, associações, movimentos, mas o destaque no momento atual e ao mesmo tempo uma sugestão para as autoridades é o método das APACs (Associações de Proteção e Apoio aos Condenados), tais instituições apresentam resultados impressionantemente favoráveis do ponto de vista do alcance dos objetivos da pena em seu caráter reparativo e ressocializativo.
O que na ciência jurídica chamamos de Direitos Humanos, a comunidade Eclesial conceituou como Justiça e Paz, o ponto chave dessa leitura da dignidade humana está sem dúvida na fé de que Deus nos criou para o “Bem viver” e que a Justiça do Reino é mecanismo de consolidação da paz. Para uma boa leitura é indispensável ler Paz em sentido amplo e não como em um ciclo de ausência de conflito. Mesmo porque nossas relações são naturalmente conflituosas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que precisa ser pensado não é a crise, mas o sistema penitenciário. A mídia nacional foi provocada pelas mortes – uma lamentável infelicidade – mas, não se está diante de um problema pontual, que se resolva com uma intervenção momentânea. Nesta leitura, mandar a Força Nacional de Segurança Pública ou as Forças Armadas podem estancar as rebeliões, mas não propõem soluções de longo prazo e muito menos que lancem luz sobre o problema social maior que culmina em presídios lotados e que provoca rebeliões de todo tipo.
O que se está presenciando é a explosão de uma dinamite que foi acesa há muito tempo, são décadas de abandono e sucateamento, são anos de servidores mal formados e remunerados, são anos de instalações físicas precárias. O que aconteceu nos presídios do norte é repetição do que houve há alguns anos no Espírito Santo, em São Paulo, do que está acontecendo todos os dias de um canto a outro do Brasil. O País vê-se diante da demonstração dos resultados de uma história de desrespeito aos direitos da pessoa humana, que coloca em risco a segurança de todos, encarcerados ou não, “bandidos” ou “cidadão de bem”.
Seja quem for, e com os protestos de quem quiser, na ótica cristã, todos são filhos do mesmo Pai e irmãos do mesmo Cristo que como marca de seu Reino anuncia a liberdade para os cativos, não só liberdade das grades, mas libertação para a vida, vida de saúde, paz, dignidade e oportunidades, “Vida em plenitude”, reconstituída pela graça em oposição ao que foi perdido pelo pecado fundamental. Isso não impede a sociedade de punir e reeducar quem quebra o pacto social, mas obriga que esse direito seja exercido sobre um paradigma de justiça construtor de paz.
Existe uma solução, há algo a se fazer? Alguém afirmou em uma rede social que no Brasil prende-se muito e prende-se mal. Também via redes sociais estava a afirmação: “Qualquer um enlouque no Presídio” feita por Luiz Carlos Valois Juiz de Execução Penal do Amazonas. O problema dos cárceres no Brasil será resolvido se trabalharmos em duas frentes, primeiro um combate às causas da violência – desigualdade social, má qualidade da educação, atendimento às necessidades básicas da população – e depois por um amplo processo de reestruturação abolicionista no sistema penal, processo que leve em conta a nova configuração do Estado em Democrático de Direito a luz da Constituição da República de 1988 e com uma imersão profunda na teleologia que plasmou o texto constitucional.
A Igreja – aqui em seu sentido mais amplo e autêntico – tem papel fundamental nesse processo de criação e efetivação de políticas de justiça que favoreçam a promoção da paz e que assegurem e reforce direitos. As Pastorais Sociais tem muito a nos ensinar quando aplicam políticas que deviam ser desenvolvidas pelo Estado. No processo de reestruturação da sociedade fragmentada, a consciência de que para a realização do bem viver é necessário atingir uma nova consciência de coletivo é indispensável. Uma nova sociedade não pode prescindir de uma nova consciência.
Advogado especialista em Execução Penal e Direitos Humanos graduando em filosofia mestrando em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo. Foi membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil seção Espírito Santo do Conselho Municipal de Políticas Sobre Drogas e do Conselho da Comunidade da Comarca de Guarapari também no Estado do Espírito Santo
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