Resumo: O presente artigo versa sobre o elemento culpa em matéria de separação judicial, e aponta a inadequação inconstitucional do instituto na ótica constitucional vigente.
Introdução
O presente artigo tem como escopo promover sucintas considerações acerca da noção de culpa no âmbito da dissolução do vínculo conjugal. Apesar das muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais, o aspecto culpa na seara matrimonial foi novamente incorporado na elaboração do novo código civil pátrio como um dos principais motivos de dissolução do casamento. Nota-se, a despeito de toda a evolução do direito hodierno, a forte influência dos dogmas católicos no legislador pátrio, no que tange à crença da indissolubilidade do vínculo matrimonial.
“Todas as famílias se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”. Assim Leon Tolstoi inicia a sua obra prima Ana Karenina. Refletindo sobre a sabedoria de tais palavras, somos forçados a admitir que, em se tratando de decisões sobre assuntos familiares, ninguém tem maior poder de análise e que os envolvidos na relação, sobretudo porque apenas estes podem medir o quanto estão sofrendo com um eventual desgaste do que antes era amor.
“O direito acompanha os fatos”, tal deve ser a mentalidade do operador do Direito ao deparar-se com o fato concreto. Faz-se imperiosa a necessidade de interpretar a norma à luz da nova ótica constitucional em matéria de família, que a define como base da sociedade, e assegura à mesma especial proteção do estado. A constituição de 1988 abandona a antiga noção de sociedade indissolúvel do casamento, e eleva o princípio da dignidade humana como pilar fundamental de todo um arcabouço axiológico jurídico, fazendo-se fundamental, portanto, o respeito às subjetividades inerentes a cada cônjuge, inclusive o direito a não querer mais prosseguir numa relação desgastada pelo tempo ou pelas intempéries da vida, sem ter de discutir eventuais questões de culpa no judiciário.
Breve histórico sobre o aspecto culpa na dissolução do matrimônio
O matrimônio, na ótica do código civil de 1916, tinha como fundamento a constituição de um núcleo familiar. O caráter finalista que revestia tal instituto era tão intenso, que o estado imiscuía-se de assegurar a indissolubilidade do casamento, independentemente do sentimento dos envolvidos, apenas admitindo a separação em casos de comprovada culpa de um dos cônjuges. Assevera Gustavo Tepedino que o rompimento da sociedade conjugal afigurava-se como o esfacelamento da própria família, reprovado socialmente, a despeito das causas subjetivas que o motivaram.
Pontes de Miranda leciona, sobre a égide legal da constituição de 1969 que “A família pode originar-se de quaisquer uniões sexuais, mas nem sempre as pessoas oriundas de relações não legais constituirão família, na acepção jurídica, isto é, grupo de parentes entre os quais existam relações de direito. Juridicamente, isto é, sob o ponto de vista legal, técnico, o casamento é a proteção, pelo direito, das uniões efetuadas conforme certas normas e formalidades fixadas no Código Civil.” [1]
Sendo indissolúvel o casamento, recaia sobre aqueles que desejavam não conviver mais em sociedade conjugal, por quaisquer razões ou convicções, o constrangimento de um processo de separação judicial e o forte estigma social do desquite, que pejorativamente atingia principalmente a mulher.
As principais noções sobre a família e sua constituição, aqui no Brasil, foram herdadas da Igreja católica. Com propriedade, transcreve-se aqui a brilhante lição do mestre Orlando Gomes:
“A autoridade do direito canônico em matéria de casamento foi conservada até a lei de 1.890, que instituiu o casamento civil. A despeito de rechaçada, continuou a exercer, indiretamente, grande influência. A lei civil reproduziu várias regras do direito canônico, e algumas instituições eclesiásticas se transformaram em instituições seculares, tal como ocorreu, de regra, nos países católicos. Sob influência religiosa, por exemplo, mantém-se o princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial, adotando-se o desquite como forma de dissolução da sociedade conjugal. A separação da Igreja do Estado criou prevenções contra o casamento religioso, mas foi restabelecida sua eficácia, uma vez observadas certas exigências.
No direito de família, a culpa expressa se na tradição ocidental tanto no momento patológico do casamento, quando alguém é responsabilizado por não mais querer viver com o seu cônjuge – na perspectiva da ruptura da sociedade conjugal -, quanto no quadro – por assim dizer – de estabilidade da vida a dois, culpando-se os cônjuges freqüentemente pelo papel que desempenham no cenário da família, associando-se o esforço individual por objetivos comuns à idéia de sofrimento: o sacrifício que alguém faz pela família é a medida, assim, do amor conjugal. Nesta perspectiva, não surpreende que o estigma do egoísmo venha a ser contraposto à atitude de permanente sofrimento que se espera do cônjuge – especialmente do cônjuge-mulher e mãe (na voz popular, ser mãe é sofrer no paraíso) -, como se inexistisse o ponto de equilíbrio consistente na relação de mútuas concessões, postas – não já impostas – pelo amor de um cônjuge ao outro – derivado do seu próprio sentimento e não de um mero dever institucional. ”[2]
A lei 4121/62, que instituiu o estatuto da mulher casada no ordenamento pátrio, representou um marco jurídico no caminho a um tratamento mais igualitário entre os cônjuges. O antigo artigo 393 do código civil, por exemplo, que retirava da mulher o pátrio poder, em relação aos filhos do leito anterior, quando contraísse novas núpcias, teve sua redação alterada, proclamando que a mulher não mais perderia os direitos do pátrio poder quando contraísse novas núpcias. A administração e guarda da sociedade deixou de ser exclusividade do homem para ser exercido por ambos, mas ainda com a predominância da figura masculina como pólo forte da relação domestica, sendo a mulher ainda uma mera colaboradora.
Com o advento do Divórcio no direito Brasileiro, por meio da Emenda Constitucional n.º 9/77 e da Lei 6.515/77, houve certo abrandamento na condição de indissolubilidade do matrimônio, mas fortes resquícios do elemento culpa continuaram presente, principalmente contra aqueles que tomavam a iniciativa da separação. Mas é inegável a significativa ruptura com o modelo vigente até 1977, pois, a exemplo da alteração do regime de bens legal da preferência do legislador para a comunhão parcial (até então a comunhão universal de bens), nascia ali um novo paradigma para as noções de família e matrimônio, abandonando as concepções do passado e adequando-se à nova realidade social brasileira.
A constituição de 88 e o novo código civil
A constituição de 1988 estabeleceu uma série de mudanças no direito pátrio, dando grande enfoque aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Consolidou num plano formal a igualdade de homens e mulheres e reconheceu a família como entidade não mais centrada no instituto do casamento, mas nos valores afetivos.
Em 10 de janeiro de 2002, foi promulgado o novo código civil brasileiro. A exemplo da constituição de 88 e dos diplomas legais anteriores, a lei 10.406 abandonou a visão patriarcalista que inspirou a elaboração do antigo código, no qual a mulher submetia-se ao mando de uma família patriarcal e o casamento era a única forma de se constituir uma família. O modelo de família constitucionalmente previsto atualmente reza que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente por homens e mulheres.
O novo código civil, entretanto, já nasceu com sérios defeitos, tanto de adequação à norma constitucional, quanto de adaptação à realidade da família brasileira. O aspecto culpa na separação, objeto do presente estudo, é um deles. A possibilidade da perda do nome de casado pelo cônjuge declarado culpado, ou a hipótese do artigo 1830, sobre o direito sucessório do cônjuge que provar a impossibilidade da convivência por culpa do outro, são alguns dos gravames a serem suportados pelo cônjuge considerado culpado.
Antes mesmo da vigência do novo código, grande parcela da doutrina e jurisprudência já entendia pela necessidade do afastamento dos excessos da declaração de culpa para a violação de certos deveres conjugais, Nesse sentido discorre Eduardo de Oliveira Leite:
“Lamentavelmente, e em manifesto retrocesso, o legislador ressuscitou a figura da ‘culpa’, como fundamento da separação judicial, quando, tanto a doutrina, quanto a jurisprudência, já haviam superado esta fase de argumentação e justificativa da ruptura da sociedade conjugal. Desde a mais tradicional postura de Pontes de Miranda até a posição de doutrinadores da atualidade a atribuição da culpa pelo fracasso do matrimônio a qualquer dos cônjuges não é mais admitida, substituindo-se aquele pressuposto de cunho subjetivo e privado pelo princípio da ‘deterioração factual’. Com efeito, como já se tem posicionado a jurisprudência nacional, não mais tem sentido, nem justificativa, a atribuição da culpa pelo rompimento da vida em comum, quando qualquer conseqüência pode advir desta declaração, bastando, para a decretação da separação, o reconhecimento do fim do vínculo afetivo”[3]
Segundo a célebre pensadora do direito de família nos cânones atuais, Maria Berenice Dias, o legislador brasileiro perdeu uma grande chance de abolir o critério culpa na separação judicial, e de seguir a tecnologia jurídica praticada no direito civil alemão:
Não atentou o legislador em que a perquirição da causa da separação vem perdendo prestígio, no panorama legal da maioria dos países desenvolvidos, que autorizam o fim do casamento independentemente da indicação de um responsável pela insuportabilidade da vida em comum. Seja porque é difícil atribuir à só um dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão na intimidade da vida das pessoas, tal motivação já vem sendo desprezada pela jurisprudência pátria. Se um dos cânones maiores das garantias individuais é o direito à privacidade e à intimidade, constitui violação do sagrado direito do respeito à dignidade da pessoa humana a ingerência do Estado na vida dos cônjuges, obrigando um a revelar a intimidade do outro, para que, de forma estéril e desnecessária, imponha o juiz a pecha de culpado ao réu.
Algumas impropriedades jurídicas, portanto, devem ser postas à luz da ótica constitucional vigente. Como não é mais cabível a interferência do estado para a preservação do casamento já não mais desejado pelos envolvidos, o aplicador do direito, necessariamente, precisa ponderar quais razões de direito e de fato realmente possuem relevância para a ordem pública. Como questiona Maria Berenice Dias, “seria a determinação de um período de reflexão ou não se admite que o amor possa ter acabado antes desse prazo. Nesse sentido, qual seria a legitimidade do Estado em se opor à vontade de pessoas maiores, capazes e no pleno exercício de seus direitos? Não há porque querer preservar os “laços sagrados do matrimônio” se ele não mais existe. Inclusive, esse poder exagerado do juiz é um dos motivos que certamente pode levar à defesa da desjudicialização do procedimento para a separação ou o divórcio, já que se os cônjuges livremente casaram por que não disporiam da mesma liberdade para se divorciar?”
Para Gustavo Tepedino, no Direito de Família, a culpa se expressa na tradição ocidental tanto no momento patológico do casamento, quando alguém é responsabilizado por não mais querer viver com o seu cônjuge – na perspectiva da ruptura da sociedade conjugal -, quanto no quadro – por assim dizer – de estabilidade da vida a dois, culpando-se os cônjuges freqüentemente pelo papel que desempenham no cenário da família, associando-se o esforço individual por objetivos comuns à idéia de sofrimento: o sacrifício que alguém faz pela família é a medida, assim, do amor conjugal.
Observa-se que existe um problema de recepção das disposições do novo código civil pela constituição de 88, no que tange a certas interferências indevidas do legislador na autonomia e dignidade humanas, princípios sacramentados por esta carta magna. Não são mais passíveis de análise as decisões e convicções intimas do indivíduo que deseja não viver mais ao lado de outro.
Cristiano Chaves pondera, por fim, que “Aquilo que, convencionalmente, se chama de culpa (no sentido de causa da dissolução) não passa, na realidade, de conseqüência, tomando lugar da verdadeira causa deflagradora da dissolução: a falta de vontade de compartilhar a vida.” O mesmo conclui que “Impõe, por conseguinte, perceber que não há, seguramente, um único responsável pelo fracasso do amor. Ninguém é culpado por não mais gostar. Não há responsabilidade pela frustração do sonho comum”.
A EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010: FIM DA DISCUSSÃO DA CULPA EM MATÉRIA DE SEPARAÇÃO JUDICIAL?
A Emenda Constitucional 66 deu nova redação ao § 6º do art. 226 da CF, extinguindo do ordenamento jurídico pátrio a separação judicial, e prevendo o divórcio como única medida judicial cabível a dissolver o casamento. Tal emenda, idealizada pelo IBDFAM e exaustivamente debatida na mídia e no Congresso Nacional, veio em defesa da liberdade daqueles que já não podem mais sustentar vida em comum, que já tiveram rompidos os derradeiros laços de afeto que os uniam em comunhão de vidas.
Nos parece, bem como a boa parte da doutrina[4], que as disposições concernentes à culpa remanscentes no CC/2002 foram derrogadas pela EC 66, pois como a separação judicial deixou de existir em nosso ordenamento jurídico, não há mais de se falar nos gravames suportados pela parte dita culpada pelo término do matrimônio, já que a liberdade de se manter na relação não sofre mais a ingerência estatal de outrora. É dizer, tornou-se inócuo discutir-se culpa em um panorama constitucional que vela pela autonomia da vontade no tocante ao casamento, e tal hermenêutica constitucional foi agora reforçada por disposição expressa tendente a romper os laços com o passado, em matéria de família, abolindo, definitivamente, o modelo patriarcal, e salvaguardando o direito à dignidade, igualdade e independência dos membros do casamento.
Conclusão
Conclui-se, afinal, pela necessidade de criteriosa análise sobre o papel da culpa na separação e no divórcio. Não devem ser imputadas sanções pelo simples fato da ruptura do vinculo matrimonial, pois esta é a conclusão que se faz após uma simples análise teleológica da constituição vigente. E mais que isso, foge à esfera da atuação do profissional do direito a análise das causas que levaram o individuo a deixar de querer continuar numa relação matrimonial, cabendo somente aos envolvidos decidirem o seu futuro.
Vislumbramos na EC 66 uma solução para tal tema, acreditando na derrogação das normas concernentes à culpa em matéria de separação judicial, mas reconhecemos que tal solução não virá senão após acalorados debates acerca do tema, saudáveis à elucidação e exaustão da matéria.
O que se espera dos estudiosos e aplicadores do direito, portanto, é a incessante busca de soluções e interpretações voltadas ao novo panorama jurídico que se apresenta. Todo aquele que lida com direito de família precisa de temperança para saber aplicar a norma aos fatos da vida, pois muito mais valioso que qualquer bem é a subjetividade humana.
Bacharel em Direito pela UCSAL
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