Resumo: Objetiva-se neste texto analisar as principais razões para a resistência por parte de uma significativa parcela da população brasileira, à adoção de reserva de vagas ou cotas raciais em nossas instituições públicas de ensino superior. O caminho adequado para compreender essa temática passa necessariamente por um estudo filosófico, político, sociológico e jurídico das relações étnico-sociais da estrutura da sociedade brasileira.
Palavras-chave: Preconceito Racial – Ações Afirmativas – Cotas Raciais – Estratificação Social.
Abstract: This study attempted to examine the reasons and text explanations for the resistance of a significant portion of the population, on the adoption of quotas or affirmative action in our public institutions of higher education. The proper way to understand this theme cuts across the study necessarily philosophical, political, sociological and legal aspects of ethno-social structure of Brazilian society
Keywords: Racism – Affirmative Action – Quotas Race – Social Stratification
Sumário: 1. Introdução. 2. Os aspectos históricos da formação das sociedades estamental e de classes e de construção do princípio da igualdade: o papel dos escravos negros nos dois modelos de sociedade. 3. Preconceito e discriminação nas relações sociais/raciais: a estraficação dentro da sociedade de classes brasileira. 4. O preconceito racial brasileiro e seus aspectos éticos e econômicos. 5. As ações afirmativas e sua constitucionalidade. 6. Defesa das cotas raciais no brasil e a mudança do status quo social dos negros. 7. Conclusões.
1. Introdução
O tema das ações afirmativas tem alcançado forte repercussão na sociedade brasileira, primordialmente após a entrada em vigência da Constituição Cidadã de 1988. Isso acontece porque o texto constitucional positivou e protegeu uma enorme gama de direitos e garantias fundamentais vilipendiados e ignorados durante os penosos anos de ditadura militar no país. A proteção de bens jurídicos individuais (ex.: a liberdade de expressão, a igualdade material, a vedação do racismo e outras formas de discriminação) e, também, de bens difusos e coletivos (ex.: meio ambiente, família e relações de consumo) demonstra a nova ênfase constitucional dada pelo Estado brasileiro à construção de uma sociedade mais igualitária e justa. Ocorre, entretanto, que a mera proteção jurídico-legal não é suficiente para proteger os novos direitos e garantias consagrados pela Constituição de 1988, mister se faz a implementação deles no plano concreto. Mas, para que esses direitos e garantias se efetivem, é imprescindível a quebra de tabus existentes no pensamento e cultura do povo brasileiro há centenas de anos, como acontece com o racismo.
A respeito da discussão desse tema paradigmático cultural/jurídico de nosso país é que nos propomos a tratar. Porém, para que alcancemos o êxito esperado, passaremos pela análise do surgimento das sociedades estamentais e de classes; dos fundamentos para o preconceito e racismo justificadores da sociedade estratificada brasileira; dos princípios ético-econômicos que mantêm a posição de ascendência dos brancos em face dos negros e, por fim, discutiremos os motivos para a constitucionalidade e inserção no arcabouço jurídico pátrio das cotas raciais.
2. Os aspectos históricos da formação das sociedades estamental e de classes e de construção do princípio da igualdade: o papel dos escravos negros nos dois modelos de sociedade
No início da vida em sociedade, passando pelo Mundo Antigo e indo até a Idade Média, a concepção da desigualdade predomina e é amplamente aplicada no mundo. Basicamente ela se estrutura sob duas formas: um sistema de privilégio de castas ou ordens e outro baseado na riqueza econômica. O sistema de castas ou ordens aparece historicamente na maior parte das civilizações do mundo antigo. Esse sistema difere da ideia de classes sociais porque as castas ou estamentos têm ordens jurídicas particulares, diversamente do sistema de classes sociais, que são dotadas de um direito aplicável a todas elas indistintamente. Outro ponto diferenciador de ambos é que as ordens ou castas possuem uma estrutura desigual e hierarquizada admitida pela lei, enquanto que o sistema jurídico não estabelece hierarquia entre as classes sociais, existindo como elemento diferenciador entre elas a riqueza patrimonial.
Na sociedade antiga, os grupos civilizatórios dividiam-se em castas ou estamentos. Porém essa não é uma divisão apenas social. No interior delas também existiam hierarquias, reguladas por suas respectivas ordens jurídicas. O exemplo clássico da existência dessa estrutura era a do pater familiae. A palavra pater, que hoje indica preponderantemente a ideia de paternidade, possuía inicialmente o significado de poder. Segundo esse modelo amplamente difundido em Roma e também nas cidades-estados gregas, somente o pater tinha capacidade jurídica plena, ou seja, podia exercer direitos e contrair obrigações. Em que pesem os problemas existentes nesse modelo, o pater se responsabilizava por todos sobre sua longa manus (familiares e escravos), não havendo miséria para esses. Quando o sistema começou a desmoronar surgiu a sociedade de classes, havendo a substituição do privilégio da casta pelo privilégio do poder patrimonial, e com ele os problemas sociais e econômicos que perduram até a atualidade. Esses problemas têm origem no desaparecimento da sujeição familiar e na necessidade de cada um prover sua subsistência, além do fato de que muitos perderam seu patrimônio como consequência natural do desequilíbrio financeiro existente no sistema de classes sociais. Aristóteles, presenciando o aparecimento das desigualdades sociais, alerta que a origem dos conflitos humanos quase sempre as tem como fundamento. Em face dessa situação, o estagirita expõe os riscos existentes nos principais modelos de conformação política do Estado, isto é, a oligarquia e a democracia. Na oligarquia, o poder é exercido pelas elites econômicas, havendo uma participação mínima das classes patrimonialmente desfavorecidas. Para o filósofo grego esse é o pior dos dois, devido à disputa pelo poder dos grupos hegemônicos e à constante revolta produzida entre os pobres que são por eles governados. Já a democracia é o melhor, ainda que padeça de tensões. As disputas nesse modelo surgem no meio do povo, visto que a participação na vida política é teoricamente igual entre ricos e pobres. Esse foi o quadro social que perdurou até o final da Idade Antiga.
Na Idade Média houve um retrocesso e a sociedade de classes cedeu espaço novamente ao sistema de castas e ordens. Chegou-se ao entendimento, naquele momento histórico, que a igualdade jurídica de classes era um despautério que conduziria os homens a uma inevitável desordem. Fábio Konder Comparato traz uma citação da obra o Tratado das ordens e simples dignidades, de autoria de Charles Loyseau, publicada em 1610, que defendia abertamente os benefícios de uma sociedade dividida em castas[1]:
“Não podemos viver juntos em igualdade de condições, mas é preciso, por necessidade, que uns comandem e que outros obedeçam. Os que comandam têm várias ordens, posições sociais e graus. Os soberanos senhores comandam a todos os de seus Estados, dirigindo seus comandos aos grandes, os grandes aos medíocres, os medíocres aos pequenos e os pequenos ao povo.”
Esse modelo de desigualdade política e jurídica estamental também mostra seus reflexos no pensamento de Martinho Lutero, apesar de esse ter criticado e desafiado a estrutura hierarquizada da Igreja Católica ao afirmar que todos os cristãos são iguais em dignidade e direitos, inexistindo qualquer justificativa para diferença de tratamento entre fiéis e clero. Ele defende publicamente no texto Sobre os judeus e suas mentiras, publicado em 1543, que os príncipes germânicos deveriam expulsar todos os judeus dos territórios de seus principados, usando medidas cruéis se essas fossem necessárias. Essa situação demonstra como a ideia de supremacia, por razões inclusive religiosas, de um grupo sobre outro estava entranhada na mente dos indivíduos daquele período histórico[2]. Esse pensamento de supremacia de uma raça ou etnia sobre a outra não se modificou com o tempo, vez que no final do século XIX propagava-se que para a América Latina se desenvolver era necessário um novo povo diferente do que existia no continente naquele momento histórico. Miguel Ángel Barrios assim se expressa sobre o assunto em dois momentos distintos de seu texto[3]:
“Para esta elite romántica, los vicios fundamentales de América Latina eran el indio, el español, el mestizo y la Iglesia Católica. Por lo tanto, si había que borrar esos cuatro vicios, había que borrar el pueblo e inventar otro. (…)
Enrique Zuleta Álvares (1989:408-409) afirma que “entre las influencias ideológicas llegadas desde Europa en la segunda mitad del siglo XIX estaban las teorías del racismo científico, que trataba de explicar el problema social mediante la antropología y la sociología basada en Darwin y Spencer. En la lucha por la vida triunfaban las razas más ‘aptas’, que acreditaban su fuerza impulsando el progreso, mientras fracasaban las ‘inferiores’ por su misma ‘debilidad e ineptitud’. […] Estas ideas dieron paso a un darwinismo social, exaltaron a los pueblos de ‘raza blanca’, ‘triunfadores’, ‘progresistas’ y ‘civilizados’ y descalificaron a las ‘razas’ de color por sus ‘vicios y debilidades congénitas’”.
Além da discriminação de natureza religiosa, os monarcas e eclesiásticos procuraram argumentos para justificar a escravização dos povos conquistados com a expansão marítima, e também nas guerras para subjugá-los. As razões para estas explicações foram apresentadas pela bula Romanus Pontifex, escrita pelo Papa Nicolau V ao rei de Portugal, no ano de 1454, vez que no seu entender os atos praticados pelos europeus exploradores eram plenamente justificados pelo intuito missionário que os movia.
O formato de escravidão imposto pelos descobridores principalmente sobre os povos africanos (oriundos da África Subsaariana) era diverso daquele que foi utilizado pelos árabes (egípcios e outros) durante a Idade Antiga. Na escravidão da antiguidade, os escravos eram formados por negros e brancos e tinham como função básica servir à família de seus senhores. O método de escravidão empregado pelos europeus durante a Idade Moderna era completamente distinto. A primeira diferença nítida foi o tráfico de escravos iniciado no século XVI; e a segunda, foi que o trabalho deles era executado em grandes propriedades agropecuárias e no processo de mineração de metais e pedras preciosas. Procurou-se argumentar nesse período que, além do intuito missionário, a servidão dos negros era plenamente aceitável porque eles eram considerados seres inferiores. Durante mais de três séculos essas práticas em detrimento dos povos escravizados foram amplamente aceitas, chegando ao seu fim apenas no século XIX, quando os movimentos abolicionistas se expandiram em todo o continente americano. Fábio Konder Comparato[4] explica que Charles de Montesquieu foi um dos poucos pensadores de sua época que contestou o argumento justificador para a escravidão dos povos africanos. Tomar-se-á a liberdade de transcrever um trecho dotado de extrema ironia, que o professor paulista reproduz em sua obra:
“Se eu tivesse que sustentar o direito que tivemos de tornar os negros escravos, eis o que eu diria:
Os povos da Europa, tendo exterminado os da América, tiveram que escravizar os da África, a fim de deles se servirem para desbravar terras de tão grande extensão.
O açúcar seria caro demais, se não se fizesse trabalhar a planta que o produz pelos escravos.
Estes são negros dos pés à cabeça, e têm o nariz tão achatado que é quase impossível lastimá-los.
Não se pode conceber que Deus, que é um ser tão sábio, tenha posto uma alma, sobretudo uma alma boa, num corpo tão preto.
É natural pensar que é a cor que constitui a essência da humanidade; que os povos da Ásia, que fazem eunucos, privam sempre os negros da relação que eles têm conosco do modo mais marcante.
Pode-se julgar a cor da pela (sic) dos cabelos, a qual, entre os egípcios, os melhores filósofos do mundo, eram de tão grande importância, que eles matavam todos os homens ruivos que caíssem em suas mãos.
Uma prova de que os negros são carentes de bom senso é que eles dão mais valor a um colar de vidro que de ouro, o qual, para as nações civilizadas, é extremamente valioso.
É impossível supor que tais indivíduos sejam homens; pois, se nós os supusermos tais, começaríamos a acreditar que nós próprios não somos cristãos.
Certas mentes retardadas exageram em demasia a injustiça que se faz aos africanos. Se ela fosse tão grande como eles alegam, não teria por acaso ocorrido aos príncipes da Europa, que celebram entre si tantas convenções inúteis, fazer uma que favorecesse, em geral, a misericórdia e a piedade?”
O início do fim do processo de escravização dos povos africanos se deu com a Revolução Francesa, pois a partir de 1791 findaram-se temporariamente as discriminações legais contra os judeus, assim como se declarou a igualdade de gênero. Em 1792 ocorreu a proibição do tráfico de escravos para as colônias. Com a transição do sistema econômico mercantilista para o capitalismo burguês, os privilégios de castas foram abolidos, instituindo-se o princípio da igualdade dos homens perante a lei. Essa igualdade existente apenas no plano normativo serviu de sustentáculo para o profundo processo de desigualdade econômica que vige até os dias atuais. Para a expansão da sociedade de classes capitalista duas estratégias fundamentais foram e são continuamente empregadas. No plano interno dos países há um aprofundamento da divisão entre classes, isto é, de um lado existem os proprietários dos meios de produção e do outro os trabalhadores, cujo único produto a ser oferecido é a força laboral. Externamente, a estratégia utilizada é a da continua expansão e dominação econômica e cultural sobre as antigas colônias (neocolonialismo). Esse ardil capitalista ganhou proporções ilimitadas e tem se ampliado enormemente com a globalização, que desfigurou conceitos que até a década de 1980 possuíam um verdadeiro significado, como, por exemplo, o de soberania político-jurídica e autonomia econômica estatal.
3. Preconceito e discriminação nas relações sociais/raciais: a estraficação dentro da sociedade de classes brasileira
Antes de se discutir o enquadramento dos negros na atual estrutura da sociedade de classes do Brasil, é importante fazer uma análise do processo “evolutivo” do preconceito dentro da sociedade brasileira.
O racismo em nosso país surgiu como afirma Florestan Fernandes, “(…) como uma contingência inelutável da escravidão”[5]. Conforme ele explica, e como foi visto anteriormente no texto, a própria Igreja Católica criou motivos para justificar a escravidão de um ser humano por outro. O senhor dos escravos tinha, a partir de uma concepção católica, o dever de pregar sua fé e salvar as almas de seus escravos. Essa posição de salvador o colocava ao lado de Deus, explicitando sua superioridade, piedade e misericórdia em relação aos escravos. O referido quadro de ascendência construiu uma imagem que em princípio não era de fundo racial, mas que, a partir dessa estrutura, passou a idealizar o senhor (superior) como o “branco”, enquanto que o escravo (inferior) reproduzia a condição do negro/mestiço.
Além da ideia de base religiosa da superioridade da raça branca, as origens biológicas dos negros e as características de seu fenótipo faziam o papel de justificação racional de sua inferioridade. A necessidade do uso da violência, em todas as suas formas, como instrumento de controle da “agressividade” dos negros também exerceu importante função nesse processo. Dessa forma, com o argumento biológico aliado ao religioso construía-se uma padronização cultural para perpetuar por longo tempo o preconceito em relação aos negros.
A partir desse panorama de discriminação formatou-se no Brasil uma estratificação social que gerou e ao mesmo tempo ocultou a condição indissociável entre “cor/raça” e “condição social”. Florestan Fernandes afirma que essa estrutura de estratificação social existente durante o período de escravatura no país ainda persistia na década de 1960, mas, em nosso ponto de vista, permanece praticamente inalterada no primeiro decênio do século XXI. Disse o professor Fernandes[6]:
“Pondo-se de lado a era da escravidão, que não nos interessa de imediato nesta discussão, temos diante de nós três problemas marcantes. O primeiro diz respeito à fase de transição, em que o padrão tradicionalista e assimétrico de relação racial subsiste inalterado. O segundo refere-se ao que acontece quando a ascensão social do negro provoca alguma espécie de ruptura no paralelismo entre “cor” e “posição social”. O terceiro relaciona-se com a existência ou não de probabilidades de incorporação do referido paralelismo ao regime de classes sociais, o que redundaria na absorção da desigualdade racial pela ordem social competitiva em expansão. (…)
O padrão tradicionalista e assimétrico de relação racial foi transferido em sua quase totalidade para a nova situação histórico-social como se a alteração do estatuto jurídico do negro e do mulato não se refletisse em suas prerrogativas sociais. (…) Revelavam notável incompreensão e extrema intransigência diante daqueles que “saíssem da linha”, pretendendo tratar os brancos como se “fossem gente de sua laia”. (grifo nosso)
Diante desses argumentos, percebe-se que o processo de manutenção da estrutura social/racial brasileira continua interessando às elites e ao pensamento tradicionalista desse país, que não aceita qualquer modificação das condições econômicas e sociais da raça negra. Essa discussão antropológica, histórica e sociológica da sociedade nos fornece os parâmetros mínimos para compreendermos por que a implementação de ações afirmativas por meio das cotas raciais, com o fim de garantir aos negros (pretos e mulatos) acesso ao ensino superior público, encontra tanto preconceito, disfarçado de um discurso de defesa do princípio da igualdade nas classes alta e média da sociedade brasileira. A seguir abordar-se-ão os fundamentos ético-econômicos do preconceito no país.
4. O preconceito racial brasileiro e seus aspectos éticos e econômicos
O preconceito racial no Brasil, como pudemos observar nos seus aspectos sociológicos e culturais, foi criado durante o período colonial com o escopo de justificar e, posteriormente, manter a escravidão como principal instrumento de mão de obra, além de perpetuar a condição de inferioridade dos indivíduos de raça negra. Essa forma de atuar da sociedade escravagista de nosso país indicava um perfil ético utilitarista, para o qual o fim (a necessidade de uma força de trabalho de baixo custo produtora de uma grande quantidade de riquezas) justificava os meios empregados para a sua consecução (constante violação da dignidade humana, inexistência de direitos, uso da violência e a exploração). Em que pese estarmos tratando de um período histórico anterior ao da abolição da escravatura, se analisarmos a realidade vigente constaremos que a forma de exploração (fim) permanece sob nova “roupagem”, assim como os meios empregados continuam a explorar e desrespeitar a dignidade humana dos negros do Brasil. A continuidade desse processo é ainda tão visível, que Florestan Fernandes afirmava sobre a necessidade de ocorrência de uma Segunda Abolição[7] no país.
Sob o ponto de vista econômico, a estrutura escravista portuguesa, e posteriormente a brasileira, no período colonial e pós-colonial, seguia o padrão do sistema mercantilista, no qual o tráfico negreiro era uma das principais fontes de riqueza. Posteriormente, com a evolução do mercantilismo para o sistema econômico capitalista, e surgindo dentro desse o Liberalismo, alteraram-se alguns elementos fundamentais da economia, mas os princípios ético-utilitaristas permaneceram durante todo o século XIX e primeira metade do século XX[8].
Após a Segunda Guerra Mundial, a maior parte das nações ocidentais adotou o modelo do Welfare State (ou pelo menos algo parecido com ele). O Brasil seguindo o mesmo caminho, implantou uma série de proteções anteriormente inexistentes, como, por exemplo, a regulamentação dos direitos trabalhistas, o surgimento dos primeiros órgãos de previdência pública e a expansão do ensino superior público. Porém a inserção dos negros nesse novo modelo econômico-social não aconteceu, visto que para eles o Estado do Bem-Estar Social não existiu, ocorrendo uma vigência ininterrupta dos princípios utilitários primeiramente com feições liberais, e depois neoliberais de exploração, estagnação e restrição crescente de direitos sociais.
Por isso, podemos dizer que a situação ético-econômica dos negros desde o período colonial até os dias atuais permanece inalterada, pois para eles continua sendo empregado um utilitarismo capitalista de super-exploração, que iniciou com o modelo mercantilista, passando para o liberalismo e, nas últimas décadas, convertendo-se em neoliberalismo.
5. As ações afirmativas e sua constitucionalidade
Após tecermos algumas considerações acerca dos aspectos éticos e econômicos do preconceito brasileiro, mister se faz tratarmos das ações afirmativas (conceito, objetivos e outros) e sua constitucionalidade. As ações afirmativas também são denominadas como discriminações positivas. Para conceituá-las, far-se-á uso da definição de ações afirmativas elaborada pelo ministro do STF Joaquim Barbosa Gomes[9]:
“Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.”
Quanto aos objetivos, pode-se dizer que as ações afirmativas: – revestem-se de caráter de exemplaridade, isto é, elas motivam e demonstram o senso inclusivo que o modelo propõe, além de simbolizarem o reconhecimento oficial da existência de práticas segregatórias e da imprescindibilidade de sua extirpação; – transformam o fim das desigualdades em algo necessário e culturalmente aceito; – coíbem o preconceito no presente, mas também resgatam o grupo social historicamente excluído, colocando um fim na “discriminação estrutural”, que tende a perpetuar o processo de exclusão; – produzem um fortíssimo instrumento de mobilidade social ascendente, trazendo um impacto positivo nos grupos sociais que delas se beneficiam.
Em face disso, compreendemos que as ações afirmativas são exemplos nítidos de correção no plano prático do princípio da igualdade perante a lei (formal). A simples premissa de que a lei não deve discriminar os indivíduos não é suficiente para fazer com que a igualdade material e de oportunidades exista em padrões aceitáveis. Essa é uma realidade bem clara em todo o continente latinoamericano.
Mesmo com tantos motivos razoáveis para que as discriminações positivas efetivamente existam, elas são passíveis de algumas críticas. As contestações em relação às ações afirmativas se baseiam em dois argumentos fortemente questionadores. De um lado, as ações afirmativas são contestadas pelos “conservadores”, que entendem que sua instituição fere o princípio da isonomia, pois cria artificialmente situações de “igualdade”. Coloca-se a palavra igualdade entre aspas porque, na verdade, o que esses indivíduos afirmam é que ocorre justamente o contrário, isto é, as ações afirmativas geram desigualdades formalizadas pela lei, o que, segundo eles, jamais poderia ocorrer, em virtude de se estar violando o princípio da igualdade no seu sentido formal (“todos são iguais perante a lei”). Cita-se como exemplo desse desrespeito à igualdade, sob o ponto de vista dos “conservadores”, a adoção de políticas de cotas raciais, visto que elas discriminam as pessoas não pertencentes ao grupo étnico protegido pela lei.
Um documento importante que contraria esse entendimento é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil no final da década de 1960, que expressa a eticidade e constitucionalidade da implementação de ações afirmativas, demonstrando que elas não violam o princípio da igualdade, mas, muito pelo contrário, reforçam-no no seu aspecto material[10]:
“Art. 1º. 4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdade fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos”
O outro aspecto gerador de críticas em relação às ações afirmativas relaciona-se à compreensão de que elas criam artificialmente a igualdade de direitos que perdura apenas enquanto vigentes, perdendo sua força assim que deixam de ser aplicadas concretamente. Para esses críticos, as ações afirmativas reforçam o senso de inferioridade dos indivíduos pertencentes ao grupo social por ela beneficiados. A respeito disso, Márcia Durão de Macedo cita uma frase escrita por José Roberto Militão, militante histórico do movimento negro brasileiro, que se opõe à política cotas por considerá-la um fator de humilhação para os negros do país[11]:
“As ações afirmativas não fazem reparações do passado, não fazem cotas estatais, mas atuam com eficácia para que as discriminações históricas não persistam no presente. Portanto, os afro-brasileiros precisam de políticas públicas de inclusão, indutoras e garantidoras da promoção da igualdade, e não das cotas de humilhação.”
Respeitamos imensamente a opinião de Militão, porém não se pode extremar ao ponto de definir as cotas raciais como cotas de humilhação, pois, ainda que elas proponham uma solução parcial e temporária, são muito melhores do que a presente situação de ausência de perspectiva de melhoria das condições de vida dos negros.
Também não é verdadeira afirmação de que a Constituição de 1988 não preveja a possibilidade de instituição de leis que permitam a discriminação positiva derivada das ações afirmativas. Em posição diametralmente oposta a esse argumento, consideramos que nossa carta constitucional é pródiga em disposições que admitem a realização de ações afirmativas de cunho público ou particular, havendo inclusive a possibilidade de inconstitucionalidade por omissão. Atualmente, parte dos juristas pátrios vêm defendendo a limitação da discricionariedade do poder público em relação às políticas públicas dirigidas à efetivação dos direitos fundamentais, argumentando que o judiciário deve intervir sempre que a administração se omitir na implementação de direitos fundamentais constitucionalmente expressos. Destacam-se como exemplos de discrímen expressamente previstos na CF, ressaltando-se que esse rol não é exaustivo: a origem (art. 3º, IV), cor ou raça (arts. 3º, IV, 4º, VIII, 5º, XLII, e 7º, XXX); sexo (arts. 3º, IV, 5º, I, e 7º, XXX); idade (arts. 3º, IV, e 7º, XXX); estado civil (art. 7º, XXX); condição de deficiência (art. 7º, XXXI, 227, II); credo religioso (art. 5º, VIII); convicções filosóficas ou políticas (art. 5º, VIII); tipo de trabalho (art. 7º, XXXII); e natureza da filiação (art. 227, parágrafo 6º)[12].
Ao longo de todo processo histórico-evolutivo das ações afirmativas no Brasil, evidencia-se uma falha que se refere à participação mínima ou insignificante da população nos debates acerca de sua concepção, elaboração e execução. Já ressaltamos isso em outros estudos nossos e o faremos agora novamente.
Consideramos que a implementação de políticas sociais éticas depende fundamentalmente da participação popular em todo o seu processo, isto é, a margem de erro tende a diminuir quando os beneficiados, no caso os negros e índios, estão diretamente envolvidos na conformação dos programas. As etnias vitimadas pela discriminação racial precisam conhecer melhor a temática a respeito das cotas raciais para poderem emitir sua opinião, pois, na esmagadora maioria das vezes, os programas são elaborados e executados sem que elas sejam consultadas. É essencial saber se a população negra ou indígena, por exemplo, é favorável às ações afirmativas; se elas não se sentirão inferiorizadas em virtude desse benefício; se pensam que todos os indivíduos pertencentes à raça têm direito ou apenas os de condição econômica desfavorável.
6. Defesa das cotas raciais no brasil e a mudança do status quo social dos negros
Neste último tópico discutiremos sobre a imprescindibilidade da implementação das cotas raciais no Brasil. Após tudo o que foi discutido no texto, ainda pode surgir a pergunta: “Por que os negros e indígenas devem ter direito às cotas nas universidades públicas em detrimento das demais etnias?” Vários argumentos podem ser utilizados e o serão a seguir, porém gostaríamos de iniciar por um trecho de uma reportagem publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, do dia 22 de março de 2006 (apud Altafin)[13], que começa explicando por que as cotas raciais devem ser instituídas em nosso país: “As cotas partem da constatação de que os ‘negros’ não estão conseguindo competir com os ‘brancos’ no vestibular. De fato, isso é verdade na medida em que aquela população enfrenta obstáculos sociais muito sérios na sua trajetória escolar que dificultam o acesso ao ensino superior”.
No debate da criação de cotas no Brasil, sempre existirão indivíduos que são absolutamente desfavoráveis a elas; outros que as admitem desde que considerem apenas a condição social do beneficiado, independentemente de sua raça; e, por fim, há os defensores das cotas unicamente raciais, desde que os atingidos sejam pessoas desprovidas de recursos financeiros. A respeito dos argumentos contrários às cotas tivemos a oportunidade de discuti-los em outros trabalhos, cabendo-nos, neste momento, tratar sobre o dilema de se instituir cotas sociais ou cotas raciais.
Ao contrário do que é defendido histórica e culturalmente em nosso país, o tráfico negreiro foi executado em grande escala pelos brasileiros natos, contrariando a tese de que qualquer dívida histórica existente para com os negros brasileiros seria dos povos portugueses ou ingleses, e não do Estado brasileiro[14]. Relativamente a essa questão, trazemos à baila os comentários de Alencastro[15]:
“Demonstrando um grande desconhecimento da história pátria e superficialidade em sua argumentação, a petição do DEM afirma na página 35: ‘Por que não direcionamentos a Portugal e à Inglaterra à indenização a ser devida aos afrodescendentes, já que foram os portugueses e os ingleses quem organizaram o tráfico de escravos no Brasil?’. Como é amplamente conhecido, os ingleses não tiveram participação no escravismo brasileiro, visto que o tráfico negreiro constituía-se como um monopólio português, com ativa participação brasileira no século XIX. Bem ao contrário, por razões que não cabe desenvolver neste texto, a Inglaterra teve um papel decisivo na extinção do tráfico negreiro para o Brasil.”
Respondida a questão da existência da dívida histórica que esse país tem com seus negros, podemos analisar alguns argumentos favoráveis para subsidiar o programa de cotas raciais no âmbito das universidades públicas. Para isso, faremos uso de algumas informações que demonstram nitidamente as diferenças nas condições de vida e educação entre negros e brancos em nosso país. Munanga[16], no seu artigo “Políticas de Ação Afirmativa em Benefício da População Negra no Brasil: Um Ponto de Vista em Defesa das Cotas”, apresenta-nos alguns números de forma visível e inconteste os prejuízos que a população negra sofre[17]:
“* Do total dos universitários brasileiros, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes orientais.
* Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros.
*Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros (Henriques, 2001).”
No que se refere aos aspectos educacionais, os negros também se encontram em condição de desvantagem em face dos indivíduos brancos. No quadro a seguir, é possível apreender as diferenças em nível educacional entre as duas raças, considerando o percentual de 100% (cem por cento) das pessoas pertencentes a cada uma das raças e suas respectivas faixas etárias[18]:
Analisando esses dados, percebe-se que no ensino fundamental (de 7 a 14 anos) praticamente não há diferença entre ambas as raças, pois 95% (noventa e cinco por cento) das crianças de cor branca estão matriculadas na escola e 94% (noventa e quatro por cento) das crianças negras também estão matriculadas. A partir do ensino médio é que se acentuam as discrepâncias, visto que o número de matrículas de jovens brancos é quase 50% (cinquenta por cento) maior do que a de negros. Finalmente, no ensino superior, a diferença entre as raças se torna abissal, demonstrando que é nessa etapa da formação que os negros sofrem a maior limitação, evitando-se, assim, a ascensão social da esmagadora maioria deles. Como se vê no quadro, o percentual de brancos matriculados no ensino superior é quase 300% (trezentos por cento) maior do que o número de alunos negros. Esses dados tornam evidente o importante papel que as cotas podem exercer para equiparar a quantidade de brancos e negros na universidade.
Há ainda aqueles que consideram possível resolver o problema do ingresso dos negros no ensino superior com a ampliação de vagas nas universidades públicas, sem a necessidade da instituição de uma política de cotas. Como foi demonstrado em alguns estudos, como, por exemplo, o elaborado na UFSC[19], entendemos que o aumento de vagas apenas faz crescer as chances de sucesso daqueles que já dispõem de melhores condições financeiras para passar no vestibular. Nessa “solução”, os negros pobres formados no ensino público continuariam alijados das universidades públicas, pois como poderiam concorrer com estudantes que têm acesso às melhores escolas particulares e cursinhos preparatórios de pré-vestibular?[20]. Salienta-se ainda que ocorreu um grande aumento no número de vagas durante a década de 1990 e início da década passada no âmbito das IES privadas, sem que isso gerasse uma alteração significativa no número de alunos negros matriculados no ensino superior. Não somos contrários ao aumento da oferta de vagas no ensino público, vez que apenas 14% (quatorze por cento) dos jovens brasileiros, entre 18 e 24 anos, estão na universidade, um número que é inferior ao da média da América Latina, de 32% (trinta e dois por cento), e infinitamente menor do que nos EUA e Europa, que é de 60% (sessenta por cento) a 70% (setenta por cento). Em nosso entendimento, esses indicadores desfavoráveis do Brasil dão uma razão ainda maior da política de cotas raciais, como instrumento de inclusão social dos negros e indígenas.
Outra questão a ser discutida refere-se ao argumento de que a instituição de cotas para indivíduos da raça negra poderá criar uma cultura de segregação racial inexistente no nosso país. Em nosso entendimento, essa justificativa para não instituição do programa de cotas utiliza o medo e o pânico social como sua fundamentação. Ainda que muitos insistam em afirmar o contrário, o Brasil não é uma “democracia racial”, pois o preconceito, de forma explícita ou implícita, faz parte da cultura brasileira há mais de trezentos anos, e isso é uma realidade que não se pode negar. Simplesmente deixar de criar as cotas raciais sob o pretexto de não estabelecer uma cultura de ódio racial é fugir do debate e fazer de conta que o racismo não existe. Ignorar não resolverá o problema do racismo no Brasil.
7. Conclusões
A reconstrução de uma nova sociedade brasileira completamente despida de preconceitos e racismo ainda é um ideal distante para os indígenas e negros do nosso país. Argumentos e justificativas das mais variadas (antropológicas, biológicas, éticas, religiosas, culturais e sociais), e que perduraram por um longo período de tempo, serviram para explicar a ascendência dos brancos em face dos negros, o que demandará um grande esforço para alterar esse paradigma para o futuro. Por isso, em nosso entendimento, as cotas raciais exercerão um estratégico papel nessa mudança de rumos, mas, para que elas se tornem uma realidade, necessário será o reconhecimento de sua constitucionalidade e da não violação do princípio da igualdade no seu sentido material.
E para que esse planejamento se converta numa realidade, os setores da sociedade civil defensores dos direitos dos negros e indígenas, assim como os intelectuais desse país precisam se articular de maneira organizada e objetiva, com a participação maciça dos indivíduos eventualmente atingidos pelos programas de cotas, criando mecanismos de difusão e esclarecimento sobre os benefícios deles.
Finalmente, para concluir, gostaríamos de dizer claramente que não somos favoráveis a qualquer tipo de discriminação e nem estamos defendendo o conflito racial. O fundamental a ser feito é promover um amplo diálogo racial, e neste ponto citamos novamente o pensamento de Paulo Freire, de que para que ocorra uma verdadeira democracia social, mister se faz a participação dos atores sociais envolvidos, e que esses realmente resolvam a questão do preconceito, sem argumentos fundamentados no medo ou na hipocrisia. Fingir que não existe o problema é uma violência muito maior do que qualquer discussão acalorada pode gerar. Como também disse Freire[21]: “A prática preconceituosa de raça, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia”. Por isso, defendemos que o racismo somente pode ser combatido se o Estado reconhecer a existência das raças, e realizar um amplo debate étnico-racial.
Doutor em Educação pela Universidad de la Empresa de Montevidéu – Uruguai; Mestre em Direito das Relações Sociais (subárea de Direito Penal) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor Efetivo da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia.
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