Resumo: O objetivo do presente trabalho é analisar a aplicação da teoria da vulnerabilidade no Brasil, como forma de remodelar a ideia de culpabilidade prevista no artigo 59 do Código Penal. Analisamos a ideia geral do artigo 59, a teoria de Zaffaroni sobre a vulnerabilidade e apresentamos a aplicação dela no Brasil, com o intuito de salvaguardar o princípio da isonomia. O estudo conclui que a sociedade brasileira é desigual e apresenta o direito penal apresenta um aspecto seletivo e que a aplicação da teoria da vulnerabilidade é essencial para o nosso ordenamento jurídico, a fim zelar pelas regras prescritas em nossa Carta Magna e resguardar o Estado Democrático de Direito.[1]
Palavras-chave: Seletividade. Culpabilidade. Vulnerabilidade.
Résumé: L'objectif de cette étude est d'analyser l'application de la théorie de la vulnérabilité au Brésil comme un moyen de remodeler l'idée de culpabilité en vertu de l'article 59 du Code pénal. Nous analysons l'idée générale de l'article 59, le Zaffaroni de théorie sur la vulnérabilité et présenter la demande de celui-ci au Brésil, afin de préserver le principe d'égalité. L'étude conclut que la société brésilienne est inégale et présente l'aspect du droit pénal présente une sélection choisie et que l'application de la théorie de la vulnérabilité est essentielle à notre système juridique, pour s'assurer que les règles prévues dans notre Constitution et de sauvegarder la règle démocratique de droit.
Mots-clés: Sélectivité. Culpabilité. Vulnerabilité.
Sumário: 1. Introdução. 2. A ideia do artigo 59 do Código Penal: síntese histórica e características. 3. Vulnerabilidade: reflexões sobre a teoria de Zaffaroni. 4. A teoria da vulnerabilidade como pressuposto da culpabilidade no direito penal brasileiro. 5. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A concepção vulnerabilidade proposta por Zaffaroni para o sistema penal envolve a adoção de uma linha de pensamento calcada efetivamente no principio da isonomia. Ela busca a igualdade substancial entre os cidadãos, ante a característica marcante da seletividade em nosso sistema punitivo.
Os que detém poder econômico e praticam crimes contra a ordem econômica não podem ser reprovados da mesma forma que aqueles que estão numa situação marginal, ante à deficiência estatal em relação à propagação dos direitos fundamentais.
Desta forma, deve o julgador deve balizar a reprovabilidade da conduta praticada aliada à ideia de vulnerabilidade do agente em relação ao sistema punitivo.
A partir do momento em que essa tarefa não é realizada, tal fato para o ordenamento jurídico é preocupante, pois implica na criação de um estereótipo na sociedade, onde os desvalidos são tachados como verdadeiros criminosos, o que faz excluir mais ainda do seio social, o que não ocorre com os que praticam os ditos crimes do colarinho branco.
O procedimento metodológico adotado partiu de uma revisão teórica sobre a matéria, atentando para a obra de Zaffaroni, seguida de uma abordagem empírica sobre a realidade no direito brasileiro.
Nesse sentido, a justificativa para o tema funda-se na contradição em nosso ordenamento jurídico, na medida em que a culpabilidade do agente é medida tão somente analisando-se a prática do injusto, não levando em consideração o contexto no qual o acusado está inserido dentro da sociedade e que o levou a prática do crime.
Portanto, o objetivo deste trabalho de conclusão de curso é apresentar uma provável solução para a temática, expondo as ideias e sobre a encampação da teoria da vulnerabilidade que deve ser apreciada quando do momento da dosagem da pena, no artigo 59 do Código Penal.
Com efeito, discorremos no primeiro capítulo sobre a noção do artigo 59 do Código Penal, detalhando todas as suas circunstâncias, seguindo de uma síntese sobre a evolução histórica a respeito da aplicação da pena.
Já no segundo capítulo, por sua vez, abordamos a teoria da vulnerabilidade de Zaffaroni, destacando seus aspectos fundamentais, destacando a diferenciação com a tese da co-culpabilidade e a seletividade do direito penal.
E, por fim, no terceiro capítulo contextualizamos as ideias de Zaffaroni com a realidade brasileira, destacando a necessidade de sua implementação em nosso ordenamento jurídico.
2. A IDEIA DO ARTIGO 59 DO CÓDIGO PENAL: SÍNTESE HISTÓRICA E CARACTERÍSTICAS
O Brasil adotou para a fixação de penas o método de Nelson Hungria, como podemos observar no artigo 68 do Código Penal (CP), o qual estabelece que o juiz, no momento da dosimetria da pena, pautar-se-á ao critério estabelecido no artigo 59 do diploma em apreço, seguido da ponderação das circunstâncias atenuantes e agravantes e, ao fim, da análise das causas de aumento ou diminuição.
Nesta esteira de pensamento, inobstante as relevantes circunstâncias legais e as causas de diminuição ou aumento que são, digamos, em tese, objetivas, pois são dispostas em lei, deixando apenas ao alvitre do juiz a fixação do quantum, sem olvidar o caráter importante que desenvolvem e o alicerce que demonstram para o magistrado no momento da fixação da pena, as circunstâncias judiciais presentes no artigo 59 do CP são elementos que merecem mais enfoque, por deixar margem para a discricionariedade do julgador, notadamente o aspecto da culpabilidade.
A priori, faz-se necessário a realização de um escorço histórico sobre a evolução das ideias penais relativas à aplicação da pena, na medida em que diversas mutações ocorreram a cada estágio de desenvolvimento humano e social.
No período medieval, a sanção penal era consubstanciada no arbítrio judicial, proposto por exigências políticas da tirania. Nessa linha, tinha-se que a pena era dotada de um caráter eminentemente retribucionista (BITENCOURT, 2011, p. 661).
A reação a esse arbítrio judicial foi com a proposição da pena fixa, representando o “mal justo” na exata medida do “mal injusto” perpetrado pelo infrator, como bem afirma Bitencourt (2011, p. 661).
Essa tentativa não causou impacto nesse período, possuindo a pena um caráter essencialmente retributivo, sem esquecer a total liberdade que tinha os juízes para aplicá-las.
A reação só veio um pouco mais tarde com a propagação dos ideais iluministas, movimento que foi liderado por Rosseau, Montesquieu, entre outros, contudo o expoente foi Cesare Beccaria.
Esclarecedora é a lição de Gomes et al ( 2009, p. 76):
“O Iluminismo apareceu como reação contra o Direito e a jurisprudência do “Ancien Régime” vigentes até finais do século XVIII, bem como contra um sistema cujas leis correspondiam à única ideia da prevenção geral ou intimidação e tinha o delinqüente (o escolhido) como “exemplo” para os demais. Leis vagas e atrozes, que eram aplicadas sob a égide de um processo penal arbitrário, secreto, inquisitorial, baseado na confissão e no tormento”.
A ideia iluminista assentou-se, segundo GOMES (p. 2):
“a-na prioridade do indivíduo perante o Estado; b- na proclamação dos Direitos Naturais que o Estado deve reconhecer e proteger; c- na consagração da razão humana. Desse modo, levantou-se uma forte oposição ao Direito anterior, isto é, à arbitrariedade da justiça criminal (…).”
Destarte, temos que a proteção dos direitos de primeira geração em face do poder estatal que tudo podia, a abolição das penas de morte e de tortura, com a necessidade de se conceder uma finalidade às penas, seguidas do afastamento do Direito Penal da Igreja e da Moral, são ideias fundamentais do Iluminismo Jurídico (FRAGOSO, 2004, p. 49).
Na escola Iluminista, relativamente à dosimetria das penas, ao juiz não era sequer admitido que interpretasse a lei. Seu papel centrava-se apenas na aplicação em todos os seus termos, o que ensejou na criação de um sistema de penas extremamente rigoroso (BITENCOURT, 2011, p. 661).
Entretanto, considerando que a “indeterminação absoluta” não era conveniente, bem assim que a “absoluta determinação” também não o era, na medida em que aquela deixava à disposição do julgador, enquanto que esta impede também o ajustamento da pena ao fato praticado em concreto violando, assim, direitos fundamentais do indivíduo (máxime do iluminismo), o sistema iluminista evoluiu e deu lugar para a indeterminação relativa, a qual previa o estabelecimento de patamares mínimo e máximo, que estaria o juiz adstrito (BITENCOURT, 2011, p. 661-662).
Nesse diapasão, tal concepção foi considerada o marco para as modernas legislações, pois o julgador deveria estabelecer a pena de maneira fundamentada, dentro dos limites propostos, ficando conhecida hodiernamente como individualização da pena (BITENCOURT, 2011, p. 662).
A individualização da pena ocorre em três etapas, conforme assinala Bitencourt (2011, p. 662):
“Individualização legislativa – processo através do qual são selecionados os fatos puníveis e cominadas as sanções respectivas, estabelecendo seus limites e critérios de fixação da pena; individualização judicial – elaborada pelo juiz na sentença, é a atividade que concretiza a individualização legislativa que cominou abstratamente as sanções penais, e, finalmente, individualização executória, que ocorre no momento mais dramático da sanção criminal, que é o do seu cumprimento”.
Feito o apanhado histórico em torno da evolução da dosimetria das penas, em apertada síntese, mister agora é aprofundar-se nas nuanças do artigo 59 do CP.
O juiz, observando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do crime, seguido do comportamento da vítima, estabelecerá as penas aplicáveis dentre as cominadas, seguida da quantidade, dentro dos limites previstos, o regime inicial de cumprimento, bem assim se a pena aplicada é cabível de substituição por outra espécie, desde que previsto em lei, tudo conforme o necessário para a reprovação e prevenção do crime.
Sobre o primeiro aspecto, a culpabilidade, temos que possui dois conceitos: um enquanto fundamento da pena e outro quando limite desta. A primeira é um dos elementos do crime, ao passo que a segunda refere-se ao balizamento da pena a ser aplicada. Assim, está ligada a ideia de reprovabilidade.
Reprovabilidade refere-se à ideia de censurabilidade, relacionada ao crime praticado em sua concretude. Analisa-se a maior ou menor exigibilidade de outra conduta. Nela, é considerada a intensidade do dolo com o qual o agente agiu, a fim de avaliar a censura (BITENCOURT, 2011, p. 664).
Os antecedentes, enquanto circunstância, diz respeito aos fatos pretéritos praticados pelo agente. Discute-se na doutrina sobre o que caracteriza um mau antecedente. Parte dela destaca que inquérito e ações penais em curso podem ser considerados como maus antecedentes, contudo, essa visão revela-se ultrapassada, diante do novo contexto em que o direito penal se encontra, marcado, sobretudo, pelos ideais garantistas. Assim, por maus antecedentes só podemos considerar as condenações criminais, transitadas em julgado, não abrangidas pela reincidência, tudo na linha do princípio da presunção de inocência.
O aspecto da conduta social, por sua vez, procura verificar a relação que o agente infrator tem com a sociedade. Na prática, pode-se dizer que essa circunstância é difícil de ser analisada, pois na maioria das vezes não há elementos nos autos capazes de aferi-la.
A personalidade do agente, no mais, consiste na apreciação da índole do acusado. Assim como a conduta social, é de difícil aferição na prática forense, pois por muitas vezes nos autos não existem elementos capazes de aferi-la, sendo que ela apenas demonstra-se, ainda que incipiente, quando do interrogatório do réu. Segundo Bitencourt (2011, p. 666), as infrações penais praticadas pelo réu quando de menoridade idade não podem ser consideradas como maus antecedentes, contudo servem de embase para aferição da personalidade, contudo ressalva que não são fundamentais na avaliação.
Os motivos que levaram à prática do crime, como aduz Bitencourt (2011, p. 667), constituem a fonte propulsora da vontade criminosa. São os elementos de ordem subjetiva que desencadearam a prática de um crime, que são buscados não pelas convicções morais do juiz, mas de acordo com as normas éticas e sociais, como explica Almeida (2002, p. 83)
Bitencourt, ainda, sobre o tema destaca (1980, apud BITENCOURT, 2011, p. 667)[2]:
“os motivos determinantes da ação constituem toda a soma dos fatores que integram a personalidade humana e são suscitados por uma representação cuja ideomotricidade tem o poder de fazer convergir, para um só direção dinâmica, todas as nossas forças psíquicas.”
As circunstâncias e conseqüências do crime tratam-se do modus operandi e dos danos causados com a prática da infração penal, respectivamente. Para aquela se leva em consideração todo o contexto em que o crime ocorreu, a maneira como se deu a ação do agente que praticou a conduta delitiva, ao passo que este se relaciona com os danos eventualmente provocados pela conduta criminosa. Contudo, é de se frisar que as conseqüências próprias do crime em si não devem ser valoradas, pois elas são inerentes à prática do crime.
O comportamento da vítima, como última circunstância judicial, é bastante interessante. Nela, busca analisar se a vítima contribuiu, ainda que por culpa, para a realização do injusto penal. A título de ilustração, trazemos à baila o exemplo da vítima que acabara de receber uma vultosa quantia em dinheiro no banco e que, ao sair da agência, diz em voz alta na rua que recebera uma grande quantia e a expõe, sendo assaltada em seguida. Ora, neste caso, percebe-se que a conduta da vítima contribuiu de certo modo a prática delituosa, já que instigou a culpabilidade do autor do crime.
3. VULNERABILIDADE: REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DE ZAFFARONI
Apreciada a ideia geral do artigo 59 do CP, resta-nos estudarmos a teoria da vulnerabilidade proposta pelo jurista argentino Eugénio Raul Zaffaroni. Ela busca a aplicação de um fator de redução na culpabilidade nos crimes cometidos por pessoas que têm maiores chances de se submeter à esfera de vigilância do direito penal (SANTOS, 2011).
Antes de destacar o assunto, mister diferenciarmos co-culpabilidade de vulnerabilidade. Aquela imputa à sociedade uma parcela de responsabilidade pela ocorrência de práticas delitivas, na medida em que liga a pobreza à ideia de criminalização, enquanto esta procura visualizar o contexto em que o crime ocorre, a fim de adequar a pena às condições pessoais do agente (SANTOS, 2011).
Entretanto, a tese da co-culpabilidade partia de falsos pressupostos, pois ela permanecia vinculada à ideia de que a criminalização é efeito da pobreza; e subestimava a seletividade criminalizante, o que pressuporia aceitar o funcionamento igualitário e até natural do sistema penal, fato este que fez com que Zaffaroni propusesse a ideia de vulnerabilidade, pautada na ideia de seletividade do sistema penal, como afirma Carvalho (2004, p. 85).
Feita esta consideração, prima facie, é sabido que o direito penal é seletivo. A sua “hipótese de incidência”, na maioria das vezes, reduz-se àqueles de classes sociais desfavorecidas. Desta forma, podemos dizer que a sociedade é estratificada, ante ao grande contraste social existente.
Assim, os delinqüentes apresentam-se na figura dos desvalidos, o que gera um estereótipo e proporciona a criação de uma imagem pública negativa pelo fato de os crimes serem apenas cometidos pelos que estão à margem da sociedade, o que torna o sistema ineficaz em relação, por exemplo, aos crimes do colarinho branco, gerando uma epidemia, que alcança tão somente aqueles que são vulneráveis ao poder punitivo (ZAFFARONI, ALAGIA e SLOKAR, 2002, p. 9-10).
A seleção no direito penal ocorre no momento em que a perseguição criminal beneficia aqueles que têm condições de dirigir e influenciar o poder, desamparando os que estão em situações diversas (GOMES).
Ocorre que, todavia, essa visão calcada sobre a análise intrínseca do autor do crime nunca foi visualizada pelos penalistas. Zaffaroni (2002, p 651) destaca que a culpabilidade é dividida em duas ideias básicas: uma primeira ressaltando a ideia da autodeterminação, sendo a pena uma mera retribuição; e a segunda destacando a concepção da perigosidade do agente, onde a pena correspondia a uma razão do Estado (defesa social).
As duas visões apresentadas nunca se coadunaram com a ética mínima para o exercício do poder e promovem a vitimização de inocentes, na medida em que a seletividade no sistema penal é inevitável. A tese de um vínculo personalizado entre o injusto e o agente só pode existir se tomarmos um raciocínio na linha de que exista um estado de direito perfeito, o que é intangível, já que a ideia de autodeterminação apresenta um forte cunho ético, pelo qual o Estado deve utilizá-lo com o fito de reprovar de maneira personalizada os selecionados pelo poder punitivo (ZAFFARONI, ALAGIA e SLOKAR, p. 652-653).
Nessa linha, considerando que o poder punitivo sempre conservará seu caráter irracional decorrente da sua estrutura, a culpabilidade não pode ser entendida como uma censura que legitima o poder punitivo, mas como um limite, tendo em vista a sua irracionalidade. Desta forma, como um meio para compensar este fator, tem-se que a culpa enquanto responsabilidade pessoal do agente deve ser mitigada e apreciada sob o ponto de vista ético, passando ele a ser um conceito que limita a reprovação, pelo fato de a seletividade estar presente no direito penal (ZAFFARONI, ALAGIA e SLOKAR, p. 653).
Assim, a culpabilidade deve levar em consideração os dados da seletividade e adequar a reprovação de acordo com a vulnerabilidade do agente, a fim de atender a esta peculiaridade (ZAFFARONI, ALAGIA e SLOKAR, p. 654), a qual é advinda da parca prestação estatal em relação ao desenvolvimento social.
Inobstante ser dever do Estado a adoção de políticas sociais para desenvolver a sociedade, seria um absurdo pensar que a salvaguarda dos direitos sociais sobrestaria as causas dos crimes, uma vez que a criminalização dos carentes não altera a imensidão de crimes cometidos pelos que destoam de poder econômico e que se sobressaem impunes (ZAFFARONI, ALAGIA e SLOKAR, 2002, P. 11).
Desta forma, sob o prisma do princípio da igualdade, pelo qual os desiguais devem ser tratados de maneira desigual, na medida de suas desigualdades, o sistema penal deve levar em consideração o contexto em que se deu a prática delitiva, a fim de promover uma verdadeira individualização da pena.
Sobre este aspecto, esclarece CALIXTO (2010) que:
“O desnível estrutural e acidental de certos grupos da população gerados pelos vícios da comunicação tem como responsável imediato o próprio Estado e, justamente por isso que ele, por via da teoria da vulnerabilidade, deve estabelecer tratamentos diferenciadores, ou seja, deve tratar de forma desigual in bonan partem pela lei, desigualdade formal, a fim de que se atinja, efetivamente, a igualdade real na dialética texto-norma e conduta-fato punível.”
Nesse contexto, Zaffaroni (2002, p. 654) aponta que a culpabilidade deve pautar-se pelos seguintes conceitos:
“(a) o vínculo entre o injusto e o autor se estabelece levando em conta a forma em que ocorre a perigosidade do sistema penal, que pode ser definida como a maior ou menor probabilidade de criminalização secundária que recai sobre uma pessoa. (b) O grau de perigosidade do sistema penal para cada pessoa está dado, em princípio, pelos componentes do estado de vulnerabilidade desta para o sistema. (c) O estado de vulnerabilidade se integra com os dados que formam seu status social, classe, colocação laboral ou profissional, renda, estereótipo, que se aplica, ou seja, por sua posição dentro da escala social. (d) Não obstante, no geral a relação entre poder e vulnerabilidade ao poder punitivo é inversa, pois que o poder opera como garantia de cobertura frente ao sistema penal. Assim, é possível afirmar em geral que entre as pessoas de maiores rendas e mais próximas ao poder, o risco de criminalização é escasso (baixo estado de vulnerabilidade ou alta cobertura) e inversamente, entre os de menores rendas e mais longe do poder, o risco é considerável (alto estado de vulnerabilidade, baixa ou nula cobertura). Não obstante, alguns dos primeiros são selecionados; e entre os últimos, se seleciona com muita maior frequência, sempre se tratando de uma ínfima minoria”.[3]
Desta forma, temos que os que se encontram num maior estado de vulnerabilidade são mais propícios à prática delitiva em face dos que não estão, razão pela qual, sobretudo, alinhado a uma ótica garantista e de direito penal mínimo, urge a necessidade de adequar a culpabilidade a particularidade de cada caso concreto fundada no estudo do agente e das circunstâncias que o rodeiam.
Nesse diapasão, ao admitirmos a vulnerabilidade como fator de redução da culpabilidade, tem-se que quanto mais vulnerável seja o indivíduo em razão da elisão estatal, menor será a sua culpabilidade.
Assim, “o juízo de reprovabilidade na culpabilidade, do Estado em desfavor do indivíduo, seria substituído pelo juízo da vulnerabilidade, do indivíduo em desfavor do Estado”, como aponta Calixto (2010).
Em síntese, Zaffaroni (2002, p. 656), com absoluta maestria conclui que:
“A culpabilidade é o juízo necessário para ligar o injusto de forma personalizada ao seu autor e, no caso, atuar como o principal indicador do máximo da magnitude do poder punitivo, que pode ser exercida sobre este. Este juiz resulta de uma síntese juízo de reprovação com base na área de auto-determinação do indivíduo no momento do evento (feita em conformidade com os elementos formais fornecidos pela ética tradicional) com o juízo de reprovação pelo esforço do agente para alcançar a situação de vulnerabilidade em que o sistema tenha materializado a sua perigosidade, descontando do mesmo o correspondente a seu mero estado de vulnerabilidade.”[4]
4. A TEORIA DA VULNERABILIDADE COMO PRESSUPOSTO DA CULPABILIDADE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
Feitas as considerações sobre noções da teoria da vulnerabilidade, passando pelas ideias de Zaffaroni e visto o artigo 59 do CP, analisaremos agora adoção da teoria da vulnerabilidade em nosso ordenamento jurídico.
O Direito Penal brasileiro deve levar em consideração a teoria da vulnerabilidade no momento da fixação da pena, pois o Brasil é um Estado em que a sociedade é manifestamente estratificada.
A desigualdade no Brasil não é diferente da que encontramos em outros países. O que ocorre é que ela é mais visualizada nos países subdesenvolvidos, como em nosso caso. Dados da ONU apontam que o Brasil, em 2005, era a 8ª nação mais desigual do mundo e o índice de Gini, balizador da distribuição de renda, em 2009, ficou em 0,52, mediano pois quanto mais próximo de um maior a desigualdade (CAMARGO).
Inicialmente, considerando que a teoria da vulnerabilidade engloba o principio da co-culpabilidade, Zaffaroni aponta a sua existência a partir da leitura do artigo 60, caput, §1º, do CP, o qual faculta ao juiz a possibilidade de aumentar a pena de multa quando ela mostra-se inócua em relação à situação econômica do réu. (CARVALHO, 2004).
Ora, considerando a disposição do Código Penal em relação à pena de multa, a doutrina entende ser perfeitamente aplicável o princípio da co-culpabilidade. Nesse sentido, considerando como dito alhures que a vulnerabilidade o engloba, a defesa desta tese é perfeitamente viável no Brasil.
Nesse diapasão, temos também o artigo 14, I, da Lei 9.605/90, a qual dispõe sobre as infrações administrativas e os crimes ambientais, onde prevê a possibilidade de uma redução de pena ao agente que possui baixo grau de instrução. (CARVALHO, 2004).
Ainda que ela apresente-se como circunstância atenuante, a partir da sua disposição legislativa, percebe-se que a intenção do nosso sistema penal é analisar os fatores que rodeiam o agente no momento da prática delitiva, fato este que reforça ainda mais a aplicação da teoria da vulnerabilidade.
Nesse contexto, considerando a elevação do momento garantista no direito penal, notadamente no Brasil, tem-se que análise de culpabilidade sob o espectro da vulnerabilidade do agente é um tema que deve ser indissociável do estudo da culpabilidade, em especial no sistema penal brasileiro.
Ocorre que, ainda que falando sobre a co-culpabilidade, a jurisprudência brasileira não recepciona a aplicação deste instituto, alegando que as desigualdades não têm o condão de justificar a prática de condutas ilícitas, fato que se pode encampar também com relação à teoria da vulnerabilidade, eis que está engloba aquela.
Entretanto, a aplicação da teoria da vulnerabilidade não busca a impunidade, nem serve como um manto e meio para justificar a prática de crimes. Ela garante a aplicação do princípio da igualdade garantido constitucionalmente em nossa Carta Magna.
É injusto aferir a reprovabilidade de um fato sem atentar para as condições que circundam o autor do fato ilícito. O desfavorecido, em boa parte dos casos, pratica crimes para “saldar” aquele seu desejo de consumir um determinado bem e auferir dos eventuais “prazeres” que ele lhe proporciona, a fim de viver o estilo de vida capitalista. Ele os faz pois o Estado se mostrou inoperante e não lhe garantiu o pleno acesso aos direitos sociais.
Desde o rompimento com o Estado absolutista, passando para Liberal, chegando ao Bem-Estar social e hoje ao democrático e de Direito, o Estado tem o deve-ser de cumprir o pacto social que firmou com os seus cidadãos.
Os que possuem condições sociais benevolentes, geralmente os que ocupam posição de destaque na sociedade, por sua vez, não estão dispostos à prática delitiva dos crimes corriqueiros (roubo, furto…), pois não se encontram em situação de risco. Eles, contudo, destoam do poder econômico e praticam crimes ininteligíveis por aqueles que pertencem à parcela carente da população: os crimes do colarinho branco.
Desta forma, o que busca a teoria da vulnerabilidade é uma nova visão da circunstância da culpabilidade prevista no artigo 59 do CP, a fim de garantir a efetiva igualdade no sistema punitivo brasileiro, com a aferição da reprovabilidade baseada na exposição ao risco que cada agente está, ou seja, aquele que possui de mais prestígio e constatada a pratica de um crime, deve merecer uma reprovação maior pelo seu ato, já que não se encontrava na mesma situação que um desfavorecido, tudo adequado ao caso concreto.
Nesse sentido, podemos citar a lição de LEMOS (2010):
“A culpabilidade por vulnerabilidade surge como medida de redução do poder punitivo penal, servindo como nível máximo da violência aceitável. Trata-se de uma teoria para conter as sanções, devendo sempre reduzir o limite da clássica culpabilidade pelo injusto, ou no máximo coincidir com o mesmo.
Bem por isso, é preciso esclarecer, dada a visão redutora do direito penal, esta culpabilidade jamais será mais rigorosa do que a aplicação clássica, não sendo verdadeiro o receio de que os detentores do poder serão mais visados pelo direito penal. Diante do que se expõe, a tese não busca ignorar características sociais e de caráter do autor, mas em verdade utilizá-las de forma contrasseletiva, a justificar uma menor incidência do poder repressivo sobre os menos privilegiados, ou seja, sobre aqueles que são mais visados pelo sistema”.
Por fim, observamos que a adoção da teoria da vulnerabilidade no Brasil como fator de redução da culpabilidade seria essencial ajustar o direito penal à realidade como um todo, como também para retirar um pouco o estigma do direito penal elitista, tudo para garantir a igualdade material em nosso sistema punitivo.
Pode-se, portanto, concluir que a nossa sociedade é estratificada e por este fato o direito penal atinge tão somente os que estão marginalizados.
Nesse sentido, ante a este descompasso, a teoria da vulnerabilidade vem como uma forma de promover uma igualdade entre os cidadãos quando da ocorrência da prática delitiva.
Citamos no decorrer do trabalho que a jurisprudência em nossos tribunais infelizmente não aplica este instituto, sob a desenganada alegação de que a pobreza não justifica a prática de crimes.
Com efeito, criticamos este entendimento e apontamos como meio para promover a isonomia a aplicação da teoria proposta por Zaffaroni, pois se percebe que ela é de bom alvitre em nosso sistema, sem olvidar que ele prevê implicitamente a sua aplicação, como demonstramos.
Nesse sentido, urge a necessidade premente de um novo enfoque da análise do artigo 59 do CP a fim de amoldá-lo a realidade brasileira, sob pena de violação ao Estado Democrático de Direito.
Para terminar, sugerimos que outros trabalhos científicos sejam realizados nesta área, sobretudo enfatizando a questão da seletividade do nosso sistema penal, destacando o direito penal elitista existente, observando esta ótica sob o ponto de vista do direito comparado, tudo no sentido de reforçar o entendimento doutrinário a respeito desta matéria e de reforçar de que o seu acolhimento no Brasil é especial e necessária.
Especialista em Direito Penal
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