Gosto de ler a coluna de cartas dos leitores, presente na quase totalidade dos jornais. Mergulho com simpatia neste espaço democrático, disponível para a discussão dos mais variados temas. Observo que as cartas dos leitores, com muita freqüência, tratam de questões ligadas ao Direito e à Justiça.
Em outros tempos o cidadão comum supunha que o território do Direito e da Justiça era cercado por um muro. Só os iniciados – os que tinham consentimento dos potentados – podiam atravessar a muralha. O avanço da cidadania, a partir dos debates pré-constituintes (1985), funcionamento da Constituinte e promulgação da Constituição (1988), modificou substancialmente esse panorama.
O mundo do Direito não é apenas o mundo dos advogados e outros profissionais da seara jurídica. Todas as pessoas, de alguma forma, acabam envolvidas nisto que poderíamos chamar de “universo jurídico”. Daí a legitimidade da participação do povo nessa esfera da vida social.
Cidadãos ou profissionais, todos estamos dentro dessa nau. De minha parte foi como profissional que fiz a viagem. Comecei como advogado, integrei o Ministério Público, fui Juiz Suplente do Trabalho. Após cumprir esse rito de passagem, vim a ser Juiz de Direito porque a magistratura comum era mesmo o meu destino. Eu seria juiz no Espírito Santo, como juiz em Santa Catarina fora meu avô materno, aquele velhinho estudioso e doce que, na infância, tanto fascínio exerceu em mim.
Meu caminho, nas sendas do Direito, não foi tranqüilo e sem conflitos interiores. Se a consciência apontava para uma busca apaixonada da Justiça; se uma independência mental muito grande levava-me a não temer trilhas desconhecidas; nem por isso as dificuldades cessavam. Havia dogmas absorvidos do ambiente cultural que nos cercava.
Foi um tormentoso caminho este no qual vivi um conflito entre o dever de aplicar a lei e o dever de servir à Justiça, que nem sempre está expressa na lei.
A vida, os sofrimentos, a reflexão levaram-me a compreender que há uma hierarquia de valores a ser observada.
O juiz está, sem dúvida, submetido à lei. Mas o “regime de legalidade”, em oposição ao regime de arbítrio, não significa submeter os magistrados ao culto idólatra da lei. Nem retira dos juízes a missão, diante dos casos concretos, de trabalharem sabiamente com a lei para que prevaleça a Justiça. Se há um conflito entre a lei e a Justiça, prevaleça a Justiça.
O grande instrumento teórico e prático para que o jurista trabalhe a lei como artista do Direito é a Hermenêutica Jurídica. Não é num passe de mágica que se faz a travessia da lei ao Direito. Muito pelo contrário, o caminho é muitas vezes difícil, exige critério, sensibilidade e ampla cultura geral ao lado da cultura simplesmente jurídica. O cultivo da Hermenêutica Jurídica é indispensável para descobrir as chaves do Direito, como também é indispensável para isso a paixão pela Justiça e um acendrado Humanismo. O jurista não lida com pedras de um xadrez, mas com pessoas e com os dramas e angústias que marcam nossa condição de pessoa humana. Não é através do manejo dos silogismos que se desvenda o Direito, tantas vezes escondido nas roupagens da lei. O olhar do verdadeiro jurista vai muito além dos silogismos.
Da mesma forma que os cidadãos em geral não podem fechar os olhos para as coisas do Direito, o estudioso do Direito não pode limitar-se ao estreito limite das questões jurídicas. O jurista que só conhece Direito acaba por ter do próprio Direito uma visão defeituosa e fragmentada.
Estamos num mundo de intercâmbio, de diálogo, de debate.
Se quisermos servir ao bem comum, contribuir com o nosso saber para o avanço da sociedade, impõe-se que abramos nosso espírito a uma curiosidade variada e universal.
Livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo e escritor
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