Resumo: Este trabalho tem por finalidade primordial tornar vívida a viabilidade de instituição de uma polícia comum no âmbito do MERCOSUL, à semelhança do que já ocorre na União Europeia (Europol). Com efeito, por meio da expansão de determinados crimes para além das fronteiras nacionais, já não se mostra eficaz a metodologia de repressão tradicional das polícias de cada Estado. Urge, isto sim, que se forme uma polícia transnacional, com atuação e com especialidades voltadas para a realidade da América do Sul. As metodologias existentes hoje já se mostraram vencidas há muito tempo, ineficazes até mesmo perante o mero controle dos ilícitos locais de cada país. Não se olvide de que há entre os países que compõem o bloco uma bem intencionada, embora incipiente, cooperação policial. Todavia, essa experiência ainda longe está de alcançar os sucessos que só advirão da formação de uma polícia comum. Dessa arte, discorrer-se-á, em um primeiro momento, acerca dos mecanismos de cooperação já existentes no MERCOSUL, bem como sobre as dificuldades que a sistemática atual acaba por enfrentar perante os delitos transnacionais. Por fim, em um segundo momento, estudar-se-á sobre a viabilidade de implementação de uma polícia comum na América do Sul e, finalmente, quais benefícios adviriam dessa almejada comunhão.
Palavras-chave: Cooperação policial; polícia comum; Europol; crimes transnacionais e MERCOSUL.
Abstract: This work aims to make primary vivid the feasibility of establishing a joint police as part of MERCOSUL as already happens in the European Union (Europol). Indeed, through the expansion of certain crimes across national borders, no longer shows the effective methodology of traditional police repression of each State. It is necessary to creating a transnational police, with acting and with specialties geared to the reality of South America. The methodologies available today were long overdue, ineffective even before the mere control of illegal places of each country. Although there are between countries that make up the block a well-intentioned, though nascent, police cooperation. However, that experience is still far from achieving the success that only bring the formation of a common police. That art, talk will be on a first date, on the existing mechanisms for cooperation in MERCOSUL and on the difficulties that the current systematic ultimately face before the transnational crimes. Finally, in a second time, it will study on the feasibility of implementing a common police in South America and, finally, what benefits that arise desired unification.
Keywords: Police Joint; Common Police; Europol; Transnational Crimes and MERCOSUL.
Sumário: Introdução; 1. Coooperação policial no mercosul; 1.1. Os mecanismos de cooperação policial existentes no âmbito do MERCOSUL; 1.2 Delitos transnacionais versus a sistemática atual; 2. Delitos transnacionais como gênese de uma polícia comum; 2.1 A viabilidade de implementação de uma polícia comum no MERCOSUL; 2.1.1 Novos crimes. Novas técnicas; 2.2 previsões positivas que se evidenciam em torno de uma conjectura uniformizadora; 2.2.1 Crimes ambientais praticados por multinacionais e sua repressão internacional. Hipóteses possíveis; considerações finais; e bibliografia
“A suspeita sempre persegue a consciência culpada; o ladrão vê em cada sombra um policial”. (William Shakespeare)
1. Introdução
Esta pesquisa comporta a temática direcionada francamente ao estudo da viabilidade de elaboração de uma Polícia comum no âmbito do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), já que o momento vivenciado pelo mundo contemporâneo reporta-nos a uma criminalidade transnacional que ultrapassa fronteiras.
Assim, é medida que urge o estudo em torno da possibilidade de se tornar cada vez mais vívida a hipótese de instituição de uma polícia comum mercosulina, à semelhança do que já ocorre com a Europol, na União Europeia.
A difusão, sem precedentes, dos delitos transnacionais estampa que já a longa data não mais servem para os anseios da sociedade moderna as metodologias ineficazes e tradicionais de repressão policial, patentemente obsoletas até mesmo para com o combate dos delitos nacionais, ocorridos nos estreitos limites do espaço interno de cada país.
A necessidade de uma polícia transnacional voltada para a realidade da América do Sul constitui-se em aspiração social que se afina com a realidade contemporânea.
Dessa arte, na primeira parte deste trabalho almeja-se tornar cristalina a sistemática de cooperação policial existente hoje no MERCOSUL, mormente delineando quais seriam aquelas adversidades contraproducentes que essa mesma sistemática vivencia perante o crime organizado internacional. Já na segunda e derradeira parte deste redigido, procurar-se-á verificar se é possível a criação de uma Polícia comum, bem como quais seriam, dessa criação aqui defendida, aqueles benefícios que adviriam dessa nova ordem em proveito do MERCOSUL.
No presente trabalho será verificada a gama de normas mercosulinas existentes sobre a temática de cooperação jurídico-penal e de cooperação policial, para se ter uma noção do que, efetivamente, existe sobre o tema no âmbito do Mercosul.
Será também verificado o que existe em termos de doutrina específica sobre a temática integracionista, mormente a latino-americana, e que possa servir de base para se confirmar ou se infirmar a hipótese deste trabalho.
Por fim, será efetivada a análise da União Europeia no que concerne especificamente à estrutura e finalidade da EUROPOL, suas simetrias e assimetrias com a realidade de cooperação policial existente no âmbito do MERCOSUL e verificação quanto à existência de indícios de que a nossa realidade possa evoluir a um estágio similar.
2. Cooperação policial no Mercosul
A globalização da economia criou uma nova ordem mundial em que os países precisaram-se unir, a fim de adquirir maior poder decisório perante outros blocos. Essa união não pôde deixar de lado, outrossim, questões afetas à segurança pública dos seus nacionais.
Mostra-se patente, outrossim, que da integração, não só a econômica, surge, como de ordinário, o impacto da cultura e dos costumes locais, donde, é claro, percebe-se que as desigualdades constituem-se em um “outro ponto importante […] e causador de crises sistemáticas […]” (ARAÚJO e TYBUSCH, 2007, p. 72).
Foi dessa forma que surgiu, na América do Sul, o MERCOSUL, em 26 de março de 1991, com a assinatura do Tratado de Assunção por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, consolidando-se a partir de 1º de janeiro de 1995, com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto.
Os países que compõem esse conjunto, considerando-se a estapafúrdia onda ascendente de violência urbana e o crescente crime organizado à roda de delitos transnacionais[1], têm desenvolvido mecanismos de atenção especificamente a esse tipo de ilicitude.
No que se refere à cooperação jurídica entre os Estados-partes e Associados do bloco, “A Reunião de Ministros da Justiça do MERCOSUL” (RMJ) é o foro responsável por tratar das políticas comuns a seu respeito.
No que tange aos acordos de cooperação internacional em matéria penal, várias normas do MERCOSUL emanaram da RMJ[2].
Quanto às políticas comuns de segurança pública ou de inteligência entre os Estados-partes e Associados do MERCOSUL, o foro no qual se discutem tais temas é a “Reunião de Ministros do Interior” (RMI). Já com relação à integração policial entre os países, existe também uma considerável normativa emanada da RMI[3].
Esse complexo de normas de cooperação reflete o crescimento das funções dos Estados-membros no que se refere à segurança pública, o que tornou indispensável a emanação de normativas variadas, a fim de se verem protegidos os seus nacionais.
“O desenvolvimento das funções do Estado, tão acelerado nos últimos anos, tornou insuficientes os meios tradicionais de proteção dos direitos dos governados frente à administração pública. Os instrumentos mais elementares, como as reclamações a representantes populares (em alguns países), os recursos administrativos, e até mesmo a mais sofisticada instituição da justiça administrativa, mostram-se insuficientes para uma devida e rápida proteção daqueles direitos, o que levou alguns juristas a um certo ceticismo, chegando um importante advogado especialista em direito administrativo espanhol, Jesús Gonzáles Pérez, a afirmar que há uma antinomia radical entre justiça e administração” (LAGUARDIA, 2000, p. 11).
Assim, vê-se que há um complexo de normas entre as nações integrantes do bloco acerca da temática envolvendo a cooperação policial. No item próximo, procurar-se-á esclarecer o processo fático que culminou na adoção de mecanismos de cooperação policial no MERCOSUL.
2.1. Os mecanismos de cooperação policial existentes no âmbito do MERCOSUL
O Tratado de Assunção que criou o MERCOSUL teve por escopo criar um mercado aberto para a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, por meio da eliminação de direitos alfandegários e restrições não-tarifárias à circulação de mercadorias. Portanto, em princípio, o que uniu os países foram fatores precipuamente econômicos.
Todavia, outros fatores foram agregando-se perante a concepção econômica clássica que deu gênese à formação do bloco. Dentre eles, pode-se destacar a necessidade de se aprimorar a segurança pública dos seus nacionais, advinda do risco originado pela criminalidade que ascende além fronteiras.
“O risco, “eventual perigo, mais ou menos previsível, inerente a uma situação ou a uma atividade”, é indissociável da atividade humana. No entanto, o próprio risco evolui, sua percepção se modifica e o pedido de ampliação de sua cobertura torna-se mais importante. Consequentemente, o campo de aplicação da responsabilidade aumenta” (VARELA, 2006, p. 29).
Atualmente, vale citar, os países buscam também a integração de seus cidadãos, a exemplo da União Europeia.
Pelo que se vê, o processo de integração do MERCOSUL aumentou a necessidade de cooperação e assistência na área de Segurança pública, considerando-se o fenômeno da criminalidade organizada transnacional. Desta forma, com os criminosos ultrapassando fronteiras, surgiu a necessidade de maior cooperação entre os países em matéria penal e também a uniformização de legislações, como forma de combate à fragilidade estatal frente à referida criminalidade crescente.
A cooperação policial existente hoje, não obstante, ainda não é capaz de obstar a ascendência dos macrodelitos[4].
“Apesar dos esforços feitos, é óbvio que a situação de delinquência não foi controlada; ao contrário, é maior a cada dia a incerteza que abate os cidadãos. Poder-se-ia dizer que as agências governamentais encarregadas de velar pela ordem pública são inoperantes, o que conspira contra o sistema democrático”. […] (LAGUARDIA, 2000, p. 26.
Com o propósito de enfrentar a delinquência transnacional organizada com maior eficácia, os Ministros da Justiça e Interior dos países signatários do Tratado de Assunção, em Reunião realizada em Santa Maria/RS, em 22 de novembro de 1996, formalizaram uma declaração conjunta, sugerindo ao Conselho do Mercado Comum[5] (CMC) a convocação dos Ministros dos países-membros para firmarem planos de cooperação multilateral.
A Reunião de Ministros do Interior do MERCOSUL (RMI) foi criada a partir da Decisão 7/96, do Conselho de Mercado Comum, durante reunião realizada em Fortaleza/CE, em 17 de dezembro de 1996; e, atendeu ao disposto no art. 8º, inciso VI, do Protocolo de Ouro Preto, que estabeleceu: “(…) criar reuniões de ministros e pronunciar-se sobre acordos que sejam remetidos pelas mesmas”[6].
A propósito, sobre essa necessidade de representação de interesses coletivos de cada país-membro, muito bem já se manifestara a respeito Laguardia:
“Dentro das novas instituições constitucionais e legais da transição democrática na América Latina, estabeleceu-se a criação do defensor do povo, com sua adaptação às circunstâncias de cada região.
Funcionou adequadamente em sua primeira etapa, colaborando principalmente na função de proteção e promoção dos direitos humanos reconhecidos nos catálogos constitucionais e nos tratados reconhecidos internacionalmente” (LAGUARDIA, 2000, p. 30).
A primeira reunião oficial do grupo constituído por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai ocorreu na cidade de Assunção, Paraguai, em 30 de maio de 1997. Na oportunidade, ficou estabelecido como prioridade do grupo:
“(…) avançar na cooperação e coordenação das políticas e tarefas relativas à segurança e à harmonização das legislações em áreas pertinentes, a fim de aprofundar o processo de integração e dar segurança aos habitantes dos países que compõem o MERCOSUL”[7].
Percebe-se que os países que compõem o bloco deixaram de calcarem-se com quase exclusividade na sorte para a solução das questões de segurança pública continental, passando a jungirem esforços coesos e desígnios uníssonos. Grotius já se havia manifestado sobre esse jogo perigoso de se lançar o futuro de uma nação à sorte, quando outrora tecia comentários sobre o êxito da guerra:
“O êxito da guerra não pode sempre licitamente ser submetido a chance da sorte, […]. […]. Entretanto, se ao final das contas, aquele que for envolvido por uma guerra injusta for de tal maneira inferior que não possa alimentar qualquer esperança de resistir, parece que possa optar pelo caminho da sorte, a fim de escapar de um perigo certo através de um perigo incerto. Este, de fato, é, de dois males, o menor” (GROTIUS, 2004, p. 1403).
Durante a VI RMI realizada em Montevidéu, em 17 de novembro de 1999, foi aprovado o Plano Geral de Cooperação e Coordenação Recíproca para a Segurança Regional (Acordos 13 e 14/99), assinado pelos países do MERCOSUL, e ratificado na XVII Reunião do CMC, em Montevidéu, em 7 de dezembro de 1999. O plano tem sido objeto de várias adequações, a exemplo dos acordos firmados no ano 2000, referentes à complementação em matéria de tráfico de menores, delitos econômico-financeiros, ilícitos ambientais, e tráfico ilícito de materiais nucleares e radioativos; e a criação, no mesmo ano, do Centro de Coordenação e Capacitação Policial do MERCOSUL[8].
Assim, viu-se fortalecido o compromisso dos países-membros, frente aos riscos da criminalidade crescente, em estancar, o quanto possível, sua expansão, em perfeita comunhão de esforços e conjugação de vontades, deixando-se de lado, assim, a atuação individual frente aos riscos advindos da criminalidade além fronteiras.
“O pensamento liberal oriundo da Revolução queria, a todo custo, que cada indivíduo enfrentasse livremente os altos e baixos de sua própria existência. Pregava a noção de previdência e condenava a dependência. A noção de responsabilidade, em particular, como era entendida, constituía obstáculo a uma socialização ampliada dos riscos” […] (VARELA, 2006, p. 20).
Vale mencionar que o plano supracitado tem como objetivo “optimizar los niveles de seguridad comunitaria ante los hechos delictivos en general y en particular los que trascienden las fronteras, con el fin de lograr el desarrollo sustentable de la región”[9].
Por meio, pois, de uma sucessividade de reuniões ocorridas regularmente, tratando-se dos mais variados temas atinentes à prevenção e à repressão da criminalidade transnacional no MERCOSUL, vimos os países envolvidos caminhando ao perfeito encontro daquelas normas internacionais gerais já existentes e da mesma natureza cuja razão de existir já estava a serviço de várias nações. Cite-se, como exemplo, a normativa relativa às denúncias de violações de direitos civis:
“[…] na esfera internacional, […] as denúncias a violações de direitos civis são prontamente investigados pelos órgãos internacionais, como as comissões e tribunais de direitos humanos, que exigem a cessação da ilegalidade, estabelecendo, quando pertinente, a reparação dos danos. O Estado que não acatar essa determinação pode ser censurado por meio de uma resolução que recebe ampla publicidade” (LEWANDOWSKI, 1996, p. 238).
No ano 2000, durante a VII RMI, realizada em Buenos Aires, por meio do Acordo 11/00, assinado pelos Estados-partes, foi criado, finalmente, o CENTRO DE COORDENAÇÃO E CAPACITAÇÃO POLICIAL DO MERCOSUL (CCCP)[10].
Da formação do CCCP, pois, exsurgiu uma nova realidade, mais adequada à conjuntura hodierna, distinta do sistema pretérito e preestabelecido, já tão impotente frente à complexa criminalidade que ascende vertiginosamente.
“[…], na pós-modernidade, subsiste um elevado grau de complexidade e pluralidade nas relações sociais que impedem de se recorrer a uma forma preestabelecida para resolução dos conflitos, a solução parece ser combinar essas relações sociais de maneira a encontrar uma decisão mais adequada” (AREND e FROEHLICH, 2007, p. 134).
Já na XVIII CMC, realizada em Buenos Aires em 29 de junho de 2000, por meio da Decisão 16/00, dos Estados-partes, ratificou-se a criação do CCCP. Por meio do acordo 12/00 da RMI e Decisão 17/00 do CMC, Chile e Bolívia aderiram e aprovaram a criação do Centro.
Na VIII RMI, realizada no Rio de Janeiro em 10 de novembro de 2000, por meio do Acordo 19/00, aprovou-se o Regulamento do Centro. O ato foi aprovado na XIX CMC, realizada em Florianópolis, em 14 de dezembro de 2000, pela Decisão 42/00.
O Centro de Coordenação e Capacitação Policial do MERCOSUL é um órgão de trabalho formado pelas áreas educativas dependentes das forças de segurança e policiais dos países que integram o MERCOSUL. Tem como objetivo a coordenação da capacitação e atualização das forças de segurança e policiais, com a finalidade de neutralizar as novas e sofisticadas formas da ação delitiva que tem adquirido uma crescente dimensão transnacional e requer a adoção de processos educativos dinâmicos para a capacitação dos recursos humanos que garantam a segurança pública, baseando-se na difusão de novos conhecimentos científicos e tecnológicos.
Essa linha de raciocínio do CCCP encontra consonância com o que já afirmara Menezes:
“O Direito Internacional é transformado pelo processo de globalização que oferece um leque de temas a serem regulados e o obriga, de alguma forma, a possibilitar mecanismos que deem uma resposta à sociedade que se desenha e aos temas que se abrem em um horizonte ainda não totalmente descoberto” (MENEZES, 2005, p. 111).
O Centro de Coordenação e Capacitação Policial do MERCOSUL tem como prioridades o levantamento de capacidades e necessidades em matéria educativa das instituições competentes em segurança pública e a elaboração de uma base de dados com essas capacidades.
Essa motivação acadêmica, interativa entre os países-membros do MERCOSUL, tão crucial em um processo de integração, já havia sido prevista por Casella, quando apontara como o MERCOSUL poderia ensinar-nos a evoluir junto ao Direito Internacional, tornando-se este uma realidade inafastável:
“Do ponto de vista de um profissional do direito, enfatizando o conteúdo e a necessidade do direito internacional, o momento atual vivido pelo MERCOSUL nos coloca excelente oportunidade de absorver e consolidar patamar mais elevado de atuação internacional, de vivência do direito e da vida internacional de forma diversa do que foi feito até hoje, de modo incipiente, entre nós. Pode o MERCOSUL nos ensinar a fazer do direito internacional uma realidade e a partir daí podemos avançar nesse sentido, para poder viver de modo mais completo uma suposta vocação e conteúdo internacional” (CASELLA, 1996, p. 54).
Por fim, não obstante, é importante que se pense na construção, para o futuro, de uma estrutura com profissionais dispondo de competência e especialização próprias, ou seja, de uma Polícia comum. Certamente, isso seria algo muito mais além do que a simples, mas sem dúvida bem vinda, troca de cooperação hoje existente entre as polícias do MERCOSUL. A sistemática de hoje, embora muito melhor do que um vácuo normativo e operacional, ainda é insuficiente para o enfrentamento da grande gama de ilicitudes transnacionais, como se verá logo a seguir.
2.2 Delitos transnacionais versus a sistemática atual
É importante frisar, neste momento, os contratempos, as dificuldades, enfim, toda a complexidade de obstáculos que impedem o pleno sucesso das forças policias no atual estágio de evolução do MERCOSUL, mormente frente àqueles delitos que ultrapassam as fronteiras nacionais.
Assim, elencar-se-ão alguns delitos além fronteiras neste trabalho, tais como a extorsão mediante sequestro, o narcotráfico, o terrorismo internacional, o tráfico de armas, os crimes ambientais, a biopirataria, a lavagem de dinheiro e a pedofilia praticada pela internet, a fim de destacar as suas potencialidades nefastas às populações diretamente envolvidas, bem como se estamparão as dificuldades hoje enfrentadas pelas polícias nacionais tais como elas se apresentam hodiernamente, sem aquela junção fática e jurídica tão almejada neste trabalho a ponto de ensejar uma Polícia comum.
Como já se disse antes, e é sempre bom lembrar, crimes transnacionais são aqueles que ultrapassam os limites da nacionalidade, sendo que eles foram imensamente beneficiados com o processo de globalização. No Brasil, os legisladores preferiram adotar uma classificação bipartida ou dicotômica a respeito da definição de infrações penais, ou seja, a nossa legislação pátria faz uma diferenciação entre crimes e contravenções, sendo o delito sinônimo de crime.
Cumprido esclarecimento supra, vale dizer que os povos latino-americanos não mais aceitam, no estágio atual da evolução da consciência humana, discursos retóricos e vazios de seus governantes, anunciando soluções que não ultrapassam o vento dos verbos que são lançados pelos seus lábios. Urge que sobrevenha sistemática real de união policial no MERCOSUL. Aliás, sobre essa insistente prática de se resolver tudo em discursos vazios na América Latina já foi muito bem esclarecida por Paoli:
“[…] a tentativa de dizer que finalmente eu sou moderno, eu cheguei, o país vai entrar no concerto das nações de Primeiro Mundo e, finalmente, o atraso que tanto nos envergonha, com a pobreza, com as desigualdades, terá uma outra forma de controle, uma outra forma de transformação interna e, enfim, todo potencial desses países e desse continente poderá se explicitar. Isso não ocorre somente com os governantes brasileiros, mas acontece também com os governantes dos países da América Latina. É alguma coisa que faz parte do discurso da consciência infeliz que nós temos, em geral, diante dos países onde essa desigualdade é menos selvagem e onde algumas figuras da cidadania existem e funcionam de fato. Mas isso é uma nota marginal” (PAOLI, 1996, p. 200).
Pois, entre os dias 23 a 27 de abril de 2007, em Brasília, mais precisamente nas dependências da Academia Nacional de Polícia, por intermédio do Centro de Coordenação e Capacitação Policial do MERCOSUL (CCCP), realizou-se o I Seminário Anti-sequestro para Policiais do MERCOSUL e Países Associados.
Dentre outros tópicos importantes para serem estudados pelo CCCP, a escolha da temática desse curso foi muito oportuna, tendo em vista que o delito de extorsão mediante sequestro pode ser considerado como um dos mais lucrativos dentro das ações das organizações criminosas que atuam na América Latina.
O tema também é relevante porque há muito tempo esse crime não mais respeita fronteiras, especialmente na América Latina. Estrangeiros procurados pela Justiça em suas regiões de origem, pela execução desse crime, já foram presos ou identificados em outros países pela prática do mesmo delito. Em nosso continente, entre países fronteiriços, já ocorreu do crime haver sido praticado em um território e o cativeiro estabelecido em outro. Há casos também em que a vítima foi sequestrada em um país e libertada em outro.
Falando-se especificamente em fatos envolvendo o Brasil, por exemplo, cabe salientar que no ano de 1987, na cidade de São Paulo, ocorreu a libertação do coronel do Exército do Chile, Carlos Carreño Barriga, que havia sido sequestrado em seu país.
Ainda em São Paulo, respectivamente nos anos de 1989 e 2001, ocorreram os sequestros do empresário Abílio Diniz e do publicitário Washington Olivetto, que tiveram a participação efetiva de vários criminosos estrangeiros (argentinos, chilenos, colombianos e canadenses), todos ligados a grupos de guerrilhas de esquerda de países da América Latina[11]. Atualmente, alguns sequestros cometidos no Brasil são negociados por meio de ligações telefônicas e postagens de correspondências originadas de outros países.
Esses e outros fatos bem demonstram ser necessária a adoção de medidas repressivas comuns no MERCOSUL e países associados, visando a minimizar e a desencorajar essa internacionalização criminal.
Alguns países, todavia, têm certas peculiaridades com relação às características dos delitos de sequestros praticados em seus territórios como, por exemplo, a predominância de cativeiros selváticos e não urbanos, ou casos em que a extorsão é dirigida para a empresa multinacional onde o refém trabalha e não para uma pessoa de sua família ou, ainda, que o resgate exigido é em quantia de drogas e não em dinheiro (os chamados narco-sequestros).
É interessante, neste ponto, falando-se sobre narcotráfico, em especial quando este conferiu nascimento ao narco-sequestro, lembrar o que Rodrigues mencionou quanto à Lei Seca ocorrida nos Estados Unidos. Realmente, quando o Estado tenciona obstar severamente um tipo de ilicitude ele pode acabar gerando inúmeras outras violências a partir de então, razão pela qual, em se falando de MERCOSUL e, em particular, de Polícia comum, nada mais plausível que dessa esperada unificação surjam sistemáticas legais e de atuação que impeçam essa ordem reflexa de violência advinda da repressão-matriz. Em palavras mais singelas, que a repressão continental contra o narcotráfico que se desenvolve além fronteiras, por exemplo, caminhe junto com técnicas de repressão ao narco-sequestro internacional.
“A Lei Seca, num movimento complementar, criou oficialmente o crime organizado nos Estados Unidos. O “guarda-chuva legal”, que estaria abrigando a nação contra os males do vício, protegia também o livre desenvolvimento de atividades criminosas. A ilegalidade tornou possível o fortalecimento e a prosperidade das máfias”. […] (RODRIGUES, 2004, p. 53).
Outro ponto importante nessa gama de dificuldades vivenciadas pelo Estado no combate à criminalidade transnacional é a baixa densidade demográfica e as longas distâncias de nossas fronteiras, associadas à precariedade do sistema de transportes terrestres, o que condiciona o uso das hidrovias e do transporte aéreo como principais alternativas de acesso. Estas características facilitam a prática de ilícitos transnacionais e crimes conexos, além de possibilitar a presença de grupos com objetivos contrários aos interesses nacionais.
Nessa linha de raciocínio, o Estado, por seus órgãos, bem como as entidades internacionais, têm de caminhar pela tipificação de delitos transnacionais ambientais e pela criação imediata de Tribunais ligados a organismos internacionais capazes de impor sanções penais privativas de liberdade e pecuniárias, administrativas e cíveis àqueles que violam, sem qualquer sentimento, a natureza e o meio ambiente[12].
A prevalência dos novos crimes transcende os limites territoriais dos Estados Nacionais, fazendo com que eles passem a ser também referidos como transnacionais, já que algumas organizações criminais modernas, tais como traficantes de entorpecentes, traficantes de armas e sequestradores, ao desenvolverem hoje suas atividades, não respeitam divisas ou fronteiras nacionais, demonstrando um considerável poder de articulação e planejamento, exibidos com uma sofisticação e arrojo nunca antes observados.
Nesse diapasão, verifica-se também, por outro lado, uma baixa efetividade dos órgãos policiais em sua capacidade de controle e supressão do crime organizado. Talvez isso aconteça em função da premente necessidade de ajuste da legislação criminal vigente de cada país, hoje em franco descompasso com modalidades delitivas prevalentes em plena “Era da Informação”, sem falar na carência de uma mais robusta e eficaz legislação internacional dessa mesma natureza, com órgãos policiais autônomos e específicos para o trato dos assuntos por ela regulamentados, sem se olvidar, é claro, de tribunais internacionais da mesma forma a ela pertinentes.
E por falar na “Era da Informação” [13], não menos importante é destacar-se neste capítulo a propagação, além fronteiras, da pedofilia pela internet.
A pedofilia[14] motiva, naturalmente, uma grande perturbação moral na sociedade, em decorrência da indignação, aversão ou repulsa que exsurgem do íntimo de qualquer ser humano perante temática de tão flagrante barbárie. Todavia, é de se notar, o estudante não encontrará, exemplificativamente, na legislação penal brasileira repressiva, expressão direta a esse fenômeno, mas, isto sim, a tipos que com ele se relacionam. Com efeito, a pedofilia é termo designativo à conduta desconsertada que encontra amplo debate em nossos anais da psicologia e da psiquiatria[15].
Mas o que mais deve chamar a atenção neste trabalho é a dificuldade probatória que advém da propagação da ilicitude pela internet. Efetivamente, como agravante fastidioso que assola não só os menores de idade vítimas de crimes sexuais, mas também à polícia no seu essencial e precípuo papel tendente a elucidar a autoria e comprovar a materialidade de desvaliosos atos da espécie, estampa-se que essa ilicitude ocorre ordinariamente às escuras, longe dos olhos de testemunhas, onde, no mais das vezes, o único indício que se tem é a palavra da própria vítima[16].
Diz-se, aliás, que é um verdadeiro truísmo afirmar que a palavra da vítima constitui-se em um elemento de suma importância na formação da prova em crimes contra os costumes, já que é elemento natural da conduta ser esta levada a efeito longe dos olhos de terceiros.
Com o advento da internet, essa ilicitude ganhou, fulminantemente, repercussão além de qualquer fronteira, atravessando países por meio de fotos e vídeos lançados na rede mundial de computadores, quer em sítios determinados, quer por meio de mensagens eletrônicas. Assim, obviamente, a junção de forças de vários países em torno de uma Polícia comum, com treinamento próprio e competências que ultrapassariam os limites fronteiriços entre os países pareceria ser a medida mais viável diante da problemática aventada.
Fato alarmante, como se pode perceber, é o fenômeno que ocorre via internet, onde imagens e vídeos, como se disse acima, são lançados na rede mundial de computadores divulgando cenas de sexo explícito entre adultos e crianças.
Há, indubitavelmente, uma infinidade de programas de compartilhamento de arquivos disponíveis gratuitamente na rede mundial de computadores[17].
A problemática toda consiste no fato de que os programas de compartilhamento de arquivo, simplesmente, compartilham, rápida e gratuitamente, o vídeo e a imagem que o usuário bem entender em divulgar entre o seu computador e quaisquer outros computadores espalhados pelo mundo, desde que conectados à internet e com algum programa de compartilhamento em funcionamento. Caso deseje, por exemplo, que o seu vídeo seja capturado por um computador de um usuário que jamais desejaria assistir a um vídeo de pornografia infantil, basta nomear o referido arquivo de vídeo com um outro nome qualquer. Desta forma, o receptador inocente acreditará estar baixando para o seu computador um vídeo lícito, como um determinado filme de humor, por exemplo, mas, na verdade, tratar-se-á de uma filmagem doentia envolvendo o estupro ou o atentado violento de uma criança de tenra idade. O pior de tudo, ainda, é o fato de que, ao deixar o seu computador ligado e baixando referido vídeo, sem imaginação acerca do seu verdadeiro conteúdo, automaticamente, e isso é o natural entre os programas de compartilhamento de arquivo, outros usuários do mundo todo já estarão também capturando automaticamente do computador desta inocente pessoa o referido vídeo, em uma ininterrupta relação de download[18] e upload[19].
Em assim sendo, percebe-se que uma pessoa inocente, sem imaginar, recebeu um vídeo criminoso e repassou-o a incontáveis outras pessoas, o que dificulta sobremaneira a sua responsabilização criminal. Claro, e isto é certo, a exemplificação supradita referiu-se a um arquivo com nomenclatura simulada e, deduz-se, assim que identificado fosse seria deletado incontinenti pelo usuário surpreendido.
Todavia, é preciso restar claro que o compartilhamento de arquivo por meio dos programas alhures referidos pode ocorrer de tal forma que, mesmo estando os vídeos ou imagens denominados com a expressão “pornografia infantil”, ainda assim a identificação dos seus usuários e propagadores criminosos é problemática, dada a celeridade com que as trocas ocorrem e em decorrência do cuidado com que os delinquentes costumam levar a efeito seus comportamentos criminosos, separando em seus computadores, após as propagações, aqueles arquivos ilícitos compartilhados, removendo-os das pastas de download e de upload para uma pasta à parte daquelas próprias do programa de compartilhamento.
Assim, estampam-se algumas dificuldades enfrentadas pelas polícias nacionais na elucidação de crimes desta espécie, tanto naquelas hipóteses em que ninguém pôde testemunhar a conduta, porquanto efetivada longe dos olhos de terceiros, bem como, e isto é tão preocupante quanto, naquelas hipóteses onde os doentios autores de tamanha ilicitude resolveram, ousadamente, propagar ao mundo inteiro, por meio da rede mundial de computadores, as cenas repulsivas de suas atrozes condutas.
Essa fragilidade em que os nacionais, de um ou de outro país, veem-se envolvidos, decorrente da fragilidade do sistema de cada nação na contenção de condutas tão repulsivas quanto à pedofilia, reporta ao no que Boson já dissera quando anunciou que “O Estado deve dar aos estrangeiros a mesma proteção devida a seus nacionais; mas os estrangeiros, assim como aos nacionais, estão submetidos e devem aceitar todas as vicissitudes do País, […]. […]” (BOSON, 1994, p. 287).
A repressão mundial frente à pedofilia deve-se constituir em um verdadeiro Direito Humano posto à disposição de qualquer cidadão, independentemente as fronteiras nacionais que o cercam. BRAUN, ao falar sobre a natureza e o alcance dos Direitos Humanos, aliás, assevera que referida classe de direitos já é ínsita do homem. Assim, parece certo que não é uma faculdade de cada Estado apenas cogitar acerca da criação de meios e otimização das suas polícias, a fim de garanti-los, mas referido agir é mesmo um dever imediato seu:
“Os direitos humanos não são concedidos ao homem, pois o homem nasce com tais direitos, eles vêm da própria dignidade humana. O homem deve ser o objetivo principal do Direito. Seu Bem-estar, sua integridade e sua dignidade devem ser resguardadas sempre pelo Direito” (BRAUN, 2002, p. 129).
Uma das características adversas deste novo cenário imposto pela transnacionalização do crime é o fato de que a legislação e prática internacionais atuais não disponibilizam instrumentos ágeis e velozes de acesso das organizações policiais nacionais às informações necessárias ao combate dos crimes transnacionais.
O terrorismo, o narcotráfico, o contrabando, o estelionato cibernético, a pirataria, e até mesmo sua mais nova expressão, qual seja, a biopirataria, são desafios constantes às polícias nas nações.
Acerca da biopirataria, por sua vez, é importante esclarecer que, além do aspecto de contrabando de diversas formas de vida da flora e da fauna, abarca ela a apropriação e a monopolização de conhecimentos das populações tradicionais no que diz respeito à utilização dos mais diversos recursos naturais existentes em nosso meio ambiente. Dessa forma, referidas comunidades acabam perdendo o domínio sobre os mais diversos recursos essenciais à sua sobrevivência cuja soberania sempre coube ao coletivo.
Como se tem observado da literatura jurídico-nacional, a biopirataria ainda é tema por demais novel. A problemática que exsurge deste assunto, pois, exige, excitada pela imensa proliferação e facilitação de mecanismos tais como o registro de marcas[20] e de patentes[21] no âmbito internacional, uma imediata e célere atuação estatal em torno da imprescindível repressão relativa a quaisquer usurpações à roda desta matéria.
Efetivamente, nos dias de hoje, com o advento da globalização e da proliferação de formas de ilicitude, como a citada biopirataria, um dos maiores desafios para os Estados é mesmo o combate a esses crimes transnacionais. As ações delituosas assumiram novas formas que transcendem os limites territoriais de um país em particular.
As fronteiras físicas entre os Estados deixaram de ser barreiras efetivas contra a prática de crimes. Assim, a efetiva prevenção e a persecução de crimes transnacionais requerem, antes de qualquer coisa, o esforço conjunto das nações, em torno de uma Polícia comum.
Sobre a cooperação policial já existente no MERCOSUL, efetivamente cumpre salientar que, além de sequer contar ela com uma estrutura física para os seus agentes, os quais, diga-se de passagem, não estão subordinados a uma hierarquia única ou plano de carreira próprio, referido sistema de cooperação policial deve evoluir e conceder margem, incontinenti, à estruturação de uma Polícia comum no âmbito da América Latina, à semelhança do que já ocorre com a EUROPOL.
Sem dúvida alguma, essa experiência policial na Europa adveio diante da insuficiência de atendimento perpetrado pela INTERPOL junto aos macrodelitos que atingem o mundo. Assim, com o escopo de atuar especificamente na Europa, surgiu a Europol, como se fosse uma Interpol concentrada em uma região específica. Referida sistemática, sem dúvida, urge ser implementada na América do Sul.
Por outro lado, a falta de um Direito comum e a existência de um emaranhado de acordos em matéria de cooperação policial no MERCOSUL demonstra a fragilidade das nações que compõem o Bloco frente aos crimes transnacionais, já que “é importante ressaltar que se torna indispensável o objetivo de buscarem-se elementos capazes de se obter uma harmonização das legislações dos quatro países (Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai), que compõem o MERCOSUL, […]” (COELHO, 1996, p. 63).
Outra problemática, ainda, é a lavagem de dinheiro que assola os países de qualquer canto do mundo. Sem dúvida, o Direito Penal foi atingido em cheio pela globalização, em vários aspectos, forçando, inclusive, o surgimento de legislações específicas a respeito do tema citado. No Brasil, a Lei 9.613/98[22] vem seguindo o padrão internacional de combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado. Todavia, insuficiente, porquanto é norma apenas de cunho interno, sem previsão de interação patente e coesa com as demais nações. Dispõe expressamente que o julgamento caberá à Justiça Federal e cria, no seu art. 14, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras [23]. Frise-se que este constitui-se em Órgão interno e voltado, obviamente, para os problemas interiores do país. Vê-se, assim, que “a sociedade como um todo modernizou-se. Novas formas, mas velhos problemas […]: […]” (SANDRONI, 1996, p. 196).
É premente que vejamos a necessidade de interação cabal entre os países no combate à criminalidade internacional, jungindo-se desígnios que sejam verdadeiramente uníssonos, que evoluam harmonicamente, não mais se mostrando hábeis padrões de legislação arcaicos e, muitas vezes, antagônicos entre si. Consoante Grau, e muito bem lembrado por ele:
“Na relação de intercâmbio, […] estamos diante de uma oposição de vontades que estão temporariamente harmonizadas. […] Além das relações de intercâmbio existem outras que são as relações de comunhão de escopo, em que as vontades não estão em oposição, mas caminham paralelas”. […] (GRAU, 1996, p. 225).
Seguindo a linha de raciocínio presente, não se poderia deixar de tecerem-se comentários também atinentes ao tráfico internacional de drogas.
A norma interna referente ao assunto adentrou, na data de 23 de agosto de 2006, no cenário jurídico nacional. A Lei nº11.343[24] institui uma nova sistemática repressiva concernente às ilicitudes envolvendo substâncias estupefacientes, considerando-se estas, consoante o parágrafo único do art. 1º da referida Lei em estudo, aquelas substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. Acabaram sendo revogadas a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, a qual regeu a atuação policial nacional pelo longo interstício temporal de 30 anos, bem como a recente Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002[25].
Felizmente, pelo menos em parte, e na esteira do que ensina JOBIM, quando afirma que aos países são impostas determinadas lições de casa frente à internacionalização do ilícito, a legislação agora em comento acenou para uma nova conjugação de esforços entre as nações, consoante o seu art. 65 [26] que determina a “cooperação internacional”, todavia distante da tão almejada e aqui defendida uniformização policial. Aliás, para que haja uma íntima e verdadeira comunhão entre os labores policiais de Estados distintos, urge que haja previsão sobre isso não só em suas leis ordinárias, mas em seus textos constitucionais. Assim, manifesta-se o celebrado doutrinador supra a este respeito:
“[…], o processo de integração, que caminha aceleradamente no que diz respeito não só à licitude, mas também à ilicitude, começa a impor determinadas situações domésticas. E aí vem o problema dos Estados, de situações supranacionais e os problemas relativos às chamadas cláusulas de supranacionalidade que a Constituição não tem”. (JOBIM, 1996, p. 264).
Pois, como bem consta no artigo antes referido, previram-se, basicamente, intercâmbios, muito, mas muito longe da formação de uma entidade comum, de uma Polícia comum, a atuar frente à ilicitude internacional, a qual também poderíamos, por que não, intitulá-la de ilicitude comum, comum a todos os países.
Esse aspecto comum que os macrodelitos abarcam hoje em dia, ou seja, de serem comuns a mais de um país, desenvolvendo-se, em um mesmo desdobramento de conduta, por mais de um país, também abarca a conjugação ou interação com outras figuras da mesma forma ilícitas. Assim, pode-se afirmar que o tráfico ilícito de entorpecentes é comum para com a lavagem de dinheiro, já que os lucros indevidos do primeiro procuram um aspecto de legitimidade ao serem levados e lavados em outros países.
Nessa concepção, as normas de cada país tendentes a combater os macrodelitos devem romper com a propensão de conservação cega da ordem estabelecida, voltando-se para interação e uniformização com legislações de países vizinhos, como aqueles que compõem o bloco, em verdade formando-se um Direito comum, com norma única, órgãos de aplicação específicos (como a desejada Polícia comum), e tribunais competentes para o julgamento específico desses casos, a fim de que se ponha termo à formação de um mundo à parte em cada país, separado do todo que o cerca.
“Para que a Ciência do Direito possa permitir ao Direito conservar-se, transformando-se, não pode ele fechar-se sobre si mesmo, tratando tão-só do “puramente jurídico”, em nome de uma falsa cientificidade que, no fundo, o que quer é a conservação cega da ordem estabelecida. Essa “ciência”, assim construída, pretendendo ser asséptica, responde a interesses que se ocultam por não ousarem identificar-se. Tal modo de proceder cria um mundo à parte, o mundo dos juristas, que esquece a sábia advertência de Ihering que, no século XIX, depois de ter trafegado pelo formalismo jurídico, superou-o. Pôs-lhe, então, à mostra a inconsistência, proclamando a incontestável verdade de que “a vida não deve se dobrar aos princípios; são os princípios que devem modelar-se à vida” (AZEVEDO, 2004, p. 48).
É claro que, quando se fala neste trabalho em Polícia comum, quer se falar sobre uma instituição policial específica e com atuação além fronteiras, em termos de MERCOSUL e com referência a determinados delitos. Cada país, não obstante, deve conservar suas próprias e peculiares polícias, pois compete a cada governo gerenciar a segurança pública peculiar de seus territórios. Ocorre que, quando se fala em macrodelitos, está-se falando em criminalidade que ultrapassa os referidos limites territoriais de cada país, razão da tese aqui defendida que lança a ideia de criação de uma instituição comum nos moldes similares ao da Europol.
A bem da verdade, ainda aproveitando o ensejo da temática envolvendo o tráfico internacional ilícito de entorpecentes, como se disse antes, é-nos cediço que uma atividade está intimamente ligada à outra, pois os grandes traficantes internacionais de drogas procuram na lavagem de capitais encobrir o dinheiro sujo oriundo do comércio clandestino de entorpecentes. Assim, o tráfico internacional está intimamente ligado à lavagem de dinheiro à nível internacional, e assim por diante.
Os países tentam se modernizar para que possam satisfatoriamente combater o tráfico internacional de drogas, visto que os traficantes já não se utilizam dos “velhos meios” de outrora. Dessa arte, aquela concepção puramente econômica de integração preconizada outrora por Bertogilo[27] perdeu, há muito, seu valor, diante do avanço das ilicitudes transnacionais e da necessidade de integração, por exemplo, também a nível de segurança pública entre os países.
Nessa linha de raciocínio, as convicções naturais ou princípios do senso comum, tais como a crença num mundo externo independente, na lição de Chomsky, vê-se despida de razão:
“Em seu estudo da tradição escocesa, George Davie identificou como tema central dela o reconhecimento do papel fundamental das “crenças naturais ou princípios do senso comum, tais como a crença num mundo externo independente, a crença na causalidade, a crença em padrões ideais e a crença no eu da consciência moral como distinto do restante do indivíduo”. Às vezes se considera que esses princípios têm um caráter regulador; embora nunca sejam plenamente justificados, eles proporcionam as bases do pensamento e da concepção. Houve quem dissesse que contêm “um componente irredutível de mistério”, como assinalou Davie, enquanto outros tiveram a esperança de lhes dar uma base racional. No que diz respeito a essa questão, o júri ainda está deliberando” (CHOMSKY, 2003, p. 437).
Ainda, por oportuno, falando-se sobre a preservação do meio ambiente frente à problemática referente aos delitos transnacionais, aí está uma faceta importantíssima do fenômeno da globalização. As nações do mundo unem-se num esforço comum para evitar o colapso do meio ambiente o que acarretaria um perigoso e possivelmente irreversível declínio da qualidade de vida no planeta.
Nesta tarefa, suma importância adquirem as Organizações não-governamentais, que agem além das fronteiras de cada Estado, desenvolvendo, pari passu, um trabalho tendente a preservar o meio ambiente na terra, como, por exemplo, o Greenpeace.
O desenvolvimento humano, o incremento das tecnologias, o aumento demográfico, dentre outros fatores levaram a uma degradação do meio ambiente, forçando um movimento mundial pela sua preservação.
A preocupação com o meio ambiente, a bem da verdade, não é de hoje, apesar de ter aumentado sensivelmente nos dias atuais. Com efeito, já no ano de 1972 foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, que resultou na Declaração de Estocolmo, que trazia 26 princípios referentes à proteção ambiental. Podemos dizer que começava ali a preocupação com o futuro ambiental do planeta.
Nessa linha de conscientização ambiental assumida pelos Estados, paralelamente também se inseriram organismos outros, como o Greempeace antes citado, muitas vezes promovendo manifestações nem tão pacíficas quanto seria o ideal. Mas sobre isso, Marés, aliás, com muita propriedade, já nos esclareceu que a inspiração do Estado contemporâneo aflorou-se nem sempre pacificamente e o sistema jurídico que se pretendia já acenava, audaciosamente, para o universalismo dos bens da vida. Dentre esses bens, o meio ambiente, certamente, hoje é primacial a qualquer Estado.
“O sonho que inspirou o Estado contemporâneo nasceu na Europa e foi sendo por todo o mundo, não sem guerra, revoluções e imposições, tornando-se, em alguns lugares e para alguns povos, um longo pesadelo. Sua elaboração teórica e luta prática que marcaram os séculos XVI, XVII e XVIII na Europa mudaram os conceitos de ciência, religião e política. Copérnico, Lutero e Hobbes são apenas três dos nomes que apresentaram teorias e propostas de inovação ao mundo a que se convencionou chamar de civilizado, em oposição ao mundo natural. Pode-se agregar outros teóricos, Locke, Morus, Rosseaus, Bodin, Calvino, Galileu, Montesquieu, Bartolomé de Las Casas, e uma interminável lista completando um pensamento que teria como resultado a criação do Estado contemporâneo assentado num sistema jurídico que pretendia ter regras claras e de execução pronta, além de uma audaciosa e arrogante proposta de universalismo” (MARÉS, 2003, p. 105).
Dessa arte, perante as exposições supra, percebe-se que o nível de cooperação policial existente no MERCOSUL é, indubitavelmente, ainda deveras incipiente, muitas vezes inexistente mesmo, mormente frente aos crimes transnacionais. Todavia, é certo que ele existe ao menos em alguns aspectos, o que torna não tão difícil assim uma visão otimista, ainda que ousada para este momento da história do MERCOSUL, concernente à implementação de uma futura Polícia comum, como se verificará no capítulo seguinte.
3. Delitos transnacionais como gênese de uma polícia comum
Faça-se a luz[28] é a primeira e talvez mais ideal expressão com que se pode iniciar o presente capítulo. Afinal, todos os indicativos atuais já descritos no capítulo anterior denotam que há elementos indicativos de que possivelmente seja inafastável e necessária a formação de uma Polícia comum no âmbito do MERCOSUL, à semelhança do que já ocorre com a Interpol em âmbito mundial e com a Europol na União Europeia.
A Segurança pública é medida essencial à população de qualquer país que integra a América Latina e jamais deve ser tratada com leviandade, muitas vezes fomentada pelo locupletamento de grandes empresas que se aproveitam da carência de senso crítico dos nacionais, como ocorre frequentemente nos Estados Unidos a respeito da comercialização de armas de fogo.
“Quem acompanhar a publicidade feita no EUA pelas revistas especializadas em armas irá encontrar muitos anúncios de armas e treinamento de tiro para mulheres. Independentemente do mau gosto e da agressividade, tais peças publicitárias oferecem armas às mulheres a partir de uma mentira perigosa: a promessa de que o produto lhes trará “segurança” (ROLIM, 2005, p. 119).
Uma legislação que conceda a gênese e a efetiva formação a uma Polícia comum está na esteira do que se pode conceber hoje por Direito comum. As questões pertinentes à segurança pública são mesmo de interesse mundial. Com a transnacionalização dos crimes há necessidade de a segurança pública tornar-se também mundial. A respeito, Delmas-Marty afirmou que “a possibilidade de se fazer um direito comum parece atestada pela observação que revela os traços ou os fragmentos de um direito que se torna mundial em certos setores […]” (DELMAS-MARTY, 2003, p. 07).
3.1 A viabilidade de implementação de uma polícia comum no MERCOSUL
Em primeiro lugar, invoca-se a Europol como exemplo. De modo real, nada mais oportuno que se partir de um paradigma positivo ocorrido na União Europeia (UE), a fim de se aferir sobre uma possibilidade similar no MERCOSUL.
“É correto dizer que “as instituições políticas, assim como as outras instituições humanas, são ao mesmo tempo produto da história e da vontade de escapar à história. Do mesmo modo, é grande a tentação, para aqueles que as concebem, de referir-se a ‘modelos’ já experimentados, seja para neles inspirar-se, seja para a eles opor-se” (VENTURA, 2003, p. 55).
A Europol nasceu da necessidade de se frearem com maior eficácia as violações aos direitos fundamentais dos nacionais integrantes dos Estados formadores da União Europeia. A expansão, pois, desses direitos, tornando-se universais, exigiram uma instituição além fronteiras que pudesse combater as violações produzidas contra esses mesmos direitos.
“É difícil prever se a extensão progressiva dos direitos fundamentais e de suas garantias a toda humanidade conseguirá prevenir e desarmar em tempo os conflitos violentos que sua própria violação está destinada a produzir dentro e fora de nossos […] países; […]” (FERRAJOLI, 2002, p. 62).
A criação da Europol foi acordada no Tratado da União Europeia assinado em Maastricht, em 7 de Fevereiro de 1992. Com sede em Haia, Países Baixos, a Europol tornou-se operacional em 3 de Janeiro de 1994, cuja ação se limitava, inicialmente, à luta contra as drogas, tendo o seu mandato sido progressivamente alargado a outras áreas importantes de criminalidade, até porque, “. Hoje, graças à rapidez das comunicações, nenhum acontecimento no mundo nos é alheio e nenhuma parte do mundo nos é estranha.” (FERRAJOLI, 2002, p. 47).
A partir de Janeiro de 2002, o mandato da Europol foi alargado às formas graves de criminalidade internacional enumeradas no anexo da Convenção Europol. A Convenção Europol foi ratificada por todos os Estados-Membros e entrou em vigor em primeiro de Outubro de 1998. Na sequencia de uma série de atos jurídicos adotados no âmbito da Convenção, a Europol entrou em plena atividade no dia primeiro de Julho de 1999.
Nesse sentido, viu-se uma plena igualdade dos Estados-membros no tocante à formação da Europol, medida que não se pode prescindir em uma esperada formação, aqui francamente pretendida, quiçá de uma Mercopol[29].
“Os Estados estão em pé de igualdade perante o Direito internacional, qualquer que seja a sua importância, democrática, econômica ou militar. Todos os Estados têm, em tese, os mesmos direitos e deveres na comunidade das nações. Neste sentido, a igualdade é considerada direito público subjetivo de todo o Estado e não mero modo de ser deste, de vez que não se trata de igualdade de fato, mas de igualdade jurídica” (BOSON, 1994, p. 246).
A Europol é financiada pelas contribuições dos Estados-Membros. O auditor financeiro, designado pelo Conselho de Administração, por unanimidade, é responsável pelo controle da autorização e do pagamento das despesas e o controle do apuramento e cobrança das receitas da Europol.
Esse sistema institucional interno da Europol que promoveu mudanças radicais na estrutura policial pretérita da Europa representa, na verdade, uma transição, um verdadeiro avanço, uma evolução do sistema de polícia daquele continente, o qual também é requerido junto à América do Sul. Não foi ele, em verdade, uma supressão absoluta do que já existia antes, mas foi, isto sim, um conjunto de mudanças ou modificações sucessivas que fizeram surgir algo que de início era apenas potencial. Com efeito, “podemos conceder algumas mudanças na atual estrutura política do mundo que seriam básicas e, contudo, representariam apenas uma transição de uma fase para outra, não a supressão do sistema em si mesmo (BULL, 2002, p. 263 e 264).
Pela análise do pacífico gerenciamento da Europol que se desenvolve por integrantes de vários países, percebe-se que do conflito dos três elementos anunciado por Bull prevaleceu mesmo a solidariedade entre os povos, ao menos na União Europeia, mais especificamente no que tange à Europol:
“[…], o sistema internacional moderno reflete todos os três elementos singularizados respectivamente pela tradição hobbesiana, kantiana e grociana: a guerra e a disputa pelo poder entre os estados; o conflito e a solidariedade transnacionais, superando as fronteiras dos estados; e a cooperação e o intercâmbio regulado entre diferentes estados. Em diferentes fases históricas do sistema de estados, em distintos teatros geográficos de seu funcionamento, e nas políticas adotadas por diferentes estados e estadistas, um desses três elementos pode predominar sobre os outros” (BULL, 2002, p. 51).
A Europol atua sob a responsabilidade do Conselho de Ministros da Justiça e dos Assuntos Internos[30]. O Conselho é responsável pelo acompanhamento e controle da Europol. Além disso, nomeia o diretor e os diretores adjuntos e adota o orçamento da Europol.
É importante notar que, sobre a sistemática específica consistente no fato de que o Conselho de Ministros integra representantes de todos os Estados-Membros e sempre delibera por unanimidade, viu-se exsurgir uma contribuição significativa para a garantia de um controle democrático acerca dos procedimentos da Europol.
A existência da metodologia supra é mesmo indispensável para uma união do gênero.
Aliás, o mecanismo suso afasta por completo, oportunamente, aquelas clássicas técnicas de pacificação de conflitos como, v.g., a máxima de Deutsch a qual pregava a interferência diplomática de países estranhos, alheios às intenções daqueles diretamente envolvidos no tema que se quer ver solucionado:
“É possível solucionar pontos controvertidos pela “diplomacia direta” – isto é, por meio da negociação entre as partes diretamente interessadas. Se esse processo falhar e levar a impasses e a riscos de escala do conflito, terceiros países podem ser chamados a intervir. Sua participação pode ser limitada aos bons ofícios, tais como providenciar hospitalidade e terreno neutro para a próxima fase de negociações. Ou poderão agir através da mediação, oferecendo sugestões ou propostas para um possível acordo. Estas são ouvidas pelas partes contendoras na proporção não apenas de seus méritos intrínsecos, mas também segundo o poder do país cujo governo as propõe” (DEUTSCH, 1982, p. 231).
Ao Conselho de Administração da Europol, ainda, composto por um representante de cada Estado-Membro, compete a tarefa global de fiscalizar as atividades da organização.
Uma Instância Comum de Controle, constituída por dois peritos em matéria de proteção de dados de cada um dos Estados-Membros, controla o conteúdo e a transmissão de todos os dados pessoais em poder da Europol.
Já que o crime organizado internacional não cessa nas fronteiras nacionais, a Europol melhorou também a sua cooperação em matéria de aplicação da lei ao nível internacional, através da negociação de acordos bilaterais estratégicos ou operacionais com outros estados e organizações internacionais.
Essa expansão pela inter-relação com outros Estados que não aqueles integrantes da própria UE demonstra que a busca pela excelência no combate à criminalidade pelos países que já fazem parte da Europol está muito além de um simples jogo de poder entre as potências regionais da União Europeia e, segundo Wight, talvez possa mesmo ser uma expressão natural da tradição e do poder congênitos da Europa.
“Não necessariamente a experiência de integração europeia pode ser compreendida como decorrente de tradição racionalista ou de um jogo de poder entre potências regionais. “A política do poder e a longa tradição europeia de razão de Estado foram centrais tanto para as origens quanto para o desenvolvimento histórico de integração europeia.” […] (WIGHT, 2002, p. XXIX).
Por tudo que se expôs, portanto, o MERCOSUL, a caminho da formação de uma polícia comum, que se mostre mais eficaz no combate à criminalidade, pode reconhecer na Europol um paradigma de referência.
Mas não menos importante, nessa linha de raciocínio comparativo, é discorrer-se também sobre a Interpol[31]. Com efeito, referida força policial atua, essencialmente além fronteiras de onde suas experiências vivenciadas até o momento não são menos importantes ao estudo que se desenvolve aqui.
Preliminarmente, não obstante, é de suma importância esclarecer que a Interpol em muito se diferencia da Europol. Esta última, sem dúvida, é a expressão de uma realidade que deve ser almejada pelos países que compõem o bloco Mercosulino. A Interpol, por sua vez, mais tem a ver com cooperação policial do que com Polícia comum. Em termos de cooperação policial, referido mecanismo já existente indubitavelmente no âmbito do MERCOSUL. Não obstante, por ser a Interpol uma instituição policial internacional de grande e inquestionável prestígio, válida é a sua menção, ainda que singelamente, como metodologia comparativa neste trabalho.
Com 181 países filiados, a Interpol é a segunda maior organização internacional existente, atrás apenas da ONU, com 191 países-membros. Sua importância é cada vez maior diante da chamada “globalização do crime” a qual opera por meio de redes terroristas, cartéis de tráfico de drogas e quadrilhas de contrabando de armas.
Entretanto, ao contrário do que muitos filmes fazem supor, os agentes da Interpol não são “detetives universais” dotados de imunidade diplomática e com poderes de aprisionar pessoas em qualquer ponto do planeta. A organização não se pode sobrepor aos sistemas legais de cada país, nem possui um quadro próprio de policiais ao redor do mundo. No Brasil, por exemplo, seu efetivo é composto de funcionários da própria Polícia Federal.
Vale salientar que a Interpol atua basicamente em três vertentes: a) na área de inteligência, que é a busca dos dados em si; b) a coordenação de operações policiais em um ou em mais países; c) e a busca de informações para uma investigação já iniciada por outra polícia.
A história da organização começou em 1923, quando o chefe da polícia de Viena, Johann Schober, inaugurou, na Áustria, junto com outros 14 países, a primeira sede da Polícia Internacional. A iniciativa de Schober vinha tentar coibir a facilidade com que os criminosos da Europa, na época, escapavam da lei ao atravessarem a fronteira em direção a um país vizinho.
Quando a Alemanha de Adolf Hitler anexou a Áustria, em 1938 (junto com os arquivos da Interpol), suas atividades foram suspensas. Somente em 1946 a polícia internacional foi recriada, com sede em Paris, onde permaneceu até 1989, quando foi transferida para a atual sede em Lyon. Seu nome oficial é Organização Internacional de Polícia Criminal.
Quando um criminoso foge do Brasil, o escritório central da Interpol no país inclui o nome e as informações sobre o procurado na chamada “difusão vermelha”, lista dos foragidos que circula pelos computadores dos escritórios da Interpol nos seus 181 países filiados. Uma vez localizado pela polícia de outro país, o escritório brasileiro pede a prisão preventiva. Se o pedido for aceito, a Interpol no Brasil se encarrega de fornecer à justiça do outro país as informações necessárias para o processo de extradição. Concedida a extradição, os agentes da Interpol no Brasil cuidam da operação de transporte e entrega do acusado à Polícia Federal.
Essa estratagema legal levada a efeito pela Interpol, como se pode inferir pela leitura daquilo já outrora dito por Leal, demonstra que o pensamento jurídico conservador já não conseguia mais dar vazão a uma série de desafios da sociedade hodierna, mormente no que tange aos avassaladores resultados da moderna criminalidade internacional.
“É já pacífico o entendimento entre os teóricos contemporâneos da Teoria do Direito que a dogmática jurídica que informa o pensamento jurídico vigente e conservador não consegue mais dar conta de uma série de desafios e demandas sociais atinentes à sociedade hodierna. Em decorrência dessa situação, os instrumentos e institutos jurídicos utilizados pelos operadores do direito, na sua maioria, da mesma forma não respondem ou sequer conseguem se adequar aos fenômenos sociais que lhe dão causa” (LEAL, 1999, p. 136).
Pela exemplificação, pois, comparativa advinda da análise estrutural das instituições Europol e Interpol, mormente em decorrência do que se viu naquela primeira, é oportuna e necessária a formação de uma Polícia comum no âmbito do MERCOSUL.
A evolução natural da sociedade global apresenta-nos novos desafios os quais passam a exigir, por natural, novas técnicas, novos avanços, enfim, novas formas de ver e de agir, como se verá adiante.
3.1.1 Novos crimes. Novas técnicas
O crime transnacional é, indubitavelmente, uma ameaça às instituições democráticas existentes e um sem igual desafio para o ordenamento jurídico internacional. A ilicitude organizada transnacional pode ser considerada, ainda, como uma das maiores ameaças à segurança humana na atualidade.
Com efeito, os criminosos aproveitam todas as brechas das normas jurídicas da cada país, para burlar o seu aparato legal. Ainda mais, procuram internacionalizar suas ações em países onde as punições sejam mais leves e, de preferência, onde o mecanismo da extradição, por exemplo, seja mais difícil. Dessa feita, o fato de cada país ter a sua própria lei sobre o crime organizado dificulta, inarredavelmente, o combate a essa ameaça mundial.
Mostra-se evidente que a junção de esforços e de mecanismos legais e técnicos de combate à ilicitude transnacional deve exsurgir sem demora por meio de novas técnicas a serem postas em prática, em substituição aos mecanismos ultrapassados e internos de cada país utilizados até então para o combate a esses macrodelitos.
A globalização, longe está de abarcar, tão-somente, questões de caráter econômico. A cultura, os costumes, as tendências, as aspirações, etc., acabam por embaralharem-se em um verdadeiro emaranhado de trocas entre as nações, permutas essas consequentes da facilidade de tráfego de informações, de pessoas e de bens entre os países.
Por isso mesmo, a despeito do atual estágio das negociações em torno da Rodada Doha[32], a disseminação de novos costumes mundiais, a facilidade cada vez maior de acesso a informações, etc., e, infelizmente, a transnacionalização do crime são realidades que não mais retrocederão. A segurança pública, pois, passa a ser um bem comum de todas as nações.
A questão que persiste, todavia, é precisar-se como deverá perfazer-se o adjetivo “comum”, quando se fala em Polícia comum.
Ora, se o delito passou a ser transnacional, consequentemente o combate também o deverá ser. Como se viu alhures, há paradigmas que servirão de marcos para a formação de uma Polícia comum no âmbito do MERCOSUL, quais sejam eles, a Europol e a Interpol.
Se bem observar-se os mecanismos de cada uma delas, mormente o daquela primeira, ver-se-á que nunca houve, tampouco haverá, o suprimento das forças policiais de cada país.
Imagine-se, então, que a indigitada Polícia comum Mercosulina viesse a ser denominada Mercopol. Pois bem: referida instituição teria o desígnio precípuo de servir como força auxiliar às polícias nacionais, centrando-se nos macrodelitos e sendo plenamente competente para investigá-los, colhendo-se os meios de provas bastantes para a promoção de ações penais.
Assim, deveria ser constituída de corpo de agentes próprios, com treinamento próprio, com sede própria e agências em cada país signatário.
Nesse ponto, é importante estabelecer que, para o início da ação penal e posterior julgamento, não seria, pelo menos em um primeiro momento, necessária a criação de um tribunal específico, o que não deixaria de ser bem-vindo futuramente, como fluxo natural das evoluções advindas de uma Polícia comum.
De momento, realmente, bastaria o estabelecimento de regras de competência para o processo e julgamento dos delitos apurados pela Mercopol, como a prevenção, ou o estabelecimento de que o primeiro delito, ou o mais grave deles, praticado pela organização criminosa, decidiria a competência territorial do país que se responsabilizaria pelo julgamento, este a ser levado a efeito por meio das próprias normas internas do país que se assentou, então, como competente para o processo e pronunciamento de decisum final acerca do episódio desvalioso.
Essa nova sistemática a qual, obviamente, aperfeiçoar-se-ia com o passar dos anos, como tudo neste mundo, já seria muito mais producente no âmbito do MERCOSUL do que a sistemática tradicional onde as polícias que investigam os macrodelitos são as de cada país, muito diferentes umas das outras, desunidas a bem da verdade e, se de alguma forma acabam cooperando entre si, isso ocorre por meio dos ainda parcos e abstratos textos das normas de cooperação policial existentes.
É claro que dessa uniformização policial defendida aqui deverão advir fatores positivos, em contraste com as dificuldades contraproducentes vivenciadas hoje pelas polícias dos países que compõem o bloco.
Essas novéis conjunturas a que todos os povos da América do Sul, e do MERCOSUL em particular, aspiram podem ser, de alguma forma, antevistas desde já, como se verá mais adiante.
3.2 Previsões positivas que se evidenciam em torno de uma conjectura uniformizadora
Nos dias de hoje, os países que se limitam a cuidar somente dos próprios interesses governamentais mostram-se cada vez mais desatualizados. O individualismo nacional tende a ceder espaço à união. Os riscos advindos de sociedades tão-somente voltadas para o individualismo tendem a potencializar-se.
Com efeito, sob a perspectiva da evolução atual da sociedade, especialmente a dos países em plena senda desenvolvimentista, a ideia de risco talvez ainda somente advenha do aspecto de expressão da natureza, quando, nas sociedades mais desenvolvidas, a ideia de risco advém mais dos erros do homem e da sociedade em evolução do que da própria natureza. Varela já se havia pronunciado a respeito dessa evolução sobre a concepção do risco, assim dizendo:
“O caráter puramente natural dos riscos chega, portanto, a diminuir. Trata-se da mesma coisa no que diz respeito às mudanças de clima com uma dimensão de irreversibilidade. O risco natural não exclui, portanto, a busca de responsabilidades. Um tremor de terra suscitará perguntas sobre a construção de habitações que não resistiram a riscos sísmicos conhecidos, inundações levarão à busca de responsabilidades na concessão de autorizações para construir em zona inundável. De uma forma geral, o respeito dos grandes equilíbrios naturais torna-se uma preocupação crescente; a fronteira entre o risco natural e o risco tecnológico diminui” (VARELA, 2006, p. 32).
As concepções viabilizadoras acerca de ideias voltadas à coletivização dos povos, minimizando o papel das balizas territoriais, devem preponderar. Materializa-se, como nunca, a máxima de estar-se vivendo em uma aldeia global, de modo a merecer tratamento comum à vasta gama dos aspectos ligados à vida em sociedade. Vieira, nessa linha de raciocínio, esclarece que “o Estado nacional foi considerado durante muito tempo como a organização mais importante da Política, , […]. (VIEIRA, 2007, p. 16). Hoje, todavia, vale acrescentar ao esclarecimento daquele nobre e celebrado doutrinador que o conjunto formado por estados nacionais sobrepõe-se, de forma cabal, à importância que deve ser concedida a apenas um deles. Os sistemas, portanto, formados por organismos internacionais, como o de uma Polícia comum, devem inclinar-se à resolução de interesses pertencentes a um conjunto de nações, mesmo que essa sistemática venha a sobrepor-se aos interesses de apenas um Estado nacional em particular.
Se, de um lado, urge aos países, por menores e mais frágeis que sejam, a necessidade de procederem com firmeza a atos consentâneos com o predicado soberania, de outro impõe-se-lhes o enfrentamento dos obstáculos comuns, dentre eles a criminalidade transnacional, por meio de um trabalho conjunto, tornando-se a existência das linhas fronteiriças um simples meio voltado à preservação de suas organicidades culturais.
A cooperação policial hoje existente no âmbito do MERCOSUL deve ceder espaço à perfeita uniformização, à formação de uma instituição comum, com espaços físicos próprios, sede central própria, corpo de funcionários próprios, metodologia de atuação e competência também próprias, o que é, sem dúvida, uma meta de peculiar interesse para o MERCOSUL.
“Na medida em que o MERCOSUL, além e ao lado das suas exigências internas e estruturais, indispensáveis para a consolidação do processo de integração, permita-nos também aprender a viver e a aplicar o direito internacional, assim como a compatibilizar as exigências também estruturais da convivência e da atuação dos ordenamentos jurídicos interno e internacional, nas suas respectivas esferas de “peculiar interesse”, estaremos fazendo processos que vão além do caso concreto”, […] (CASELLA, 1996, p. 54 e 55).
Dentro dessa concepção de união policial, na medida em que ela se tornasse sólida, na medida em que ela se concretizasse, questões novéis poderiam ser, além de retiradas dos anais meramente especulativos, postas em plena prática. Cite-se, por exemplo, a questão ambiental relativa à responsabilização penal de pessoas jurídicas, em especial das instituições financeiras, frente a condutas lesivas ao meio ambiente, como se verá adiante.
3.2.1 Crimes ambientais praticados por multinacionais e sua repressão internacional. Hipóteses possíveis.
Efetivamente, não são apenas os macrodelitos clássicos que devem ser abarcados pela desejada Polícia comum. Existindo e estando esta atuante, temáticas ousadas, porém extremamente presentes em nossas vidas, como a responsabilização penal das instituições financeiras, poderiam ser apreciadas e resolvidas faticamente.
Verdadeiramente, em um continente composto essencialmente por países em plena senda desenvolvimentista, a economia, potencialmente, pode sobrepor-se ao meio ambiente por meio de condutas criminosas levadas a efeito por multinacionais ou por empresas que, embora nacionais, coloquem em xeque não só o meio ambiente interno do país, mas o meio ambiente circundante além fronteiras.
Está-se aqui sim discorrendo exemplificativamente sobre questões envolvendo o meio ambiente, como forma de justificar a criação de uma Polícia comum. Ocorre que referida temática sempre vem à tona, quando o que se quer deixar claro é que há condutas as quais ultrapassam fronteiras e sem exceção interessam a qualquer nação. Não há parte qualquer deste planeta onde não se considere de importância social a proteção do meio ambiente. Uma Polícia uniforme, portanto, deve-se ater à defesa desses interesses comuns, afetos a um conjunto de nações, tal qual o MERCOSUL. Jamais se deve cogitar da criação de um órgão de tamanha importância para a proteção de uma minoria, já que a proteção de minorias pode mesmo gerar a problemática que bem já nos foi anunciada por Wucher:
“O risco de medidas de discriminação positiva se reverterem, por sua vez, em discriminação foi igualmente evocado no decorrer dos debates. Nesse contexto, é particularmente relevante frisar que políticas visando à proteção de minorias não devem ser destinadas apenas às minorias em questão, mas à sociedade em sua totalidade, o que pressupõe e implica uma visão holística – e não particularista – da proteção das minorias: […]” (WUCHER, 2000, p. 100).
Nessa linha de raciocínio, também parece um tanto impróprio e impotente um conjunto de polícias que só atendam aos interesses internos de cada país, sem atuação ampla além dos marcos demarcatórios de cada Estado.
A elaboração intelectual aqui expendida, onde se defende a união de esforços para a perpetração de objetivos comuns, por meio da criação de uma Polícia comum e aplicação de normas de natureza internacional a respeito, com reflexos em cada país-membro do MERCOSUL, não deveria mais, como disse Boson, ostentar qualquer aparência de novidade significativa, diante da evolução da Humanidade e, em especial, do Direito Internacional:
“A existência do Direito Internacional constitui hoje uma tese de que ninguém mais cogita. Matéria que tanto apaixonara os juristas e sociólogos do fim do século XIX e começo do século XX, desapareceu dos compêndios e manuais, salvo como apontamentos de interesse histórico ou quando, de modo especial, serve de tema especulativo filosófico, […].[…]” (BOSON, 1994, p. 27).
A possibilidade de atuação de uma Polícia comum frente a crimes ambientais além fronteiras é de grande valia neste momento em que se pretende esclarecer as benesses que adviriam da conjectura unificante proposta nesta dissertação. A relevância desse tema exsurge da sua patente proeminência dentro da literatura referente ao meio ambiente, conjuntura perceptível ante a possibilidade de perfazer-se, por exemplo, do financiamento e do crédito instrumentos de controle ambiental, com fiscalização policial transacional.
Com efeito, percebe-se que compete às instituições financeiras não proceder a gestões temerárias no desenvolver das suas atribuições, conjuntura em que lhes é inobscurecível aprovar, tão-somente, financiamentos cuja gênese assente-se em pleitos aderidos a projetos que viabilizem a preservação ambiental.
A conservação do meio ambiente é tema sempre atual e palpitante, constituindo-se, em verdade, em um direito humano fundamental e de cunho universal, o que justifica uma atuação policial transnacional e uma maior atenção do direito internacional, já que, embora abarque suma importância, vem ele sendo constantemente violado.
“[…] o tema dos direitos humanos diz respeito ao cotidiano dos povos de todos os continentes. Embora esses direitos estejam documentalmente reconhecidos, na realidade, são constantemente violados.” (BRAUN, 2002, p. 198).
Vale salientar, nesse diapasão, que se devem abarcar na acepção de “instituições financeiras” não só os bancos tradicionais, mas também as cooperativas, autarquias, sociedades de economia mista, os bancos múltiplos, de investimento, os fundos de pensão, enfim, todas aquelas instituições que possam, em sentido amplo, inserir-se na expressão supradita, porquanto, do contrário, estariam sendo violados, a menos em nível nacional, o princípio e o espírito do artigo 225 da Carta Magna nacional[33], no que se refere ao dever de defesa e de preservação ambiental incumbidos ao Poder Público e também à coletividade.
Dessa arte, a responsabilização das instituições internacionais de crédito é medida perfeitamente obtenível por meio dos atos de Direito Internacional Público, conjugados com uma Polícia transnacional, especializada e ciente dos problemas particulares desta região da América.
Assim sendo, o financiamento deve constituir-se em um manifesto instrumento de controle ambiental, mormente na medida em que o desenvolvimento econômico passa a eleger a defesa e a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado como uma das suas diretrizes. E exatamente pelo fato de que as instituições financeiras cumprem papel de vultosa relevância na seara do desenvolvimento econômico, não se pode conceber como plausível as suas não co-responsabilizações quando de financiamentos a atividades potencial ou efetivamente poluidoras.
A temática aqui proposta, outrossim, não pode deixar de avocar, para que haja um adequado compreendimento seu, a análise pormenorizada da conhecida “Teoria Social do Risco”, conjuntura em que o exame dos postulados propostos por Ulrich Beck[34], Anthony Giddens[35] e Scott Lash[36] mostra-se como elemento essencial à obtenção de um resultado exitoso.
A sociedade de risco, de efeito, apresenta vinculação com o fenômeno da chamada globalização, apresentando ao mundo do Direito novas indagações. Infere-se, assim, que o risco é convizinho da globalização, porquanto as expansões técnicas, científicas e econômicas inserem fragilidade aos sistemas, enfraquecendo os Estados Democráticos de Direito. A Globalização, consoante Ulrich Beck, significa aproximação e mútuo encontro de culturas locais as quais se devem definir de novo no marco desta nova realidade mundial. Ulrich Beck afirma ainda que o universal é fruto do particular[37]. Vale acrescentar, ainda, que Giddens compartilha a noção de Beck a qual aponta para a ideia de que a sociedade no período da modernização reflexiva caracteriza-se pela multiplicação dos perigos criados pela própria humanidade, acompanhada pelo revestimento de um caráter global nas suas consequências. Além disso, não menos importante lembrar ainda a ideia de Scott Lasch sobre o que seria uma “sociedade de comunicações globais” contemporânea, sociedade esta que, aproveitando o advento da internet e de outros vários meios de comunicação tais como o telefone celular, ou até mesmo de modernos meios de transporte como os aeroportos, angariou grande facilidade em mudar-se ou de deslocar-se de um ponto para o outro do planeta, não por meio de uma linha reta, mas saltitando de modo descontínuo. Referida sociedade contemporânea tratar-se-ia de uma sociedade de fluxo ou, em outras palavras, de uma sociedade em rede[38].
Nessa linha de raciocínio, a co-responsabilização por danos ambientais das instituições financeiras exige, indubitavelmente, a participação ativa e efetiva de todo o conjunto daqueles países que se encontram em plena vereda desenvolvimentista, tais como os integrantes da América Latina, em especial do MERCOSUL. Óbvio é, portanto, que se exige um órgão de polícia supranacional, a fim de gerenciar a necessária repressão a esse e a tantos outros macrodelitos.
A coerção física, cerne da repressão penal, pode ser materializada, sim, no corpo daqueles que, efetivamente, levaram a efeito a conduta lesiva ou ofensiva ao meio ambiente, quais sejam eles, os dirigentes, administradores ou responsáveis pelas pessoas jurídicas.
É impensável, em tempos modernos como o nosso, admitir-se que, sob a ficção de uma pessoa criada formalmente pelo homem, exima-se este de responsabilidade penal, uma vez que, mesmo havendo praticado crime, aduza que, em verdade, foi aquela fantasia que o praticou, restando a ele toda inocência.
A sociedade moderna é de risco e a repressão estatal deve conter o condão de frear, o quanto possível, a perfectibilização de resultados danosos, mormente os criminosos, advindos da ganância econômica. É vital, assim sendo, que o Estado, no seu verdadeiro e precípuo papel de velar pelos interesses legítimos dos seus nacionais, dê forma a órgãos capazes de assim agir. Sobre a força com que os interesses econômicos, frente a outros não menos legítimos, destrói as fronteiras, já nos anunciara outrora Menezes oportunamente o que segue:
“A ordem econômica internacional aos poucos destrói as fronteiras dos Estados, pois este deixa de ser o detentor soberano para legislar sobre grande parte das regras econômicas, porque outrora permitiu a internacionalização do sistema, aquela que fortaleceu as economias” […]. […] (MENEZES, 2005, p. 99).
O problema todo é que não deveria ser apenas o interesse econômico a transpassar as fronteiras como o raio X o faz com a carne humana. O intuito de velar pelo meio ambiente, a intenção em prevenir e reprimir os delitos transnacionais, isso sim é o que deveria ser.
Evidencia-se inafastável, pois, a criação de uma Polícia comum Mercosulina, por serem as questões aqui abarcadas merecedoras de atenção ímpar por aqueles que naturalmente são comprometidos com os interesses maiores, como o conforto espiritual e material dos seus semelhantes.
É esse o modo de pensar que deve prevalecer nestes tempos de globalização, de intercâmbio incomum não apenas na área do comércio, mas também na área da cultura dos povos. A multiplicidade de conflitos que certamente surgirá com a abertura crescente dos mercados, com o aumento dos contatos das populações dos países do MERCOSUL, deve ensejar o recrudescimento de medidas punitivas. A formação de uma Polícia comum é meio para tanto.
E não se olvide, por outro lado, que futuramente também deve seguir essa mesma linha de raciocínio a formação de um Tribunal Penal Mercosulino, competente especificamente para a apreciação dos casos tratados por esse almejada Polícia.
A respeito dessa sempre premente necessidade de criação de instituições transnacionais, Jobim já se manifestou no seguinte sentido:
“[…] é absolutamente necessária […] a criação de instituições supranacionais. Contudo, a criação de instituições não é um produto da racionalidade jurídica. É um produto decorrente dos naturais processos de integração econômica e social, que conduzem a globalização do processo econômico e, portanto, impõem tendo em vista estas circunstâncias, a criação de mecanismos que possam tratar de assuntos que não são domésticos.” […] (JOBIM, 1996, p. 264).
Outro ponto importante a ser observado é que, em havendo uma Polícia transnacional, que atenderá a vários países, ou seja, a um conjunto de países, não deve ser a predominância do interesse daquelas nações mais fortes o que deve valer. Há de ousar-se, visando a tornar prevalecente o interesse social como um todo, o bem-estar dos nacionais de cada país, servindo essa nova manifestação da globalização, ou seja, a novel Polícia comum, um instrumento legítimo de justiça.
E se a experiência da Europol deu certo no primeiro mundo, por que não no raio de ação do MERCOSUL? Não teria ele vida e aspirações tão próprias quanto à União Europeia?!
“No caso do MERCOSUL, ninguém duvida de que o bloco tem vida própria: suas instituições comunitárias irradiam uma influência política e econômica significativas, tanto nas ordens internas como na cena internacional” (VENTURA, 2003, p. 99).
Não nos é dado desprezar, ainda, a necessidade de termos um sistema penal abrangente, de amplitude continental, frente aos delitos que se alastram pela América do Sul, mormente o tráfico de drogas, com quadrilhas internacionais organizadas em com aparatos material e humano que somente em sonho veríamos de forma similar em nossas polícias nacionais em seus estágios atuais.
Nessa conjectura uniformizadora, portanto, devem-se cogitar resultados positivos e trabalhar muito para tanto, especialmente no que tange à premente necessidade de formação de uma Polícia comum, não obstante as assimetrias patentes e indubitáveis existentes entre os países que compõem o bloco.
“A assimetria constitucional entre os Estados-menbros do MERCOSUL constitui uma realidade. Alguns autores consideram que ela poderia provocar, em última instância, a “desintegração” do bloco. Porém tal assimetria é de fato, intransponível? A resposta a essa questão só pode ser negativa” (VENTURA, 2003, p. 222).
As adaptações legislativo-constitucionais dos países componentes do MERCOSUL e o que foi formalizado até aqui no campo econômico é uma pequena porção do muito que se tem a realizar. As inovações hão de ser implementadas fielmente à premissa de que tudo deve ser feito em proveito comum, em prol dos povos envolvidos, com especial atenção para o afastamento das desigualdades existentes, criando-se foro especial e supranacional para a apuração e resolução de conflitos penais que resultem desse novo estágio de convivência pretendido e anunciado. Nesse compasso, nada mais viável que a criação de uma Polícia comum e, mais futuramente, também de um Tribunal próprio e especializado para a solução dos fatos por ela apurados.
A viabilidade, pois, de se auferirem, por meio da formação de uma Polícia comum, dádivas dignificantes à população formada pelo conjunto dos países que compõem o bloco Mercosulino é irrefutável.
A unificação de forças tende, insofismavelmente, a angariar maiores resultados positivos que a atuação compartimentada e, nessa linha de agir, devem-se amoldar sem demora as atuais metodologias policiais de apuração de delitos transnacionais e de responsabilização dos seus autores.
Os macrocrimes surgem, justamente, do jungir de forças entre entes criminosos, pessoas físicas e/ou jurídicas, formando-se teias de delinquentes que se estendem pelo continente sul-americano, atravessando as fronteiras de cada país como se estas jamais houvessem existido. Por que, então, fomentar uma prática e uma sistemática ultrapassada de polícia voltada, unicamente, para os raios internos das fronteiras de cada nação?
O momento atual da humanidade parece mesmo acenar para mudanças, diante da globalização, e o Estado não deve mostrar-se desatento aos anseios sociais, divorciando-se deles, destacando-se dentre essas aspirações sociais a otimização da segurança pública, tornando-se esta mais efetiva e atenta aos delitos transnacionais.
Somente por meio dessa empatia, pois, que deve haver entre os desígnios dos governos que compõem o MERCOSUL e os desejos ardentes do povo latino-americano é que se pode prever o futuro do MERCOSUL como uma senda de sucesso.
“O divórcio entre os governos e a sociedade constitui um grave problema que contamina as investidas sucessivas do MERCOSUL, pois, sozinhos, os governos são incapazes de determinar a direção para a qual o MERCOSUL tem de evoluir” (VENTURA, 2003, p. 598).
Os dias atuais são mais desafiadores do que os pretéritos. A globalização não pode ser tomada apenas como meio para o fortalecimento da economia, mas como mecanismo eficaz para chegar-se a uma sociedade melhor, compreendendo-se nesta acepção a otimização da sua própria segurança pública, medida esta tão essencial, aspiração sem igual. Para tanto, é claro, deverá haver franca vontade política, uma imprescindível evolução democrática, uma mudança de visão dos líderes de cada governo envolvido, uma harmonização no que concerne aos tipos penais hoje existentes, uma irrenunciável redução dos níveis de corrupção que pairam pelos governos e suas polícias e, sem dúvida alguma, muito, mas muito diálogo.
4. Considerações finais
Como foi possível verificar nesta pesquisa com a sua temática francamente voltada para o estudo acerca da viabilidade de formação de uma Polícia comum no âmbito do MERCOSUL, a conjuntura vivenciada pelo mundo moderno, onde a criminalidade transnacional suplanta fronteiras, urge-se que se torne cada vez mais vívida a hipótese de instituição de uma Polícia comum Mercosulina.
Com efeito, por meio da expansão sem precedentes de determinados crimes para além das fronteiras nacionais, é premente que se forme o quanto antes uma polícia transnacional, com atuação e com especialidades voltadas para a realidade do MERCOSUL como um conjunto de nações.
Foram elencados ao longo do trabalho alguns delitos além fronteiras, tais como a extorsão mediante sequestro, o narcotráfico, o terrorismo internacional, o tráfico de armas, os crimes ambientais, a biopirataria, a lavagem de dinheiro e a pedofilia praticada pela internet, como metodologia tendente a destacar as suas potencialidades nefastas às populações diretamente envolvidas, assim como foram esclarecidas as dificuldades hoje enfrentadas pelas polícias nacionais ante a ausência de uma junção fática e jurídica a ponto de ensejar uma Polícia comum.
Mostrou-se, também, que o crime transnacional é, indubitavelmente, uma ameaça às instituições democráticas existentes e um sem igual desafio para o ordenamento jurídico internacional. Efetivamente, os criminosos aproveitam todas as brechas das normas jurídicas da cada país, para burlar o seu aparato legal. Além disso, procuram internacionalizar suas ações em países onde as punições sejam mais leves e, de preferência, onde o mecanismo da extradição, por exemplo, seja mais difícil. Dessa feita, o fato de cada país ter a sua própria lei sobre o crime organizado dificulta, indiscutivelmente, o combate a esse perigo mundial.
Dentro das previsões positivas, outrossim, que se vislumbram com a hipótese de formação de uma Polícia comum está, em especial, o combate aos crimes ambientais praticados por multinacionais, onde foi delineado, em item específico deste trabalho, hipóteses possíveis de combate a esse mal em particular. De modo indubitável, em um continente composto essencialmente por países em plena senda desenvolvimentista, a economia, potencialmente, pode sobrepor-se ao meio ambiente por meio de condutas criminosas levadas a efeito por multinacionais ou por empresas que, embora nacionais, coloquem em xeque não só o meio ambiente interno do país, mas o meio ambiente circundante além fronteiras.
O complexo de técnicas e processos utilizados pelas polícias compartimentadas de cada nação, para atingir objetivos comuns além fronteiras já se mostrou, ao longo dos anos, tão vencido, tão ineficaz, tão obsoleto que até mesmo diante do mero e ordinário controle dos ilícitos locais, circunscritos a cada comunidade nacional, os fracassos a respeito estampam-se diariamente pelas manchetes dos principais jornais impressos e televisivos latino-americanos.
Não se olvide, por outro lado, de que há, entre os países que compõem o bloco, uma bem intencionada, embora incipiente, cooperação policial. Essa experiência, porém, muito longe está de alcançar os sucessos que só advirão por meio da formação de uma Polícia transnacional.
A economia globalizada e mesmo a sociedade que também se globalizou criaram uma nova ordem de cunho mundial, onde os países precisaram-se unir, com o intuito de adquirirem maior poder decisório perante outras comunidades internacionais, outros blocos, ante novas situações. Evidenciou-se, dessa forma, que da integração surgiu, ao natural, o impacto da cultura e dos costumes locais, avocando-se novos conceitos, novas posturas e novos desígnios.
Quando o MERCOSUL (MERCOSUL) surgiu, em 26 de março de 1991, com a assinatura do Tratado de Assunção, consolidou-se, firmemente, uma nova ordem internacional. As nações que passaram a compor esse novo contexto Mercosulino, considerando-se a vultosa onde crescente de violência urbana e o ascendente crime organizado envolvendo a prática de crimes transnacionais, passou a desenvolver mecanismos de atuação e repressão específicos a essa espécie de ilicitude. Assim, no âmbito do MERCOSUL, surgiu a cooperação jurídica entre os Estados-partes e associados do bloco, consubstanciada na “Reunião de Ministros da Justiça do MERCOSUL” (RMJ), sendo este o foro responsável para tratar das políticas comuns a respeito da temática de colaboração jurídica. Diante disso, no que tange aos acordos de cooperação internacional em matéria penal, várias normas do MERCOSUL emanaram da RMJ .
No mesmo compasso, e por outro lado, quanto às políticas comuns de segurança pública ou de inteligência entre os Estados-partes e associados do MERCOSUL, o campo no qual se passou a discutir tais temas foi a “Reunião de Ministros do Interior” (RMI).
Assim, com relação à integração policial entre os países, surgiu uma considerável normativa emanada da RMI. Esse novo emaranhado de normas de cooperação oriundo da RMI reflete o crescimento das funções dos Estados membros na área de segurança pública conjunta, ocasião em que se mostrou indispensável a crescente emanação de normativas as mais variadas, com o escopo de se verem protegidos os seus nacionais.
Não obstante, essa cooperação policial hoje existente mo âmbito do MERCOSUL é medida ainda jovial, que exige o adequado amadurecimento seu, assim como ocorreu na Europa, onde hoje temos uma Polícia comum, com sede própria, funcionários próprios e competências funcionais que ultrapassam as fronteiras de cada país-membro.
É real que o Centro de Coordenação de Capacitação Policial do MERCOSUL (CCCP) caminha no ritmo do MERCOSUL, buscando participar do processo de fortalecimento da integração regional. Todavia, o CCCP deve ser visto como gênese de uma futura e verdadeira uniformização policial. Só assim, ver-se-á uma instituição com força suficiente para o enfrentamento de algumas nefastas consequências da globalização, qual seja uma dentre elas, o crescimento avassalador do crime organizado internacional.
Assim, essa mesma globalização supradita que proporcionou agilidade nas transações econômicas entre os países também propiciou o surgimento da criminalidade supranacional, razão por que exsurge a necessidade inafastável de união entre os países atingidos por ela, como forma de se propiciar o enfrentamento dos avanços dessa transnacionalização criminal.
Todo o mecanismo de cooperação policial já existente, pois, embora muito melhor do que um indesejado vácuo normativo e operacional relativo aos delitos transnacionais, longe está do ideal, porquanto, na seara da simples cooperação, repousa uma infinita distância entre o sucesso das polícias nacionais e o sucesso da criminalidade internacional.
Uma legislação internacional, ainda, que conceda gênese e efetiva formação a uma Polícia comum, certamente estaria na esteira do que se concebe modernamente por Direito Comum, tão imprescindível e salutar à sociedade moderna na lição da melhor doutrina.
Questões pertinentes à segurança pública supranacional são, efetivamente, de interesse mundial e, com a transnacionalização dos ilícitos penais, vê-se que referido setor público tornou-se, da mesma forma, um assunto e, ao mesmo tempo, um problema de âmbito mundial.
Dessa arte, e por tudo o que se expôs neste trabalho, o melhor raciocínio perante a realidade hodierna do MERCOSUL aponta para o fato de que a cooperação policial existente hoje deve ceder espaço à perfeita união policial, à formação de uma instituição comum (de uma Polícia comum), com espaços físicos próprios, sede central própria, corpo de funcionários próprios, metodologia de atuação e competência próprias. Somente assim, decerto, promover-se-á vividez a uma sistemática eficiente, à altura do combate que a macrocriminalidade internacional insolentemente reclama.
Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)
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