É de causar
perplexidade a grande quantidade de manobras e meios ardis utilizados pelo
governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, positivados em várias
medidas provisórias com força de lei por vezes esdrúxulas e reeditadas
indiscriminadamente, objetivando por em prática as políticas neoliberais
ditadas pelo Fundo Monetário Internacional.
Num período em que
se cogitou a extinção da Justiça do Trabalho, a instituição da Lei da Mordaça a
Juízes e Promotores, em que se instituiu a emenda constitucional do calote dos
precatórios, bem como, o grande acordo do FGTS, com prejuízo para milhares de
trabalhadores e também advogados e tantas outras heresias jurídicas.
É sob esse clima,
que possivelmente na ânsia de frustrar milhares de ações judiciais reivindicatórias
de direitos historicamente contemplados e legalmente instituídos, em que
figurava a União na qualidade de ré, há pouco mais de três anos, a Presidência
da República editou a Medida Provisória n° 1.984-17, de 4 de maio de 2000[1],
atual MP 2.180-35/2001, acrescentando ao art. 741, do Código de Processo Civil,
que trata dos embargos à execução fundada em sentença, um dispositivo normativo
que confere, ainda que por via indireta, efeito vinculante e eficácia erga omnes às decisões do Supremo
Tribunal Federal, fora das hipóteses e limites constitucionais.
Com suas
sucessivas reedições e adaptações, mas com valor normativo praticamente
idêntico às edições anteriores, dispôs o art. 10, da Medida Provisória n° 2.180-35, de 24 de agosto de
2001, o seguinte:
Art. 10. O art. 741
da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, com a redação dada pela Lei no
8.953, de 13 de dezembro de 1994, passa a vigorar acrescido do seguinte
parágrafo único:
“Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II
deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei
ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou
em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição
Federal.” (NR)
Assim sendo, pelo
referido dispositivo infraconstitucional com força de lei, foi conferido o
caráter de inexeqüibilidade aos títulos judiciais fundados em lei ou ato
normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, bem como,
de cuja aplicação ou interpretação tenham sido igualmente reconhecidos como
incompatíveis com a Constituição da República.
Ocorre que a norma
em questão padece dos mais comezinhos vícios de inconstitucionalidade.
Em primeiro lugar,
sofre de inconstitucionalidade formal, pois ainda que se reconheça ser defeso à
instância última do controle da legalidade dos atos da administração pública,
qual seja, o Poder Judiciário, de examinar o mérito administrativo, ou a
ocorrência das hipóteses de oportunidade e conveniência, é patente que a norma
instituída, nasceu de ato normativo editado fora das hipóteses de relevância e
urgência, exigidas pelo artigo 62, da Constituição da República, pelo menos no
que tange à matéria ora objeto de breve estudo.
Sábio é o
pronunciamento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, Relator
no RE 166349-9/DF, segundo o qual:
“(…) O que
justifica a edição de medidas provisórias é a existência de um estado de
necessidade, que impõe ao Poder Executivo a adoção imediata de providências de
caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação,
em face do próprio periculum in mora que certamente decorreria do atraso da
prestação legislativa (…)” (1º Turma, RE 166349-9/DF, DJ 25/11/1994).
Acerca da hipótese
de aferição de relevância pelo Poder Judiciário, ensina com ênfase Celso
Antônio Bandeira de Mello que:
“O Judiciário não sai de seu campo próprio nem invade
discrição administrativa quando verifica se pressupostos normativamente
estabelecidos para delimitar uma dada competência existem ou não existem. (…)
Se a Carta Magna tolerasse edição de medidas de emergência fora dessas
hipóteses não haveria condicionado sua expedição à pré-ocorrência destes
supostos normativos. Segue-se que têm de ser judicialmente controlados, sob
pena de ignorar-se o balizamento constitucional da competência para editar
medidas provisórias. Com efeito, se relevância e urgência fossem noções só
aferíveis concretamente pelo Presidente da República, em juízo discricionário
incontrastável, o delineamento e a extensão da competência para produzir tais
medidas não decorreriam da Constituição, mas da vontade do Presidente, pois
teriam o âmbito que o Chefe do Executivo lhes quisesse dar. Assim, ao invés de
estar limitado por um círculo de poderes estabelecido pelo Direito, ele é quem
decidiria sua própria esfera competencial na matéria, idéia antinômica a tudo
que resulta do Estado de Direito.”[2]
Igualmente, a
norma ínsita no art. 741, encontra-se viciada por vício de
inconstitucionalidade formal, pois o ato normativo instituidor feriu o
mandamento contido no artigo 59, parágrafo único[3],
da Constituição da República, que manda obedecer à lei complementar reguladora
do processo legislativo.
Isso porque a Lei
Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispôs sobre a elaboração,
a redação, a alteração e a consolidação das leis, editada por força do referido
mandamento constitucional, determinou em seu art. 7°, incisos I e II, que excetuadas
as codificações, cada lei tratará de um único objeto e a lei não conterá
matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade,
pertinência ou conexão.
No entanto, a
Medida Provisória n°
2.180-35/2001 dispôs sobre diversas matérias de ordem processual, de
administração de pessoal e de patrimônio público da União, dentre outras.
E não se diga, que
a ineficácia pode ser afastada pelo art. 11[4],
da referida lei complementar, pois em se tratando de medida provisória, não se
aplica a hipótese de inexatidão formal de norma elaborada mediante processo
legislativo regular, qual seja, a lei em sentido estrito.
Em segundo lugar,
a Medida Provisória n° 2.180-35/2001 encontra-se eivada de vício de
inconstitucionalidade material, pois a norma de seu art. 10, fere de plano o
princípio constitucional da coisa julgada e o princípio constitucional
implícito da segurança jurídica, previstos no art. 5°, inciso XXXVI, da Constituição
da República.
Dispõe o art. 5° e inciso XXXVI, da Constituição
da República:
“Art. 5º –
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: […]
XXXVI – a lei
não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada”;
Não bastasse, colide frontalmente com o art. 102, §
2°, da CF, cuja norma define taxativamente quais as
hipóteses de julgamento da Corte Suprema, que terão eficácia contra todos e
efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder
Executivo.
E a imutabilidade decorrente da coisa julgada é uma
garantia constitucional, de modo que nem mesmo a lei pode violá-la (CF art. 5º,
XXXVI), tal como o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, sendo por isso
direito fundamental e em razão do disposto no art 60, § 4º, inciso IV, é
cláusula pétrea da Constituição.
Defendendo a coisa julgada, ensina o
eminente processualista VICENTE GRECO FILHO, em seu clássico Direito Processual
Civil Brasileiro, p. 246, que o fundamento da coisa julgada “é a
necessidade de estabilidade das relações jurídicas. Após todos os recursos, em
que se objetiva alcançar a sentença mais justa possível, há necessidade teórica
e prática de cessação definitiva do litígio e estabilidade nas relações jurídicas,
tornando-se a decisão imutável“.
Às partes, num processo judicial são
oportunizados todos os meios de defesa e de produção de provas previstos no
ordenamento constitucional e legal, por força do princípio do contraditório e
da ampla defesa insculpido no art. 5°, inciso XV, da
Constituição da República.
É sabido que o princípio da coisa
julgada não é absoluto, devendo compatibilizar-se com o princípio da
razoabilidade e da proporcionalidade. Para tanto, a doutrina e a jurisprudência
vem reconhecendo a relatividade da coisa julgada nos casos de flagrante
violação dos demais princípios constitucionais, como da legalidade, da
moralidade, etc.
Não é necessário, e não é hábil que
se busque estabelecer por Medida Provisória ou até mesmo por lei em sentido formal,
a inexeqüibilidade de decisões judiciais em sentido contrário com o
posicionamento dominante em matéria constitucional do guardião maior da Carta
Magna, que é o Supremo Tribunal Federal.
Portanto, resta claro, que a Medida
Provisória n° 2.180-35/2001 padece de vícios de inconstitucionalidade formal e
material.
Assim sendo, quaisquer normas
editadas em desconformidade material, formal ou procedimental com a
Constituição da República, a exemplo da Medida Provisória n° 2.180-35/2001 são
inconstitucionais, e, portanto, são igualmente nulas de pleno direito.
Bibliografia:
BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antônio. Curso de Direito Administrativo, 5ª edição, São Paulo: Malheiros,
1994.
BRASIL. Constituição da
República de 1988. Centro Gráfico do Senado Federal, 1995.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil
Brasileiro, 2° vol, 12ª edição, rev. e atual., São Paulo:
Saraiva, 1997.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1º Turma, Acórdão no RE
166349-9/DF, DJ 25/11/1994. Relator Ministro Celso de Mello.
Notas:
[1] Dispunha o
artigo 10, da Medida Provisória n° 1.984-17/2000:
Art. 10. O art. 741 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro
de 1973, com a redação dada pela Lei no 8.953, de 13 de dezembro de 1994, passa
a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Parágrafo único.
Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, é também inexigível o
título judicial fundado em lei, ato normativo ou em sua interpretação ou
aplicação declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.” (NR)
[2] In Curso de
Direito Administrativo, 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 66.
[3] Art. 59 – O
processo legislativo compreende a elaboração de:
I – emendas
à Constituição;
II – leis
complementares;
III – leis
ordinárias;
IV – leis
delegadas;
V – medidas
provisórias;
VI –
decretos legislativos;
VII – resoluções.
Parágrafo
único – Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e
consolidação das leis.
[4] Art. 18.
Eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo
regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento.
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