Resumo: Atento aos consectários da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus N 126.292/SP em que se firmou como tese a constitucionalidade da execução provisória de pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória este trabalho desenvolveu a proposta de analisar à luz da Constituição Federal de 1988 e dos limites a que se submete a hermenêutica Constitucional até que ponto a Suprema Corte acertou em sua decisão considerando que houve uma alteração substancial do posicionamento antes adotado. Inicialmente apresenta a previsão constitucional da presunção de inocência esclarecendo que se trata de uma garantia fundamental que protege o direito de liberdade assumindo também status de princípio que norteia o legislador e o responsável por aplicar o Direito. Objetivamente aborda a essência da tese firmada no HC N 126.292/SP transcrevendo alguns dos principais argumentos que alicerçaram a tese vencedora. Em derradeira análise explica que a hermenêutica constitucional como atividade que tem por objeto a interpretação possui limites mínimos que obstaculizam a criação de normas que fogem de uma interpretação possível pelo uso de princípios e métodos de interpretação constitucional. Por fim conclui que o constituinte originário estabeleceu que a presunção de inocência tem um momento para o seu exaurimento que é o trânsito em julgado de sentença penal condenatória cuja ocorrência se dá com o esgotamento das vias recursais disponíveis independentemente de possuírem efeito suspensivo ou não. O método adotado é o descritivo-analítico no qual se descreve uma realidade fática com suas consequências jurídicas e posterior posicionamento crítico.
Sumário: Introdução. 1. Presunção de inocência. 1.1. Significado e previsão constitucional. 1.2. Presunção de inocência como garantia e como princípio. 2. Trnsito em julgado de sentença penal condenatória. 2.1. Conceito. 2.2. Decisão do Supremo Tribunal Federal no habeas corpus n 126.292/São Paulo. 3. Decisão do STF no HC n 126.292/SP à luz dos limites da hermenêutica constitucional. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Em tempos de hipertrofia do Poder Judiciário, cuja atuação vem ofuscando outros órgãos constitucionais, seja pelo desempenho do seu próprio mister, seja pela inércia dos demais poderes, a criação das normas por meio de uma atividade interpretativa da Constituição apresenta-se como uma das ferramentas que o tem notabilizado.
Recentes decisões do Supremo Tribunal Federal têm causado polêmica no mundo jurídico e no diverso deste, sobretudo pela repercussão no corpo social, a exemplo das sobre pesquisas com células-tronco embrionárias[1] e da união estável de pessoas do mesmo sexo e seu reconhecimento como instituto jurídico[2], ambas decididas em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
Decisão igualmente polêmica e de máxima importância, objeto do presente estudo, foi a exarada no Habeas Corpus Nº 126.292/SP, em que, por maioria de votos[3], restou decidido por negar a ordem ali pleiteada e firmar a tese pela possibilidade do cumprimento provisório de pena privativa de liberdade, ou seja, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, invertendo-se o posicionamento que vigia até então no Tribunal, gerando uma mutação constitucional, cujas características serão apresentadas em momento oportuno.
O presente trabalho tem como objetivo, na seção que se segue, uma análise da referida decisão à luz do contido no art. 5º, LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como o significado de presunção de inocência. Mais à frente, o foco restringir-se-á ao conceito de trânsito em julgado de sentença penal condenatória, perpassando pela decisão no Habeas Corpus Nº 126.292/SP. Como última análise, serão abordados os limites da hermêutica constitucional, para que seja possível uma conclusão sobre o (des)acerto do Supremo em dar nova interpretação ao significado de presunção de inocência e o momento do seu exaurimento no processo penal.
1. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
1.1 SIGNIFICADO E PREVISÃO CONSTITUCIONAL
A presunção de inocência, sinonimamente denominada presunção de não culpabilidade, pode ser compreendida como uma situação jurídica prevista abstratamente na Constituição Federal em que um indivíduo, estando na condição de réu, seja presumidamente considerado inocente até que sua culpa esteja formada, momento este, definido pelo constituinte originário, como sendo quando esgotados todos os meios recursais disponíveis. Trata-se de uma garantia fundamental plasmada na Constituição Federal, precisamente no art. 5º, LVII, com a seguinte redação: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
1.2 PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO GARANTIA E COMO PRINCÍPIO
A presunção de inocência apresenta-se como uma garantia fundamental que visa tutelar a liberdade, e que está alinhada à própria acepção de estado democrático de direito, em que vigora o império da lei, e não casuísmos, quando regras são pré-definidas a fim de trazer maior estabilidade na resolução dos conflitos sociais por parte do órgão competente.
Na esclarecedora lição de Marcelo Novelino (2015):
“a presunção de não culpabilidade (ou presunção de inocência), enquanto instrumento de proteção da liberdade, tem por finalidade evitar juízos condenatórios precipitados, protegendo pessoas potencialmente culpáveis contra eventuais excessos das autoridades públicas” (NOVELINO,2015, p. 455).
Atrelados à garantia fundamental em comento estão outros direitos – a exemplo do direito ao devido processo legal, o de ser processado perante autoridade competente, o de não ser condenado com base em provas ilícitas, dentre outros – e garantias – como habeas corpus e mandado de segurança, por exemplo –, igualmente fundamentais, inseridos no art. 5º da Constituição Federal.
A presunção de inocência ora se apresenta como garantia ora como princípio. Quando assume a faceta de princípio, serve de norte para o legislador quando de sua atividade legiferante, bem como ao responsável pela criação da norma jurídica e posterior aplicação ao caso concreto. Como princípio, a presunção de inocência atinge grau de incidência ampla de aplicação, servindo, amiúde, para afastar a aplicação de leis conflitantes com a sua essência.
2 TRÂNSITO EM JULGADO DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA
2.1. CONCEITO
Podemos conceituar como um fato processual que exsurge quando não é mais cabível qualquer recurso no âmbito do processo em que se desenvolveu a ação penal em que houve uma condenação. Tal conceito engloba o trânsito em julgado tanto para acusação quanto para a defesa, que, por vezes, ocorrem em momentos distintos.
Contudo, interessa em maior grau ao presente trabalho o que seria trânsito em julgado de sentença penal condenatória para a defesa, que, conforme o exposto anteriormente, pode ser compreendido quando do esgotamento das vias recursais, seja pelo indeferimento, parcial ou total, de todos os recursos disponíveis, seja pela preclusão temporal[4], ou, ainda, pela preclusão lógica[5].
2.2.DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HABEAS CORPUS Nº 126.292/SÃO PAULO
O Supremo Tribunal Federal tinha consolidado em sua jurisprudência, desde o Habeas Corpus nº 84.078/MG[6], relatado pelo Ministro Eros Grau, que um réu só poderia ser considerado culpado, e, consequentemente, começar o cumprimento da pena sanção, quando esgotados todos os recursos disponíveis, incluídos os recursos excepcionais, quais sejam, o recurso extraordinário, cuja competência para julgamento compete ao próprio STF, e o recurso especial, que tem como destinatário o Superior Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 102, iii, e 105, iii, ambos insculpidos no texto constitucional[7]. Nessa linha, podemos trazer à baila algumas ementas que demonstram o, até então, firme posicionamento do Pretório Excelso:
“HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. DETERMINAÇÃO DE BAIXA IMEDIATA DOS AUTOS E CERTIFICAÇÃO DO TRÂNSITO EM JULGADO DA AÇÃO PENAL. ILEGALIDADE FLAGRANTE. RECURSO EXTRAORDINÁRIO ADMITIDO PENDENTE DE JULGAMENTO. ORDEM CONCEDIDA. DECISÃO DO MAGISTRADO DE PISO QUE JULGOU PREJUDICADO O RECURSO EXTRAORDINÁRIO. NULIDADE. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DESTA CORTE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. […] III – O Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que ofende o princípio da não culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. […]”[8] (grifo nosso).
“EMENTA HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATOS INFRACIONAIS ANÁLOGOS AOS CRIMES DE AMEAÇA E DE LESÃO CORPORAL. CONDENAÇÃO. APLICAÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. CUMPRIMENTO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 691/STF. 1. Em casos teratológicos e excepcionais, como na hipótese, viável a superação do óbice da Súmula 691 desta Suprema Corte. Precedentes. 2. Alteração da jurisprudência desta Suprema Corte a partir do julgamento do HC 84.078/MG (Pleno, Rel. Min. Eros Grau, por maioria, j. 05.02.2009, Dje-035, de 25.02.2010), no sentido de que “ofende o princípio da não-culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no art. 312 do CPP”. 3. O comando de cumprimento imediato da medida socioeducativa de internação, exarado em antecipação de tutela concedida em agravo de instrumento manejado contra a decisão da magistrada singular de soltura da paciente, encontra óbice, ausente motivação válida, no princípio da não culpabilidade, uma vez inocorrente o trânsito em julgado do acórdão em que imposta. 4. Ordem concedida.”[9] (grifo nosso).
Entretanto, no Habeas Corpus Nº 126.292/SP, que teve como relator o Ministro Teori Zavascki, o Supremo Tribunal Federal, em decisão não unânime, altera o entendimento dominante para dar nova interpretação à concepção de presunção de inocência, permitindo, assim, o cumprimento de pena após acórdão condenatório em sede de apelação. Vejamos a ementa do referido julgado:
CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado[10]. (grifo nosso).
Entre os argumentos esposados pelos ministros que entenderam possível o cumprimento provisório de pena, podemos citar: (i) o princípio da não culpabilidade exaure-se após confirmação de sentença penal condenatória em 2º grau, já que os recursos cabíveis desta ao STF e STJ ficam restritas à matéria de direito, não havendo revolvimento de provas (Ministro Teori Zavascki – relator); (ii) o princípio da presunção de inocência não é absoluto, de modo que, cotejando com outros princípios constitucionais, não é possível concluir que só se admite a execução de pena privativa de liberdade após o esgotamento das instâncias extraordinárias (Ministro Edson Fachin); (iii) o esgotamento de todos os recursos disponíveis em face de sentença penal condenatória não é pressuposto para o cumprimento de pena privativa de liberdade; é preciso uma nova interpretação do que venha a ser presunção de inocência (Ministro Luís Roberto Barroso); (iv) a presunção de inocência cessa com a comprovação da culpa, que ocorre, no máximo, em segundo grau de jurisdição (Ministro Luiz Fux).
A nova interpretação atribuída pelo Supremo Tribunal Federal ao princípio da presunção de inocência configura verdadeira mutação constitucional, que ocorre quando a interpretação de um postulado é alterada no afã de alinhar o conteúdo com as transformações políticas, sociais e econômicas ocorridas na sociedade (NOVELINO, 2015, p.149).
Fatores como a sensação de impunidade, os altos índices de ocorrência de prescrição nos processos penais e o excessivo número de recursos foram determinantes para a mudança da jurisprudência – overruling[11].
3. DECISÃO DO STF NO HC Nº 126.292/SP À LUZ DOS LIMITES DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
Podemos conceituar hermenêutica como sendo a atividade intelectual que tem como objeto a interpretação de textos. Nessa linha, hermenêutica constitucional, como espécie que é, pode ser compreendida como a técnica de interpretar o texto constitucional; atribuir um sentido ao conjunto de palavras inseridas na constituição.
Na lição de Pedro Lenza: “o hermeneuta, dessa forma, levando em consideração a história, as ideologias, as realidades sociais, econômicas e políticas do Estado, definirá o verdadeiro significado do texto constitucional” (2015, p. 167)[12].
O hermeneuta se vale de métodos e princípios quando desenvolve a interpretação, a fim de criar a melhor norma a partir do texto, a que mais se aproxime da concepção de justo. Contudo, a busca pelo que se entende como justo esbarra em limites mínimos, os quais vinculam o intérprete. Quais seriam esses limites? Podemos mencionar normas de interpretação única – o que não significa que são normas extraídas de textos os quais prescindem de interpretação. A norma é fruto da interpretação. O brocardo “in claris cessat interpretatio” já não subsiste com a virtude de outrora, estando superado pela doutrina que advoga a necessidade de interpretação de qualquer texto de lei, por mais claro que aparente ser.
Outro limite à técnica da interpretação é o significado das palavras, e aqui não se está fazendo alusão ao uso de uma interpretação literal, mas de evitar uma interpretação absurda. À guisa de exemplo, não se pode querer incluir, por meio de uma atividade interpretativa, que uma aeronave configura um veículo terrestre para que se encaixe numa regra legal que prevê situações taxativas para veículos terrestres; seria algo ilógico.
Uma norma constitucional pode, aparentemente, colidir com uma outra norma de mesma estatura, e é nesse ponto que realça a importância dos princípios e métodos ligados à hermenêutica, pois permitem soluções que, prima facie, parecem inconcebíveis. Para tanto, existe a técnica da ponderação, a ser instrumentalizada pelo intérprete.
Foge à finalidade do presente trabalho aprofundar o estudo quanto aos princípios e métodos de interpretação constitucional, senão uma abordagem necessária para refletir-se sobre o (des)acerto do Supremo Tribunal Federal ao realizar mutação constitucional sobre o princípio da presunção de inocência.
O limite a que o intérprete fica jungido quando realiza a criação da norma pode ser metaforizado a uma moldura, a qual não pode ser transpassada, sob a consequência de convolar-se numa violência jurídica, um abuso.
Feitas tais considerações, cumpre analisar até que ponto caminhou bem o STF ao dar nova interpretação ao princípio-garantia da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da CRFB, cujo teor transcrevemos a seguir novamente: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Percebamos que o texto constitucional é bastante categórico ao impor o momento em que cessa a presunção de inocência, qual seja, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Daí pergunta-se: e quando ocorre o trânsito em julgado? Com o esgotamento das vias recursais disponíveis, sejam as ordinárias ou as extraordinárias.
Os argumentos exarados no bojo do Habeas Corpus Nº 126.292/SP, por parte dos ministros que entenderam constitucional a execução provisória da pena privativa de liberdade (pena sanção), no sentido de que os recursos extraordinários não autorizam o revolvimento de matéria fático-probatória, além do fato de não possuírem efeito suspensivo, e, que, portanto, não seriam óbice ao cumprimento provisório, apresentam-se como o inverso da interpretação possível do texto idealizado pelo constituinte originário no inciso LVII do art. 5º da Constituição.
A mutação constitucional, concretizada como nova interpretação fundamentada em nova realidade política, social e econômica não pode ser manejada para negar vigência ao texto constitucional, por entender o intérprete que tal norma não mais se coaduna com o que ele entende como ideal. Conforme o já até aqui repisado, a função interpretativa para a criação da norma jurídica encontra limites mínimos, fundamentais à preservação da divisão de funções entre o Judiciário e o legislativo; não cabendo ao primeiro ignorar comando escrito no texto constitucional por meio de interpretação deturpada.
Como bem esclarece Uadi Lammêgo Bulos (2015, p.441):
“As manipulações constitucionais podem ensejar mudanças informais no sentido, significado e alcance dos preceitos supremos do Estado, sem, todavia, alterarem a gramática constitucional.
Quer dizer, na manipulação constitucional o próprio texto normativo das disposições constitucionais não é substituído por outro – coisa que só o poder constituinte secundário poderá fazê-lo, por meio de revisões ou emendas à constituição.
A manipulação constitucional não é um cancro que vulnera a obra constituinte de primeiro grau. Quando utilizada com equilíbrio e bom senso presta o relevante serviço de atualizar as disposições constitucionais, em face das transformações do fato social cambiante.
Por isso, ela nada tem que ver com legisladores positivos, juízes legisladores ou ativistas judiciais, personagens que não se amoldam à sistemática da Constituição brasileira de 1988, que não admite, nem tolera, desrespeito ao princípio da separação dos poderes (art. 2º)”[13].
Quanto ao limite da mutação constitucional, sustenta o eminente doutrinador:
“A única limitação que poderia existir – mas de natureza subjetiva e, até mesmo, psicológica, seria a consciência do intérprete em não extrapolar a forma plasmada na letra dos preceitos supremos do Estado, mediante interpretações deformadas dos princípios fundamentais que embasam o documento maior.
Assim, estar-se-ia evitando as mutações inconstitucionais, e o limite, neste caso, ficaria por conta da ponderação de intérprete, que, sem transbordar os mecanismos de controle de constitucionalidade, atualizaria a constituição”[14].
Seria possível, por meio de uma técnica de intepretação considerada válida, o Supremo Tribunal Federal realizar mutação constitucional e criar a norma no sentido de que é possível a execução provisória de pena privativa de liberdade? Tomando por base a melhor doutrina, parece-nos que não. O texto constitucional é inequívoco quando define que uma pessoa só pode ser considerada culpável quando do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
O conceito de trânsito em julgado parece não encontrar divergências, concretizando-se quando do esgotamento das vias recursais.
Assim, como compatibilizar a decisão do STF no Habeas Corpus Nº 126.292/SP, com o preceituado no art. 5º, LVII, da Constituição Federal e com os conceitos de agente culpável e de trânsito em julgado? Se o trânsito em julgado se dá quando não mais for cabível recurso, e a Constituição prevê que um indivíduo só pode ser considerado culpável com o trânsito em julgado, então o STF confirmou ser possível que aquele, presumidamente inocente, pelo texto maior da república, possa cumprir provisoriamente pena privativa de liberdade, negando, dessa forma, a própria presunção de inocência idealizada no texto constitucional.
Por mais que os ministros do STF, defensores da possibilidade do cumprimento provisório de pena privativa de liberdade, tenham se esforçado para justificar seus posicionamentos, mormente com base em interpretação sistemática da Constituição, não vislumbramos, com a devida vênia, êxito em tal empreendimento.
A tese de que os recursos extraordinários não possuem efeito suspensivo e, portanto, não impediriam a execução imediata da pena privativa de liberdade após acórdão condenatório em sede de apelação, não merece melhor sorte. Cumpre lembrar que são as leis que devem ser interpretadas à luz da Constituição – o que se convencionou chamar de “filtragem constitucional” – e não o inverso. Nesse sentido, segue o ensinamento de Luís Roberto Barroso:
“Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados”[15].
O art. 637 do CPP[16] tem em sua redação a regra de que o recurso extraordinário não possui efeito suspensivo, previsão esta que foi um dos argumentos que serviram de sustentação para determinar o recente entendimento de que é possível a execução provisória. Entretanto, o citado artigo deve ser cotejado com o inciso LVII, do art.5º, da Constituição Federal, que não dá margem para cumprimento de pena antes do trânsito em julgado. Logo, estamos diante de um conflito entre uma norma constitucional e outra infraconstitucional. Não havendo outra solução que não a prevalência da norma de hierarquia maior, no caso, a Constituição.
CONCLUSÃO
Em arremate a todo o exposto, conclui-se que a atividade do intérprete constitucional, cujo resultado é criar as normas a partir dos preceitos consignados na Constituição, está balizada por limites mínimos que, se transbordados, configura-se em verdadeira violação jurídica, ou mesmo mutação inconstitucional, em caso de nova interpretação atribuída.
Em relação à mutação constitucional, perpetrada no âmago do Habeas Corpus Nº 126.292/SP, parece-nos ter havido uma mutação inconstitucional, haja vista a negação do sentido possível de ser extraído no preceituado pelo constituinte originário no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, que é a presunção de inocência subsistir até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Conquanto haja um sentimento de impotência por parte do Poder Judiciário em aplicar efetivamente a lei penal, considerando as dificuldades impostas pelo sistema normativo constitucional e infraconstitucional, sobretudo pelo excessivo número de recursos e a quase inevitável ocorrência da prescrição nos processos criminais, mormente quando são réus pessoas abastadas, capazes de constituir causídicos de alta qualificação para a utilização de todos os meios recursais possíveis pelo direito posto, estas não podem ser justificativas toleráveis para, por meio de interpretações obtusas, negar vigência a um comando constitucional da mais alta relevância, que se apresenta como genuíno avanço civilizatório na aplicação das penas.
Uma atividade interpretativa utilizada como mero pressuposto formal para fazer prevalecer um entendimento idealizado como justo, em detrimento de um juízo de ponderação fundado no bom senso e nos limites possíveis da atividade interpretativa dos preceitos legais, apresenta-se como algo perigoso, podendo descambar para uma prática indesejada, incontrolável e que vulnera o próprio sistema normativo.
Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera Uniderp Servidor Público
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