Resumo: Este artigo busca apresentar sumariamente algumas dificuldades encontradas nas disciplinas zetéticas dos cursos de Direito, enfocando os conteúdos e os problemas com a pesquisa. Defende-se que há uma dicotomia entre disciplinas dogmáticas e disciplinas zetéticas levam a um estranho ensino de direito, que se foca na técnica, na informação e não na criatividade e na crítica.
Palavras-chave: zetética, ensino do Direito, pesquisa acadêmica, Filosofia do Direito, História do Direito, Sociologia do Direito, Antropologia do Direito, Psicologia do Direito, Direito e cultura
Sumário: Introdução, 1.Disciplinas zetéticas na Faculdade de Direito: o desafio de ir além da técnica, 2.O esvaziamento da zetética no Direito e a dificuldade da pesquisa acadêmica nessa área, 3.Desafios da Filosofia do Direito, 4.Desafios da História do Direito, 5.Desafios da Sociologia do Direito, 6.Desafios da Psicologia do Direito, 7.Desafios de novas disciplinas: Direito e Cultura, Considerações finais, Bibliografia
Introdução
As disciplinas não profissionais nas faculdades de Direito nunca foram maioria numérica e nem dotadas de grande prestígio, uma vez que o foco sempre esteve nas disciplinas profissionais. Nos últimos anos essas disciplinas não profissionais começaram a ganhar mais prestígio frente aqueles que elaboram os currículos, em grande parte devido ao medo de se reduzir o curso de direito à mera técnica, focado em um estudo dos códigos. A mudança constante nas legislações também trouxe a necessidade dos cursos de apresentar algo para o aluno que não estaria desatualizado assim que esse saísse da faculdade, dando a sensação de nada ter aprendido de útil.
As disciplinas não profissionais, que também são chamadas aqui de zetéticas, sempre existiram nos currículos das faculdades de Direito. O parecer do MEC CNE/CES 211 de 2004 que trata sobre a reformulação dos currículos, faz um resgate das disciplinas zetéticas ao longo da história da educação, apontando que: em 1854 havia a disciplina de Direito Natural nos primeiros e segundos anos; em 1895 surgiram as disciplinas de Filosofia do Direito, História do Direito e Direito Romano; em 1963 surge a Introdução à Ciência do Direito; em 1972 surge uma série de disciplinas zetéticas que são chamadas de disciplinas básicas em contraponto as disciplinas profissionais e entre elas estão Introdução ao Estudo do Direito, Economia, Sociologia; em 1981 as disciplinas zetéticas estão em dois blocos: a) matérias básicas- Introdução à Ciência do Direito, Sociologia geral, Economia, Introdução à Ciência Política e Teoria da Administração, b) matéria de formação geral- Teoria Geral do Direito, Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito, Hermenêutica jurídica e Teoria Geral do Estado; em 1994 as disciplinas zetéticas estão na classificação das matérias fundamentais que são: Introdução ao Direito, Filosofia (geral e jurídica), Ética (geral e profissional), Sociologia (geral e jurídica) e Economia e Ciência Política (com Teoria do Estado).
O currículo vigente hoje para as Faculdades de Direito não apresenta mais disciplinas em um currículo fixo obrigatório em suas grades curriculares, e fica a critério de cada faculdade apresentar uma grade curricular própria, elencando as disciplinas que farão parte do curso. Porém, a nova diretriz curricular entende que o curso deve ser dividido em três eixos de formação: fundamental, profissional e prático. O eixo fundamental é que se encontram as disciplinas zetéticas, elencadas em um rol exemplificativo: Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia, Sociologia. Segundo as diretrizes do MEC (resolução CNE/CES N.9 de 29 de set. de 2004), essas disciplinas têm o objetivo “de integrar o estudante no campo, estabelecendo relações do Direito com as outras áreas do saber”.
Apesar da crescente preocupação com o ensino do direito virar mera técnica, as disciplinas zetéticas aparecem como um complemento ao ensino do Direito que ainda tem em sua maioria disciplinas técnicas (profissionais e práticas). Mesmo entre as habilidades e competências exigidas dos bacharéis em Direito, listadas no artigo 4 da resolução acima citada, não há qualquer menção a desenvolvimento de um saber crítico, criativo, que propicie um novo olhar para a sociedade. As habilidades e competências estão ligadas quase sempre a saberes que são desenvolvidos pelas disciplinas técnicas/dogmáticas.
Este artigo busca questionar o papel da zetética jurídica frente a uma política educacional nas Faculdades de Direito, que ainda não dá importância real para as disciplinas não profissionais, focando-se em um ensino de informação, técnico, pouco crítico e criativo. A existência de disciplinas com o foco na técnica e no estudo dos códigos tem sido um desafio para os cursos de Direito, que tem dificuldade para lidar com um currículo partido pelo menos em duas frentes, que pouco se tocam, podendo ser entendidas como verdadeiros dois cursos na mesma faculdade de Direito. Essa falta de diálogo entre essas disciplinas tem ocasionado problemas não somente para os alunos, mas para a própria estrutura dos departamentos e para a delimitação áreas de pesquisas. Frente ao verdadeiro abandono pelas faculdades de Direito quanto a essas disciplinas zetéticas, surgem outras áreas e profissionais reivindicando a legitimidade da produção desses saberes. As disciplinas zetéticas lutam para se manter e a continuar a produzir um saber que não é técnico, mas sim crítico e inovador (criador do novo). Tal tarefa não é fácil, mas parece ser fundamental para um outro ensino de Direito, que tenha como objetivo não somente produzir um aparato burocrático Estatal, mas de formar pessoas para enfrentar os desafios de lidar com o direito na sociedade moderna que é altamente complexa. O foco do texto são os problemas que enfrentam as disciplinas zetéticas nos currículos de graduação, mas muitas considerações podem ser levadas para o âmbito da pós-graduação, em especial quanto à pesquisa.
Apesar das discussões sobre o ensino nos cursos de Direito terem sido intensas, provocando longos debates sobre a qualidade desse ensino, pouco se diz das disciplinas a serem ministradas nas faculdades de direito. Há um intenso debate sobre o ensino e a pesquisa no Direito, que levam em consideração em especial as disciplinas técnicas, a maioria numérica nos cursos, mas que em geral se esquecem das disciplinas zetéticas ou não chegam a atentar para essa diferença. Esse texto não é sobre o ensino do direito em sala de aula, mas sim sobre as disciplinas zetéticas presentes no currículo das faculdades de direito e as dificuldades que elas se encontram frente ao conteúdo e frente à pesquisa. Não é objeto de estudo o aprendizado, nem a qualidade do ensino, mas sim o que se ensina aos alunos de direito. Muitos estudos batem e rebatem na questão da qualidade do ensino de direito, mas não se preocupam em ver o que está se ensinando, como se o problema fosse somente o desinteresse do aluno e a desatualização do professor frente às novas tecnologias. O que se ensina e pra que se ensina parece mais importante de ser discutido nesse momento.
As disciplinas tidas como zetéticas tem tido pouco espaço na reflexão do ensino de direito, uma vez que são tratadas por muitos juristas pejorativamente como “perfumarias jurídicas”, mesmo tendo recebido o pomposo nome de disciplinas formadoras. Muitas dessas disciplinas são obrigatórias para todos os alunos e outras eletivas, de acordo com a nova configuração dos currículos. Assim, nem todos os alunos chegam a cursar todas essas disciplinas zetéticas, mas mesmo tomando contato com apenas uma parte dessas disciplinas, existe entre os alunos um intenso mal estar na dicotomia das disciplinas técnicas e zetéticas e uma tendência a desconsideração com dessas últimas. O descaso dos alunos muitas vezes não é sem razão, uma vez que o foco do currículo está mesmo nas disciplinas técnicas. Mas esse descaso ou desconforto em relação às zetéticas, por parte de professores, pesquisadores do direito e alunos é um sintoma para que se repense o que se ensina no curso de Direito.
O artigo pretende apontar alguns aspectos de dificuldade em algumas disciplinas que são tidas como disciplinas zetéticas, não pretendendo esgotar o tema, mas apresentando alguns pontos para se pensar as dificuldades atualmente encontradas. Aponta-se por diversas vezes ao longo do artigo para a estrutura da faculdade de direito e toma-se por paradigma a divisão de departamentos presente na Faculdade de Direito da USP, que aloca essas disciplinas zetéticas em diversos departamentos, inclusive alguns de disciplinas técnicas. Pensar o local em que essas disciplinas foram alocadas é importante para pensar o próprio caráter que se quis dar a elas. Há muitas Faculdades e Universidades que não se utilizam dessa estrutura, mas que assimilam o caráter técnico ou dogmático dado a essas disciplinas.
Há muito a se pensar ainda e essa é apenas mais uma das reflexões sobre o ensino do direito, que tem mais dúvidas do que soluções, mas que se pretende aberta para o diálogo em busca de um ensino que forme gente e não somente “operadores do direito”.
1. Disciplinas zetéticas na Faculdade de Direito: o desafio de ir além da técnica
Os estudos de Direito podem ser agrupados segundo dois tipos de disciplinas, as zetéticas e as dogmáticas[1], como apresenta Tércio Sampaio Ferraz Jr. As disciplinas dogmáticas são a grande maioria no currículo dos estudantes de Direito, e tem como características o forte enfoque na técnica e no estudo dos códigos legislativos. Essas disciplinas são em número muito maiores do que as zetéticas, que cada dia mais perde espaço. As disciplinas dogmáticas têm como características principais: busca por respostas mais do que por perguntas; estabelecimento de um ponto de partida sólido para o estudo do direito que não é posto em questão; possibilita uma decisão e a orientação para a ação. As disciplinas zetéticas têm como características principais: busca por perguntas mais do que por resposta e visam conhecer uma coisa[2].
Essa diferenciação feita por Tércio Sampaio provém da denominação de Vieweg, que diferencia enfoques dogmáticos e zetéticos, em sua obra “Tópica e Filosofia do Direito”, no capítulo relativo aos “Problemas sistêmicos da dogmática jurídica e a investigação jurídica”. Tércio Sampaio leva essa abordagem para uma divisão entre as disciplinas ministradas no Direito, atribuindo caráter dogmático a umas e zetético a outras. Essa oposição tem como base não apenas a obra de Vieweg, mas a questão da técnica e dos estudos dos códigos. Não passa despercebida a valorização das disciplinas zetéticas, enquanto pensantes e a desvalorização das disciplinas dogmáticas. Isso porque as disciplinas dogmáticas, não apenas fixam um limite de questionamento, como pretendia Vieweg, mas porque a elas estão ligadas uma produção de direito técnica e geralmente acrítica[3]. O jurista paulista destaca que essa não é uma característica necessária da dogmática jurídica, mas é como ela vem se apresentando nos últimos 100 anos[4]. A partir de Tércio Sampaio afirma-se aqui que as disciplinas podem ser divididas entre as técnicas e profissionais voltadas ao estudo da legislação, jurisprudência e doutrina e as que não têm como fim estudar as normas diretamente, mas que estão voltadas para o direito.
Essa distinção é muito particular dos estudos modernos de Direito, em que a técnica tem se mostrado mais importante do que as investigações e especulações. É possível identificar em um passado próximo, em que os estudos de direito não se pautavam tanto nos estudos das normas estatais, uma mistura da zetética e da dogmática em uma mesma matéria. Assim, um estudo de direito civil não era particularmente um estudo zetético ou dogmático, mas sim um pouco dos dois, já que havia uma preocupação com o ensino da legislação estatal; mas ao mesmo tempo este estudo era permeado por questões especulativas, que envolviam ética, justiça, moral, estudos sociais etc.. Atualmente é possível identificar uma grande clivagem entre as disciplinas zetéticas e dogmáticas e essa diferenciação tende a aumentar, com uma política universitária que dá ênfase ao Direito como técnica.
Agrupa-se na classificação de disciplinas zetéticas praticamente todas as disciplinas que não começam com a denominação Direito e que buscam a investigação e o questionamento, ou nas palavras do autor dessa classificação:
“Zetéticas são, por exemplo, as investigações que têm como objeto o direito no âmbito da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, da História, da Filosofia, da Ciência Política, etc. Nenhuma dessas disciplinas é especificamente jurídica. Todas elas são disciplinas gerais, que admitem, no âmbito de suas preocupações, um espaço para o fenômeno jurídico. À medida, porém, que esse espaço é aberto, elas incorporam-se ao campo das investigações jurídicas, sob o nome de Sociologia do Direito, Filosofia do Direito, Psicologia Forense, História do Direito etc.”[5].
As disciplinas zetéticas geralmente têm como objeto o direito e como método àqueles pertencentes às disciplinas gerais ao qual se referem. Assim, por exemplo, a Sociologia jurídica terá como método de investigação àquele próprio da Sociologia e não do Direito. É provável que a estranheza quanto a essas disciplinas zetéticas causada nos alunos de Direito, se deva mais ao desconhecimento dos métodos dessas ciências.
O desprestígio das disciplinas zetéticas somente não é maior em um país como o Brasil, uma vez que ainda impera sobre grande parte das Faculdades de Direito a busca por saberes que levariam o aluno a obter “cultura”. É possível que as disciplinas zetéticas não tenham ainda sucumbido, devido a uma busca de um refinamento pela ‘cultura’, que não é adquirido apenas com os saberes técnicos. Desse modo, as disciplinas zetéticas, não são visadas por muitos alunos e mestres, como fonte de investigação e questionamento, mas de informações de saberes cultos, formais que elevariam o status do ‘operador do direito’ para o bacharel.
2. O esvaziamento da zetética no Direito e a dificuldade da pesquisa acadêmica nessa área
As disciplinas zetéticas encontram-se hoje, em uma das principais universidades brasileiras, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, alocadas em um único departamento: Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito[6]. Não há departamento específico para cada disciplina zetética. Algumas das disciplinas zetéticas são oferecidas ao longo da graduação, como: Filosofia do Direito, Sociologia do Direito, História do Direito, Psicologia do Direito; e também nos cursos de pós-graduação. Excetuando a disciplina de Filosofia do Direito, as disciplinas zetéticas não são tão fortes na faculdade de Direito, que dificilmente oferecem uma área de concentração ligada a essas disciplinas ou mesmo grupos de pesquisa específicos.
Essas disciplinas são minoria em número e também em prestígio, pois se começou a discutir a utilidade prática dessas matérias. A pergunta recorrente é para que serve a filosofia do direito, a sociologia do Direito e por ai vai. As disciplinas zetéticas não têm como objetivo servir para algo, como um instrumento serve ao homem que o utiliza. Porém, essas disciplinas têm como objetivo a reflexão, o debate e a busca da autonomia do pensar do estudante de direito, além da produção de conhecimentos por pesquisadores. A diminuição da importância das disciplinas zetéticas parece estar relacionada com a diminuição do espaço público de discussão existente nas faculdades de direito. A recente iniciativa de alguns concursos públicos de introduzirem como conteúdo de suas provas matérias zetéticas tem aumentado o número de livros sobre o assunto, porém como são voltados para concursos, os assuntos são tratados de forma dogmática, não se podendo falar de uma revalorização das disciplinas zetéticas.
Existe uma grande dificuldade de diálogo entre as pesquisas e estudos dos pesquisadores e professores das disciplinas gerais com os das disciplinas específicas, como a Filosofia do Direito, História do Direito, Psicologia do Direito, etc. As disciplinas zetéticas ficaram restritas às faculdades de direito, que por sua forma de ingresso dificultam até hoje, a recepção de alunos de outras unidades, de pesquisadores de outras áreas e de professores não graduados em direito. Para fazer parte da faculdade de direito é pelo menos recomendado, quando não exposto de modo explicito e obrigatório, ter um diploma de direito. Assim, as disciplinas zetéticas são ministradas na sua maioria, por profissionais do direito. Esse embargo a quem não é do direito, permite que o saber produzido pela zetética jurídica, se distancie mais e mais no método e nas preocupações daqueles existentes nas disciplinas gerais. Assim, a filosofia do direito produzida nas faculdades de direito passou a ter pouca relação com a filosofia produzida nas faculdades de filosofia; e isso também ocorre com outras disciplinas. Algumas disciplinas zetéticas viraram um verdadeiro saber hermético, somente dado a poucos iniciados.
Se as disciplinas zetéticas têm fechado as portas aos profissionais de outras áreas, esses profissionais começaram a lidar com o Direito como objeto de suas preocupações. Historiadores, sociólogos, filósofos passam a reivindicar o direito de poder produzir conhecimento sobre o direito. Essa reivindicação frente ao embargo dos profissionais da zetética gerou uma disputa por legitimidade de produzir os saberes. Essa briga pelos campos dos saberes tem levado a um movimento estranho a uma academia que busca a interdisciplinaridade ou a transdiciplinaridade. Essa disputa não tem levado somente a uma indisposição entre os zetéticos e os outros profissionais da academia, mas colocado em dúvida à produção acadêmica. Os zetéticos acusam os outros profissionais de não conhecer o direito para poder lidar com um objeto tão complexo, enquanto historiadores, sociólogos, filósofos, etc. tendem a acusar os zetéticos de não utilizarem dos métodos próprios, colocando em dúvida o próprio status dos saberes zetéticos como ciência.
Dificilmente os profissionais de outras áreas conseguem enxergar a diferença de tratamento das disciplinas zetéticas e dogmáticas dentro das faculdades de Direito, e passam a tratar o ensino de Direito como se somente existisse disciplinas dogmáticas/técnicas[7]. Não é uma inverdade, quando se pensa que a grande maioria das disciplinas nas faculdades de Direito são realmente disciplinas técnicas. Esse olhar de fora, somente aumenta a dificuldade de se produzir um diálogo entre as outras áreas do saber.
Esse diálogo que é estabelecido entre as diversas áreas do saber, geralmente ocorre no âmbito da pesquisa e é essa uma das áreas críticas no ensino jurídico. As disciplinas zetéticas são muito parecidas com as disciplinas das outras áreas de humanidades, tanto no seu método, quanto na sua possibilidade de atuação profissional, produzindo professores e pesquisadores. Se um especialista em disciplinas dogmáticas pode ser um advogado ou um juiz, dando pareceres e sentenças, utilizando-se do direito como técnica, mesmo sendo nas faculdades de direito um acadêmico; dificilmente ocorre o mesmo com os especialistas nas disciplinas zetéticas, que acabam por migrar para a docência e para a pesquisa. Porém, a área de pesquisa nas faculdades de Direito é pouquíssimo desenvolvida, uma vez que a docência durante muito tempo não dependeu da pesquisa, mas sim do conhecimento profissional dos bacharéis. Em comparação com outras áreas das humanidades, o direito ainda tem dificuldade em manter em seus quadros, professores em tempo integral, que possam desenvolver pesquisas.
Marcos Nobre, professor de Filosofia, ao comentar sobre a pesquisa em Direito, se pergunta por que “o Direito, como disciplina acadêmica, não tenha acompanhado o vertiginoso crescimento qualitativo da pesquisa em Ciências Humanas no Brasil, nos últimos 30 anos?” [8]. A resposta dada por Marcos Nobre é que “o atraso está ligado a dois fatores fundamentais. Em primeiro lugar, o isolamento em relação a outras disciplinas das Ciências Humanas e uma peculiar confusão entre prática profissional e pesquisa acadêmica” [9].
Concorda-se com a afirmação das respostas dadas por Marcos Nobre, de que há isolamento do direito e confusão entre a prática profissional e a pesquisa. Porém, entende-se que há outros fatores, até mais relevantes, que levam a uma dificuldade nas pesquisas em Direito. Não se discute aqui nem a questão da qualidade, uma vez, que para tal seria necessária uma comparação da produção acadêmica do Direito e das outras áreas das ciências humanas, e um levantamento relacionando a quantidade e qualidade. A aferição da qualidade é sempre em relação a algum padrão, e esse padrão pode ser interno ou externo. Se o padrão for externo, a pesquisa em Direito seria colocada em relação às pesquisas em outras áreas, porém nesse caso, foram escolhidos valores diferentes em cada um das faculdades em que essas pesquisas foram realizadas, que tornaria a comparação impossível.
Pelo menos quatro outros fatores parecem ser importantes nos estudos de direito, que influenciam tanto o ensino, quanto a pesquisa. Primeiro: a divisão interna entre as disciplinas dogmáticas e zetéticas revela uma esquizofrenia dos estudos de direito na atualidade, que levam a falta de parâmetros para a pesquisa. Disciplinas técnicas e investigativas não deveriam ser opostas, mas existirem em um mesmo estudo de maneira complementar e nunca antagônica. Essa contradição interna, dificilmente é vista por alguém que está fora das faculdades de Direito, mas que é importante para identificar a produção de dois tipos de estudos.
A pesquisa em Direito nas disciplinas dogmáticas, nos trabalhos de conclusão de curso, mestrado, doutorado e artigos acadêmicos; em geral, buscam mostrar o conhecimento do autor através de uma pesquisa bibliográfica, existindo pouca pesquisa de campo e discussão crítica. Não deixa de ser notável que se utilize nas faculdades de Direito muito mais a expressão “trabalho acadêmico” do que pesquisa científica ou pesquisa. A produção acadêmica, nas faculdades de Direito, valoriza fundamentalmente a erudição e a capacidade de argumentação dos pesquisadores. Muitos trabalhos na dogmática jurídica sofrem o grande problema de abandonarem a reflexão crítica, se atendo apenas a comentar a legislação existente. Geralmente esses trabalhos tem como pressuposto que o Direito é a legislação; fazendo análise da legislação, sem se dar conta que o objeto estudado poderia ser mais amplo. O problema do objeto da pesquisa nas dogmáticas é ainda agravado pela falta de interesse de pesquisadores plenos nessas áreas, que valorizam a atuação profissional fora da academia. Grande parte das pesquisas é feita como mera forma de obtenção de um título, responsável por aumentar os ganhos profissionais, com pouquíssimo interesse acadêmico
Esses mesmos padrões de pesquisa são utilizados também para as disciplinas zetéticas, e é em especial nessa parte que há um grande problema, primeiro porque essas disciplinas não deveriam ter como parâmetro a técnica, mas sim a indagação, segundo porque se aproximam em seus métodos das áreas gerais, havendo um confronto de métodos de pesquisa. Essas áreas das ciências humanas elencaram outros parâmetros de pesquisa, e com base nestes, não entendem a pesquisa na área da dogmática do Direito, como uma pesquisa acadêmica.
Os estudos zetéticos em Direito, quando verdadeiramente zetéticos, possivelmente não são tão diferentes em qualidade, daqueles produzidos pelas outras áreas das ciências humanas. Porém, o que muitas vezes ocorre é que os padrões para lidar com um direito como técnica, presente na dogmática são levados para as disciplinas zetéticas, ocasionando uma verdadeira corrupção dos seus primeiros ideais. As disciplinas zetéticas sofrem quando buscam adequar seus estudos a uma técnica, como ocorre com a Teoria Geral do Direito. Por outro lado, as disciplinas zetéticas também podem sofrer com a restrição de seu objeto, restringindo o Direito à norma.
Segundo: o fechamento das discussões do Direito tem relação direta com a restrição do objeto de estudo, ou seja, daquilo que os juristas passaram a entender como Direito. O Direito entendido somente como norma, deixando todas as relações sociais, filosóficas, históricas de lado, somente pode ser analisado pelo jurista. Quando se passa a um outro conceito de Direito, que entende que o direito é social-histórico ou mesmo que é fruto da tríade: fato, valor e norma; outras disciplinas como a história e a filosofia passam a interessar para os estudos de direito. Esse fechamento do objeto, que tem relação direta com a adoção do pensamento de Kelsen para os estudos zetéticos e dogmáticos, levou o afastamento de profissionais de outras áreas das humanidades.
A ampliação do conceito de Direito para que outras áreas das ciências humanas possam novamente dialogar com as pesquisas em direito e com seus profissionais e acadêmicos, tem de passar pela discussão da divisão das disciplinas jurídicas. Não apenas as disciplinas zetéticas devem permitir a entrada de profissionais de outras áreas, que teriam mais afinidade pelo método de seus estudos, mas também as disciplinas dogmáticas, que também cuidam de temas interessantes e que deveriam ser estudados e discutidos interdisciplinarmente. Somente quando a dogmática permitir ir além da técnica e o caráter de indagação e discussão estiver presente em todas as disciplinas do Direito será possível o diálogo para além dos muros das faculdades de direito. A esquizofrenia interna do Direito, em ter parte da face técnica e parte dada a absoluta abstração, tem de ser resolvida e isso demanda uma tarefa muito mais hercúlea do que apenas melhorar a qualidade das pesquisas. Não menos hercúlea será a tarefa de conseguir um estudo de direito que não fique preso somente à norma, pois isso proporcionará uma melhor compreensão dos alunos das disciplinas, uma melhora na pesquisa que pode incorporar um objeto mais amplo e a atração de outros profissionais que tenham interesse nesse grande objeto que é o direito e que não é somente norma e técnica.
Terceiro: Caráter monográfico versus caráter generalista/enciclopedista das disciplinas. As disciplinas das faculdades de Direito, sejam elas zetéticas ou dogmáticas, apostam no caráter generalista e enciclopedista dos saberes, privilegiando a informação. Esse caráter é diferente do adotado em outras faculdades de ciências humanas, em que o curso não visa percorrer toda a informação existente sobre o assunto, mas sim ensinar o aluno a percorrer um caminho de busca de saberes, que pode ser utilizado para futuras pesquisas. Esse é, por exemplo, o caráter de cursos de Filosofia e História, em que apesar das disciplinas terem uma designação ampla, o estudante sabe que estudará a disciplina pelo recorte de um tema. Assim, um curso de História Medieval pode tratar de um aspecto, de um período específico, sob o prisma de um autor ou uma obra e o mesmo pode-se dar com um curso de Filosofia Medieval, que poderá privilegiar um tema específico na obra de um filósofo Medieval.
Uma formação generalista, comparada a uma formação de especialista tem poucos pontos em comum. Essa diferença tem reflexos no ensino, nas provas (que testam os saberes) e principalmente na pesquisa. Na pesquisa em Direito abundam trabalhos que procuram tratar de um tema de um ponto de vista amplo, mesmo quando a pesquisa se aproxima da especialização. Ainda são comuns trabalhos acadêmicos em direito com o título de ‘Habeas Corpus’, ‘Salário’ ou a ‘União Homoafetiva’, quando em outras áreas das ciências humanas esse mesmo tema poderia ser analisado com extrema especialidade, como são os trabalhos de análise de caso. Trabalhos acadêmicos realizados nos cursos de mestrado e doutorado tendem a ter a pesquisa mais específica, mas mesmo nesse patamar, a especificidade do objeto de estudo não é obrigatória.
Caso semelhante ocorre com a especialidade e o ensino. Um professor de Direito Penal não pode ministrar um curso com formação de especialista, pois há uma cobrança no conteúdo para que se privilegie a quantidade de informações que o aluno tenha recebido. Essa cobrança não é feita apenas pela academia, mas por órgãos que medem a “qualidade dos alunos pela quantidade de informação” como a OAB e concursos públicos. Um professor de Antropologia dificilmente se atreveria a dar um curso generalista, e o mesmo ocorreria com outros professores das ciências humanas. Cursos generalistas na área de História, Filosofia, Antropologia e Sociologia seriam possivelmente tidos como pouco profundo na qualidade das informações e discussões.
O ensino do Direito nas faculdades de Direito não privilegia a qualidade da informação, nem o que fazer com ela, mas sim a quantidade de informações. Infelizmente, em um mundo complexo, com possibilidade de consultas a grandes bibliotecas, com informações de todas as mídias e com máquinas capazes de armazenar/ordenar e pesquisar maior quantidade de informações que os homens comuns, um ensino calcado no armazenamento de informações é fadado ao fracasso. Esse fracasso não se dá apenas com a tecnologia de ponta dos avançados computadores, mas já aponta problemas com a utilização um simples livro de leis, que certamente contém com mais precisão e em maior quantidade informações sobre a legislação, do que o que possa assimilar um dedicado aluno que decora essas informações. Assim, grande parte dos alunos de Direito terminam as faculdades de Direito, com uma considerável quantidade de informações sobre Direito estatal positivado, mas dificilmente aprenderam o que fazer com essas informações. Aprender como lidar com as informações e as técnicas, é uma tarefa que se dá nas disciplinas ditas “práticas” ou nos estágios profissionais (feitos nas ou pelas faculdades ou mesmo fora delas).
Esse privilégio dado à informação talvez se deva a um aspecto histórico das faculdades de direito, como também a valorização do bem falar nos profissionais de Direito. Atualmente a informação abunda em todos os cantos, o problema é o que fazer com ela. Atualmente o profissional do Direito fala bem menos, se comparado com os “arautos” de outrora, e há uma valorização imensa da escrita, que deve ser formalmente e oficialmente correta, objetiva (entenda-se: com frases curtas e claras) e tecnicamente precisa, sem que isso afete a compreensão popular. A faculdade de Direito formava bacharéis que geralmente sabiam bem falar e tinham um conhecimento enciclopédico, o que os levava ao status de pessoas cultas. Atualmente esses saberes têm sido cada vez menos valorizados para os profissionais de Direito. Não se pode precisar ao certo na história, onde ocorreu essa quebra, pois se trata de um processo, porém no Brasil parece que até a década de 60 do século passado esses saberes ainda eram valorizados, mas no fim da década de 70 eles já tinham perdido em parte sua importância.
Quarto fator: persistência da valorização da técnica e da cientificidade/racionalidade nas disciplinas da faculdade de Direito. A técnica não está presente nas faculdades de direito apenas como um saber informativo, mas como um método para a valorização do Direito como uma ciência, entendida como um saber em que o que importa é o objeto estudado sem ou com mínima, interferência do sujeito. A “cientificidade” ainda é defendida como uma busca pela neutralidade do sujeito ao apresentar seu objeto nas aulas e pesquisas de Direito. Isso se dá por um lado, pela influência da tradição positivista, que tem seu auge nos estudos de Kelsen sobre a teoria do Direito e por outro, por um grande receio da interferência da política (em especial a partidária) e dos valores ideológicos nos estudos de Direito[10].
A proximidade dos profissionais de direito com cargos políticos e com cargos de relativo poder tem levado a uma posição, no ensino e nos estudos, que se mostra fortemente avessa a explicitação de posicionamentos dos valores escolhidos/defendidos, embora não seja segredo a posição ideológica e partidária de grande parte desses profissionais. A não explicitação dos valores defendidos pelos profissionais pode ser sentida em especial nos trabalhos acadêmicos/pesquisas, uma vez que há quase que um império da defesa de “valores tradicionais” da sociedade, entendendo estes como valores defendidos por uma maioria ou mesmo valores defendidos por uma parcela conservadora da sociedade.
A questão da racionalidade/cientificidade do direito talvez seja uma das questões mais complexas e desafiadoras do estudo do Direito na atualidade e enfrentá-la por completo não é objetivo desse artigo. Porém, essa questão é uma das questões centrais para os estudos de Direito e deve ser levada em consideração para a discussão sobre uma possível reformulação dos cursos de direito.
Esses quatro fatores, associados aos dois outros fatores apontados por Marcos Nobre, levam a um panorama desolador dos estudos de Direito, indicando muito mais as falhas do que seus pontos fortes, que existem e são relevantes para a escolha de milhares de estudantes que se inscrevem todo o ano nesses cursos. Assim, não se entende aqui que haja uma crise do ensino do Direito, que desde sempre foi discutido e colocado em dúvida por muitos. O ensino do Direito é marcado por reformulações constantes, que seguem a sociedade e as teorias em voga. Talvez se esteja chegando a mais um dos pontos de mudança em que o ensino do Direito se reinventa para continuar a existir, transformando conceitos, mudando paradigmas, valorizando outros ideais.
Esse profundo desconforto está acontecendo primeiramente nas disciplinas ditas zetéticas, mas talvez em pouco tempo atinja também as disciplinas dogmáticas ou ditas técnicas.
3. Desafios da Filosofia do Direito
A filosofia do Direito é disciplina ligada aos estudos modernos do direito, que tem como antecedente os estudos de Direito Natural. A filosofia do direito tem sido explorada tanto por juristas como por filósofos. A atenção dos filósofos ao mundo do Direito não é nova, existindo grandes trabalhos como o de Kant e Hegel sob o título de Filosofia do Direito. Os juristas acabaram desenvolvendo uma filosofia do direito, muito própria, ficando restritos a alguns temas e nem sempre desenvolvendo um sistema de pensamento global.
A filosofia do Direito desenvolvida pelos juristas tende a ser entendida como uma só filosofia, o que é um erro, pois deve-se falar de filosofias do direito, no plural. Os livros de filosofia do Direito geralmente apresentam o pensamento de um filósofo do Direito, que adotam pressupostos filosóficos diferentes uns dos outros. Pode-se falar, portanto, na existência de Filosofias do Direito, no plural, pois cada uma das filosofias desenvolvidas por um jurista apresenta pressupostos que são em geral contraditórios entre si. Sobre esse tema comenta Villey:
“Parece que nos falta uma filosofia jurídica, porque temos pelo menos uma dezena delas. Ensina-se na Escandinávia uma concepção de direito completamente diferente da ensinada, em geral, no Chile. Não conheço maior torre de Babel do que os congressos da Associação Mundial de Filosofia do Direito: neles se afrontam jusnaturalistas, positivistas, kelsenianos, sociologistas e lógicos de todas as espécies… Freqüentemente a estreiteza de sua informação, o acaso de suas leituras faz com que o jurista se obnubile num só sistema; se lhe aconteceu freqüentar no colégio cursos de um professor kantiano, se leu Kelsen, se caiu de amores pelo existencialismo, se filiou-se a uma das igrejas do marxismo, a partir daí constrói seus sistema. Se lançasse um olhar de conjunto ao pensamento contemporâneo, perceberia que este não passa de um feixe de contradições”[11].
Essa busca de uma junção de filósofos do direito tão diferentes talvez seja fruto de uma tradição doutrinária de direito que busca justapor a visão de diversos autores sobre temas técnicos. Porém, essa mesma prática levada para o campo da filosofia gera confusões imensas, uma vez que apesar de tratarem de um ou mais temas em comum, os diversos filósofos do direito não estão falando da mesma coisa. Assim, não se pode justapor concepções de Direito de Kelsen, Miguel Reale, Austin, sem explicitar no que os autores concordam e discordam, e sem se reportar ao que cada um entende como Direito. A filosofia do Direito é plural, como afirma Tércio Sampaio[12].
Em uma tentativa de tornar mais técnico os ensinamentos da filosofia do direito e adequá-lo a um direito concebido como técnica surgiu a Teoria geral do direito. Norberto Bobbio entende que a Teoria Geral do Direito é disciplina formal, que busca lidar com os assuntos de uma forma objetiva, sem grandes especulações, chegando a afirmar que essa disciplina não é uma disciplina filosófica[13]. Enquanto a Filosofia do Direito tende a lidar com temas como justiça, moral, ética, liberdade, etc., a teoria do direito busca definir abstratamente o que é norma, sanção, validade, etc. No início do século XX pretendeu-se realizar uma substituição de uma disciplina pela outra, porém a filosofia do Direito mesmo com dificuldades resistiu e parece estar ressurgindo, mesmo que timidamente.
No Brasil a Filosofia do Direito ainda é uma das disciplinas zetéticas com maior importância, por englobar disciplinas como a Lógica Jurídica, Ética, Teoria da Argumentação, etc.. A disciplina de Introdução ao estudo do Direito pode ser ministrada e estudada com caráter zetético, mas geralmente se aproxima de um estudo sobre conceitos tidos como universais, com uma abordagem técnica. Os estudos de filosofia do Direito no Brasil, se comparado com outros países, ainda é relevante na sua produção. Na França, país de grande tradição na filosofia, os estudantes não tem essa disciplina em seu currículo[14].
A lógica jurídica e a teoria da argumentação são dois campos muito fortes dentro da Filosofia do Direito. Isso porque temas como a busca da verdade e a busca de parâmetros para poder se julgar é fundamental para o Direito. A lógica jurídica e a teoria da argumentação têm intima ligação também com a teoria da norma e a teoria dos sistemas. O movimento da “virada lingüística” parece ter influenciado muitos estudiosos da área. Há uma profusão de autores nessa área, valendo destaque para a utilização de autores como: Alexy, Klaus Gunther, Perelman e Manuel Atienza. Dentro da área de lógica jurídica, há também os estudos de teoria dos jogos também estão sendo incorporados nas faculdades de Direito, para tratar de problemas da decisão.
A ética estudada nas faculdades de Direito dificilmente tem um caráter zetético, mas sim profissional. Assim, a ética que se estuda está baseada nos códigos de ética profissionais, em especial, ao código de ética produzido pela Ordem dos Advogados do Brasil. Porém, há ainda outros códigos de ética que são estudados como o de alguns funcionários públicos, dentre eles a Loman (Lei Complementar nº 35, de 14.03.1979). Esses estudos dos códigos de ética muito pouco tem de um estudo sobre Ética, que acabou ficando fora dos estudos de Direito e mesmo quando tratado incidentalmente na Filosofia do Direito, tende a ser encarado como parte fora dos estudos de Direito, uma vez que a teoria hegemônica ainda entende o Direito como norma jurídica, excluindo dessa um conteúdo moral e social.
A hermenêutica jurídica também é parte importante das disciplinas que figuram dentro da grande gama da Filosofia do Direito. Essa hermenêutica pode ser encarada tanto sob o prisma de uma técnica da interpretação das normas, tanto como sob o prisma da zetética, que é mais raro. Costuma-se ensinar muito mais técnicas de interpretação baseado em paradigmas da tradição (em especial das doutrinas) e presente nos códigos (como na Lei de Introdução ao Código Civil). Cada área do direito apresenta alguns paradigmas de interpretação das normas que são específicos, havendo assim uma hermenêutica constitucional, penal, trabalhista, processual, etc.. Sob o prisma da zetética costuma-se colocar questões: como se interpreta as normas, quem é o legitimado para a interpretação, como ela ocorre, etc..
A Filosofia do Direito está hoje alocada nas faculdades de direito, porém recentemente filósofos como Habermas e Honneth tem reivindicado o direito de fazer também suas filosofias que pensam o Direito. Essa reivindicação pela legitimidade da produção do saber, como ocorre em outras áreas zetéticas, trouxe uma divisão da filosofia do direito dos filósofos e dos juristas. Alguns estudos de filósofos tendem a criticar o aspecto técnico da filosofia do direito dos juristas, que ainda encontra-se fortemente influenciada pela abordagem da teoria geral do direito.
As faculdades de Filosofia quando tratam da questão do Direito, tem uma abordagem diferente das faculdades de Direito, uma vez que, pelo menos no Brasil, buscam produzir História da Filosofia. As faculdades de Direito encaram a filosofia do Direito, não só como “história da filosofia do Direito”, mas como uma produção dos próprios pesquisadores/especialistas. Em muitos trabalhos em filosofia do Direito nas faculdades de Direito é possível encontrar aventuras de pensamento sobre um determinado tema, coisa impensável nas faculdades de filosofia. Estas últimas preferem análises de textos de filosofia consagrados, feitas de forma minuciosa e com confronto de outros comentadores. Assim, pode-se identificar dois valores escolhidos para a pesquisa: na faculdade de direito os trabalhos de filosofia do direito tendem a buscar a resposta por questões conceituais, com a formulação até de respostas próprias para os problemas; enquanto que na faculdade de Filosofia o valorizado na pesquisa da Filosofia do Direito é a análise textual e a capacidade argumentativa do texto produzido.
4. Desafios da História do Direito
A História do Direito atualmente é feita tanto nas faculdades de direito, como nas de história, tendo se instalado uma verdadeira guerra acadêmica pela legitimidade da produção desse saber. A história produzida pelos juristas pode ser dividida em: história dos conceitos de Direito (também chamada de história interna) e história do direito (também chamada de externa)[15]. Esta última é uma história que entrelaça os acontecimentos históricos, com o direito produzido. Essa divisão não é estanque, mas pode-se detectar o predomínio de um dos tipos.
Há um tipo de história específico, que é produzido pelos juristas, que é a História do Direito Romano[16]. Essa história é em especial uma história do direito romano estabilizado na Alemanha por autores como Savigny e Jhering (entre muitos outros), que tem como característica principal ser uma história interna, ou seja, lida com conceitos e tem como objetivo principal dar subsídios aos leitores/alunos para entender o Direito Civil. Esse tipo de história, não tem quase nenhuma relação com a história produzida pelos historiadores nas faculdades de história, isso porque é uma história das instituições, de conceitos. Mais do que a mudança, a História do Direito romano busca o resgate de instituições, através de uma valorização da tradição. Desse modo, a questão do tempo é uma das questões que menos conta para a História do Direito. A história do Direito romano também não tem como objetivo estudar a sociedade romana, por paradoxal que isso possa parecer, mas busca ver como institutos criados em Roma para o direito ainda são utilizados na sociedade atual.
Há uma disputa interna nas próprias faculdades de Direito, sobre a legitimidade da produção da História do Direito. Isso porque em algumas faculdades mais antigas a História do Direito está ligada ao departamento de Direito civil, conjuntamente com a disciplina de História do Direito Romano ou Direito Romano, como é mais conhecido. Assim, há uma produção de História do Direito ligada a esse departamento, que cuida mais da uma história das fontes, fazendo muitas vezes relação com os conceitos do “Direito Romano”, de caráter mais dogmático. É a História do Direito ligada ao departamento de Direito civil, de caráter dogmático que tem tido legitimidade para ministrar os cursos na graduação e que ditam os manuais de História do Direito de caráter enciclopedista. Essa História do Direito estuda geralmente o Direito como norma estatal e como principal ou mesmo única fonte do Direito. Há também uma restrição quanto ao conteúdo estudado, que se fixa mais na legislação civil.
Há também uma história que é produzida pelos juristas nos manuais de Direito, em especial tida história externa, tende a ter um caráter enciclopedista e não especialista. O objetivo dessa história é informar, mas do que apresentar o novo. Assim, em muitos trabalhos com caráter enciclopedista não há referência às fontes primárias, mas sim a diversos livros de história que já traçaram considerações sobre o tema. Esse tipo de história também terá como característica a generalidade das informações, quando não a imprecisão e vagueza, uma vez que tenta abarcar períodos longos de tempo. Muitos desses estudos entendem que a história do direito é a história da legislação estatal, em uma afirmação do conceito de direito como norma. Essa história é apresentada em manuais específicos, mas também como parte introdutória dos livros de cada área específica do Direito: História do Direito do Trabalho, História do Direito Civil, História do Direito Penal, etc.
Existe também uma produção de História do Direito de caráter zetético, que está ligada ao departamento de Teoria do Direito. Essa produção é minoritária e de certa forma busca acompanhar a preocupação metodológica dos historiadores com o estudo de fontes primárias e tem um caráter não enciclopedista. A História do Direito de caráter zetético não costuma restringir o Direito à norma, nem seu conteúdo se restringe ao Direito civil.
Historiadores tem se mostrado interessados também em produzir história do/com o Direito, mas de um modo muito diferente dos juristas e bacharéis em Direito. Trabalhos como o de E. P. Thompson e de Ginzburg lidam com o direito. Thompson estuda em especial a Lei Negra (Senhores e Caçadores: a origem da lei negra) e os costumes (Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional), que é essencialmente um tema do direito (em especial da antiga concepção de Direito natural). Ginzburg busca com processos inquisitoriais retomar todo um universo perdido da cultura popular (O queijo e os vermes).
Surgem no Brasil uma série de estudos, que começam a se utilizar dos processos judiciais, documentos jurídicos como fontes históricas. Essa nova fonte leva a discussão do que é História do Direito. Os historiadores modernos ao olhar para a história produzida pelos juristas desqualificam aquela produção como história por não se referir a uma pesquisa de fontes primárias, por ser generalista e enciclopedista, pretendendo produzir algo que realmente se possa chamar de história do Direito, explicitando inclusive uma posição ideológica tomada. Porém, não raro os historiadores se não eram quanto o método, se confundem no objeto, ou restringindo o direito à norma sem se darem conta disso, ou classificando seu trabalho como História do Direito por utilizarem de fontes primárias jurídicas. História do direito é aquela que tem como objeto do estudo o Direito, nos seus mais diferentes sentidos[17]. História com fonte provinda do judiciário, não é necessariamente História do Direito[18].
Quando o objeto da história do direito produzido pelos historiadores é o Direito, geralmente há uma limitação naquilo que os historiadores entendem como Direito, que geralmente fica restrito à norma ou à produção judiciária. Os estudos das fontes legislativas, feitas pelos historiadores, dificilmente tendem a levar em conta, que a lei é prescritiva e não um fato, e com isso não se pode dizer com o estudo de uma lei, que naquele período o direito era daquele jeito que a lei prescrevia. Há uma diferença entre a prescrição e a realidade, ou como os juristas gostam de colocar: entre ser e dever-ser. O estudo da legislação é uma parte importante dos estudos de Direito, mas não pode ser toda ela, nem essa legislação deve ser entendida sempre como um direito da práxis.
Outros historiadores acabam não levando em conta os termos e conceitos jurídicos da época em que estudam, interpretando a legislação de maneira anacrônica. O estudo da História do Direito é complexo exatamente porque requer um pouco das habilidades de duas áreas dos saberes, apontando para uma necessidade de cooperação dos profissionais.
Outro problema para os estudos de História do Direito é a abordagem marxista da história. Entre os historiadores marxistas é comum encontrar poucos estudos sobre o Direito, uma vez que este é visto como uma super-estrutura social, valorizando mais as questões econômicas. O direito aparece nesses estudos, como algo absolutamente dependente da economia, e seus temas estão ligados à redistribuição e emancipação. Deste modo, os estudos de história com viés marxista dificilmente aborda o Direito como parte importante da sociedade. Com uma crítica à história produzida pelos marxistas, surgiram outros historiadores que começaram a recolocar foco no Direito e esse objeto ressurgiu nos estudos das faculdades de História.
5. Desafios da Sociologia do Direito
A sociologia do Direito não é tão privilegiada nas Faculdades de Direito, como a Filosofia do Direito, que possui mais de uma disciplina ligada ao tema. As faculdades de sociologia não têm uma disciplina ligada ao tema, apesar de produzir diversos trabalhos acadêmicos relacionados com o tema do Direito. Não há disputa explícita sobre a legitimidade de quem pode fazer sociologia do direito e ela é feita na faculdade de sociologia por juristas e também nas faculdades de direito.
A disciplina tem sido marcada no âmbito da faculdade de Direito por estudos influenciados pela obra de Niklas Luhmann, em especial sua obra Sociologia do Direito. Estes estudos têm superado a influência de antigos sociólogos que cuidaram do tema como Eugene Ehrlich (Fundamentos de Sociologia do Direito). Surgem cada vez mais trabalhos ligados à teoria Luhmanniana como os de José Eduardo Faria e Celso Campilongo, além de muitos comentários sobre a teoria de Luhmann. Curiosamente as faculdades de Sociologia não estudam muito a obra de Luhmann, que tem vínculos fortes com o direito.
Estudos específicos em antropologia do Direito, que se supõe também estarem ligados à Sociologia do Direito, também são muito raros. Nas faculdades de direito brasileira é difícil encontrar essa disciplina específica sendo ministrada, exceção feita em um curso, que acabou virando livro em 1987, de Robert Shirley, fruto de disciplina ministrada na Faculdade de Direito da USP. Geralmente as faculdades de Direito incorporam em seu currículo a antropologia, não dando enfoque ao direito. Como estudo em destaque no momento, encontra-se a obra de Robert Rouland “Nos confins do Direito”, que tem como subtítulo, “antropologia jurídica da modernidade”.
Estudos específicos em ciência política e direito são realizados nas faculdades de Direito nos departamentos de Direito do Estado, e geralmente de uma forma muito mais dogmática.
6. Desafios da Psicologia do Direito
A psicologia do Direito talvez seja a disciplina menos reivindicada pela Faculdade de Direito, mas ainda não está fortemente inserida no currículo das faculdades de psicologia, que não chega a oferecer a disciplina. Essa matéria está hoje alocada em cursos de especialização em psicologia e em cursos de mestrado oferecidos por algumas faculdades. Em geral nas faculdades de Direito, quando a psicologia do Direito aparece no currículo é geralmente ministrada por psicólogos que se especializaram na matéria, ou por profissionais de Direito que tem interesse no assunto. Há alguns livros de psicologia do Direito ou jurídica, como é mais comum encontrar nos títulos. A psicologia, a que se referem esses livros, é a psicologia judiciária, ou seja, a que ocorre no âmbito dos tribunais ou mesmo em instituições como as prisões e casas para menores infratores. Assim, a psicologia jurídica ou judiciária, é apenas uma parte da psicologia do Direito, que poderia englobar também a psicologia criminal e muitas outras áreas.
Algumas faculdades de Direito possuem em seus currículos disciplinas como psicologia forense e psicopatologia forense, que não são consideradas disciplinas zetéticas, mas sim técnicas. Esse é o caso da Universidade de São Paulo, que possui essas duas disciplinas citadas acima, mas que pertencem ao departamento de Direito Penal e Medicina Legal.
Existem pesquisas nas faculdades de psicologia que tem tratado da psicologia judiciária-forense que lidam em especial com os temas: avaliação forense, psicologia e direito de família, psicologia e direito penal e psicologia e direitos da criança e do adolescente. Cresce também a atuação do psicólogo jurídico nos tribunais e há um grande movimento dos psicólogos de entender o mundo jurídico. A atuação da Associação Brasileira de Psicologia Jurídica é um exemplo do crescimento do interesse sobre o tema, chegando a realizar congressos internacionais em São Paulo (III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica- 1999). Os anais desse congresso, disponibilizados na internet, indicam que as pesquisas se voltam para os casos em que os psicólogos são chamados ao judiciário em casos de guarda de filhos, adoção, família e separação, adolescentes infratores, depoimentos judiciários etc..
7. Desafios de novas disciplinas: Direito e Cultura
Não há propriamente na grade curricular uma disciplina para estudar Direito e Cultura, dentro das matérias zetéticas, desenvolvida de forma autônoma. Porém, estudos que relacionam Direito e cultura têm entrado nas faculdades de Direito, buscando combater o tecnicismo jurídico. Em algumas faculdades de Direito os estudos de Direito e Cultura são feitos nas cadeiras de Filosofia do Direito, Sociologia do Direito, ou mesmo ministrados como matérias extra-curriculares ou optativas. Há também alguns currículos de matérias dogmáticas, que resolvem introduzir uma abordagem do Direito e Cultura, buscando uma aproximação com os alunos e sua realidade, que tem encontrado um desgaste com os estudos de normas e comentadores de normas (doutrinadores). Desse modo, não se pode falar que essa é uma disciplina zetética por excelência, pois seu próprio método não admite a oposição com a dogmática. Sendo assim, o estudo das relações Direito e cultura, quebra totalmente o paradigma de que o estudo do direito deve estar baseado em códigos. Ele quebra também o paradigma de que somente nos códigos pode-se ver direito ou expressões do Direito, uma vez que o direito pode ser encontrado em expressões culturais, como artes plásticas, literatura, música, teatro, cinema, etc..
Considerações Finais
A complexidade do mundo moderno tem feito nascer uma série de especificações e subdivisões no Direito, além de ter criado outros temas antes não conhecidos. Esse aumento tem conseqüência direta nas disciplinas das faculdades de Direito, que mesmo na graduação começam a sofrer com a especialização extrema[19]. Frente a isso falta espaço para as disciplinas básicas ou zetéticas, que são historicamente fracas nas faculdades de Direito. As disciplinas zetéticas são ainda pouco prestigiadas e quando o são, isso tem mais a ver com a dignidade do docente. As pesquisas nessas áreas encontram uma infinita gama de dificuldades, como o desinteresse, falta de diálogo com a área geral de cada uma dessas disciplinas, dificuldade de financiamento, falta de tradição em pesquisa nos cursos de Direito[20], etc..
Defende-se aqui que essas disciplinas zetéticas deveriam ter mais força no currículo das faculdades e que o caráter zetético não ficasse restrito apenas as disciplinas não técnicas, fazendo com que a dicotomia atual entre disciplinas zetéticas e dogmáticas/técnicas fosse implodida, em busca de um outro ensino de direito focado mais na criação e na crítica. Talvez isso pudesse transformar o ensino do Direito de uma forma radical. Mas antes disso, é necessário que os juristas, alunos e professorem começam a pensar o que se deve estudar nas faculdades de Direito Moderna e para que. Essa reflexão tem de ser conjunta e democrática, visando à autonomia do ser humano e uma sociedade sempre melhor. Esse texto é uma tentativa de levantar temas para debate.
Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056
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