Resumo: Considerando que a atividade interpretativa se revela imprescindível para a captação da vontade e extensão da lei penal, o artigo analisa as espécies de interpretação, a norma penal e seus precípuos caracteres, diferencia norma e lei penal, classificando-a, e apontando os meios disponíveis dirimente quando dar existência de conflitos aparentes de normas penais; adotou-se a metodologia bibliográfica, do tipo qualitativa.*
Palavras-chave: Métodos de interpretação da lei penal; lei penal; conflitos de normas penais.
Abstract: Considering that the interpretative activity is revealed indispensable for the reception of the will and extension of the penal law, the article analyzes the interpretation species, the penal norm and your principal characters, it differentiates norm and penal law, classifying her, and pointing the eliminatory available ways when to give existence of apparent conflicts of penal norms; the qualitative methodology was adopted, of the bibliographical type.
Keywords: Methods of interpretation of the penal law; penal law; conflicts of penal norms.
Sumário: Introdução. 1. Da interpretação da norma penal. 2. Espécies de interpretação. 3. Da norma penal. 4. Distinção entre norma e lei. 5. Atributos da norma penal. 6. Classificação das normas penais. 6.1. Norma penal em branco. 6.1.2. Atipicidade branca. 6.2. Normas penas incompletas (secundariamente remetidas, imperfeitas ou norma penal em branco inversa ou avesso). 7. Conflito de normas penais. 7.1 Princípio da especialidade. 7.2 Princípio da subsidiariedade. 7.3 Princípio da consunção. 7.3.1. Crime progressivo e progressão criminosa. 7.4. Princípio da alternatividade. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Para que possamos compreender a lei, em sua vontade e extensão, faz-se imprescindível interpretá-la. Para tanto, o interprete se vale de métodos específicos para cada hipótese; no entanto, um método não excluir o outro, ao contrário, na insuficiência de um, o outro age colmatando a omissão. Nesse contexto, interpretar significa apreender a percepção clara e exata do que a lei pretende transmitir; leva-se a efeito tal atividade tendo em fito que inexiste norma que se revista de certeza absoluta quanto ao seu conteúdo, seja por erro gramatical, obscuridade, emprego de expressões ambíguas ou polissêmicas, ou por aparentes, ou reais, contradições.
Todavia, para captar a vontade e extensão da lei, mostra-se relevante compreender quais são suas principais características e espécies.
As normas penais podem ser incriminadoras e não incriminadoras; fala-se em norma não incriminadora, quando esta possui a função de tornar lícita determinadas condutas, explicar conceitos e integralizar outras normas; tem-se, noutro face, uma norma incriminadora, quando esta descrever comportamentos nocivos para os interesses fundamentais de uma coletividade (preceito primário), por isso, impõe pena em caso de sua transgressão (preceito secundário). Além disso, existe norma que não descreve a conduta que se pretende proibir ou impor, sendo incompleta e, porquanto, necessita de complemento; diz-se, nesse caso, que esta norma é em branco e caso não exista o seu complemento, a conduta do agente é um indiferente penal. Pode ocorrer, também, que uma norma determinada não possua o preceito secundário, isto é, a previsão de pena; porém, nos remete a outro artigo de lei, cujo preceito secundário prevê a pena para o referido delito; nesse caso, fala-se em norma penal incompleta, secundariamente remetidas, imperfeitas ou norma penal em branco inversa ou avesso.
Para um mesmo fato criminoso, pode ocorre que duas ou mais normas penais aparentemente a ele se subsuma. Diz-se aparente, pois no caso concreto somente uma poderá ser aplicada. Em todo caso, existe princípios orientadores dirimentes de eventual conflito aparente de normas; são eles: princípio da especialidade, subsidiariedade, consunção, alternatividade.
Nesse passo, o presente artigo se desenvolverá; no primeiro momento será analisado a interpretação da norma penal, considerando suas espécies e características; em um segundo momento, perquire-se a norma penal, analisando seus atributos, classificação e meios de solução de conflito aparente de normas penais.
1. DA INTERPRETAÇÃO DA NORMA PENAL
“Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem”[1]
Inexiste norma que se revista de certeza absoluta quanto ao seu conteúdo, seja por erro gramatical, obscuridade, emprego de expressões ambíguas ou polissêmicas, ou por aparentes, ou reais, contradições. Assim, faz-se necessário buscar o real e efetivo sentido da lei, através de diversos métodos que o viabilize; a essa tarefa dá-se o nome de interpretação. Interpretar significa apreender a percepção clara e exata do que a lei pretende transmitir.
Explica Hungria (1976 p. 71)
“Como toda norma jurídica, a norma penal não pode prescindir do processo exegético, tendente a explicar-lhe o verdadeiro sentido, o justo pensamento, a real vontade, a exata razão finalista, quase nunca devidamente e expresso com todas as letras”.
Ressalte-se, entretanto, que nem sempre era permitido valer-se da exegese no intuito de aclarar o real sentido e extensão da lei. O Imperador Justiniano, por exemplo, proibira, no terceiro prefácio ao Digesto, qualquer interpretação a sua compilação, aduzindo, ipsis litteris:
“De confirmatione digestorum, Corpus Juris Civilis, § 21, in fine: Itaque quisquis ausus fuerit ad hanc mostram legum compositionem commentarium aliquot adjicere… is sciat, quod et ipsi falsi reo legibus futuro, et quod composuerit, eripicitur, et modis omnibus corrumpetur”. A tradução é a seguinte: “Assim, quem quer que seja que tenha a ousadia de editar algum comentário a esta nossa coleção de leis… seja cientificado de que não só pelas leis seja considerado réu futuro, como também de que o que tenha escrito se apreenda e de todos os modos se destrua” (apud FRANÇA, 2009, p. 20).
Diferentemente dos dias atuais, a atividade interpretativa se revela imprescindível, na medida em que outorga ao operador do direito e ao magistrado a tarefa de, antes de qualquer coisa, ser guardião dos direitos e garantias fundamentais, de modo a não macular a dignidade da pessoa humana por erros decorrentes de uma falsa percepção da real significação da lei.
Não vigora, pois, a máxima que outrora prevalecia: in claris cessat interpretatio, isto é, quando o texto legal for claro dispensado estará à interpretação.
Portanto, requer análise pormenorizada cada dispositiva, a fim de apreender a percepção clara e exata do que ele pretende transmitir, evitando-se, assim, resultados aberrantes decorrente de uma falsa interpretação.
2. ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO
Visando facilitar a vida do intérprete, foram-se desenvolvidos alguns métodos interpretativos, com vista a simplificar tal processo na busca pela real conteúdo da lei.
Nesse primeiro momento, dividiremos a intepretação em objetiva (voluntas legis) e subjetiva (voluntas legislatoris) e, por fim, quanto ao órgão ou sujeito de que provém.
Pois bem. A interpretação objetiva busca compreender a suposta vontade da lei, daí também denomina-la ‘voluntas legis’; subjetiva é a interpretação que busca descobrir a vontade do legislador, porquanto é chamada de ‘voluntas legislatoris’.
A interpretação quanto ao sujeito pode ser: autêntica, doutrinária e judicial.
Autêntica é a interpretação realizada pelo próprio legislador, que ao elaborar a lei, insere em seu corpo a sua interpretação, logo esta é obrigatória, pois decorre da lei. Pode ser contextual, quando está integrada no texto da lei (v. g., o conceito de funcionário público que é delineado pelo art. 327 do CP, descrevendo tanto o sujeito ativo como o passivo do crime) ou posterior, realizada pela lei editada ulteriormente, com intuito de pôr fim a dúvidas que gravite sobre a lei anterior.
Judicial se diz a intepretação que procede dos juízes ou tribunais nos autos do processo. Pode ser não vinculante, que são as decisões em gerais dos juízes e tribunais e, também, as súmulas dos tribunais, porém, não é interpretação obrigatoriamente a ser seguida, ou vinculante, isto é, entendimento do Supremo Tribunal Federal que depois de reiteradas decisões no mesmo sentido aprova súmulas vinculantes, mediante decisão de dois terço de seus membros, com efeito vinculante (obrigatório), a partir de sua publicação na imprensa oficial, em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e, inclusive, à administração pública direita e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Diz-se doutrinária a interpretação oriunda dos estudiosos do direito que, sob um primas subjetivo, emitem comentários sobre as leis. Conquanto não obrigatória, tem relevante valor, seja contribuindo para o desenvolvimento do sistema jurídico-penal, como também assenta dúvidas que pairam sobre determinados dispositivos (communis opinio doctorum).
A interpretação quanto ao sujeito pode ser, ainda, subdividida em quanto aos meios que são utilizados pelo interprete na persecução pelo sentido da lei, e quanto ao resultado que se pretende obter.
A interpretação quanto ao meio pode ser: literal, teleológica, sistemática, ou histórica; quanto ao resultado pode ser: declaratória, extensiva ou restritiva. Vejamos.
Literal, gramatical ou sintática é a interpretação que leva em conta o significado, e extensão, propriamente dito das palavras. É a mais simples e antiga, onde o resquícios de subjetividade é ínfimo. Esse método interpretativo deve preceder a qualquer outro, sob o fundamento de presumir-se que, ao elaborar a lei, o legislador soube expressar sua vontade com precisão no corpo da norma.
Por outro lado, sendo duvidosa a vontade do legislador, traduzida na norma, deve-se perquirir o real sentido e alcance da norma, valendo o intérprete, assim, do método teleológico. Por esse meio, busca-se precisar a finalidade da lei.
“A interpretação logica ou teleológica consiste na indagação da vontade ou intenção realmente objetivada na lei e para cuja revelação é, muitas vezes, insuficiente a interpretação gramatical” (HUNGRIA,1976 p. 83).
Tomemos como exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (L. 8.069/90), que, diferentemente do Código Penal brasileiro, tem por finalidade dá tratamento diferenciado aos menores infratores, pois “essas infrações foram criadas com o fim de proteger as crianças e os adolescente” (GRECO, 2011, p. 38).
A interpretação sistemática, ou sistêmica, analisa o dispositivo no conjunto normativo em que se encontra inserido. Assim, v. g., suponhamos que A, querendo a morte de B, efetua disparos com arma de fogo; contudo, B, valendo-se dos meios necessários, faz cessar a agressão que injustamente é sofrida, causando de conseguinte a morte de A. A fim de levar a efeito a punição de B, faz-se necessário analisarmos se a sua conduta é tipificada e não encontra respaldo em causas que exclua, por exemplo, a ilicitude. Concluirmos que B cometeu o crime de homicídio consumado (previsto no art. 121 do CPB), mas a sua ação está amparada pelo estado de necessidade, previsto no art. 25 do Estatuto Repressivo.
Diz-se histórica, a interpretação que reporta-nos ao tempo em que a lei fora editada, a fim de aferirmos a sua finalidade no momento em que se encontrava a sociedade, e qual o seu fundamento.
Pela interpretação declaratória, o agente apenas vale-se do método gramatical, posto que a lei é clara quanto a sua extensão e vontade; desse modo, não cabe ao intérprete ampliar ou restringir o seu alcance. Cite-se, como exemplo, o art. 288 do Estatuto Repressivo (crime de quadrilha ou bando), onde declara que, para a caracterização do delito, é necessário a presença de “mais de três pessoas” associadas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes.
Já a interpretação extensiva, o legislador não soube expressar o real alcance da lei, necessitando, por isso, que o intérprete a amplie, a fim de compreender a sua amplitude: almejada pelo legislador. Em outras palavras, pode-se dizer que o ‘legislador disse menos do que queria’ (lex minus dixit quam voluit).
Fala-se em interpretação restritiva quando a lei diz mais do que realmente pretendia (lex plus dixit quam voluit), devendo o intérprete restringir o seu alcance.
3. DA NORMA PENAL
A lei é a fonte por excelência do direito penal. A ela cumpri, com exatidão e riqueza de detalhes – embora essa descrição nem sempre seja constatada –, a tarefa de descrever as condutas que se pretende proibir ou impor sob ameaça de pena. Se não existe previsão legal que proíba determinada conduta, esse comportamento acaba por ser permitido. Isso se verifica devido à vigência do princípio da legalidade, insculpido no inciso XXXIX do art. 5° da CF, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Nota-se, então, que para caracterizar uma conduta como infração penal, antes há de existir uma lei incriminando-a, do contrário, ainda que tal comportamento nos cause perplexidade e repulsa, será um indiferente penal, passível, tão só, de reprovação social e nunca uma sanção de natureza penal imposta pelo Estado.
A esse mandamento e proibição que vem contido na lei, dá-se o nome de norma penal.
4. DISTINÇÃO ENTRE NORMA E LEI
A norma penal, segundo Binding, possui caráter essencialmente mandamental ou proibitivo, ditando comportamentos normais, auferidos da consciência mediúnica de cada coletividade. Assim, um comportamento normal e esperado por um homem médio é que não se deva furtar (proibição) nem omitir socorro (mandamento), mas agir de modo contrário. A norma, portanto, é implícita e contém uma regra proibitiva: não furtar; e outra mandamental: preste socorro a quem necessite; etc.[2]
Essa técnica moderna é seguida pela legislação brasileira. É fácil visualizá-la, basta notar que à lei penal não contém ordem direta (não matarás, por exemplo), mas proibição indireta (v.g., matar alguém, pena de 6 a 20 anos), que descreve a conduta humana a ser punida como consequência da sua realização.
Luiz Regis Prado explica:
“a norma jurídico-penal tem a natureza imperativa e endereça-se a todos os cidadãos genericamente considerados, através de mandados (imperativo positivo) ou proibições (imperativo negativo) implícita e previamente formulados, visto que a lei penal modernamente não contém ordem direta (v.g., não deixar de; não matar; não ofender a integridade corporal), mas sim vedação indireta, na qual se descreve o comportamento humano pressuposto da consequência jurídica”.[3]
A lei, ainda no escólio de Binding, possui natureza descritiva, está escrita e é editada pelo legislador, de modo que o delinquente ao cometer uma infração penal, não à viola, pois realiza o que por ela é prescrito (núcleo do tipo), logo a cumpri. Perceba-se, por exemplo, que o criminoso ao furtar, não afronta a lei, mais sim a norma penal que proíbe esse comportamento.
Portanto, a lei tem função descritiva, enquanto a norma tem caráter mandamental ou proibitivo.
5. ATRIBUTOS DA NORMA PENAL
Exclusividade e anterioridade: cabe, exclusivamente, a norma penal definir os crimes e contravenções e as respectivas penas. Só se pune uma conduta se existir norma vigente ao tempo do crime ou da contravenção, quer dizer, a norma penal tem que ser anterior à prática da infração penal;
Imperatividade: desde a sua vigência torna-se obrigatória à observância da norma penal; assim, o indivíduo que delinquir será submetido ao constrangimento imposto pela norma, que é sua consequência natural: aplicação coercitiva da pena;
Generalidade e abstratividade: à norma penal é dirigida a todos (imputáveis e inimputáveis), possuindo, desde a sua vigência, eficácia erga omnes; a norma prever, abstratamente, o comportamento que pretende proibir ou impor sob ameaça de pena. Ocorrendo, no mundo real ou concreto, a conduta proibida ou imposta, diz-se que há, nesse caso, subsunção e consequentemente a sua violação e naturalmente se aplicará a pena a ela correspondente. É de se notar, portanto, que a norma penal não possui destinatários específicos, ela é impessoal e se destina a todos os fatos que com ela se molda.
6. CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS PENAIS
As normas penais exerce dupla função: 1) lhe é reservado a tarefa de definir as infrações penais, proibindo ou determinando um comportamento, mediante cominação de pena. Neste caso, temos as normas penais incriminadoras; 2) existem, também, normas cuja finalidade se pauta em tornar lícitas determinadas condutas tipificadas como infração penal, afastar a culpabilidade, e esclarecer o conteúdo de determinadas normas penais. A essas normas dá-se o nome de normas penais não incriminadoras.
– Normas penais incriminadoras: como o dissemos em linhas atrás, cabe as estas normas a definição da conduta que se pretende proibir ou impor, prevendo as respectivas penas. Todas as normas penais incriminadoras possuem dois preceitos, quais sejam, um primário e outro secundário.
O preceito primário (preceptum iuris) tem a função de descrever detalhadamente a conduta que se pretende proibir ou impor; ao passo que ao preceito secundário (sanctio iuris) tem o mister de cominar a pena in abstractu, individualizando-a.
Desse modo, temos, no preceito primário do art. 159 do CP, a seguinte redação: “Sequestra pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate”.
O texto da redação do preceito secundário vem logo em seguida: “Pena – reclusão, de oito a quinze anos”.
Portanto, aquele que praticar a conduta descrita no preceito primário do art. 159 do CP, incorrerá na pena prevista no preceito secundário.
– Normas penais não incriminadoras: não preveem crimes, mas, ao contrário, torna lícita determinadas condutas, exclui a culpabilidade, ajuda a vislumbrar o conteúdo de alguns conceitos jurídico-penais.
As normas penais não incriminadoras comporta uma subdivisão:
a) Permissivas: podem ser justificantes ou exculpantes. As normas permissivas justificantes têm por finalidade tornar lícita uma conduta. Tais são: excludentes de ilicitude (art. 23 do CP), como o estado de necessidade (art. 24 do CP); legítima defesa (art. 25 do CP), etc. São exculpantes as que excluem a culpabilidade (v.g., art. 26 do CP, inimputáveis), etc.
b) explicativas: se destinam a esclarecer e tornar compreensíveis determinados conceitos. A título de exemplo, cite-se o art. 327 do CP, que traz o conceito de funcionário público, permitindo-se, assim, rapidamente compreender, para fins penais, o que vem a ser funcionário público.
c) complementares: são as normas que oferecem princípios gerais integradores quando da aplicação da lei penal. Tem-se, como exemplo clássico, o art. 59 do CP, que trata das circunstâncias judiciais.
6.1. Norma penal em branco
As normas penais em branco, também chamadas primariamente remetidas, são aquelas que em seu preceito primário há descrição incompleta da conduta que se pretende proibir, nos remetendo a outro diploma legal, decretos, regulamentos ou até mesmo atos administrativos, a fim de compreendê-la, motivo pelo qual necessitam de complementação que delineará a extensão do seu preceito primário, posto que só estabelece, com precisão, a sansão penal (preceito secundário).
Imaginemos que Daniel, intentando subtrair para si coisa alheia móvel, leve a efeito a empreitada criminosa de modo a consumá-la. Ao analisarmos esta conduta, verificamos que ela se molda perfeitamente a descrição do preceito primário do art. 155 do Código Penal: “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Por esse motivo, não há necessidade de recorrermos a outras normas para compreendê-la e aplicar a sansão penal prevista ao crime que por ele fora cometido. Diferentemente, agora, suponhamos que Alberto “contraia casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta”, incorrendo, pois, no delito previsto pelo art. 237 do estatuto repressivo. Como o próprio art. 237 do CP não explicita o que vem a ser impedimentos, temos que nos reportar a outra norma que o faz, no caso, o Código Civil, art. 1.521, incisos I a VIII.
Para concluirmos se estamos ou não diante de uma norma penal em branco, basta nos fazer a seguinte indagação: podemos aplicar esta norma imediatamente ou será necessário buscar em outra norma elementos que a complemente, a fim de elucidarmos o seu conteúdo? Na hipótese de furto, praticado por Daniel, a sua conduta se subsumi com perfeição a descrição do tipo previsto no art. 155 do CP, razão pela qual não se trata de norma penal em branco. Agora, como não tem aplicação imediata o tipo insculpido no art. 237, do exemplo de Alberto, ele só poderá ser penalizado após recorrermos ao código civil e se constatar a existência de impedimentos. Nesse último caso, temos uma norma penal em branco, pois o seu preceito primário é incompleto.
Em razão de esse complemento poder ser oriundo de leis, decretos, regulamentos, atos administrativos etc., as normas penais em branco se subdivide em duas categorias:
a) normas penais em branco homogêneas (em sentido amplo ou homólogas);
b) normas penais em branco heterogêneas (em sentido estrito ou heterólogas).
Tem-se uma norma penal em branco homogênea, em sentido amplo ou homóloga, quando o seu complemento advém da mesma fonte legislativa que editou a norma principal que necessita de complementação. É o que ocorre no exemplo de Alberto, onde ele contrai casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta. Esses impedimentos não são descritos pelo art. 237 do CP, que nos remete ao Código Civil, mesma fonte legislativa que editou a norma penal, objetivando compreendê-los.
Diz-se uma norma penal em branco heterogênea, em sentido estrito ou heteróloga, quando o seu complemento provém de fonte distinta da que a editou. Exemplificando, o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Lei Tóxicos) dispõe:
“Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – [omittre];
II – [omittre];
IIII – [omittere]”.
Nota-se que em nenhuma passagem o dispositivo em tela traz o conceito de ‘drogas’. Esse conceito nos é fornecido pela portaria SVS/MS 344/1998 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), pois nos termos da alínea a do inciso I do art. 14 do Decreto 5.912, de 27 setembro de 2006, que regulamentou a Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 e criou o Sistema Nacional de Políticas Públicas (SISNAD), incumbido de publicar lista com o nome de tais substâncias, dispõe:
“Art. 14. Para o cumprimento do disposto neste Decreto são competências específicas dos órgãos e entidades que compõem o SISNAD:
I – do Ministério da Saúde:
a) Publicar listas atualizadas periodicamente das substancias ou produtos capazes de causar dependências”.
Então, o art. 28 da L. 11.343/2006 é complementado por fonte distinta da que a editou.
Por fim, situação digna de nota se faz nesta última espécie de norma penal em branco (heterogêneas). É fato incontroverso, na doutrina, o entendimento de que estas normas não violam o princípio da legalidade, isso por que a norma penal em branco traz o que se denominou de ‘núcleo essencial da conduta’, imprescindível para a satisfação do princípio da legalidade, ainda que o complemento da norma principal seja editado por um órgão composto por integrante que não foram investidos na função legislativa, isto é, não representam o povo, tampouco os estados.[4]
6.1.2. Atipicidade branca
Vimos, anteriormente, que a norma penal incriminadora possui dois preceitos, um primário e outro secundário. Quando o preceito penal primário é incompleto, ou seja, não descreve com perfeição a conduta que se pretende proibir ou impor, temos uma norma penal primariamente remetida (norma penal em branco).
O preceito primário deve ser preenchido por outra norma jurídica, independentemente de sua natureza, conquanto seja, ordinariamente, por outra norma ou um ato administrativo. A norma acessória que complementa a norma jurídica-penal principal (norma penal em branco) ganha status desta, integrando-a a ponto de confundir-se com ela, de tal modo que adquire suas características e, por consequência, a sua revogação ou modificação repercute na esfera da norma principal[5].
Agora imaginemos outra situação, na qual José encontrou um tesouro em um prédio alheio e, diante dessa situação, o apropriou integralmente da quota que é de direito do dono do referido prédio. Neste caso, José incorre no crime previsto no inciso I do parágrafo único do art. 169 do CP[6]. O conceito de tesouro é fornecido pelo Código Civil (art. 1.264)[7].
Se não existisse a norma acessória que complementa o preceito primário, o que poderia suceder? É nesse ponto específico que reside à atipicidade branca. Diz-se que há atipicidade branca ‘quando a norma penal em branco não tem o complemento normativo regulamentador’.
Voltando ao exemplo em que José encontrou e se apropriou do tesouro, a sua punição só será levada a efeito se existir, como de fato existe, a norma que a complemente. No campo da suposição, imaginemos que o art. 1.264 do CC tenha sido revogado, haveria a possibilidade de José ser responsabilizado pelo crime? Não, pois não tinha como se sabe o que é tesouro e, ademais, o princípio da legalidade, como se verá adiante nesse curso, veda a descrição imprecisa e genérica da conduta que se pretende proibir ou impor.
Sem esse complemento, portanto, não há possibilidades de compreender a extensão da proibição ou da conduta que se pretenda impor pela lei penal, tornando-se inviável sua aplicação e, consequentemente, atípica a conduta (atipicidade branca)[8].
6.2. Normas penais incompletas (secundariamente remetidas, imperfeitas ou norma penal em branco inversa ou avesso)
Diz-se incompleta, ou secundariamente remetidas, a norma penal que descreve perfeitamente a conduta que se pretende proibir ou impor (preceito primário), porém não prever sanção, nos remetendo a outro diploma legal. Em outros termos, teremos uma norma penal incompleta quando esta tiver o preceito primário completo e o preceito secundário incompleto.
Exemplificando, o art. 304 do CP, determina que: “fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os artigos 297 a 302: Pena – a cominada à falsificação ou à alteração”. Perceba-se, então, que para apurarmos a pena ao delito em tela, é necessário visualizar o preceito secundário dos artigos 297 a 302 e verificar em qual modalidade a conduta se subsumi, para, só aí, aferir a sanção a ser imposta.
7. CONFLITO DE NORMAS PENAIS[9]
Haverá conflito, ou concurso, de normas penais sempre que duas ou mais normas puderem ser aplicada ao fato previsto como crime. Esse conflito é aparente, pois a cada caso concreto o magistrado somente poderá aplicar apenas uma das duas ou mais disposições que o disputam. Em tais casos, o juiz deverá, quando for aplicar a norma penal, observar alguns critérios, sendo que estes critérios não excluem a aplicação das normas referentes ao concurso de crimes.
Pode-se visualizar, dessa forma, que são requisitos para a caracterização do conflito aparente de normas penais:
1) Unidade de fato;
2) Pluralidades de leis penais;
3) Vigência simultânea de todas elas;[10]
4) Todas as leis devem, aparentemente, disputar incidência ao fato delituoso.[11]
Assim, quando um fato aparentemente se subsumi a mais de um tipo penal, o juiz deverá observar os seguintes princípios a fim de concluir qual norma é aplicável ao caso concreto; são eles:
a) Princípio da especialidade;
b) Princípio da subsidiariedade;
c) Princípio da consunção; e
d) Princípio da alternatividade.
7.1 Princípio da especialidade
Por imperativo do princípio da legalidade, o Estado quando pretende proibir ou impor uma conduta prevendo pena para a sua prática, usa-se o único instrumento a sua disposição: a lei. À lei tem a tarefa de descrever, detalhadamente, a conduta que será criminalizada ou permitida. Essa descrição recebe o nome de tipo penal. Tipo, portanto, é a descrição em abstrato da conduta que se pretende proibir ou impor sob ameaça de sanção.
Quando um fato criminoso aparentemente se molda perfeitamente em mais de um tipo penal, deve-se afastar a incidência do tipo penal genérico e daqueles que constitua ou qualifiquem outro crime, dando lugar ao tipo penal específico (especificidade do tipo penal).
Tipo genérico é aquele que descreve de forma generalizada a conduta proibida ou imposta pela lei (v.g., roubo).
Diz-se específico o tipo penal porque, diferentemente do tipo genérico, traz em seu bojo elementos aditivos ao tipo, elementos mais detalhados que nos permite visualizar de forma clara o conteúdo da proibição ou permissão imposta pela lei penal. Assim, por exemplo, a mãe que, sobre a influência do estado puerperal e logo após o parto, mata o filho, não responde por homicídio, mas, sim, por infanticídio. Perceba que, além da elementar matar alguém, existe o estado puerperal, que é um plus que torna tal delito especializado.
Em outro exemplo, o indivíduo que mata para roubar, não responderá por homicídio, tampouco por roubo simples, mas, sim, por latrocínio (art. 157, § 3º, in fine, do CPB). O roubo e homicídio são considerados tipo penal genérico, enquanto o latrocínio é um tipo penal específico que contém elementos detalhados da conduta proibida pela lei penal. Em tais casos, será afastada a incidência dos tipos penais que constituem ou qualificam outro tipo. Veja-se, pois, que a norma especial contém todos os elementos da geral, mais alguns que a norma geral não possui, dado que a torna especial em face da geral.
7.2 Princípio da subsidiariedade
Por esse princípio, sempre que ausentar-se, ou for impossível, aplicar norma principal mais grave, aplicar-se-á a norma subsidiária, de modo que o agente do fato não fique impune. A subsidiariedade, segundo a doutrina, pode ser expressa ou tácita. Será expressa quando a própria lei traz em seu bojo a ressalva quanto a sua incidência. Assim, por exemplo, ocorre com o preceito secundário do art. 132, do CPB, onde somente tem aplicabilidade a pena por ele cominada quando o crime de perigo a vida ou a saúde de outrem não resultar em crime mais grave (lesão corporal, homicídio, por exemplo). Será, noutro lado, tácita a subsidiariedade quando, conquanto a lei não se refira expressamente quanto ao seu caráter subsidiário, não ocorrer o delito mais grave.
“Como exemplo, podemos citar o art. 311 do Código de Trânsito brasileiro, que proíbe a conduta de trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque d passageiros, logradouros estreitos, ou onde houver grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano. Se o agente, deixando de observar o seu exigido dever de cuidado, imprimindo velocidade excessiva em seu veículo, próximo a um dos lugares acima referidos, vier a atropelando alguém, causando-lhe a morte, não será responsabilizado pelo citado art. 311, mas sim, pelo art. 302 do mesmo Código, que prevê o delito de homicídio culposo na direção de veículo automotor. O crime de dano afastará, portanto, o crime de perigo” (GRECO, 2011, p. 26).
7.3 Princípio da consunção
A conduta mais lesiva ao bem jurídico absorve a menos grave. Sempre que o resultado final depender de uma conduta anterior, sem a qual o crime não se consumaria, está será absorvida pela ação posterior que determina a produção do resultado final (antefactum não punível). Raciocinemos: imagine-se que A queira matar B, valendo-se de todos os meios que naquele momento estava ao seu alcance, lesionando-o até a morte. Nesse caso, A responderá por homicídio consumado e não por lesão corporal seguida de morte, posto que a sua ação era dirigida conscientemente com o fim de produzir a morte de B, independentemente dos meios utilizados. A lesão corporal é absorvida pelo homicídio consumado. O crime-fim absorve o crime-meio.
Pode acontecer, diferentemente do exemplo acima, que o agente após violar o bem jurídico, deste queira retirar proveito, atacando-o nova e indiretamente, exaurindo definitivamente o crime principal (postfactum não punível). Exemplificando, cita-se a venda do objeto que fora furtado e apresentado pelo ladrão como proprietário a terceiro de boa-fé. A venda não constitui novo crime (estelionato), mas mero exaurimento do furto.
7.3.1. Crime progressivo e progressão criminosa
Diz-se progressivo o crime quando o agente quer, desde o início, o resultado mais grave, mas para atingir sua meta criminosa é necessário praticar outros atos de menor gravidade que, no curso da ação, aumenta significativamente a violência que é direcionada ao bem jurídico tutelado. O agente, v. g., que almejando à morte de seu desafeto, não dispondo de meios que o permita, em um único ato, levar a cabo com o seu adversário, usa uma faca para lesioná-lo até a morte; os golpes de faca, evidentemente, é imprescindível para atingir o resultado morte. O Crime antecedente (lesões corporais) são denominados como crimes de ação de passagem, sem os quais não se pode falar em crime progressivo, razão pela qual o delito de menor intensidade fica absorvido pelo mais grave, respondendo o agente, por isso mesmo, pelo resultado morte.
Na progressão criminosa o agente tem um fim determinado e dá início aos atos de execução, porém, no curso da infração penal os modifica por uma influência superveniente, provocando resultado mais grave ao bem jurídico. Ilustrando, caso do agente que agindo com intenção de furtar, ao se deparar com o proprietário do bem, resolve matá-lo a fim de levar a efeito a subtração do objeto. Responderá o delinquente por latrocínio, visto que o delito antecedente funde-se ao delito morte, dando existência à figura latrocínio, que é um tipo complexo.
7.4. Princípio da alternatividade
Sempre que estivermos diante de crimes de conteúdo variado ou ação múltipla, tem-se aplicação o princípio da alternatividade. Referidos crimes são aqueles que contém mais de uma conduta proibida ou imposta em seu vários núcleos. Exemplificando vejamos o delito de receptação:
“Código Penal: art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa‑fé, a adquira, receba ou oculte:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
Se o agente adquirir, transportar e ocultar, praticando três condutas descritas no tipo penal, só será punido uma única vez pelo delito, inobstante ao cometimento de três condutas que caracteriza do delito, estes não se somarão, como no concurso material de crimes, por exemplo.
Em tais casos, não há, efetivamente, conflitos aparentes de normas, posto que não existe duas normas que trata do tema e as condutas descritas estão previstas no mesmo tipo penal.
CONCLUSÃO
A lei penal, como qualquer outra lei, ostenta características e peculiaridades próprias, notadamente pela imposição, pelo princípio da legalidade, de objetividade quanto ao seu conteúdo. No entanto, isso nem sempre é verificável, seja pela impossibilidade de declarar a real vontade (e, portanto, a extensão) da lei penal, eis que surge a necessidade de buscar meios idôneos voltados a apreender o sentido e alcance da lei penal.
Ademais, não basta só buscar meios exegéticos, impõe-se, por parte do intérprete, conhecer a lei, suas características e espécies, momento em que fica mais fácil compreendê-la.
Vê-se, então, se se tratar de temas interligados, relevante do ponto de vista interpretativo para chegar-se ao resultado almejado: aclarar a vontade e extensão da lei penal.
Por outro lado, a norma penal, que não se confunde com a lei penal, na visão de Binding, ostenta características próprias, espécie e classificação, onde para se incriminar ou proibir uma conduta, sob ameaça de pena, tem que existir norma prévia incriminadora. À lei penal, importante que se diga, não só instrumentaliza meio criminalizador de condutas que lese ou ameace lesar bens jurídicos protegidos, mas servem, também, para explicar outras leis, tornar lícito determinadas condutas ou, ainda, afastar a própria ilicitude da conduta delituosa.
A lei é, portanto, fonte por excelência do direito penal, visto que só se pode criar crimes cominando pena em abstrato, por lei; possui, então, tarefa relevante, qual seja: de descrever condutas criminosas (preceito primário) impondo-lhe pena (preceito secundário). Porquanto, fundamental é compreender toda sua estrutura, a fim de seu real conteúdo, considerando sua finalidade e extensão, incidir ao infrator no caso concreto, para que não seja cometido injustiça e distorcido a sua essência.
Acadêmico de direito na Universidade Estadual do Piauí UESPI
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