Resumo: O presente trabalho objetiva, de forma sintética, cotejar o conceito legal de Administração Pública Direta e Indireta com o conceito doutrinário de descentralização das atividades estatais. Visa ainda a evidenciar que o conceito legal se apresenta insuficiente para enfrentar os problemas que surgem no contexto atual.
Palavras-chaves: Administração Pública; Atividades Estatais; Descentralização.
Sumário: 1- Introdução; 2- Atividade econômica em sentido amplo; 3- Fenômeno da descentralização; 4- Administração pública direta e indireta, particulares e o desempenho da atividade econômica em sentido amplo; 5- Conclusão.
1 – INTRODUÇÃO
No decorrer do século passado, o Estado ampliou suas atividades, na medida em que deixou de apenas garantir direitos individuais, especialmente os direitos de liberdade e propriedade, característica do Estado Liberal, passando a intervir na ordem econômico-social, tornando-se um Estado Prestacional.
Nesse contexto, além de fiscalizar as atividades dos particulares, com vistas a corrigir as distorções econômico-sociais que a tese da “mão invisível” de Adam Smith se mostrou incapaz de antever, o Estado passou ademais a figurar como agente econômico, explorando atividades econômicas antes de exclusividade da iniciativa privada.
2 – ATIVIDADE ECONÔMICA EM SENTIDO AMPLO
Referimo-nos à expressão “atividade econômica” em sua acepção ampla, que engloba os serviços públicos e as atividades econômicas em sentido estrito. Valemo-nos dos ensinamentos do professor Eros Roberto Grau:
“A prestação de serviço público está voltada à satisfação de necessidades, o que envolve a utilização de bens e serviços, recursos escassos. Daí podemos afirmar que o serviço público é um tipo de atividade econômica.
Serviço público – dir-se-á mais – é o tipo de atividade econômica cujo desenvolvimento compete preferencialmente ao setor público. Não exclusivamente, note-se, visto que o setor privado presta serviço público em regime de concessão ou permissão.
Desde aí poderemos também afirmar que o serviço público está para o setor público assim como a atividade econômica está para o setor privado.
Salientei, no próprio texto, o fato de, no trecho aqui transcrito, utilizar-me da expressão atividade econômica em distintos sentidos:
Ao afirmar que serviço público é tipo de atividade econômica, a ela atribuí a significação do gênero no qual se inclui espécie, serviço público.
Ao afirmar que o serviço público está para o setor público assim como atividade econômica está para o setor privado, a ela atribuí a significação espécie.
Daí vem a verificação de que o gênero – atividade econômica – compreende duas espécies: o serviço público e a atividade econômica”
Sendo certo que a noção de serviço público varia conforme a época, muitas das atividades consideradas econômicas em sentido estrito quando do Estado Liberal transmudaram-se para serviço público no Estado Prestacional. A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro resume magistralmente a questão da evolução da noção, bem como do estabelecimento do que seja serviço público:
1. “a noção de serviço publico não permaneceu estática no tempo; houve uma ampliação na sua abrangência, para incluir atividades de natureza comercial, industrial e social;
2. é o Estado, por meio da lei, que escolhe quais as atividades que, em determinado momento, são consideradas serviços públicos; no direito brasileiro, a própria Constituição faz essa indicação nos artigos 21, incisos X, XI, XII, XV E XXIII, e 25, § 2o, alterados, respectivamente, pelas Emendas Constitucionais 8 e 5, de 1995; isto exclui a possibilidade de distinguir, mediante critérios objetivos, o serviço público da atividade privada; esta permanecerá como tal enquanto o Estado não assumir como própria;
3. daí outra conclusão: o serviço público varia não só no tempo, como também no espaço, pois depende da legislação de cada país a maior ou menos abrangência das atividades definidas como serviços públicos (…)”
3 – FENÔMENO DA DESCENTRALIZAÇÃO
Dada essa ampliação quantitativa das atividades do Estado, difundiram-se cada vez mais as entidades paraestatais, bem como os instrumentos de delegação da prestação de serviços públicos para os particulares.
Dessa forma, o fenômeno da descentralização se fez cada vez mais presente, de modo que ao lado da Administração Central, dividida em órgãos, apresenta-se uma série de entidades, criadas pelo próprio Estado, que a elas atribui a execução de determinadas atividades estatais, e, ainda, particulares, que recebem delegação para o exercício de serviços públicos.
Ou seja, as atividades estatais passam a ser realizadas não somente por ele próprio, mas também por pessoas jurídicas por ele criadas, ou mesmo por particulares.
Com efeito, a Constituição Federal enuncia que incumbe ao Estado a prestação dos serviços públicos, diretamente por seus próprios meios, ou de forma indireta mediante a delegação da execução a particulares[1].
De outro lado, a Carta Magna prevê a exploração de atividades econômicas pelo Estado, desde que necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo[2].
4 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA, PARTICULARES E O DESEMPENHO DA ATIVIDADE ECONÔMICA EM SENTIDO AMPLO
Quando a Constituição se refere ao Estado, seja qual for a atividade estatal a ser desempenhada, serviço público ou atividade econômica em sentido estrito, certamente reporta-se à Administração Pública como um todo, isto é, direta e indireta.
É de se ver, assim, que os serviços públicos podem ser prestados por órgãos da Administração Pública Direta, por entidades da Administração Pública Indireta e por particulares.
Tendo em vista sua personalidade de direito público, a autarquia é, no contexto da Administração Pública Indireta, o modelo mais adequado para a prestação de serviços públicos pelo Estado de forma direta, mas descentralizada. Mesmo porque, dado seu regime jurídico, a ela é possível a atribuição do desenvolvimento de autoridade pública, como o exercício de poder de polícia e a capacidade tributária ativa.
Por outro lado, considerando-se a presente escassez de recursos nos cofres do Estado, é-lhe interessante a delegação de serviços públicos a particulares, especialmente aqueles que, pelas próprias características, geram a possibilidade de lucros.
Já no que concerne à exploração de atividades econômicas pelo Estado, infere-se da letra da Constituição, na parte em que a isso se refere, que o Estado somente pode explorar atividade econômica por meio de sua Administração Pública Indireta, mais especificamente por suas empresas estatais, ou seja, empresas públicas e sociedades de economia mista, entidades que possuem personalidade jurídica de direito privado[3].
Mas as empresas estatais também podem prestar serviços públicos. Afinal, da leitura do § 1º do artigo 173 verifica-se que este não exclui empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos.
Sendo assim, focalizando-se nas entidades da Administração Pública Indireta, conclui-se que as autarquias prestam serviços públicos; as empresas estatais exploram atividade econômica ou prestam de serviços públicos.
Isso causa certa perplexidade. Se da lógica que norteia a estruturação da Administração Pública (regime jurídico) é intuitivo que o modelo autarquia se presta ao desempenho de serviço público e o modelo empresa estatal se presta à exploração de atividade econômica, qual o porquê de se criar empresa estatal prestadora de serviço público?
Parece não haver resposta técnico-jurídica para essa questão. Afigura-se, na verdade, uma opção do legislador.
De qualquer maneira, o Supremo Tribunal Federal, valendo-se de um critério calcado no atividade (econômica em sentido amplo), entende serem as empresas estatais prestadoras de serviço público equiparadas à Fazenda Pública:
“EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. IMPENHORABILIDADE DE SEUS BENS, RENDAS E SERVIÇOS. RECEPÇÃO DO ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI Nº 509/69. 1. À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Vícios no julgamento. Embargos de declaração rejeitados.” (RE-ED 230051/SP 292.979-ED, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 11-06-03, DJ de 08-08-03)
Assim, embora detentoras de personalidade jurídica de direito privado, considera-se que às empresas estatais prestadoras de serviço público se aplica um regime jurídico muito próximo das autarquias.
Dessa forma, conforme se trate de empresa estatal exploradora de atividades econômicas ou prestadoras de serviços públicos, pode-se falar em duas espécies delas: (i) exploradoras de atividades econômicas, de forma suplementar à iniciativa privada, dada a importância delas para a segurança nacional, ou a relevante interesse coletivo (art. 173, cf); (ii) prestadoras de serviços públicos ou coordenadoras de execução de obras públicas (atividades pertinentes à esfera do estado).
Diante disso, percebe-se a superação de um critério classificador de natureza exclusivamente subjetiva, tal como adotado pelo Decreto- lei 200/69, que dispõe que a Administração Pública Direta é composta da Presidência da República e dos Ministérios; e que a Administração Pública Indireta é composta das entidades dotadas de personalidade jurídica própria: autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas.
Tal critério é correto, porém insuficiente. Tanto que a Corte Maior se valeu do critério da atividade para proferir a importante decisão, cuja emenda está transcrita acima.
O Decreto-lei 200/69, ao ignorar os critérios objetivo (atividade) e formal (regime jurídico), merece crítica do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello:
“O modelo destarte concebido, é bem de ver, revela-se inapto para descortinar todas as modalidades pelas quais se desempenham atividades administrativas públicas. Com efeito, a expressão “Administração indireta”, que doutrinariamente deveria coincidir com a “Administração descentralizada”, dela se afasta parcialmente. Por isto, ficaram fora da categorização como Administração indireta os casos em que a atividade administrativa é prestada por particulares, como “concessionários de serviços públicos”, ou por “delegados de função ou oficio público”(caso dos titulares de cartório).”
Portanto, o critério legal, baseado no aspecto subjetivo, subdivisão da Administração Pública em direta e indireta é insuficiente. Para a solução dos problemas jurídicos que se apresentam no contexto das atividades estatais, faz-se mister a utilização, como instrumentos, dos critérios objetivo e formal.
5 – CONCLUSÃO
As demandas econômico-sociais alteram-se conforme o momento histórico. Nesse sentido, o Estado faz-se mais ou menos presente em áreas que, em princípio não seriam de sua alçada – atividades econômicas em sentido estrito; ao mesmo tempo, a noção de serviço público é variável.
Nesse contexto, o ordenamento jurídico disponibiliza uma série de instrumentos para o Estado lhe dar com esse ambiente variável. Dessa forma, o Estado pode se apresentar mais, ou menos descentralizado na prestação de serviços públicos; pode intensificar, ou diminuir sua atuação no âmbito da iniciativa privada. Com efeito, prevê o ordenamento jurídico as entidades da Administração Pública Indireta, algumas com personalidade jurídica de direito público, outras com personalidade jurídica de direito privado; disciplina a delegação da execução de serviços públicos a particulares.
Mas é essencial, para a solução dos conflitos que surjam, a consideração não somente do critério subjetivo. É essencial raciocinar-se levando-se em conta também os critérios formal (regime jurídico) e objetivo (atividade). É nesse caminho que tem se enveredado a doutrina e a jurisprudência pátria.
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