Dignidade da pessoa humana: reconhecimento do postulado pela jurisprudência brasileira

Resumo: Presente artigo tem como objetivo principal analisar o postulado da dignidade da pessoa humana. Inicialmente faremos uma breve exposição relacionada à origem e desenvolvimento do postulado, expondo como se deu a origem do mesmo, apesar das visões doutrinárias divergentes. Posteriormente adentramos em um tema bastante tortuoso que é tentar conceituar dignidade da pessoa humana, tendo em vista a abstração do instituto no meio jurídico. Ainda temos algumas divergências entre os constitucionalistas a respeito da natureza jurídica da D.P.H, tendo corrente que diz tratar-se de uma regra, outra de um princípio, e além das duas anteriores, existe a corrente afirmando a natureza de um postulado, tendo este reconhecimento expresso, no bojo de um Acórdão, pelo STF. Por último, abordaremos o reconhecimento jurisprudencial do instituto, mostrando que o Supremo Tribunal Federal vem dando grande ênfase na aplicação deste postulado em seus julgados.

Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana – Postulado constitucional – Reconhecimento pela jurisprudência.

Abstract: Present paper aims at analyzing the postulate of human dignity. Initially we will make a brief presentation related to the origin and development of the postulate, exposing as it was the origin of it, despite the divergent doctrinal views. Later we enter into a theme that is very circuitous attempt to conceptualize human dignity, in view of the abstraction of the institute in the legal environment. We still have some differences between the constitutionalists about the legal nature of the DPH, and current that says that this is a rule, one of a principle, and beyond the previous two, there is a current saying the nature of a postulate, and this recognition expressed, in the midst of a judgment by the STF. Finally, we discuss the recognition of the judicial institute, showing that the Supreme Court has given great emphasis in applying this principle in its decisions.

Keywords: Human dignity – Postulate constitutional – Acknowledgement by case law.

Sumário: 1. Noções introdutórias: origem e desenvolvimento; 2. Tentativa de conceituação; 3. Natureza jurídica da dignidade da pessoa humana; 4. Reconhecimento jurisprudencial do postulado constitucional da dignidade da pessoa humana; 5. Considerações finais. Referências Bibliográficas.

1. Noções introdutórias: origem e desenvolvimento

Verifica-se que ao analisar os direitos fundamentais em seu contexto geral, importante torna-se aprofundar o exame da dignidade da pessoa humana, que constitui o principal objeto de estudo deste trabalho.

Na época dos povos antigos, não havia a definição de pessoa como hoje se vê presente em vários ordenamentos jurídicos do mundo em geral. No âmbito da filosofia grega, o homem era um animal político ou social.

A dignidade da pessoa humana tem origem tanto no pensamento clássico como nas idéias trazidas pelo Cristianismo. De acordo com este movimento, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, sendo sua dignidade ligada à criação divina. Por outra vertente, de acordo com o pensamento clássico, a dignidade reflete a noção de natureza individual racional.

Trilhando o pensamento cristão, podemos afirmar que o ser humano possui posição singular, uma vez que ele foi feito à imagem e semelhança de Deus, ocorrendo uma igualdade entre todos os seus filhos, despertando os sentimentos de solidariedade e piedade diante de uma ocorrência miserável do próximo.

De acordo com Ana Paula Barcellos[1],

“A mensagem divulgada por Jesus Cristo e seus seguidores representou um ponto de inflexão no mundo antigo. Pela primeira vez o homem passou a ser valorizado individualmente, já que a salvação anunciada não só era individual, como dependia de uma decisão pessoal. Mais que isso, a mensagem de Cristo enfatizava não apenas o indivíduo em si, mas também o valor do outro […], despertando os sentimentos de solidariedade e piedade para com a situação miserável do próximo, que estarão na base das considerações acerca dos direitos sociais e do direito a condições mínimas de existência (mínimo existencial).”

Entretanto, apesar das afirmações acima, existe segmento doutrinário refutando o contexto antes defendido, dizendo que não tem como dar segurança fundamental à idéia de que o cristianismo foi o pioneiro na concepção de dignidade da pessoa humana, conforme explica Ingo Sarlet[2], nos seguintes termos:

“[…] cumpre ressaltar, de início, que a idéia do valor intrínseco da pessoa humana deita raízes já no pensamento clássico e no ideário cristão. Muito embora não nos pareça correto, inclusive por nos faltarem dados seguros quanto a este aspecto, reivindicar- no contexto das diversas religiões professadas pelo ser humano ao longo dos tempos- para a religião cristã a exclusividade e originalidade quanto à elaboração de uma concepção de dignidade da pessoa, o fato é que tanto no Antigo quanto no Novo Testamento podemos encontrar referências no sentido de que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, premissa da qual o cristianismo extraiu a conseqüência – lamentavelmente renegada por muito tempo por parte das instituições cristãs e seus integrantes (basta lembrar as crueldades praticadas pela 'Santa Inquisição') – de que o ser humano- e não apenas os cristãos – é dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento.”

Ressalte-se que a dignidade da pessoa humana não foi criada pelo homem ou pelo Estado, sendo ela inerente ao ser humano, trazendo como conseqüência ao homem a ao Estado apenas respeitar e normatizar referido princípio. Preciosas são as palavras de José Afonso da Silva[3], ao afirmar que a dignidade humana não é uma criação  constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana”.   

A pregação do conceito de dignidade como um atributo do ser humano, como hoje é compreendido, iniciou apenas no século XVIII, através do movimento iluminista, sendo que ele acabou afastando a religiosidade do centro do sistema de pensamentos, substituindo pelo próprio homem.

Para Imannuel Kant, o homem é considerado um fim em si mesmo, não podendo ser tratado como objeto ou um acessório do Estado, sendo que o valor que lhe é inerente concede-lhe amparo perante o Estado e à sociedade em geral, devendo ele ser respeitado e considerado como um ser individual, merecedor de um tratamento digno e apropriado em todas as suas passagens vitais, independentemente de suas atuações. Podemos afirmar de acordo com Balera[4] que:

“[…] que, para Kant, o homem é um fim em si mesmo – e não uma função do Estado, da sociedade ou da nação – dispondo, portanto, de uma dignidade ontológica. O direito e o Estado, ao contrário, é que deverão estar organizados em benefício dos indivíduos. Assim é que Kant sustenta a necessidade da separação dos poderes e da generalização do princípio da legalidade como forma de assegurar aos homens a liberdade de perseguirem seus projetos individuais. Além de fundar a dignidade no homem, o conceito kantiano é universal, estendendo a dignidade a todos os seres racionais.”

O entendimento de Kant no sentido de que o homem é um fim em si mesmo, ao longo da história, sofreu algumas deturpações, alcançando seu ápice nos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, solidificando a completa coisificação da pessoa, iniciando pela privação dos direitos humanos, posteriormente pela destruição da personalidade moral e pela eliminação da singularidade da pessoa humana, conforme esclarece Balera[5]:

“A reação à barbárie do nazismo e do fascismo em geral levou, no pós-guerra, à consagração da dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos internacionais. Diversos países cuidaram de introduzir em suas Constituições a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado que se criava ou recriava, podendo-se citar exemplificativamente, a Constituição italiana de 1947 e a lei Fundamental alemã de 1949.”

Pelo relato acima constatado, já podemos entender que uma das maiores razões para consagração e reconhecimento geral da dignidade da pessoa humana, surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial, no intuito de que as pessoas fossem salvaguardadas das torturas, massacres e das violações aos direitos humanos praticados durante o regime fascista e nazista, uma vez que neste período, o ser humano passou a ser tratado como um objeto, sem qualquer respeito, tendo todos os seus direitos “rasgados” pelos regimes totalitários.

Logo após este acontecimento histórico trágico para a sociedade, as Cartas constitucionais passaram a prever em seus comandos a referência aos direitos fundamentais, no intuito de assegurar a proteção do ser humano.

Vale ressaltar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10-12-1948, prever em seu artigo 1º, que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir um para com os outros em espírito e fraternidade”, sendo tal literalidade seguida pelo Tribunal Constitucional da Espanha, onde afirmou que a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais.

Nossa Constituição Federal de 1988 fez a previsão da dignidade da pessoa humana, em seu artigo 1º, inciso III, arrolando como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, respaldando a dignidade humana na maior força normativa do país. Com a previsão da dignidade humana na nossa Carta Cidadã surgiram outros direitos inerentes à pessoa humana, tais como: direito à vida; direito à liberdade de consciência e de crença; direito ao livre exercício dos cultos religiosos e direito à intimidade, à vida privada e à honra, passando o ser humano a ser titular de vários direitos, todos eles provenientes da dignidade da pessoa humana.

2. Tentativa de conceituação

Trata-se de umas das tarefas mais árduas, juridicamente falando, conceituar o princípio da dignidade da pessoa humana.

Apesar de positivado na nossa Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana possui uma definição que antecede ao próprio texto constitucional, conforme já nos ressalta Ingo Sarlet, nos seguintes termos: “Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida em que este a reconhece, já que constitui dado prévio, no sentido de preexistente e anterior a toda experiência especulativa.

Antes de iniciarmos a tentativa de apaziguar o conceito de dignidade da pessoa humana, vale à pena fazer referências aos doutrinadores que tem procurado “caminhar” no sentido de esclarecer o conteúdo de tal princípio.

Primeiramente, recordaremos o entendimento de Fábio Comparato[6], onde assinala que:

“a dignidade da pessoa humana não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Daí decorre, como assinalou o filósofo, que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas.”

Seguindo uma linha conceitual, também poderemos destacar o entendimento de Ingo Sarlet[7], quando afirmou que:

“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.”

Interessante se faz notar o entendimento de Luís Roberto Barroso[8], nos seguintes termos: “dignidade da pessoa humana é uma locução tão vaga, tão metafísica, que embora carregue em si forte carga espiritual, não tem qualquer valia jurídica. Passar fome, dormir ao relento, não conseguir emprego são, por certo, situações ofensivas à dignidade humana.”

Podemos perceber pelas lições acima colhidas, que conceituar dignidade da pessoa humana não é tarefa tão fácil, merecendo um entendimento amplo da doutrina contemporânea. De qualquer maneira, verificamos que dignidade da pessoa humana é considerada um valor supremo, tendo sua gênese já no nascimento da pessoa com a aquisição de sua essência.

3. Natureza jurídica da dignidade da pessoa humana

Ao mesmo modo que a conceituação de dignidade da pessoa humana mostra-se um pouco tormentoso, a natureza também traz algumas considerações, uma vez que a doutrina ainda não chegou a um consenso a respeito da natureza jurídica deste instituto.

Podemos afirmar que existem muitos pontos de contato entre a dignidade da pessoa humana e a teoria dos direitos fundamentais, havendo uma íntima ligação entre eles, principalmente pelo fato de a dignidade da pessoa humana constituir uma relevância valorativa para os direitos fundamentais, ou seja, tal dignidade seria tanto o fundamento como o fim dos direitos fundamentais, figurando como paradigma de aplicação concreta de tais direitos.

Nas palavras de Marcelo Novelino[9], podemos entender que:

“A dignidade da pessoa humana não é um direito, mas um atributo que todo ser humano possui, independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro requisito. O ordenamento jurídico não confere dignidade a ninguém, mas tem a função de protegê-la contra qualquer tipo de violação."

Não é por outro motivo que o legislador constituinte originário fez a previsão da dignidade da pessoa humana no artigo inaugural da Constituição, na parte dos princípios fundamentais, constituindo um fundamento da República Federativa do Brasil, mostrando que esta topografia constitucional não foi em vão, uma vez que o artigo 1º constitui fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais que passaram a ser arrolados logo em seguida. Com a configuração acima detalhada, sedimentou-se na doutrina que o princípio da dignidade da pessoa humana dá uma unidade de valor ao conjunto de direitos fundamentais, sendo fonte de aplicação, interpretação e integração de todo o ordenamento jurídico, no intuito de garantir coerência ao mesmo, conforme nos relata Daniel Sarmento[10]:

"o princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico (…) pode ser dito que o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de respeito irrestrito ao se humano – razão última do Direito e do Estado"

Grande parte da doutrina moderna considera a dignidade da pessoa humana como um princípio, sendo este disciplinador da unificação constitucional, elemento que confere unidade axiológica, possuindo uma função fundamentadora, interpretativa e supletiva do ordenamento jurídico. Mas existe também uma parte da doutrina, ainda que minoritária que põe em dúvida a natureza jurídica da dignidade da pessoa humana, ora entendendo como regra, ora princípio ou uma natureza híbrida, regra-princípio.

Primeiramente, para entrarmos no debate, vale à pena lançar mão da proposta feita por Humberto Ávila[11], sendo que para podermos diferenciar os princípios das regras teremos que utilizar três argumentos, conforme segue:

“a) natureza da descrição/comportamento – as regras descrevem comportamentos ou poderes para atingir fins; princípios descrevem fins cuja realização depende de efeitos decorrentes da adoção de comportamentos; b) natureza da justificação exigida – as regras exigem um exame de correspondência entre o conceito da norma e o conceito de fato, sempre com a verificação da manutenção ou realização das finalidades sub- e sobrejacentes; os princípios exigem uma compatibilidade entre os efeitos da conduta e a realização gradual do fim; c) natureza da contribuição para decisão – as regras têm pretensão terminativa, e os princípios têm pretensão complementar.”

Humberto Ávila cria uma terceira categoria de norma, que não se confunde nem com as regras nem com os princípios, que seriam os chamados postulados normativos, sedimentados como normas de segundo grau, que teriam a função de estruturar a aplicação das outras normas. O postulado normativo se diferencia das regras e princípios tanto pelo nível quanto pela função. Enquanto os princípios e as regras são objeto de aplicação, o postulado da dignidade da pessoa humana seria um critério de aplicação dos princípios e das regras. Por outro lado, enquanto os princípios e as regras servem de comandos para determinar condutas obrigatórias, permitidas e proibidas, o postulado da dignidade da pessoa humana tem a finalidade de promover a realização de outras normas. Portanto, seguindo o entendimento de Humberto Ávila, podemos afirmar que o postulado da dignidade da pessoa humana é uma metanorma, passando a estruturar a aplicação das demais normas, jamais se confundindo com elas. 

Por outro ângulo, a grande discussão doutrinária a respeito da natureza jurídica da dignidade da pessoa humana, se qualifica entre os princípios e as regras.

As regras prevêem situações específicas e delimitadas, enquanto os princípios são mais genéricos e possuem uma abrangência mais ampla em relação às regras, sendo que estas possuem um peso dimensional bem menor que os princípios.

Em caso de ocorrência conflituosa entre duas regras, a resolução se dará sobrepondo uma sobre a outra, afastando a que não for aplicada no caso sob exame da situação concreta. Para solucionar o conflito entre regras, ao longo da história, a doutrina, jurisprudência e legislação criaram os critérios cronológico, hierárquico e o da especialidade. Com relação aos princípios, a doutrina tem afirmado que eles não entram em conflito propriamente dito, não se fazendo necessária a criação de regras de colisão. Havendo um pequeno confronto entre os princípios, não há necessidade de se excluir um em prol do outro para resolução de um determinado caso concreto, ou seja, os dois seriam parcialmente aplicados, de forma que um não iria provocar a exclusão do outro.

Muito preciosas e esclarecedoras são as palavras de Ruy Espíndola[12], a afirmar que:

“Compreende-se que não é nada fácil distinguir regras e princípios, pois vários são os critérios que devem ser relevados: a) o grau de abstração – os princípios são normas com grau de abstração relativamente elevado; já as regras possuem um grau de abstração reduzido; b) Grau de determinabilidade – os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras, enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta – são ou não são aplicadas; c) caráter de fundamentalidade no sistema de fontes de direito – os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema de fontes, como é o caso dos princípios constitucionais, ou à sua importância dentro do sistema jurídico, como por exemplo, o princípio do estado democrático de Direito; d) proximidade da idéia de direito – os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados na exigência de justiça ou na idéia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculantes com conteúdo meramente formal; e) natureza normogenética – os princípios são fundamentos de regras, ou seja, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, portanto, a função normogenética fundante.

Em síntese, as diferenças são as seguintes, a) os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem); a convivências dos princípios é conflitual; já entre os princípios é antinômica; os princípios coexistem; as regras antinômicas excluem-se; b) Conseqüentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses, consoante seu peso e ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exata medida das suas prescrições, nem mais nem menos; c) Em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objetos de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas exigências standards devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias; d) Os princípios suscitam problemas de validade e peso; as regras colocam apenas questões de validade.”

Por outro lado, para o doutrinador Robert Alexy[13], existem três diferenças principais entre regras e princípios, conforme podemos observar em suas ponderações:

“há três teses que diferenciam as regras e princípios, ou seja, a primeira considera que se trata de duas classes distintas; a segunda, que as normas podem dividir-se em regras e princípios, tendo a norma como gênero; a terceira tese determina que as normas podem dividir-se em regras e princípios e que entre eles existe não só uma diferença gradual, mas também qualitativa, em que os princípios são considerados normas de otimização; a principal distinção entre regras e princípios reside no fato de que estes últimos são mandatos de otimização, ao passo que as regras são normas que somente podem ser cumpridas ou não.

El punto decisivo para la distinción entre reglas y princípios es que los princípios son normas que ordenan que lago sea realizado em la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por la tanto, los princípios son mandatos de optimización, que están carcatrizados por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferente grado y la medida debida de su cumplimiento no solo depende de lãs posibilidades reales sino también de las juridicas. El âmbito de lãs posibilidades jurídicas es determinado por los princiíos y reglas opuestos. Em cambio, las reglas son normas que solo pueden ser cumplidas o no. Si uma regla es álida, entoces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Pó lo tanto, las reglas contienem determinaciones em el âmbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significs que la diferencia entre reglas y princípios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien uma regla o un principio.”

Resumindo, entre todas as conjunturas acima detalhadas, podemos afirmar que existe discussão a respeito da natureza jurídica da dignidade da pessoa humana, sendo que parte da doutrina afirma que se trata de um postulado, outros um princípio, e ainda uma minorai, que se refere a uma regra.

Tendo em vista os conceitos e diferenciações acima delimitadas, filiamo-nos à corrente que defende a dignidade da pessoa humana como um postulado normativo, uma vez que o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 não faz referência à situação genérica ou específica, nem tampouco estabelece fins a serem perseguidos, servindo como meio de suporte para a concretização dos princípios fundamentais, direitos e garantias adotadas por todo nosso ordenamento jurídico brasileiro.

4. Reconhecimento jurisprudencial do postulado constitucional da dignidade da pessoa humana

Não resta dúvida que a dignidade da pessoa humana esta capitulada expressamente em nossa Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III, apesar de ainda existir uma pequena divergência a respeito da sua natureza jurídica, discussão esta que não altera o resultado prático da aplicação deste postulado às relações jurídicas submetidas ao Poder Judiciário para serem solucionadas.

O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, tem fundamentado seus acórdãos baseados no postulado normativo da dignidade da pessoa humana, principalmente quando se discute a aplicação dos direitos fundamentais em relação ao cidadão.

Vejamos algumas passagens onde o STF faz referência expressa à dignidade da pessoa humana em seus julgados:

“Tráfico de entorpecentes. […] Prisão em flagrante. Óbice ao apelo em liberdade. Inconstitucionalidade: necessidade de adequação do preceito veiculado pelo artigo 44 da Lei 11.343/06 e do artigo 5º, inciso XLII aos artigos 1º, inciso III, e 5º, incisos LIV e LVII da constituição do Brasil. […] Apelação em liberdade negada sob o fundamento de que o artigo 44 da Lei n. 11.343/06 veda a liberdade provisória ao preso em flagrante por tráfico de entorpecentes. Entendimento respaldado na inafiançabilidade desse crime, estabelecida no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição do Brasil. Afronta escancarada aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana. Inexistência de antinomias na Constituição. Necessidade de adequação, a esses princípios, da norma infraconstitucional e da veiculada no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição do Brasil. A regra estabelecida na Constituição, bem assim na legislação infraconstitucional, é a liberdade. A prisão faz exceção a essa regra, de modo que, a admitir-se que o artigo 5º, inciso XLIII estabelece, além das restrições nele contidas, vedação à liberdade provisória, o conflito entre normas estaria instalado. A inafiançabilidade não pode e não deve – considerados os princípios da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana, da ampla defesa e do devido processo legal – constituir causa impeditiva da liberdade provisória. Não se nega a acentuada nocividade da conduta do traficante de entorpecentes. Nocividade aferível pelos malefícios provocados no que concerne à saúde pública, exposta a sociedade a danos concretos e a riscos iminentes. Não obstante, a regra consagrada no ordenamento jurídico brasileiro é a liberdade; a prisão, a exceção. A regra cede a ela em situações marcadas pela demonstração cabal da necessidade da segregação ante tempus. Impõe-se porém ao Juiz, nesse caso o dever de explicitar as razões pelas quais alguém deva ser preso cautelarmente, assim permanecendo. (HC 101.505, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-12-09, 2ª Turma, DJE de 12-2-10). No mesmo sentido: HC 100.742, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-11-09, 2ª Turma, Informativo 566; HC 101.055, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 3-11-09, 2ª Turma, DJE de 18-12-09. Em sentido contrário: HC 93.229, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 1º-4-08, 1ª Turma, DJE de 25-4-08. (BRASIL, STF, 2012, on-line)”

Posteriormente, o STF voltou a se manifestar expressamente sobre a aplicação da dignidade da pessoa humana quando ocorrer violação na aplicação dos direitos fundamentais, nos seguintes termos:

“Inconstitucionalidade da chamada „execução antecipada da pena‟. Art. 5º, LVII, da Constituição do Brasil. Dignidade da pessoa humana. Art. 1º, III, da Constituição do Brasil. O art. 637 do CPP estabelece que „(o) recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença‟. A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, LVII, que „ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória‟. Daí que os preceitos veiculados pela Lei 7.210/1984, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. […] A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual. Ordem concedida. (HC 94.408, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-2-2009, 2ª Turma, DJE de 27-3-2009). (BRASIL, STF, 2012, on-line)” 

Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal julgou um caso onde estava sendo violado um direito fundamental do cidadão, mas desta vez fez menção expressa à dignidade da pessoa humana na qualidade de um postulado, conforme se observa logo abaixo.

“A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. (HC 85.237, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-3-2005, Plenário, DJ de 29-4-2005.) No mesmo sentido: HC 95.634, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 2-6-2009, 2ª Turma, DJE de 19-6-2009; HC 95.492, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 10-3-2009, 2ª Turma, DJE de 8-5-2009. (BRASIL, STF, 2012, on-line)”

Portanto, restou-nos o dever de mostrar que o postulado da dignidade da pessoa humana, além de estar consagrado em nossa Constituição Federal de 1988, e sedimentado no âmbito doutrinário, tornou-se consagrado na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal Federal, sendo aplicado em diversas oportunidades de seus julgados.

5. Considerações finais.

A dignidade da pessoa humana, postulado previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988, constitui um vetor de aplicação dos direitos e garantias fundamentais.

Apesar de ser um conceito antigo, não temos como frisar o período com precisão, ou até defendemos que ela nasce junto com o ser humano, sobre o nascedouro da dignidade da pessoa humana, mas vale à pena ressaltar que tal postulado passou a ter uma ênfase jurídica de maior robustez a partir das grandes atrocidades cometidas contra as pessoas, principalmente após a Segunda Grande Guerra Mundial, onde todas as espécies de violação aos direitos humanos foram consumadas.

Mesmo estando expressa em nossa Carta Maior, a dignidade da pessoa humana ainda não chegou ao seu ápice de aplicação e efetividade, uma vez que ainda presenciamos várias espécies de atentados cometidas contra os direitos humanos.

Apesar dos vários posicionamentos jurídicos a respeito da natureza jurídica da dignidade da pessoa humana, reconhecemos o mesmo como um postulado normativo de aplicação das demais normas constantes dos direitos e garantias fundamentais, constituindo um vetor de aplicação de tais comandos constitucionais.

O Supremo Tribunal Federal vem procurando dar maior efetividade na aplicação do postulado da dignidade da pessoa humana, ressaltando em diversos dos seus julgados tal postulado como veículo de aplicação dos direitos e garantias fundamentais.

Sendo assim, podemos dizer que já chegou o momento dos juristas trilharem com mais efetividade a aplicação da dignidade da pessoa humana, como uma forma de se garantir e alicerçar a máxima efetividade dos direitos e garantias fundamentais asseguradas às pessoas.

 

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Notas:
[1] BARCELLOS, A. Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.122
[2] Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais;2009; 366p; 10º edição, p.32
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. rev. e atual. SãoPaulo: Malheiros, 200. p.146.
[4] BALERA, Wagner. A dignidade da pessoa e o mínimo existencial. In: IRANDA, Jorge; SILVA, M. A. Marques da (Coord.). Tratado Luso-Brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 124
[5] BALERA, Wagner. A dignidade da pessoa e o mínimo existencial. In: IRANDA, Jorge; SILVA, M. A. Marques da (Coord.). Tratado Luso-Brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p.127.
[6] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 20.
[7] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
[8] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 296.
[9] NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2ª edição. São Paulo: Método, 2008. p.210
[10] SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1ª edição – segunda tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 59-60
[11] Humberto Ávila. Teoria dos Princípios. da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 79/116.
[12] ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios constitucionais. 2. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 70-72.
[13] ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 1993. p. 85-87.


Informações Sobre o Autor

José Eliaci Nogueira Diógenes Júnior

Procurador Federal Membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Ambiental e Urbanístico. Pós-graduado em Direito Processual Civil e Trabalho. Pós-graduado em Direito Constitucional. Professor Universitário.


Equipe Âmbito Jurídico

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