Resumo: O presente texto releva a aplicação do Direito Comparado nas sentenças constitucionais do Supremo Tribunal Federal como mecanismo de otimização das soluções de problemas comuns a vários países. A chamada transjusfundamentalidade surge, desta forma, como alternativa para moldar os fundamentos de uma decisão com a virtude de aperfeiçoar o sistema jurídico receptor. A metodologia eleita é a racionalidade transversal, mais adequada para o tratamento de temas transdisciplinares. A título de exemplo, o Estado de Coisas Inconstitucional, produto da Suprema Corte Colombiana, representa a utilidade do Direito Comparado quando da decisão na APDF n. 347-DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, do STF. Ao final, conclui-se pelo acerto da transjusfundmentalidade no caso paradigma e do Direito Comparado para a solução de casos idênticos ou semelhantes. [1]
Palavras-chave: Transjusfundamentalidade. Estado de Coisas Inconstitucional. Direito Comparado. Supremo Tribunal Federal.
Abstract: The present text highlights the application of Comparative Law in the constitutional judgments of the Supreme Federal Court as a mechanism to optimize the solutions of problems common to several countries. The socalled transjusfundamentality emerges in this way as an alternative to shape the foundations of a decision with the virtue of perfecting the receiving legal system. The chosen methodology is the transversal rationality, more adequate for the treatment of transdisciplinary themes. As an example, the Unconstitutional State of Affairs, a product of the Colombian Supreme Court, represents the usefulness of Comparative Law in the decision in APDF n. 347-DF, rapporteur of the Minister Marco Aurélio, from the STF. In the end, it concludes by the correctness of the transjusmermentality in the paradigm case and the Comparative Law for the solution of identical or similar cases.
Key-words: Transjusfundamentality. Unconstitutional State of Affairs . Comparative Law. Supreme Federal Court.
Sumário. Introdução 1. Do Direito Constitucional Comparado. 2. Transjusfundamentalidade – o que se deve entender. 3. O Direito Comparado no Supremo Tribunal Federal – o Estado de Coisas Inconstitucional. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A sempre lembrada figura do juiz bouche de la loi, de Montesquieu, encarcerado na penitenciária da lei escrita, numa sociedade legicentrista e preocupada com a limitação do poder político do governante, lançava mão de uma metodologia de aplicação do Direito fundada na interpretação mecânica, literal e comprometida com a afirmação da legislação burguesa. A consequência deste estado de coisas evidenciava uma prática interpretativa ditada pela batuta da Escola da Exegese a apontar para o “fetichismo da lei” (BOBBIO, 1995, p. 73 e ss.). Referido cenário perdurou, especialmente, por todo Século XIX, período conhecido como a era das codificações.[2]
Após o advento das duas grandes Guerras Mundiais, proliferaram constituições caracterizadas pela presença de conceitos jurídicos indeterminados em seus textos. O juiz boca-da-lei, cultor da legalidade estrita, foi obrigado a buscar novos horizontes hermenêuticos capazes de responder as demandas que se seguiram pela proteção dos direitos fundamentais. Uma legislação antiga diante de constituições novas e de sociedades em reconstrução.
A adoção de novas e progressistas posturas hermenêuticas na interpretação-aplicação do Direito firmou-se como exigência racional e em vários países foram adotadas sentenças constitucionais diferenciadas e distintas das proferidas até então. A Corte Costituzionale dellla Repubblica Italiana, criada pela Constituição de 1948, art. 134[3], com início de suas atividades em 1956, elaborou uma variedade de sentenza costituzionale[4] que alterou o cenário jurídico italiano e foi exportada para vários países.
Hodiernamente, a justiça constitucional (e aqui não se faz distinção entre justiça constitucional e jurisdição constitucional) tem adotado um perfil dialógico. Internamente, quando há um diálogo institucional entre os poderes constituídos de um Estado e, externamente, ao se estabelecer como diálogo entre Cortes Constitucionais de países diversos.
Apropriando-se dessa conjuntura jurídico-dialógica que envolve as Cortes Constitucionais, o presente texto tem por objetivo principal expor o fato da presença, em tais diálogos, de conceitos, teorias, leis, p. ex., adotados na ratio decidendi ou no obiter dictum de sentenças constitucionais que não foram construídos no país em que estas se viram proferidas, fenômeno conhecido por transjusfundamentalidade. Para alcançar a meta, o caminho percorrido reputa de extrema relevância a referência, ainda que perfunctória, sobre a relevância do Direito Comparado e da transjusfundamentalidade na construção das sentenças constitucionais. A referência última indica o papel do Supremo Tribunal Federal brasileiro como Corte inserida no ambiente dos diálogos mencionados ao tomar como paradigma da decisão na Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional nº 347/DF, de 2015, do chamado Estado de Coisas Inconstitucional – ECI, desenvolvido pela Corte Constitucional de Colombia.
A título de metodologia, o levantamento de literatura, nacional e estrangeira, forma o núcleo principal. Ademais, foram consideradas decisões de Cortes Constitucionais, especialmente a colombiana e a brasileira.
Ao término do texto restará evidente o ímpar desempenho das Cortes Constitucionais na construção de decisões voltadas à proteção de direitos fundamentais a partir de um diálogo entre as mesmas que constitui um dos temas mais palpitantes do Direito Constitucional na atualidade.
1. DO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO[5]
Os diálogos entre as Cortes Constitucionais pressupõem o conhecimento e domínio do Direito Comparado. E a referência a este ramo do Direito não significa que se tenha domínio unicamente do Direito Comparado positivo. O manejo das instituições, das teorias, da realidade circundante e dos conceitos elaborados nos Estados cujos sistemas são objeto de estudo comparado é condição imprescindível. Paolo Biscaretti DI RUFFIA (1996, p. 79), oferece um panorama do que se entende por Direito Constitucional Comparado:
“Em primer lugar, debe aclararse el concepto de la ciencia del derecho constitucional comparado, respecto de la cual puede afirmarse, de manera preliminar, que es una de las ciencias jurídicas cuyo objeto es el estúdio profundo de los ordenamientos constitucionales de los Estados, al lado de las ciencias del derecho constitucional particular, estimadas como las relativas a un único ordenamiento estatal, y del derecho constitucional general, que constituye un capítulo específico de la teoria general del derecho, destinado a comprender en sus esquemas dogmáticos una serie muy amplia de instituciones de los más diversos ordenamientos positivos’.
Avança DI RUFFIA (1996, p. 79), no parágrafo seguinte, advertindo que, ao buscar a comparação entre normas e instituições, o intérprete deve cotejar o material disponível sob o império do método comparativo, revelando características comuns ou diversas que culminarão na identificação de princípios e regras que se encontram em efetiva aplicação. Nesse sentido, pode-se falar do Direito Comparado como uma ciência jurídica autônoma.
Não obstante DI RUFFIA abordar o Direito Constitucional Comparado como ciência autônoma, deixa claro que o manejo do método comparativo é a via a ser trilhada pelo intérprete. E para chegar a tal conclusão, informa a imprescindibilidade do domínio da cultura, da forma de Estado, do sistema constitucional, do governo que deve nortear o trabalho comparativo. O processo de estruturação do estudo comparado segue, de maneira geral, quatro etapas, a saber: a) uma cuidadosa compilação de dados que sejam adequados para um bom conhecimento das normas e instituições dos países considerados; b) uma sistematização dos dados colhidos, enfatizando semelhanças e distinções; c) postura crítica na construção da sistematização dos dados, e d) exposição sistemática dos resultados obtidos (DI RUFFIA, 1996, p. 86). Evidentemente, por se tratar de ciência do direito, o método será o jurídico. Portanto, a comparatística é acrescida aos métodos de interpretação de Friedrich Karl von Savigny.
Ao se referir aos quatro métodos tradicionais de interpretação aperfeiçoados por Savigny (gramatical, lógico, histórico e sistemático), Peter HÄBERLE defende o reconhecimento da comparatística como quinto método de interpretação.[6] A justificativa estaria na exigência de ideias claras e distintas quanto ao Estado Constitucional, que demanda instrumentos de análise sensivelmente distintos (não contrários) dos métodos clássicos de interpretação (HÄBERLE, 2001, p. 164).
Os aspectos culturais dos países considerados na comparação jurídica resultam em dificuldades no estudo do(s) relacionamento(s) exigido(s) entre as normas ou sistemas eleitos como objeto. Atento à problemática, Miguel Ángel CIURO CALDANI (2006, p. 114-115), enfatiza que
“Es importante realizar un “análisis” de los componentes de cada juridicidad y cada cultura para reconocer la individualidad respectiva y sus despliegues comunes con otras juridicidades y culturas. El “lugar” comparativo de cada ser humano y cada conjunto de seres humanos se muestra en los denominadores comunes y particulares respecto de otros hombres y otros conjuntos humanos. Las referencias individuales y comunes de la cultura nos parecen muy destacadas”.
No cenário da União Europeia, a dificuldade apontada não escapou da preocupação de Peter HÄBERLE. Observa o constitucionalista alemão (2001, p. 164-165):
“En resumen: los procesos de creación y recepción no se realizan por sí solos. Se requiere que los receptores (mejor dicho: los actores) en el procedimiento de recepción “busquen” de manera abierta y sensible, observando y elaborando lo típico y lo individual propio del Estado constitucional “vecino” en sentido estricto o amplio; “ adquirir para poseer”. De este modo surge o se confirma el “derecho constitucional común europeo”, o con mayor alcance, el derecho constitucional común europeo-atlántico, y en parte también el derecho “emparentado” . En otras palabras, los procesos de recepción requieren comparación jurídica, la cual solamente puede tener éxito como comparación cultural. En la comparación, los receptores laboran en parte en la política jurídica (como constituyentes o legisladores), en parte de manera interpretativa, aunque los límites pueden ser fluidos: en la interpretación por los jueces constitucionales o por la doctrina del derecho constitucional; por esta razón, y en el campo de fuerzas del Estado constitucional, corresponde a la comparación jurídica el rango de un “quinto” método de la interpretación, al lado de los cuatro métodos clásicos de Savigny”.
Ultrapassadas tais premissas, é intuitiva a ocorrência de práticas comparatísticas nos Tribunais Constitucionais. O Estado Constitucional de Direito, marcado pela abertura dos sistemas constitucionais e ampla densidade semântica de disposições contidas nas constituições, apresenta peculiaridades favoráveis ao estudo comparado. Os juízes constitucionais, como intérpretes e guardiões da constituição, aproximam-se cada vez mais entre si por meio de congressos, intercâmbios, associações, conferências, centros de estudos, sem que se olvide das múltiplas possibilidades que o universo digital oferece, e promovem uma circulação de materiais normativos e jurisprudenciais.[7]
Não se cuida de circulação interna que envolveria juízes na interpretação e aplicação de sistema jurídico interno e disponível à atuação prática para a solução de casos postos à decisão. Aqui os juízes possuem disposição para “olhar para fora” dos limites do direito doméstico, trata-se de descobrir como outros juízes decidem quando diante de problemas comparáveis. Nas palavras de Anne-Marie SLAUGHTER (2003, p. 197):
“Another major shift is in the willingness of judges to look beyond their borders when they already have domestic law on point. It is one thing when a court borrows to fill a gap or even to build a foundation, as courts in fledgling states or newly decolonized countries have long had to do. It is quite another when judges from an elaborate domestic legal system with ample law available to decide the case in question nevertheless seek to find out how other judges have responded when faced with a comparable issue.”
Como qualquer realidade cultural, a comparatística é alvejada por várias críticas carregadas ideologicamente da recusa a um suposto “direito natural universal”, “direito cosmopolita” ou “vanguardismo moral”. A estes, forçoso é responder com as ponderações de Gustavo ZAGREBELSKY (2007 p. 91-104), que em discurso proferido por ocasião do 50° aniversário da Corte Constitucional italiana, afirmou:
“En realidad, no hay ninguna necesidad de llegar a tanto. Incluso parece que esta exageración ideológica parece hecha a propósito para suscitar oposición. Basta una actitud de modestia al examinar las experiencias foráneas, respecto a nuestros propios problemas. Basta no creer que estamos solos en el propio camino y no presumir, como por el contrario hacen los chauvinistas de la Constitución, de ser los mejores. El presupuesto no es necesariamente el derecho natural ni la ilusión del progreso. Puede ser la prudencia del empirista que quiere aprender, además de los propios, también de los errores y aciertos de los demás. Basta reconocer que las normas de la Constitución, por ejemplo en el tema de la dignidad e igualdad de todos los seres humanos y de los derechos fundamentales, aspiran a la universalidad, y que su interpretación, incluso a primera vista, no es la interpretación de un contrato, de una decisión administrativa, y ni siquiera de una ley, emanada de voluntades políticas contingentes. La interpretación constitucional es un acto de adhesión o de ruptura respecto a tradi- ciones histórico-culturales comprensivas, de las que las Constituciones particulares forman parte.”
As experiências dos juízes constitucionais, embora inseparáveis dos obstáculos epistemológicos individuais, na rotina forense e diante de pluralidade de casos envolvendo a interpretação e aplicação de normas definidoras de direitos fundamentais, armam os tribunais constitucionais de argumentos essenciais ao enfrentamento de novos direitos oriundos da complexidade das relações sociais. Circunstâncias comuns em sociedades de risco e que evoluem na velocidade do ano-luz arrastam consigo a inevitável formação de exigências antes desconhecidas ou não levadas aos tribunais. Direitos dos imigrantes, dos encarcerados, dos deslocados, das relações poliafetivas, bem como a limitação de direitos em virtude de segurança nacional, são exemplos de questões que unem vários países numa mesma realidade.
A mera elaboração de normas jurídicas pelo Legislativo nem sempre é suficiente para garantir direitos ou autorizadoras de políticas públicas eficazes e suficientes à solução das demandas sociais. Não raras vezes o Judiciário é a última porta de esperança diante das regras maquiavelianas do jogo político. Na atuação dos Tribunais, portanto, tem-se uma ferramenta de extrema utilidade no direito comparado.
René DAVID (2014, p. 4) sintetiza as vantagens do direito comparado:
“As vantagens que o direito comparado oferece podem, sucintamente, ser colocadas em três planos. O direito comparado é útil nas investigações históricas ou filosóficas referentes ao direito; é útil para conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional; é, finalmente, útil para compreender os povos estrangeiros e estabelecer um melhor regime para as relações da vida internacional.”
Firmada a importância do direito comparado na construção de decisões pelos Tribunais Constitucionais, no tópico que se segue será esclarecido o que se deve entender por transjusfundamentalidade. O tema representa um pressuposto inafastável à compreensão das decisões nomeadas na última parte deste trabalho.
2. TRANSJUSFUNDAMENTALIDADE – O QUE SE DEVE ENTENDER
O mundo testemunhou, depois do segundo Pós-Guerra, profundas mudanças nos perfis político, econômico e jurídico de diversos países. A descolonização da Índia, o ocaso de regimes autoritários na Espanha e Portugal, o fim de ditaduras militares na América Latina, a reconstrução social da África do Sul com o término do apartheid, são arquétipos das complexas reconfigurações institucionais e culturais engendradas a partir de novos reclamos de proteção dos direitos fundamentais.
A transição constitucional foi inevitável e com ela a ruptura com um passado a ser superado e a afirmação de novos paradigmas. Na seara das Cortes Constitucionais existentes um singular problema assolou os juízes: julgar novas demandas baseados em sistemas normativos subjugados pela força normativa dos fatos. É dizer, interpretar e aplicar normas produzidas em ambiente político-social-jurídico que se pretendia abandonar. O contexto propiciou, a título exemplificativo, a formatação de sentenças ativistas[8] como respostas possíveis às imposições fáticas de algumas relações estabelecidas sem correspondência com os normativos em vigor. Uma variedade de sentenças foi engendrada como alternativa de resposta para situações específicas. Nos casos das decisões do Tribunal Constitucional em controle de constitucionalidade, podem ser encontradas, quanto aos efeitos, sentenças simples e manipulativas. As sentenças manipulativas, caracterizadas pela possibilidade de alterar o sentido ou os efeitos da lei ou ato normativo impugnado, podem ser classificadas, segundo Carlos Blanco de MORAIS (2005, p. 238-243), em: a) sentenças restritivas dos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade; b) sentenças interpretativas de acolhimento ou condicionais; e c) sentenças portadoras de efeitos aditivos.
O emprego de materiais alienígenas tornou-se prática comum. A repercussão desse estado de coisas na elaboração dos fundamentos (ratio decidendi) das sentenças constitucionais é de fácil constatação. Vlad PERJU (2012), em estudo sobre o tema, cita expressões e palavras que são próprias do vocabulário dos diálogos constitucionais. Assim, tem-se “transplante” (transplant), “difusão” (diffusion), “empréstimo” (borrowing), “circulação” (circulation), “fertilização cruzada” (cross-fertilization), “migração” (migration), “engajamento” (engagement), “influência” (influence), “transmissão” (transmission), “transferência” (transfer) e “recepção” (reception).
Independente da nomenclatura e da classificação, adota-se neste texto a ideia de transjusfundamentalidade para identificar tais fenômenos. Pode-se afirmar que transjusfundamentalidade é a disponibilização de informações sistematizadas sobre temas constantes em decisões de outras Cortes ou Tribunais presentes em suas próprias decisões. Apesar de não comportar todas as variações conteudísticas, o conceito atende às pretensões aqui perseguidas.
No seguinte e último tópico, o destaque recairá sobre a prática do Supremo Tribunal Federal envolvendo o método comparatístico. O manancial de documentos é farto e complexo, o que motiva, por questões metodológicas, restringir o objeto de estudo e destacar, o tema principal debatido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347-DF, qual seja, o estado de coisas inconstitucional.
3. O DIREITO COMPARADO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO – O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347-DF, o Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, atendendo a representação formulada pela Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Universidade de Estado do Rio de Janeiro – CLÍNICA UERJ DIREITOS, requereu que fosse “reconhecido o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, e, em razão disso, determinada a adoção das providências listadas ao final(…).”[9] Ressalta, logo adiante, que a intervenção da jurisdição constitucional em casos de falhas estruturais em políticas públicas direcionadas à proteção de direitos fundamentais é fato em países como Índia e África do Sul. No caso da Colômbia, a Corte Constitucional tem construído uma das mais férteis experiências ao reconhecer o estado de cosas inconstitucional.
O pedido de liminar foi deferido pelo Ministro Marco Aurélio, relator da ADPF n. 347-DF[10]. Do seu voto, destacam-se fundamentos relevantes, tais como:
“A responsabilidade do Poder Público é sistêmica, revelado amplo espectro de deficiência nas ações estatais. Tem-se a denominada “falha estatal estrutural”. As leis existentes, porque não observadas, deixam de conduzir à proteção aos direitos fundamentais dos presos. Executivo e Legislativo, titulares do condomínio legislativo sobre as matérias relacionadas, não se comunicam. As políticas públicas em vigor mostram-se incapazes de reverter o quadro de inconstitucionalidades. (…)..
Em síntese, assiste-se ao mau funcionamento estrutural e histórico do Estado – União, estados e Distrito Federal, considerados os três Poderes – como fator da violação de direitos fundamentais dos presos e da própria insegurança da sociedade. Ante tal quadro, a solução, ou conjunto de soluções, para ganhar efetividade, deve possuir alcance orgânico de mesma extensão, ou seja, deve envolver a atuação coordenada e mutuamente complementar do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, dos diferentes níveis federativos, e não apenas de um único órgão ou entidade. – destacou-se.”
A decisão liminar deixa evidente que a solução para os litigios estruturais[11] não se localiza na vontade política de um único órgão ou Poder constituído. Exige a atuação coordenada dos Poderes nos três níveis de governo para a consecução de intervenções legislativas, executivas, orçamentárias e interpretativas, esta sob responsabilidade precípua do Poder Judiciário. Este agir, preponderantemente, ocorre no quadro das omissões inconstitucionais que, no dizer de Carlos Roberto Siqueira CASTRO (2003, p. 729),
“Assim, contemporaneamente, ao lado da correntia inconstitucionalidade ativa ou por ação, temos a inconstitucionalidade “omissiva” ou por “omissão”, caracterizada pela inércia estatal em dar concretude às prestações de cunho positivo, cujo implemento tenha sido determinado pelo legislador constituinte”.
A mera declaração de inconstitucionalidade por omissão pelo STF, fato observado, principalmente, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, é inábil para afastar os litígios estruturais. Imperioso se reconheça o estado de coisas inconstitucional e se adote medidas estruturais que devem ser efetivadas sob o manto de um diálogo institucional, preservando-se, assim, a competência e vocação constitucional de cada Poder.
No caso sob comento, dois pedidos contidos na petição inicial da ADPF 347-DF, merecem destaque: a declaração do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro e “determinar ao Governo Federal que elabore e encaminhe ao STF, no prazo máximo de 3 meses, um plano nacional (“Plano Nacional”) visando à superação do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, dentro de um prazo de 3 anos.”
O segundo pedido ressalta a não ingerência do Poder Judiciário no campo das políticas públicas, embora a decisão correlata deva ser considerada ativista. Ainda que não citado expressamente, o Poder Executivo terá de contar com o Poder Legislativo na elaboração de normas direcionadas ao enfrentamento e solução das questões. Portanto, preservado o princípio da separação de poderes e as atribuições constitucionais dos Poderes. A deferência aos demais Poderes é marca indelével nesse diálogo.
Por fim, alguns esclarecimentos devem restar claros sobre o estado de coisas inconstitucional. A Corte Constitucional de Colombia é a responsável pela elaboração e desenvolvimento desta ferramenta que pretende afastar as violações aos direitos fundamentais na Colômbia, reconhecidamente um país em que reiteradamente se observa tanto o desrespeito, quanto a não efetivação dos direitos fundamentais. No magistério de Josefina Quintero LYONS, Angélica Matilde Navarro MONTERROZA e Malka Irina MEZA (2011, p. 70-71),
“La figura del Estado de cosas inconstitucionales puede ser definida como un mecanismo o técnica jurídica creada por la Corte Constitucional, mediante la cual declara que ciertos hechos resultan abiertamente contrarios a la Constitución, por vulnerar de manera masiva derechos y princípios consagrados en la misma, en consecuencia insta a las autoridades competentes, para que en el marco de sus funciones y dentro de un término razonable, adopten las medidas necesarias para corregir o superar tal estado de cosas.”
Do conceito são extraídos vários requisitos para a declaração do estado de coisas inconstitucionais, resumidos pela Corte Constitucional de Colombia, na Sentencia T-025-2004[12]:
“Dentro de los factores valorados por la Corte para definir si existe un estado de cosas inconstitucional, cabe destacar los siguientes: (i) la vulneración masiva y generalizada de varios derechos constitucionales que afecta a un número significativo de personas; (ii) la prolongada omisión de las autoridades en el cumplimiento de sus obligaciones para garantizar los derechos; (ii) la adopción de prácticas inconstitucionales, como la incorporación de la acción de tutela como parte del procedimiento para garantizar el derecho conculcado; (iii) la no expedición de medidas legislativas, administrativas o presupuestales necesarias para evitar la vulneración de los derechos. (iv) la existencia de un problema social cuya solución compromete la intervención de varias entidades, requiere la adopción de un conjunto complejo y coordinado de acciones y exige un nivel de recursos que demanda un esfuerzo presupuestal adicional importante; (v) si todas las personas afectadas por el mismo problema acudieran a la acción de tutela para obtener la protección de sus derechos, se produciría una mayor congestión judicial.”
A ferramenta era gestada desde a década de noventa do século passado (Sentencia US.559-1997)[13], o que implica reconhecer a paternidade da mesma à Corte colombiana. No que pesem os cuidados e deferências ao demais poderes pela Corte Constitucional da Colômbia, o emprego do estado de coisas inconstitucionais no Brasil, pelo STF, tem gerado inúmeras críticas. Artigo publicado no Estadão de 19 de setembro de 2015, intitulado Estado de Coisas Inconstitucionais[14], os Professores Raffaele de Giorgi, José Eduardo Faria e Celso Campilongo no qual defendem que o ECI pode dificultar e ameaçar a efetividade da Constituição e dos direitos fundamentais. O ilustre Professor Lenio Luiz Streck, na coluna do Conjur, de 24 de setembro de 2015, escreveu no O que é preciso para (não) se conseguir um Habeas Corpus no Brasil[15] que tem receio do ECI, pois “essa coisa” é fluída, genérica e líquida. Por ela, tudo pode virar inconstitucionalidade. Das doações em campanha ao sistema prisional (ADPF 347). Mas pergunto: o salário mínimo não faz parte desse Estado de Coisas Inconstitucional?
Os fundamentos das críticas são conhecidos e se aproximam, sensivelmente, da contrariedade ao ativismo judicial. Subjetivismo e arbítrio judicial (decido de acordo com minha consciência), ilegitimidade democrática (os juízes não são eleitos pelo voto popular) e irresponsabilidade institucional de juízes e cortes (não há controle institucionalizado das decisões do STF), violação à separação de poderes (os poderes são independentes, embora harmônicos) e o eclipse da fronteira entre Direito e Política (judicialização da política e politização do direito).
Reconhecidas a relevância e as esmeradas considerações levantadas pelos Professores nas críticas acima referidas sinteticamente, opõe-se que não há compatibilidade entre os fatos descritos como ECI pelos autores e o ECI que desenvolve a Corte Constitucional de Colombia. Ademais, na liminar concedida na ADPF n. 347-DF, o Ministro Marco Aurélio afasta, de modo rápido e em lúcida passagem, as críticas delineadas:
“Nada do que foi afirmado autoriza, todavia, o Supremo a substituir-se ao Legislativo e ao Executivo na consecução de tarefas próprias. O Tribunal deve superar bloqueios políticos e institucionais sem afastar esses Poderes dos processos de formulação e implementação das soluções necessárias. Deve agir em diálogo com os outros Poderes e com a sociedade. Cabe ao Supremo catalisar ações e políticas públicas, coordenar a atuação dos órgãos do Estado na adoção dessas medidas e monitorar a eficiência das soluções.
Não lhe incumbe, no entanto, definir o conteúdo próprio dessas políticas, os detalhes dos meios a serem empregados. Em vez de desprezar as capacidades institucionais dos outros Poderes, deve coordená-las, a fim de afastar o estado de inércia e deficiência estatal permanente. Não se trata de substituição aos demais Poderes, e sim de oferecimento de incentivos, parâmetros e objetivos indispensáveis à atuação de cada qual, deixando-lhes o estabelecimento das minúcias. Há de se alcançar o equilíbrio entre respostas efetivas às violações de direitos e as limitações institucionais reveladas na Carta da República.”
Em virtude das limitações impostas para este trabalho, não será viável a desconstrução detalhada das contundentes críticas dirigidas ao ECI pelos Mestres citados, o que será objeto de um outro texto. Importa demonstrar a transjusfundamentalidade, o uso do Direito Comparado na liminar deferida na ADPF n. 347-DF. Não pairam dúvidas quanto a necessidade de uma justiça constitucional dialógica que reúna condições estruturais em sintonia com os demais Poderes para fins de atingir a solução, ou pelo menos abrandar, o conjunto de fatos dos litígios estruturais.
O Supremo Tribunal Federal ratifica uma tendência observada ao logo dos anos de sua atuação que é a de dialogar com outras Cortes Constitucionais no intuito de apresentar decisões que respondam, satisfatoriamente, as complexas demandas que são apresentadas para julgamento. O estado de coisas inconstitucional constitui, num oceano de decisões, uma gotícula representativa do diálogo transnacional.
CONCLUSÃO
Ao término deste trabalho pode-se defender o papel de destaque que o Direito Comparado deveria ocupar nos estudos acadêmicos e, especialmente, nos Cursos de Direito. Infelizmente, observa-se uma miopia (ou cegueira) no trato das disciplinas jurídicas, optando-se por uma visão unicamente doméstica e pautada em codificações.
A riqueza do estudo comparado é sacrificada em prol da apresentação panorâmica do Direito, limitada a um processo de aceitação passiva das informações “arremessadas” em sala de aula. Existir numa sociedade de riscos, permeada por complexas relações sociais, requer uma conduta correspondente aos ditames da ordem global do segundo pós-guerra. Conflitos gestados a partir de inéditas causas (migrações, deslocamentos forçados, sistema penitenciário, dentre outras), assim como conflitos conhecidos e não solucionados ou precariamente assistidos (segurança, saúde, moradia, por exemplo), são diagnósticos que apontam para soluções diferenciadas, não satisfeitas com a subsunção marcante da hermenêutica legicentrista.
O cenário favorece a tranjusfundamentalidade na medida em que permite o diálogo entre Cortes Constitucionais para troca de experiências relativas a problemas comuns. O Estado de coisas inconstitucional, criação da Corte Constitucional de Colombia e fundamento relevante na ADPF n. 347-DF, é ferramenta de extrema utilidade no desenlace de conflitos estruturais, logicamente quando sua operacionalidade é excepcional e deferente aos demais Poderes da República.
O Supremo Tribunal Federal assume, portanto, posição de vanguarda alinhada aos complexos feixes das relações sociais de uma sociedade globalizada e ávida pela proteção e efetivação de direitos fundamentais.
Procurador do Município de Fortaleza Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UNIFOR Pós-Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – FDUL Professor de Direito Constitucional e de Direito Processual Civil da FAC FANOR e FGF
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