A incidência do ICMS sobre a denominada “demanda contratada” tem sido objeto de acesas discussões entre o fisco e os contribuintes, hoje já alçadas, em inúmeras oportunidades, ao conhecimento do órgão a quem a Constituição confiou a integridade do direito federal, onde ainda persiste o entendimento de que somente se legitima a incidência do imposto sobre o valor da quantidade de energia elétrica efetivamente consumida, elemento considerado, juntamente com o valor da demanda de potência contratada, na formação do preço da tarifa.
Ao que se estima, a orientação que tem prevalecido naquela Corte decorre de uma incorreta compreensão da estrutura tarifária do setor elétrico, pois, somente assim, se explicaria a aversão reiteradamente manifestada quanto à inclusão daquele componente tarifário na base de cálculo do ICMS, fruto que seria, segundo o entendimento externado nas decisões tomadas, de compromisso assumido, pelo consumidor intensivo, de pagar permanentemente um valor mínimo, mesmo que o consumo seja inferior ao limite contratado.
Nada mais equivocado.
Segundo colhe-se da literatura especializada, o modelo das condições de fornecimento da energia elétrica e de formação das tarifas, tradicionalmente utilizado, leva em conta os grupos e classes de consumidores de energia elétrica, divididos conforme a tensão de fornecimento (altas, médias e baixas tensões) e a atividade para qual a energia se destina (industrial, comercial, rural, residencial, serviço público e iluminação pública).
Por outro lado, já se anotou, estudos realizados na década de oitenta revelaram que o perfil de comportamento do consumo ao longo do dia encontra-se vinculado aos hábitos do consumidor e às características próprias do mercado de cada região. Embora o consumo de energia varie ao longo das 24 horas do dia, atingindo valores máximos entre as 17 e 22 horas, o sistema de geração de energia deve ter capacidade para suprir o pico de consumo neste horário, denominado “horário de ponta”, pois é justamente o período em que as redes de distribuição assumem maior carga.
Mas as características de cada unidade consumidora é que determinam o seu enquadramento na estrutura tarifária. Na modalidade denominada tarifa convencional, estão enquadrados os consumidores residenciais e as pequenas instalações industriais e comerciais. São os consumidores atendidos em tensão secundária de distribuição.
Para as instalações consumidoras com potência instalada acima de determinada potência, em que o suprimento de energia é feito em média ou alta tensão, adota-se a tarifa binômia, assim conhecida por ser constituída de duas parcelas distintas, uma vez que estabelece valores para potência contratada e para a energia consumida. O sistema contempla ainda o segmento horo-sazonal, que estabelece tarifas diferenciadas para os horários de ponta e fora de ponta e ainda fixa valores distintos para os períodos do ano compreendidos entre maio e novembro, definido como período seco e entre dezembro e abril como período úmido.
Demanda contratada – sua natureza jurídica
Para o setor elétrico, conhecer a demanda de energia elétrica necessária para assegurar o simultâneo funcionamento do conjunto dos aparelhos e equipamentos de uma unidade consumidora é essencial, uma vez que, como as curvas de carga das plantas industriais podem variar em função do ciclo de operação previsto para os diferentes períodos de funcionamento dos setores de produção, o dimensionamento do sistema elétrico depende não só da quantidade de energia absorvida, mas também da intensidade em que é consumida, denominada demanda, que é a soma das cargas a serem atendidas.
Em termos técnicos, segundo a ANEEL, a demanda nada mais é que a agregação da energia consumida por unidade de tempo, que mostra a taxa ou ritmo em que a energia é consumida. Grande fluxo de eletricidade exige investimento maior, mesmo no caso de o fluxo não ser constante.
Como, para atender um intenso consumo de energia, é necessária uma rede de alta potência, com linhas de transmissão que operam em alta tensão e condutores com grandes bitolas, os próprios consumidores, tendo em consideração a soma das potências nominais dos equipamentos elétricos instalados na unidade, devem dimensionar e contratar a demanda de potência máxima provável que estima necessária e que a concessionária deverá disponibilizar (Res. ANEEL nº 456, art. 3º, “c”).
A potência contratada constitui, em última análise, mecanismo fundamental para administrar a segurança, confiabilidade e estabilidade dos sistemas elétricos, definida que é pela Agência Reguladora como sendo a “demanda de potência ativa solicitada ao sistema elétrico, que a concessionária se obriga contratualmente a disponibilizar ininterrupta e continuamente para o consumidor, no ponto de entrega, conforme valor e período de vigência ajustados e que deve ser paga, seja ou não utilizada durante o período contratado (Res. ANEEL nº 456, art. 2º, IX).
Entretanto, advertem as concessionárias, para que sejam respeitados os níveis de segurança de operação do sistema elétrico como um todo, faz-se necessário um cálculo prudente da demanda máxima, pois solicitações muito acima das reais necessidades dos equipamentos instalados levam ao desperdício, onerando desnecessariamente a conta de energia; estimá-la muito abaixo, por outro lado, pode ensejar a aplicação da tarifa de ultrapassagem da demanda contratada, além de riscos de incêndio e quedas de fornecimento, que o subdimensionamento do porte das instalações às suas reais necessidades pode acarretar.
Eventual necessidade de aumento posterior da carga instalada, que exija elevação da potência contratada, deve ser previamente submetida à apreciação da concessionária, para aferição da necessidade de adequação do sistema elétrico (Res. ANEEL, art. 31). Sua utilização efetiva é apurada por equipamento registrador instalado no ponto de medição, que a cada 15 minutos gera um registro para fins de faturamento.
É certo que, ao contratar a disponibilização de uma determinada potência, o grande consumidor tem como contrapartida a garantia de que poderá consumir energia elétrica até a potência máxima contratada, sem risco de quedas de tensão ou danos aos equipamentos e à rede, pagando, para isso, o preço correspondente.
Como a potência é a capacidade de realizar um determinado trabalho – vale dizer, a quantidade de força que cada aparelho é capaz de oferecer – e a energia é o trabalho propriamente dito, imagine-se um halterofilista que tem a força (potência) para levantar até 200 quilos. Quando suspender um peso, ele terá realizado um trabalho e estará usando sua potência pelo tempo que mantiver o aparelho suspenso. Em conseqüência, terá consumido certa quantidade de energia.
Os equipamentos elétricos também têm uma capacidade de realizar trabalho e, quanto maior a potência de um aparelho ou equipamento, maior será a potência elétrica exigida para entrar em funcionamento. Assim, é de fácil compreensão que um condicionador de ar de 7.500 BTU (1.000 Watts) demande mais potência do sistema elétrico do que uma geladeira de 90 Watts, pois o consumo de energia elétrica de um aparelho para funcionar depende diretamente de sua potência e do tempo que ele ficar ligado.
Como se sabe, ao receber a energia elétrica, os equipamentos transformam-na em outra forma de energia. Quanto mais energia é transformada em um menor intervalo de tempo, mais intensa é a potência contratada utilizada. Portanto, a potência elétrica é uma grandeza que mede a rapidez com que a energia elétrica é transformada em outra forma de energia.
Embora reconhecida a distinção entre os conceitos de “potência” e “energia”, há entre eles uma íntima relação, pois potência é a energia dividida pelo tempo; reciprocamente, energia é a potência multiplicada pelo tempo. Por isso, quanto mais intenso é o consumo da energia em dado espaço de tempo, maior é a potência utilizada, pois o consumo de energia depende da potência do aparelho em funcionamento e do tempo em que permanece ligado. A intensidade do consumo é ditada, por conseguinte, pela potência do equipamento em uso.
Daí a razão pela qual o consumo de energia elétrica é a potência elétrica do aparelho multiplicado pelo tempo que este estiver funcionando, ou, por outras palavras, o consumo nada mais é do que a quantidade de energia elétrica absorvida por uma instalação, enquanto que a demanda de potência elétrica representa a relação entre energia e tempo, vale dizer, é a medida do fluxo da energia consumida na instalação no período considerado.
Em se tratando de um pequeno consumidor, a quantidade de energia consumida é apurada em kWh, pois essa é a unidade de medida adotada pela tarifa monômia, em que o valor faturado compreende a demanda de potência estimada e o consumo medido, tal como se passa com a fatura de energia fornecida a uma unidade residencial, cujas variações no perfil de consumo não são de modo a exigir alterações substantivas no dimensionamento do sistema elétrico. Adota-se, no caso, a chamada tarifa convencional.
Por outro lado, como o sistema elétrico tem de ser dimensionado para entregar energia com as características de demandas específicas, previstas em contrato, que variam de consumidor para consumidor, é natural que a conta de energia elétrica leve em consideração as duas grandezas que concorrem para a formação da tarifa binômia, uma, que reflete a quantidade de energia elétrica (KWh) e outra, sua intensidade (ou potência), determinada pela demanda faturável (KW), rateando-se, com isso, os custos de forma proporcional ao impacto que cada consumidor causa ao sistema elétrico.
Essa segregação dos custos possibilita reconhecer o preço da energia consumida em grande intensidade (alta potência) daquela consumida em pequena intensidade (baixa potência), devendo ambos ser discriminados na fatura de energia elétrica, segundo prevê o Decreto nº 62.724, de 17 de maio de 1968, que, ao estabelecer normas gerais de tarifação para as empresas concessionárias de serviços públicos de energia elétrica, assim dispõe:
“Art. 11. As tarifas a serem aplicadas aos consumidores do Grupo A serão estruturadas sob forma binômia, com uma componente de demanda de potência e outra de consumo de energia.
Art. 12. A demanda de potência faturável para as unidades consumidoras do Grupo A será a maior dentre as seguintes:
I – a maior demanda medida, integralizada no intervalo de quinze minutos durante o período de faturamento;
II – a demanda contratada, observado o disposto no art. 18 deste Decreto e no art. 3º do Decreto nº 86.463, de 13 de outubro de 1981.
§ 1º A demanda de potência, bem como o consumo de energia de cada usuário desse grupo, deverão ser verificados, sempre por medição”.
A segregação da potência de energia elétrica da quantidade consumida, além de possibilitar a identificação do grau de regularidade com que a energia é consumida, permite, por outro lado, que se impute àquele que exige dimensionamento maior do sistema elétrico uma tarifa diferenciada, fixada em função das características técnicas e dos custos específicos, provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários (Lei nº 8.987, de 13.02.95, art. 13). Nesse sentido, o REsp 873.647, Relator Min. Humberto Martins.
Mas não é só.
Como as curvas de carga das plantas industriais podem variar em função do ciclo de operação previsto para os diferentes setores de produção e do período de funcionamento diário estipulado, existe a permanente preocupação em manter controlado o valor da demanda em horários de pico, especialmente. Em razão disso, o regime tarifário procura induzir o deslocamento da operação de certas máquinas para horários diferentes, onerando a ligação simultânea de equipamentos com demandas altas em horários de pico, para não sobrecarregar o sistema.
Costuma-se ilustrar o tema com o exemplo seguinte: dois consumidores podem apresentar um mesmo consumo mensal de 30.000 KWh. Aquele que, no curso do mês, consome diariamente e de forma regular 1.000 KWh, exige menos do sistema do que aquele que consome todos os mesmos 30.000 KWh em apenas uma única hora. Como este último exige do sistema um dimensionamento maior do sistema para suportar demanda de potência elétrica tão elevada, no curto espaço de tempo em que a energia foi consumida, seus custos devem ser obviamente sensivelmente maiores.
Por isso, no exemplo, como a intensidade do consumo é ditada pela potência dos aparelhos elétricos, a medição da demanda dos dois consumidores acusará valores distintos, implicando uma tarifação também distinta, pois, como o consumo intensivo implica em demanda maior – requisitando do sistema distinta capacidade de geração, transmissão e distribuição -, a tarifa de demanda deverá ser superior à daquele que apresentou consumo regular no período. Por conseguinte, natural que uma parcela da conta de energia elétrica reflita os custos da infra-estrutura posta à disposição do consumidor (demanda – KW) e outra corresponda à quantidade consumida em um período de tempo (energia – KWh).
De resto, parece não existir dúvida quanto à legitimidade da cobrança desse componente tarifário, mesmo porque já reconhecida pela jurisprudência, segundo o acórdão da lavra da eminente Ministra Eliana Calmon (REsp nº 609.332), assim ementado, em sua parte útil:
“ADMINISTRATIVO – SERVIÇO PÚBLICO – ENERGIA ELÉTRICA – TARIFAÇÃO – COBRANÇA POR FATOR DE DEMANDA DE POTÊNCIA – LEGITIMIDADE.
(…)
2. A prestação de serviço de energia elétrica é tarifada a partir de um binômio entre a demanda de potência disponibilizada e a energia efetivamente medida e consumida, conforme o Decreto 62.724/68 e Portaria DNAAE 466, de 12/11/1997.
3. A continuidade do serviço fornecido ou colocado à disposição do consumidor mediante altos custos e investimentos e, ainda, a responsabilidade objetiva por parte do concessionário, sem a efetiva contraposição do consumidor, quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o enriquecimento sem causa, repudiado pelo Direito”.
Em seu voto, deixou consignado:
“Assim como não pode a concessionária deixar de fornecer o serviço, também não pode o usuário negar-se a pagar o que consumiu ou o que lhe foi disponibilizado pelo concessionário, sob pena de se admitir o enriquecimento sem causa, com a quebra do princípio da igualdade de tratamento das partes.
(…)
Afinal, para prestar com eficiência o serviço, o concessionário é obrigado a disponibilizar um potencial de energia em seus sistemas para que o consumidor, necessitando, possa usufruí-lo de forma imediata e automática, segundo os critérios fornecidos pela legislação específica.
A aceitação da tese trazida pela recorrente levaria à idéia de se ter um serviço gratuito ou a baixíssimo custo, o que não pode ser suportado por quem fez enormes investimentos e conta com uma receita compatível com o oferecimento desses serviços, o que representaria, ao contrário do que prega a recorrente, uma desvantagem exagerada para ela, consumidora, em detrimento do concessionário, com ônus excessivo para este”.
E, realmente, diversa não poderia ser a solução ofertada, pois, se a tarifa deve assegurar justa remuneração do capital, os investimentos feitos para atender a demanda de potência contratada computam-se no valor da tarifa, uma vez que as despesas pertinentes, incorridas com a boa prestação do serviço, necessitam abrigar-se na tarifa, pois, a ser de outro modo, a tarifa não estaria incorporando todos os componentes que devam concorrer para sua formação. Como é de todos sabido, assim se compõe normalmente o regime tarifário, segundo o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello (“Taxa de Serviço”, in RDT 9/10)
Simples incremento da tarifa e só dela dissociável na medida estrita em que seja havida como unidade suplementar, conquanto co-participante da natureza do principal, “o componente tarifário de potência é parcela dos custos de fornecimento da energia elétrica, e não serviço autônomo ou agregado”, assegura Ricardo Lobo Torres, em parecer sobre o tema.
Conclui-se, pelo exposto, que a “demanda contratada” nada mais é que um componente da tarifa de energia elétrica. Sendo essa sua natureza jurídica, importa, então, afastar o equívoco predominante a propósito, não podendo ser confundida com o comprometimento do consumidor com pagamento permanente do preço de um consumo mínimo, como forma de assegurar o suprimento de eletricidade e que tem orientado inúmeras decisões judiciais, equívoco este em que, lamentavelmente, incorreu até mesmo Gilberto de Ulhôa Canto, cujo parecer tanto influenciou as decisões até então proferidas (“ICMS: incidência sobre fornecimento da energia elétrica. Eletricidade: natureza jurídica e tratamento tributário. Base de cálculo e fato gerador do ICMS no fornecimento de energia elétrica. Condição, conceito”, in “Direito Tributário Aplicado – Pareceres” – Forense Universitária – RJ, 1992, p. 110).
O fato gerador do imposto
Prescreve o art. 155, II, da CF, reproduzido pelo art. 1º da LC 87/97, competir aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (veja-se, operações e não o consumo), o que significa dizer que a incidência do ICMS pressupõe uma operação que promova a mudança de titularidade da mercadoria, nisso se esgotando, não perquirindo, tanto a Constituição como a lei complementar, aditada para disciplinar sua instituição e cobrança, sobre a destinação a ela dada por seu adquirente ou qualquer outra circunstância alheia à materialidade de sua hipótese de incidência.
Exatamente porque o núcleo da materialidade da incidência reside na expressão operações, de que resulte tão só a mudança de titularidade da mercadoria, nisso se esgotando, é que Alcides Jorge Costa, ao se referir à afirmativa de Berliri de que o imposto sobre o valor acrescido é um imposto sobre o consumo e que a conseqüência é a de tornar-se devido apenas quando ocorre o consumo, diz que esse essa conclusão “resulta da aplicação de um dado econômico a um fato jurídico”, e que, por isso mesmo, “é inaceitável” (ICM na Constituição e na Lei Complementar. Editora Resenha Tributária. SP, 1978, pág. 77).
A essa crítica adere Paulo de Barros Carvalho, para quem “Antônio Berliri edifica suas ponderações utilizando-se de conceitos nitidamente econômicos, inaplicáveis, sem laivos de heresia, à descrição do fenômeno jurídico” (Hipótese de Incidência do ICM, RDT, nº 11/12, p. 261).
Sendo assim, a orientação que tem presidido a solução das controvérsias judiciais instauradas introduz na hipótese descritiva do fato gerador do imposto um elemento exógeno, de natureza econômica, que só se transformaria em jurídico se o legislador estabelecesse – ele próprio – que o fato gerador é o consumo ou que a incidência do ICMS sobre as operações relativas à circulação de mercadorias somente se aperfeiçoa com seu consumo – no que, evidentemente, estaria se distanciando de sua regra-matriz constitucional.
A se considerar, então, a jurisprudência predominante, a tese do insigne jurista italiano, não obstante as acerbas críticas que lhe são dirigidas pela doutrina da melhor expressão, ainda conta, ao que se presume, com fervorosos adeptos no âmbito do Judiciário.
Por outro lado, embora prepondere a eleição da “saída” como forma mais corrente do momento em que se considera ocorrido o fato gerador do ICMS, a Lei Complementar nº 87, de 1996, consigna, nos diversos incisos do art. 12, diferentes marcos temporais de sua exteriorização.
Por isso, à falta de uma explicitação, a genérica alusão feita à saída da mercadoria do estabelecimento, como elemento determinante do momento em que se realiza o fato gerador do imposto (inc. I), não encontra adequado campo para aplicação quando se trata de operação de circulação de energia elétrica, uma vez que, por ocasião de sua saída do estabelecimento gerador, seu usuário é indeterminado, pois, fluindo a corrente pelas linhas de transmissão e de distribuição, poderá ser consumida por quem quer que seja que a elas tenha acesso, não havendo, então, como identificá-lo, segundo observação formulada por Gilberto de Ulhôa Canto, quadro esse que se tornou mais agudo a partir da reestruturação do setor, que extinguiu a concentração, numa única concessionária, dos diversos segmentos que integram o sistema elétrico.
A isso, alia-se o fato de que, como o sistema elétrico é hoje totalmente interligado, integrado que é pelas diversas usinas que estão a ele conectadas, não haveria, também, como identificar qual é o estabelecimento produtor que deu saída à energia elétrica entregue a determinado consumidor.
Nessas circunstâncias, tendo em vista o que dispõe art. 116, II, do CTN, encontra espaço para aplicação o art. 135, do Decreto nº 41.019, com a redação que lhe deu o art. 1º, do Decreto nº 86.463/81, consoante o qual a energia elétrica deve ser entregue no ponto de conexão do sistema elétrico com as instalações da unidade consumidora, que a agência reguladora do sistema elétrico, por sua vez, estabelece deva situar-se no limite da via pública com o imóvel em que se achar localizada.
E não é de estranhar essa disposição do Código Tributário Nacional, no que estabelece que, quando a previsão hipotética referir-se à situação jurídica, ter-se-á por ocorrida no instante em que, na forma do direito aplicável, esteja definitivamente configurada, pois, na idealização das conseqüências tributárias, o legislador complementar muitas vezes lança mão de figuras de outros ramos do direito, sem explicitar tratamento jurídico-tributário diverso.
Nessa hipótese, como não existe um legislador tributário distinto e contraponível a um legislador civil ou comercial – uma vez que os vários ramos do direito são partes de um único sistema jurídico – qualquer regra jurídica exprimirá, então, uma única regra (conceito ou categoria ou instituto jurídico) válida para a totalidade daquele único sistema jurídico.
Dessa homogeneidade sistemática (homogeneidade essencial para a certeza do direito que deve derivar do organismo jurídico) decorre a conseqüência de que a norma legal, ao fazer referência a conceito ou instituto de um determinado ramo de direito, assim o faz aceitando o mesmo significado jurídico que emergiu daquela expressão, quando ela entrou para o mundo jurídico naquele outro ramo do direito, segundo o precioso magistério de Alfredo Augusto Becker (Teoria Geral do Direito Tributário, Saraiva, 3ª edição, p. 122//123).
Com a entrega da energia no ponto de conexão pode-se então identificar, com a precisão necessária, o consumidor da energia elétrica, com o que estaria atendida a capitulação constitucional, que é a realização de operação de circulação de mercadoria, considerando-se, a partir de então, satisfeita a prestação a cargo da distribuidora e cessando, a partir daí, sua responsabilidade pela prestação do serviço, mesmo porque, segundo o art. 481 do Código Civil, embora o primeiro efeito da compra e venda seja a transferência do domínio, este não se opera pelo contrato, mas pela tradição da coisa.
E não é por outra razão que, para Ives Gandra da Silva Martins, a geradora e o comprador “devem considerar como fato gerador do ICMS o local da disponibilidade de energia, de acordo com o ajustado nos contratos” (RDA nº 225) que, de resto, simplesmente se contentam por reproduzir o que dispõe a norma editada pela ANEEL.
Visto o tema sob esse ângulo de análise, tão só a colocação da energia elétrica à disposição do consumidor no ponto de entrega já é suficiente para aperfeiçoar-se o fato gerador do imposto, visto que, segundo o autorizado magistério de Geraldo Ataliba e Cléber Giardino, a circulação a que se refere o texto constitucional implica a transmissão de um conjunto de direitos que, no mínimo, dê ao transmitido poderes de disposição sobre a coisa, pois “convenciona-se designar por titularidade de uma mercadoria a circunstância de alguém deter poderes jurídicos de disposição sobre a mesma, sendo ou não seu proprietário (disponibilidade jurídica). Esse fenômeno é que importa, no plano do ICM” (Núcleo da Definição Constitucional do ICM, RDT 25/26).
Por isso, asseguram, o conceito constitucional de circulação jurídica é mais amplo do que a simples transferência de domínio, tal como compreendida pelo Direito Privado. Segundo eles, há circulação, aperfeiçoando-se o fato gerador do imposto, também quando alguém recebe direitos de disponibilidade (poder de dispor) sobre uma mercadoria, situação essa, no caso, perfeitamente caracterizada, a partir do momento em que a energia elétrica, na potência contratada, é entregue no ponto de conexão, ficando, a partir daí, à disposição do adquirente, a quem cabe retirá-la, pois, nos termos da lei civil, em princípio é o destinatário que tem o ônus de buscar a coisa transportada após desembarcada no local de destino, segundo ensina Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil. Forense, 11ª edição, vol. III, pág. 335).
Por conseguinte, como se trata de um bem móvel por ficção legal, essas considerações levam a compreender o fato da entrega da energia elétrica no ponto de conexão como decisivo critério de imputação temporal da operação tributável que, assim, ter-se-á por acontecida nesse instante, considerando-se, desde então, ocorrido o fato gerador do Imposto e existentes os seus efeitos.
Base de cálculo do imposto
Entretanto, algumas decisões, pouco preocupadas em sindicar a natureza jurídica da demanda de potência, optaram por dirimir a controvérsia em face da própria hipótese de incidência do ICMS, de que, entretanto, tanto ela como o consumo da energia são ambos meras medidas de sua expressão financeira, integrando, portanto, sua base de cálculo e não o núcleo da materialidade de sua hipótese descritiva.
Por outro lado, a correta determinação da base impositiva do imposto incidente sobre a energia elétrica pressupõe o exame da compatibilidade dos elementos considerados com a hipótese de incidência do ICMS, uma vez que se trata de inclusão, naquela, de um elemento utilizado para a formação do preço (tarifa) cobrado do consumidor de energia elétrica.
Nesse sentido, dispõe o art. 13, da Lei Complementar 87/96, que a base de cálculo do imposto é, na saída de mercadoria prevista nos incisos I, III e IV do artigo 12, o valor da operação (inc. I), isto é, o valor do negócio jurídico de que resulte a venda da energia elétrica, que, consoante a esclarecedora dicção do art. 34, § 9º, do ADCT, corresponde ao preço praticado na operação final, por compreender todos os custos incorridos desde sua produção, pela empresa geradora, até sua entrega ao consumidor, e não o valor da quantidade de energia elétrica consumida, como muitas vezes se afirma, uma vez que pode comportar a inclusão de outros custos. Por isso, dispõe seu § 1º, II, “a”, que integra a base de cálculo do imposto o valor correspondente a seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, o que dá uma idéia do campo de abrangência da base impositiva do imposto.
Aliás, o art. 9º, da Lei Complementar nº 87/96, contém idêntica previsão, quando autoriza a atribuição da responsabilidade pelo recolhimento do imposto à empresa geradora ou distribuidora de energia elétrica, hipótese em que o cálculo do imposto deverá também ser efetuado sobre o preço praticado na operação final.
Curioso é que, nesse sentido pronunciou-se, entre outros não menos eminentes pares, o Min. Luiz Fux, em voto proferido no AgRg no REsp 797.826 (inter plures), muito embora deixando antever que, a seu juízo, o preço praticado na operação final corresponderia ao valor agregado da última operação – o que constitui um inexplicável equívoco, pois, como professa Ricardo Lobo Torres, “O ICMS sobre o fornecimento de energia elétrica incide, a rigor, sobre o preço final correspondente a toda a cadeia do setor elétrico (geração, transmissão e distribuição), em simetria com a unicidade do aspecto material do seu fato gerador. O tributo estadual não recai apenas sobre o valor adicionado na última etapa, como acontece com os impostos plurifásicos não-cumulativos, mas sobre o valor agregado em todas as etapas anteriores, unificadamente, …”.
Diante do cuidado do legislador em estabelecer a grandeza econômica do fato gerador do ICMS, sua base de cálculo não pode, por construção jurisprudencial, sofrer limitações que a restrinjam ao mero valor da energia elétrica consumida, como se o fornecimento do insumo não implicasse custos outros que se incorporam naturalmente ao preço da tarifa cobrada pela concessionária, de que constitui exemplo típico o valor da demanda contratada.
Com efeito, o “valor da operação” é bem mais amplo que o valor da quantidade de energia elétrica consumida, a revelar, portanto, a existência de uma relação entre o continente e seu conteúdo.
Em hipótese assemelhada, o Supremo Tribunal Federal reputou ilegítima a exclusão do encargo financeiro incorporado ao valor de venda mercadoria da base de cálculo do imposto, pois, para a Suprema Corte, sendo único o negócio jurídico, o valor da operação, para o propósito da determinação da obrigação de pagamento, haverá de considerar o encargo financeiro compreendido no preço da mercadoria (ADI 84/MG, Relator MIn. Ilmar Galvão). A jurisprudência do STJ, no particular, não discrepa (AgRg no AG 862.500; AgRg no REsp nº 818.173, entre outros).
Ora, se a base de cálculo do imposto é o valor da operação, o valor da energia consumida, isoladamente considerado, revela-se então insuficiente para traduzir o valor real do negócio jurídico subjacente, que pressupõe a incorporação de todos os elementos que são adicionados ao custo da mercadoria, para formação do preço final.
Assim, somente a inclusão de ambos os custos do fornecimento da energia elétrica na base de cálculo do imposto atende a correlação lógica que deve existir entre o fato gerador e o montante sobre o qual deve incidir o imposto, o que permite possa a base imponível resultar de ambos os elementos que integram o mesmo e único elemento material, de modo a afirmar, com isso, a objetividade do critério adotado.
Sendo assim e como a base de cálculo lógica e típica no ICMS, na hipótese de energia elétrica, é o valor de que decorrer sua entrega ao consumidor, este valor outro não poderá ser, por conseguinte, senão aquele que constituir objeto da fatura emitida pela concessionária, por abrigar naturalmente todos os custos incorridos desde a geração até a entrega do produto, residindo aí o motivo pelo qual a base de cálculo deve ser o quantum destacado na nota fiscal/fatura, eis que “O ICMS deve incidir sobre o valor real da operação, descrito na nota fiscal de venda do produto ao consumidor” (AgRg/REsp nº 625.001, Relator Min. Castro Meira).
No caso, a expressão financeira da base impositiva do ICMS, real dimensão da materialidade da sua hipótese de incidência, é naturalmente revelada na fatura de venda do produto, documento representativo da mudança da titularidade da energia elétrica e versão documental, que a operação subjacente tem por forma de materialização, onde são discriminados os valores das tarifas aplicadas sobre os componentes do consumo e do fluxo da potência utilizada, elementos quantificadores da operação relativa à circulação da energia elétrica.
Por outro lado, há que se afastar, insista-se, o entendimento de que a hipótese comportaria a incidência do imposto sobre a mera aquisição de energia elétrica para formação de uma reserva, contratada que seria pelo consumidor com o único propósito de prevenir-se do risco de ser surpreendido pela eventual insuficiência de energia, como equivocadamente já se afirmou alhures, deixando entender, com isso, que a energia elétrica poderia ser adquirida para ser armazenada, o que, para Ricardo Lobo Torres, constitui um nonsense, pois a energia não se estoca.
Como a tarifa binômia adotada para fins de determinação da remuneração devida à concessionária comporta dois componentes distintos, conclui-se pelo desacerto do entendimento que procura excluir o componente de demanda de potência de energia da base de cálculo do imposto, embora considere legítima sua inclusão no preço da tarifa, como se a demanda de potência contratada não integrasse o valor da operação, como custo que é do fornecimento da energia elétrica consumida e ao próprio consumo não estivesse ela umbilicalmente associada.
Por conseguinte, a exclusão desse componente tarifário não se afeiçoa também à previsão inscrita no art. 13, I e §1º, II, da Lei Complementar nº 87, de 1996, devendo então o valor total do fornecimento de energia elétrica compor a base de cálculo do ICMS que, na hipótese, compreende o valor da potência contratada e o valor da quantidade de energia consumida, ambos cobrados na nota-fiscal/fatura, pois a nota fiscal entregue ao comprador é o documento onde se demonstra a ocorrência da operação de compra e venda, expressando o valor para fins de incidência do ICMS (REsp 137.783, Relator Min. Milton Luiz Pereira), eis que, somente assim, estará traduzindo o real o valor do negócio jurídico subjacente.
Conclusão
Pelo que se vê, a controvérsia acerca da incidência do ICMS sobre o valor da demanda de potência contratada pela unidade consumidora resolve-se, naturalmente, em face da correta compreensão de sua natureza jurídica, que, como visto, não se confunde com a simples garantia de suprimento ininterrupto da energia elétrica.
De resto, a exclusão do componente tarifário da base de cálculo do imposto, nas aquisições feitas pelos grandes consumidores, implicaria dispensar-lhes tratamento privilegiado, pois os demais consumidores arcam com o pagamento da demanda estimada a partir de um fator de carga “típico”, uma vez que, segundo esclarece a ANEEL, “As tarifas do “Grupo B” são estabelecidas somente para o componente de consumo de energia, em reais, por megawatt-hora, considerando que o custo de demanda de potência está incorporado no custo do fornecimento de energia em megawatt-hora” (Cadernos Temáticos, nº 4, 2005).
Diante disso, observa, mais uma vez, Ricardo Lobo Torres, a jurisprudência formada “mostrou-se insensível à principiologia jurídica presente na problemática, desrespeitando: a) o princípio da capacidade contributiva, com o desigual tratamento dos contribuintes sujeitos às tarifas dos Grupos A e B, que em ambas se inclui a demanda de potência; b) a proibição de enriquecimento sem causa, que a tanto equivale minimizar a importância da verdade tarifária hoje predominante no sistema elétrico brasileiro, com a translação para o Estado (=população) do ônus de subvensionar indiretamente parte substancial dos custos causados pelos grandes consumidores de energia“.
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