Introdução
A Constituição Federal de
1988 estabelece em seu art. 5°, LVI, a inadmissibilidade das provas obtidas por
meios ilícitos. Estão eivadas pela ilicitude de que trata este inciso, tanto as
provas geradas de forma tal que não atendem às exigências legais, quanto
aquelas que, apesar de observarem os requisitos formais de geração de prova,
afrontam um direito individual. Este trabalho tem por escopo abordar essa
segunda modalidade de provas ilícitas, analisando a possibilidade ou não de
flexibilização desse dispositivo em face do princípio da proporcionalidade.
Trata-se
de uma questão controvertida a desconsideração de provas essenciais para o
processo por terem sido obtidas por meios ilícitos. Há quem diga que esta é uma
forma de manter protegidas as grandes quadrilhas infratoras das normas
jurídicas. Por outro lado, a ausência de tal dispositivo poderia levar a que
pessoas irresponsáveis, e até o próprio Estado, exorbitando do seu poder
persecutório, praticassem atos atentatórios aos direitos fundamentais das
pessoas, trazendo insegurança para as relações jurídicas.
Atente-se também para o
fato de que, muitas vezes, a produção de tais provas decorre de uma ofensa
feita anteriormente ao direito fundamental de outrem. Pode-se citar um exemplo,
com o fito de aclarar esta hipótese: uma pessoa tem seu carro roubado e o
agente que praticou o delito liga para a casa da vítima para negociar o preço
da devolução do objeto. A vítima, então, grava toda a conversa telefônica, com
total desconhecimento por parte do agente, a fim de fazer prova contra este.
Pode essa prova ser desconsiderada por ter ferido o direito à intimidade do
agente, sendo, portanto, prova ilícita, mesmo tendo este último desrespeitado
anteriormente o direito à propriedade da vítima? Com isto, estabelece-se uma
situação problemática, a saber que direito deve ser atendido, visto que ambos
configuram direitos fundamentais consagrados na Carta Magna. Ao término deste
trabalho tem-se a pretensão se explicitar possíveis soluções para este impasse.
Com este intuito,
procede-se a seguir a uma análise do princípio da inadmissibilidade das provas
ilícitas. Posteriormente, um esclarecimento sobre o princípio da
proporcionalidade, visto que este tem sua principal função na esfera dos
direitos fundamentais, exercendo papel essencial na aplicação do direito. Por
fim, apresentar-se-á as conclusões a que se chega, após o estudo dos dois
princípios acima referidos.
1. Das Provas Ilícitas
Como foi dito anteriormente,
consideram-se provas ilícitas para efeitos deste trabalho, aquelas que, sendo
admitidas legalmente, ofendem a um direito individual. Considerando que o
objetivo do processo é descobrir a verdade real, não deveria importar a origem,
a maneira através da qual foi produzida a prova, desde que esta fosse suficiente
para a apuração da verdade. Mas, defender tal posicionamento seria levar às
últimas conseqüências o dizer de Maquiavel de que “os fins justificam os meios”[1],
o que iria de encontro ao respeito aos direitos fundamentais e à dignidade da
pessoa humana, pilares de um Estado Democrático de Direito, como é o caso do
Brasil.
Assim, permitir que uma prova
obtida, à guisa de exemplo, por meio de tortura, seja suficiente para firmar o
convencimento do juiz em relação ao caso concreto seria estimular a consecução
de provas por estes meios, seria convalidar este tipo de comportamento, enfim,
levaria a um total desrespeito aos direitos proclamados na Carta Magna,
configurando uma verdadeira apologia à violência.
Desse modo, torna-se clara a
relevância desse dispositivo constitucional, pois que é ele uma verdadeira
garantia dada ao cidadão em relação à ação persecutória do Estado2.
De nada adiantaria desconsiderar as
provas obtidas por meios ilícitos, se outras provas resultantes direta ou
indiretamente das informações conseguidas na produção das primeiras
continuassem válidas no processo. Assim, torna-se evidente a necessidade de
adoção da doutrina dos “fruits of the poisonus tree”( frutos da árvore
envenenada), segundo a qual as provas resultantes das provas ilícitas são
contaminadas pela ilicitude destas últimas, tornando-se, por isso, igualmente
não aproveitáveis no processo.
Nos dias de hoje, é posição
majoritária no Supremo Tribunal Federal a adoção da doutrina dos frutos da
árvore envenenada, ou seja, a comunicabilidade da ilicitude da prova a todas as
provas que dela derivarem.
2. Princípio da proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade é
um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Inicialmente, era visto como
um princípio de Direito Constitucional mas, com o passar do tempo, foi se
alastrando, estando nos dias de hoje presente nos mais diversos ramos do
Direito. Antes de falar propriamente do princípio da proporcionalidade, faz-se
necessário tecer algumas linhas sobre a noção de princípio e a forma de
aplicação desses princípios.
A norma é gênero, do qual regra e
princípio são espécies. A norma regra se reporta a um fato hipoteticamente
previsto, é o juízo disjuntivo, do qual fala Carlos Cossio: dado Ft deve ser P;
dado ñP deve ser S( leia-se dado fato temporal deve ser a prestação, dada a não
prestação deve ser a sanção). A norma princípio não faz menção a nenhum fato,
ela prescreve um valor. E só no caso concreto poderá se verificar se o valor
que ela enuncia está ou não presente, ou seja, se o princípio vai ou não ser
aplicado. O princípio, por prescrever um valor, nunca é aplicado de forma
isolada, pois que num fato concreto nunca há um só valor. Assim, não se aplica
um princípio ao caso concreto, aplica-se a multidão de princípios.
Aplicar o Direito é submeter o fato
à norma que o regula.. Quando o juiz vai decidir sobre valores constitucionais
ele atribui a esses valores, no caso concreto, o peso que corresponde a sua
intensidade de vivência na sociedade, pois quando os valores se chocam, é
preciso proteger um, e, para isso, permite-se que, de um certo modo, o outro
seja diminuído. A solução dada pelo juiz deve levar em conta a um só tempo
todos os princípios, sendo que ele dará maior importância a um ou a alguns na
sua decisão, mas não há sacrifício total dos demais. Na Constituição,
abstratamente considerados, os princípios estão nivelados, não há hierarquia
entre eles. No caso concreto, o juiz irá proceder a uma hierarquização dos
princípios, com base nas exigências da sociedade, pois é de se presumir que
ele, como membro da sociedade, tenha com ela uma mesma pré-compreensão dos
valores. E, ao solucionar o conflito, essa hierarquização se dilui. Então, o
juiz julga prestigiando aquele valor constitucional onde a vivência social é
mais intensa, mas ele tem obrigação de demonstrar na sua sentença que o núcleo
de existência do valor que recebeu menor atribuição não se desfez, continuando
válido, tendo sido considerado naquela decisão, mas não com tanta relevância
como o outro que predominou. Isso porque ele faz uma proporção, e não uma
exclusão. Essa forma de aplicação dos princípios constitucionais é estabelecida
pela Nova Hermenêutica Constitucional.
De acordo com Carlos Maximiliano,
“hermenêutica jurídica é a parte da ciência jurídica que estuda e sistematiza
os processos necessários à fixação do sentido e alcance das expressões de
direito”3. Os processos de fixação do sentido e
alcance das expressões de direito é o que se chama de interpretação. E as
expressões de direito a que ele se refere são as próprias normas jurídicas. A
Nova Hermenêutica Constitucional é espécie de hermenêutica que cuida da
interpretação do texto constitucional. Apesar de pertencer ao conjunto maior da
hermenêutica, ela apresenta algumas características que lhe são peculiares.
Assim, o seu método é aberto, dialogal, pragmático e normativo. Diz-se aberto
porque as soluções não são encontradas prontas e acabadas, elas são formuladas
em face do caso concreto, a partir dos princípios. É dialogal, no sentido de
ser dialético, tem confronto de argumentações, prevalecendo ao final o
argumento mais persuasivo. Além disso, é pragmático, teleológico, pois
procura-se o meio que melhor atinja o fim, sendo este fim o do Estado
Democrático de Direito, ou seja, de defesa dos direitos fundamentais. Por fim,
o método é normativo, porque só se levam em consideração os princípios que
estejam expressos em
normas. A Hermenêutica Constitucional segue alguns princípios
de interpretação, que não estão positivados, por serem de ciência jurídica, intelectivos,
portanto. Entre estes princípios destaca-se o princípio da proporcionalidade.
Segundo o princípio da
proporcionalidade, o meio usado deve ser proporcional ao fim que se quer
atingir, funcionando como um freio para os excessos de poder. Ele pode ser
subdividido em três subprincípios: o princípio da adequação, o princípio da
necessidade e o princípio da proporcionalidade propriamente dito. De acordo com
o princípio da adequação, o meio usado deve ser adequado ao fim, ou seja, a
medida a ser tomada deve ser suficiente para atingir o fim desejado, fim este
que deve ser baseado no interesse público. O segundo subprincípio é o da
necessidade, também chamado princípio do meio mais suave. Por este princípio,
deve se escolher o meio que importar em menor sacrifício para os direitos
fundamentais. A medida a ser tomada deve ser necessária à consecução do fim
colimado. O terceiro subprincípio consiste na proporcionalidade mesma, tomada
em sentido estrito. Esse é a síntese final dos outros dois. Por ele, deve-se
escolher o meio que some o maior número de vantagens e o menor número de
desvantagens. Enfim, que leve em conta o maior número de interesses em jogo.
De acordo com o constitucionalista
Paulo Bonavides, “quem utiliza o princípio da proporcionalidade, se defronta ao
mesmo passo com uma obrigação e uma interdição; obrigação de fazer uso dos
meios adequados e interdição quanto ao uso de meios desproporcionados. É em
função desse duplo caráter que este princípio tem o seu lugar no Direito,
regendo todas as esferas jurídicas e compelindo os órgãos do Estado a adaptar
em todas as suas atividades os meios que dispõem aos fins que buscam e aos
efeitos de seus atos”4. Esta
passagem mostra a dimensão do princípio da proporcionalidade, bem como sua
relevância no mundo do direito.
Conclusão
Após a exposição dos dois
princípios, quais sejam, o princípio da inadmissibilidade das provas obtidas
por meios ilícitos e o princípio da proporcionalidade, tem-se em mãos os
instrumentos necessários para dar resposta ao caso que foi indagado por ocasião
da introdução deste trabalho, a saber, se poderia a gravação da fita magnética
ser desconsiderada, por ter ferido o direito à intimidade do agente que violou
o direito de propriedade da vítima.
Note-se que, nesse caso, primeiro ocorreu
lesão ao direito de propriedade. Ensina Alexandre de Moraes que “as liberdades
públicas não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo da
prática das atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento
ou diminuição das responsabilidades civil ou penal por atos criminosos, sob
pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.” E
continua, “dessa forma, aqueles que ao praticarem atos ilícitos inobservarem as
liberdades públicas de terceiras pessoas e da própria sociedade, desrespeitando
a própria dignidade da pessoa humana, não poderão invocar, posteriormente, a
ilicitude de determinadas provas para afastar suas responsabilidades civil e
criminal perante o Estado.”5 Há quem
diga que, no caso em análise, a gravação da fita magnética configura uma
legítima defesa do direito fundamental à propriedade, excluindo-se, dessa
forma, a ilicitude das provas, tendo inclusive decisão do STF nesse sentido.6 Mas a solução que se pretende abordar
neste trabalho é a utilização do princípio da proporcionalidade por parte do
aplicador do direito, como forma de atenuação desse princípio da
inadmissibilidade das provas ilícitas.
Retornando ao caso concreto a ser
analisado, parece claro que o juiz, ao apreciar tal caso, ou qualquer outro que
envolva conflito semelhante, não poderá desconsiderar o conteúdo da prova
apresentada, por ter sido esta obtida por meio ilícito. Isto porque não se pode
analisar o princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas de forma absoluta.
Os princípios devem ser aplicados uns em relação aos outros. A Nova
Hermenêutica Constitucional exige, como foi dito anteriormente, que o juiz, na
aplicação do Direito, leve em consideração todos os interesses em jogo. E
prevalecerá, ao final, aquele que tiver maior relevância, ou seja, que seja
mais intensamente vivido na sociedade.
A análise desse caso particular é
importante para se ter a exata noção do problema que se antepõe ao tentar
resolver um conflito de princípios. E a solução dada aqui deve ser generalizada.
O juiz deve sempre fazer uma relação do dano causado à sociedade e o dano
experimentado pelo agente para saber qual a decisão que está de acordo com o
ordenamento jurídico e que corresponde ao anseio social de justiça. Essa
exigência é feita pelo princípio da proporcionalidade, que apesar de implícito
no ordenamento jurídico brasileiro, representa a viga mestra do Estado
Democrático de Direito e o guardião dos Direitos Fundamentais da pessoa humana.
Bibliografia
BASTOS, Celso e MARTINS, Ivens. Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. v.2.
BONAVIDES, Paulo. Curso de
Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
CRETELLA
JR, José. Comentários à
Constituição Brasileira de 1988.
3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992. v.1.
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica.
São Paulo: Malheiros, 1997.
FERREIRA, Pinto. Comentários à
Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. v.1.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica
e aplicação do direito. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
MORAES, Alexandre. Direito
Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2000.
SILVA, José Afonso. Curso de
Direito Constitucional Positivo. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992.
Notas:
1
MAQUIAVEL, O príncipe. São Paulo: Martin Claret, 1998, p. 48.
2 MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional.São
Paulo: Atlas, 2000, p. 118
3
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1996, p.1.
4 BONAVIDES,
Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 361
5 MORAES,
Alexandre. Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p.123.
6 STF-1ª T.-
HC n° 74.678-1/SP – Rel. Min. Moreira Alves, votação unânime, Diário da
Justiça, Seção I, 15 ago. 1997.
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