Tema controvertido e problema que assume caráter inegavelmente contundente e perturbador do cotidiano de cada um de nós, a violência está aí a nos ameaçar o curso de cada dia. Poderíamos discutir muitas das suas definições, mas esse não é o objetivo principal desse texto. Adotamos como pressuposto que tudo aquilo que fere a integridade física, mental, emocional, moral ou espiritual pode ser vivenciado como violência. E partindo desse pressuposto nos perguntamos: onde ela começa?
A análise crítica, assim como as reflexões, derivadas das vivências, contatos e experiência com crianças e adolescentes, pais, agentes e agências de intervenção, do poder público e de instituições não governamentais, desde profissionais da área da saúde, da educação e do direito a conselheiros tutelares e conselheiros de direitos da criança e do adolescente, nos conduziram a algumas possibilidades de resposta para a questão proposta.
A reflexão a seguir apresenta o conjunto dessas possibilidades. Convidamos o leitor a seguir conosco.
O que é violência? Onde ela começa?
Grosseiramente respondemos… …tudo aquilo que fere a integridade física, mental, emocional ou moral pode ser vivenciado como violência. Onde ela começa? No descaso… na indiferença que vivemos em relação aos nossos pares (…talvez porque nos sintamos tratados com indiferença em relação aos nossos sofrimentos, nossa indignação e ao que nos diz respeito pessoalmente…).
Cresce e floresce na negligência, na omissão… de socorro, de cuidado, de atenção, de proteção, de oportunidade… para se desenvolver, tornar-se pessoa, responsável, “decente”, digna… Na impossibilidade de construir uma auto-estima, uma identidade, de ser alguém, singular, de acreditar em si… de não sofrer humilhações, de não se sentir humilhado ou menor, porque “tem menos” ou “não tem” bens, valores, educação, cultura. Alimenta-se da humilhação à que são submetidas as pessoas… …do desrespeito, da miserabilidade, da situação e do sentimento (de ser pobre) não ter bens ou valores, e daí não ter valor, não ser respeitado, não ser reconhecido como pessoa, muito menos “de bem”.
Se isso parece exagero, vale a pena pensar em como nos sentimos, nós mesmos, quando somos maltratados? Ou tratados com descaso? Ou com indiferença ou desprezo? Qual é o nosso sentimento, quando olhamos em volta e identificamos espaços aos quais não podemos (não nos é dado, pelas posições que ocupamos) pertencer ou freqüentar, porque não temos os requisitos? E pior, quando olhamos em volta ou adiante e não vemos perspectivas de mudança ou possibilidades de construção de um projeto de vida, que nos permita existir, como pessoa e sujeito de direitos, não apenas de deveres? Certamente, contudo, esse não é o nosso caso, já que a nós se aplicam muitas possibilidades de ser e tornar-se respeitável; ocupamos posições que nos habilitam ao acesso ao que aspiramos; vivemos, tivemos e temos as oportunidades que nos permitiram chegar à academia e olhar para os problemas do outro, como algo que diz respeito a ele exclusivamente.
Essa nos parece ser uma maneira de entender e explicar nossas reações, quando nos vemos, por exemplo, diante de fatos como o da violência da morte estúpida e descabida provocada pelas mãos de um adolescente.
Para além da indignação e da revolta e do sentimento de vingança, não nos caberia indagar, diante da violência e da crueldade cometidos pelo outro, quem é esse outro tão frio e capaz de ato tão atroz? Como se terá tornado tão desumano? Como se terá “deformado” tanto em sua humanidade? Não nos caberia perguntar “com quem e como aprendeu” a agir com tamanha crueldade? Como se transformou “nessa pessoa”?
Freqüentemente, contudo, nos limitamos às respostas que já conhecemos e ao que pensamos saber sobre o outro.
Assim, a violência presente num crime suscita naturalmente os nossos protestos, indignação e horror. Parece mais mobilizar nossa raiva e nossos ódios contidos, que suscitar indagações. Parece ser a situação ideal para lavarmos nossa alma, projetando nessa situação todas as iras contra tudo aquilo que cotidianamente nos agride, sem que possamos nos defender. Parece que perdemos o controle sobre a situação e que tudo pode ser, ou pior, que tudo pode ser impunemente. Ficamos expostos e fragilizados. Nossos julgamentos naturalmente parciais, tornam-se mais ainda afetados.
Haverá consenso sobre o certo e o errado? Sobre o que é justo ou injusto? Não seremos parciais ao julgar com absoluto rigor e severidade, crianças e adolescentes cujo desenvolvimento enquanto pessoa é nossa responsabilidade, sem nos reportarmos à nossa própria responsabilidade, enquanto família, sociedade e estado?
Somos uma sociedade que evoluiu, buscando zelar contra o que agride a natureza humana.
Não aceitamos a violência. Não a desejamos. Mas não aprendemos a extirpá-la de dentro de nós mesmos. O crime dito hediondo serve de exemplo, pois hediondo é como nomeamos o que provoca em nós repugnância, asco, nojo, repulsa, horror, pavor, ódio.
Diante desse tipo de sentimento que atitude tomamos? Parece óbvio, punir e de preferência com todo o rigor possível.
Certamente que o mal precisa ser combatido, impedido de se repetir; mas já sabemos que somente a contenção e o confinamento não dão conta da solução do problema. Não apenas punir, mas punir com o máximo rigor e severidade possíveis, farão com que esse indivíduo se modifique na direção desejada?
Nosso caráter se molda pelas nossas experiências cotidianas. Pelos valores introjetados através dessas experiências. O que temos ensinado às nossas crianças e adolescentes? Que valores, nós os adultos de uma sociedade civilizada, lhes temos passado através de nossas condutas? Ou não somos o espelho em que se miram a nos copiar? A quem estarão copiando quando agem agredindo seu semelhante? De onde vem essa referência? Do nada?!
Não estaremos nós mesmos falhando em nossa tarefa de ensiná-los a amar seu próximo? E será que nós, os adultos, temos conseguido amar nosso próximo? Não nos teremos perdido nós mesmos de nossos melhores princípios, deixando-nos guiar pela raiva e pelo ódio?
Não estamos negando o horror de crimes praticados por adolescentes, mas sim nos indagando acerca de como eles podem servir de pretexto para todos os nossos protestos contra tudo aquilo que não temos podido combater. Não é só a figura de um adolescente ou de um crime praticado que são colocados em questão. São todas as nossas indignações canalizadas para esse tipo de situação. E aumentar a punição, para todos os adolescentes (incluindo aí os nossos filhos) diminuindo a maioridade penal para 16 (ou 14 e até 12) e aumentando o tempo de internação, parecem ser nossas pobres respostas para o resgate dos adolescentes. Será essa a esperança para eles? Será esse o seu destino? Será essa a forma de resgatá-los? Num sistema prisional ou de confinamento como as velhas Febens, ambos reconhecidamente falidos, sem qualquer possibilidade de reeducação?
Qual será de fato o nosso desejo. Resgatá-los ou tirá-los do nosso convívio o quanto antes possível? Se não temos outra resposta, o fracasso é nosso, não deles. A tarefa de torná-los pessoas e cidadãos de bem é nossa. Ou será que além do crime cometido também serão responsáveis por nossa incapacidade de mostrar-lhes outro caminho?
Que oportunidades de aprendizado de bons valores temos efetivamente oferecido para nossas crianças e adolescentes?
Quando a vida de alguém se torna tão sem valor para o outro, significa que falhamos em ensinar o valor da própria vida.
É constrangedor perceber que somos definitivamente parciais quando nos guiamos apenas pela parte da lei que nos interessa e quando nos sentimos atingidos, para justificar mais violência.
É constrangedor perceber que tão atingidos nos julgamos, que deixamos de perceber nossa própria responsabilidade prevista na mesma lei que usamos para punir o adolescente, o ECA. Quando um erro ocorre, sua análise reclama olhar a totalidade de elementos envolvidos. E o adolescente que cometeu um crime ou ato infracional, não chegou aí sozinho. Somos responsáveis enquanto sociedade, pois conforme nos comprometemos na própria lei, ao afirmar que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana…”, também assumimos na mesma lei, que “…é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público, assegurar com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
Por isso criamos Conselhos de Direitos paritariamente constituídos por sociedade civil e poder público, para juntos redefinirmos as ações e políticas públicas para a Infância e Juventude; por isso criamos os Conselhos Tutelares, para a defesa e garantia de cumprimento desses direitos, assim como para a identificação, encaminhamento e responsabilização de situações de violação desses direitos; por isso também criamos espaços de discussão e compromisso de novas práticas na direção da garantia desses direitos, como as Conferências Municipais, Estaduais e Nacional de Direitos da criança e do adolescente; ainda por isso garantimos na lei a competência do Ministério Público para a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e adolescência.
Tanto sabemos do quanto nos cabe que previmos nesse mesmo Estatuto (BRASIL, 1990; art. 280) ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular, do ensino obrigatório, do atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, de acesso às ações e serviços de saúde, de serviço de assistência social visando à proteção à família, à maternidade, à infância e à adolescência.
Por isso quando nos perguntam: “como enfrentar a violência?”, respondemos indagando e propondo uma reflexão: “como buscar a paz num mundo desigual, sem justiça social?”
Não alcançaremos a paz, se não pudermos construir a justiça social. A dívida social com nossas crianças e adolescentes é grande e antiga. Ainda convivemos com crianças e adolescentes abandonados à própria sorte, tentando se virar nas ruas, vivendo a humilhação da mendicância ou tentando vender algum serviço; continuamos perdendo muitas das nossas crianças e adolescentes para o tráfico de drogas, sem conseguir sequer dar alternativas que não a exploração pelo trabalho, ou sub-emprego, ou relegando-os à perversa situação de exploração sexual e para a prática de crimes, pelo crime organizado.
Quando olhamos para essa diferença entre o que está na lei e o que acontece na vida das pessoas, somos obrigados a reconhecer que muitos são os que têm direitos apenas “no papel”; no cotidiano se considerarmos a maioria da população, temos muito que fazer, muita luta até que todas as pessoas possam ter oportunidades para exercer seus direitos; temos que reconhecer que igualdade de direitos só na lei não basta, não significa nada se as pessoas no seu dia a dia não têm acesso a esses direitos; temos que reconhecer que somente quando toda e qualquer pessoa tiver oportunidade para nascer, crescer e se desenvolver, com saúde, com liberdade, com respeito, com dignidade, no seio de uma família, formar-se enquanto pessoa e para a vida em comunidade, poderemos afirmar que temos igualdade de direitos.
Podemos encontrar muitos caminhos para combater a violência. Alguns já conhecidos levam a mais violência. A escolha pela paz é a nossa maior “arma”. A paz pode ser construída a partir do desejo e da iniciativa de cada um de nós. Independente de qualquer coisa a escolha pela paz, ou pela guerra, ou pela violência é de responsabilidade de cada um de nós. Somos nós mesmos os semeadores desse mundo, os que escolhemos agir e reagir diante dos fatos e das situações, com amor, compreensão e educação ou com rancor, vingança e punição; somos nós mesmos os que escolhemos entre ser livres e ensinar a viver com liberdade ou submeter-se e confinar.
Há ainda um grande fosso entre a realidade e o direito, mas a própria lei dá os caminhos a percorrer para construir parte do acesso aos direitos já garantidos no papel. Acreditamos no ECA (BRASIL, 1990) como prova do nosso compromisso com a vida de todas as crianças e adolescentes e não podemos perdê-lo de vista , pois se e crianças e adolescentes tem cometido crimes, nós também não temos agido melhor. Continuamos em débito com o nosso dever de casa: ainda não conseguimos fazer o exercício 227 da nossa tarefa.
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (art. 227, CF, BRASIl, 1988).
Profa. Adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos
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