Resumo: O presente artigo aborda algumas questões problemáticas do direito penal contemporâneo. Observa-se que o sistema de justiça criminal, como um todo, tem sido influenciado por doutrinas de exceção, sob justificativa de manutenção da ordem pública e da estabilidade social, ainda que em detrimento de direitos fundamentais. Em um país periférico como o Brasil, de enormes diferenças sociais, tais medidas acabam relegando a condição de cidadão a um plano secundário.
Palavras-chave: direito penal, doutrinas de exceção, exclusão social e CF/88.
Resume: This article discusses some issues of contemporary criminal law context. It is observed that the criminal justice system as a whole, and has been influenced by doctrines of exception, under the justification of the maintenance of the public order and social stability, albeit at the expense of fundamental rights. In a peripheral country like Brazil, the enormous social differences, they end up relegating the condition of citizen as a minor.
Keywords: criminal law, doctrines of exception, social exclusion and CF/88.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Positivismo Jurídico e os Influxos do Direito Penal a partir da 2ª Guerra Mundial. 3. Doutrinas de Exceção (para quem?). 4. A Criminalização da Miséria. 5 Considerações finais.
1 Introdução
A complexidade da sociedade contemporânea exige a investigação das estruturas de poder e dos múltiplos discursos incidentes nas mais diversas esferas da sociedade sob uma perspectiva multifacetária.
No Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, instaurou-se um novo paradigma, estabelecendo-se o Estado Social e Democrático de Direito, comprometido com uma sociedade plural e sem preconceitos[1], cujo princípio fundamental consiste na efetivação da dignidade da pessoa humana.[2]
Nesse mesmo cenário, surge aos operadores do Direito a preocupação em vincular a construção e a leitura da dogmática penal à luz da Constituição, a fim de adequar o discurso jurídico a realidade social, o que acaba provocando grandes rupturas ao sistema até então vigente.
Investiga-se que na atualidade o sistema de justiça criminal, como um todo, tem, por muitas vezes, agido de forma violenta e degradante, desrespeitando postulados constitucionais fundamentais, o que acaba por desencadear uma crise de legitimidade do exercício do poder punitivo.
A partir de dados concretos da realidade social, é possível afirmar que o discurso jurídico-penal apresentado pelas agências penais não corresponde à sua verdadeira forma de operar, ou seja, há uma “disparidade entre o discurso jurídico-penal e a realidade operacional do sistema penal”.[3]
Observa-se que a configuração da cidadania torna-se algo praticamente inatingível. Em um Estado Democrático de Direito como é o Brasil, há sempre que se ter em vista a supremacia da Constituição sobre as demais normas jurídicas, tendo o princípio da dignidade humana como fio condutor na construção e “concreção” do direito penal, a fim de evitar excessos punitivos contra os cidadãos. Isso porque o paradigma da Constituição de 1988 coloca-os em uma posição nuclear do discurso jurídico-penal contemporâneo.
2 O Positivismo Jurídico e os Influxos do Direito Penal a partir da 2ª Guerra Mundial
A construção da dogmática jurídico-penal, que deverá ser objeto de análise e crítica da pesquisa que ora é proposta, contextualiza-se no início do século XX, marcado por perturbadoras ondas sociais. A Europa, principalmente a Alemanha, vivenciava a segunda guerra mundial, iniciada com a política sanitária do Reich.
De fato, os operadores do Direito do nacional-socialismo, agarrados à lei, cumpriram o ordenamento jurídico vigente à época, seguindo o método kelseniano[4], de matriz neo-kantiana, a partir do qual “a interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer possíveis significações de uma norma jurídica”.
Segundo Andrei Schmidt[5], “o positivismo jurídico pretendia uma análise avalorada do Direito, uma abordagem neutra e alheia a critérios de justiça material. Daí a idéia dos positivistas no sentido de que uma norma em vigor é, desde já, válida, até que seja desconstituída”. Daí porque elaborou[6] a seguinte crítica:
“A principal deficiência do positivismo jurídico decorre da incapacidade de reconhecer-se a invalidade de uma norma – produzida em conformidade com o processo legislativo estabelecido hierarquicamente – cujo conteúdo não se ajuste a valores fundamentalmente estabelecidos no ordenamento jurídico.”
Entretanto, o resultado obtido com a introdução desse modelo representou uma das maiores atrocidades da história da humanidade. Relegar a escolha da melhor interpretação para o plano da política e admitir que a ciência do Direito abrange todas as possíveis interpretações extraídas a partir do sistema é conferir validade a todo e qualquer tipo de interpretação, ainda que contrária aos valores estabelecidos em determinada sociedade.
Utilizando-se de um discurso técnico, pretensamente neutro, os juristas da época exerceram sua função jurisdicional aplicando leis formalmente vigentes e proferindo sentenças de morte e de internação em campos de concentração por fatos de escassa gravidade, evidenciando assim até onde pode chegar à perversão dogmática.[7] Explica Mezger[8] que durante muito tempo a dogmática penal esteve afastada dos interesses político-criminais. Argumenta que
“En el Estado nacionalsocialista está claro que la primacía se le dio a la Política y ciertamiente a los fines políticos que caracterizaban dicho Estado, lo que traducido al Derecho penal suponía tanto como que este tenía que perseguier, com sus médios específicos, estos fines, resumidos sobre todo en la idea de la pureza de la raza del pueblo alemán: la raza ária. La Dogmática jurídicopenal de la época no hizo, pues, outra cosa, que seguir fielmente esos postulados e intentar traducirlos en categorias dogmáticas básicas como la idea de “traición” (Verrat) como fundamento del concepto material de delito, y la Idea de “eliminación” o “exterminio” (Ausmerzung) de elementos dañinos al pueblo y a la raza, como uno de los fines de la pena.”
Ao final da segunda guerra ganham força correntes de pensamento em oposição ao positivismo jurídico, ao conhecimento fundado em verdades absolutas e evidências incontestáveis. Na tentativa de ampliar o conceito de racionalidade e, em nome da solução mais justa no caso concreto, a noção de ciência jurídica passa a ser integrada por valores, rompendo, conseqüentemente, com o modelo kelseniano.[9]
Tais perspectivas, ainda introjetadas no pensamento dogmático contemporâneo, são apontadas por Salo de Carvalho[10], no seguinte sentido:
“o cenário punitivo assistiu no período entre Guerras à elaboração de modelos de intervenção autoritários que pautaram sérias transformações do direito penal e processual penal durante o século XX e que são reanimados na atualidade, sobretudo com as doutrinas de exceção do funcionalismo penal do inimigo.”
3 Doutrinas de Exceção (para quem?)
Permeado pelas noções apresentadas no ponto anterior, o pensamento de Günther Jakobs leva ao entendimento do direito penal como um instrumento de preservação da identidade social (função reintegradora da norma/prevenção geral positiva), razão pela qual defende a inviolabilidade da norma, a fim de garantir simbolicamente a confiança e a manutenção do sistema jurídico.[11]
Andrei Schmidt[12] analisa com profundidade o tema, apresentando a seguinte síntese:
“Um Direito Penal cujas finalidades sejam buscadas, exclusivamente, em atenção à prevenção-geral-positiva (reintegração do ordenamento jurídico) poderá legitimar um sistema de máxima intervenção ilimitada e, ao mesmo tempo em que possui condições de se acomodar bem às novas demandas impostas pela pós-modernidade ao Direito Penal, possuiria o risco de abrir completamente as comportas para qualquer sistema político buscar a sua legitimação.”
A partir dessa idéia, Jakobs[13] propõe a divisão do direito penal, apresentando uma versão diferenciada a ser aplicada a determinados criminosos, defendendo ser esta a única forma de evitar-se uma contaminação do direito penal do cidadão (tradicional), com suas respectivas garantias, pois “quien incluye al enemigo en el concepto del delincuente ciudadano no debe asombrarse si se mezclan los conceptos de guerra y proceso penal”[14].
Nessa linha de raciocínio, Jesus-María Silva Sánchez[15] parece conformado com a divisão proposta por Jakobs, desde que seja para proteger um bem considerado de maior valor, explicando que:
“Tratándose de reacciones ceñidas a lo estrictamente necesario para hacer frente a fenómenos excepcionalmente graves, que puedan justificarse en términos de proporcionalidad y que no ofrezcan peligro de contaminación del Derecho penal de la normalidad, seguramente cubería admitir que, aunque en el caso del Derecho penal de tercera velocidad nos hallemos ante un mal, éste puede ser el mal menor.”
Clareando e refutando com veemência as idéias de Jakobs, Fábio D’Avila[16] argumenta que este propugna a admissão de dois direitos penais:
“Um dos infratores “amigos” – a expressão utilizada por Jakobs não é, evidentemente esta, mas um “direito penal do cidadão” (Bürgerstrafrecht) -, aos quais será aplicado um direito penal atento aos direitos e garantias fundamentais, e outro, aos infratores “inimigos”, àqueles que sequer devem ser considerados pessoas, e que, por isso, basta a aplicação de um instrumento jurídico arbitrário de segregação que, revestido da forma de um direito penal de segunda categoria, pretende assumir um curioso colorido de legitimidade.”
De fato, para Jakobs[17], determinados indivíduos não são dignos da proteção jurídica do Estado, pois aqueles que se “han apartado probablemente de manera duradera, al menos de modo decidido, del derecho […] no prestan la garantia cognitiva mínima que es necesaria para el tratamiento como persona”.
Efetivamente, pode-se perceber que se trata, abertamente, de uma estratégia cujo discurso recebe certo grau de legitimação – justamente porque é emanado a partir dos órgãos estatais legitimamente instituídos – de criminalização e eliminação de todos aqueles que são “clientes” do sistema de justiça criminal. Passa-se a aderir, a partir daí, a um discurso beligerante.[18]
Tal modelo propõe a instituição de um estado de exceção permanente, o que representa uma violência sem precedentes contra os direitos e garantias fundamentais conquistados por meio de tantas guerras e mortes ocorridas ao longo de séculos.
Observa-se que o legislador brasileiro foi contaminado por esse modelo político, ao aprovar, por exemplo, a Lei n. 10.792/03, que alterou a Lei n. 7.210/84 (Lei de Execução Penal), instituindo o regime disciplinar diferenciado ao preso provisório ou condenado “sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando”, ou no caso de apresentarem “alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”.[19]
A respeito da legislação que instituiu o RDD, argumentam Salo de Carvalho e Alexandre Wunderlich[20] que:
“Muito embora tenhamos como clara a inconstitucionalidade da Lei, visto que a manutenção de pessoa em isolamento por até 360 dias não pode receber outra denominação senão a de pena cruel, vedada pela Carta Constitucional (art. 5º, inciso XLVII, da CR), tememos que nossos Tribunais, a começar pelas Cortes Superiores (STF e STJ), inebriados pelos discursos de emergência, não utilizem os mecanismo de controle de constitucionalidade e, por conseqüência, acolham a barbárie posta em Lei como se fosse mera técnica pedagógica de isolamento.”
Com muita pertinência, Cornelius Prittwitz[21], em seminário realizado pelo IBCCrim, baseado nos estudos de Jakobs, trouxe à tona a problemática da atual legislação criminal, ao sustentar que “o direito penal como um todo está infectado pelo direito penal do inimigo; é totalmente impensável a reforma de uma parte do direito penal para voltar a um direito penal do cidadão realmente digno de um Estado de Direito”.
Considerando essa afirmação, pode-se observar que o direito penal brasileiro carrega, em toda sua conjuntura, fragmentos velados do direito penal do inimigo.
Trata-se, de fato, de um Estado penal que se tem armado contra a criminalidade emergente, enxergando inimigos em todo o tecido social, sendo que os mais atingidos são justamente aqueles setores mais vulneráveis da população, quais sejam, os delinqüentes de rua/não-consumidores/excluídos sociais.
Diante disso, Salo de Carvalho[22] faz o pertinente questionamento:
“Se é realmente necessário para garantir segurança a cisão do direito penal com o estabelecimento de diferentes formas de atuação para os cidadãos e os não-cidadãos (inimigos), e em sendo a cidadania na América Latina status de difícil atingimento, ou seja, condição de poucos privilegiados, não se estaria relegando ao grande contigente populacional o papel de incômodos a serem eliminados pela força bélica das agências de punitividade?”
4 A Criminalização da Miséria
A partir da Revolução Industrial entramos em uma sociedade marcada pelo consumo em massa. O homem passou a estruturar sua forma de sobrevivência e dignidade em razão da capacidade/necessidade de consumir bens e acumular patrimônio, estabelecendo-se uma íntima relação entre cidadão e consumidor. Parece inevitável neste contexto a sobreposição valorativa do ter em relação ao ser, relegando à condição humana uma posição secundária e descartável.[23]
Transportando esse contexto para a realidade periférica/marginal[24] da América Latina, em especial o Brasil, percebe-se que tais problemas tendem a agravar-se ainda mais. Pode-se dizer que aqueles indivíduos que não detêm recursos econômicos estão não apenas excluídos das relações de consumo, como também de todo contexto social, de forma a lhes serem privados valores mínimos de dignidade. Basta uma pessoa perder o emprego para desencadear toda uma série de problemas, tais como: assistência médico-sanitária (saúde), pagamento de escola e cursos profissionalizantes (educação), pagamento do aluguel (moradia), alimentação, acesso à justiça (precariedade da Defensoria Pública), dentre inúmeros outros.
Segundo Fábio D’Avila[25], é neste contexto que se abrem oportunidades para a exclusão do homem de sua condição de pessoa. Face à contínua incapacidade de adaptação às regras impostas pelo poder público, bem como sua total inutilidade, improdutividade e miserabilidade, observa-se a segregação absoluta de determinados indivíduos, que acabam, inevitavelmente, sendo destituídos da condição de cidadãos.
Em uma sociedade dita de consumo, é possível afirmar que o status de cidadão está condicionado à capacidade de consumir. A perda dessa condição se dá justamente em decorrência da ausência da “mão” do Estado na esfera social.
Integrando esse tema às Ciências Criminais, Salo de Carvalho[26] argumenta que
“ao descartar a pessoa como valor, visto supérflua nesta nova ordem, projeta-se a necessidade de maximização dos aparatos de controle penal/carcerário. A alternativa ao Estado providência, portanto, passa a ser o “Estado penitência”, configurando uma máxima que parece ser a palavra de ordem na atualidade: Estado social mínimo, Estado penal máximo. […]
Gesta-se, no interior dessa ideologia, uma saída plausível para aqueles que foram destituídos da cidadania: a marginalização social potencializada pelo incremento da máquina de controle penal, sobretudo carcerária.”
Frente a essa realidade, as conseqüências do processo de criminalização refletem-se em um sofrimento ainda maior dessa massa populacional vulnerável e excluída, que se torna permanentemente violentada em sua dignidade e integridade. Desenvolve-se nos dias atuais um Estado policial compelido a responder às desordens causadas pela miséria, configurando-se naquilo que Loïc Wacquant[27] chama de “ditadura sobre os pobres”.
Observa-se claramente uma opção pelo discurso jurídico-penal policialesco e militarizado de combate ao inimigo, em detrimento de políticas sociais integradoras. Ou seja, todo o problema social torna-se penal. Vera Malaguti Batista[28], ao abordar essa problemática, afirma que a guerra contra a pobreza tem sido substituída por uma guerra contra os pobres, inclusive com participação do exército, aparelhado com armas de grosso calibre.
A violência urbana, a “criminalidade clássica”, o “criminoso de rua” e o crescimento de vilas e favelas confirmam, pelo menos em parte, a insuficiência de um poder público comprometido com questões sociais. Como conseqüência, têm-se favorecido o fortalecimento de discursos não-oficiais de grande expressão, paralelamente ao poder estatal, como forma de inclusão social.
Entende-se, portanto, que não é por acaso que obras como O Abusado, de Caco Barcelos, Cabeça de Porco, de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athaíde e Estação Carandiru, de Dráuzio Varela; filmes como Cidade de Deus; e o rap dos Racionais MC’s representam a “voz” e os valores culturais de grande parcela da população brasileira.
De fato, essa população procura inserir-se de alguma forma em uma sociedade que tem em sua gênese a necessidade de consumir. Todavia, essa inserção é encontrada a partir de uma identidade com a vida criminal, onde a arma de fogo, o tráfico de drogas, o roubo, o jogo, a pirataria, o contrabando, a prostituição e a pichação constituem-se nos valores de uma sociedade abandonada pelo poder público.
Em 2007, os dados estatísticos apresentados pelo Departamento Penitenciário Nacional, no Estado do Rio Grande do Sul apontaram que os crimes que abrangem o maior número de detentos são os de roubo qualificado (4.724) e o tráfico de drogas (1.781)[29]. Um voltado contra o patrimônio e outro decorrente justamente de uma prática comercial ilegal, que movimenta um lucrativo mercado.
Já na década de 1970, Boaventura de Sousa Santos[30] denunciou um poder paralelo não-oficial, que chamou de Pasárgada, em alusão a uma das maiores e mais antigas favelas do Rio de Janeiro, relatando a sua dura construção e ocupação, considerada pelo poder público como juridicamente ilegal. Afirma Boaventura[31] que os moradores locais reuniram-se com o fim de defender seus interesses contra as pressões da burguesia urbana sobre o aparelho do Estado, pois pretendiam remover Pasárgada em bloco para os arredores os bairros marginais da cidade, libertando os terrenos para empreendimentos urbanísticos.
Nesse contexto, é importante referir que os moradores locais apresentavam um discurso jurídico dominado pelo uso do topoi[32], aberto e permeável às influências de discursos afins, “eficaz antídoto ao legalismo”[33], que se adéqua de acordo com o auditório, pois quem soluciona os problemas locais vive no mesmo ambiente e conhece o quadro cotidiano.
Os moradores criaram associações, que incorporaram um sistema jurídico próprio, sujeito aos influxos da realidade social. Em que pese a não profissionalização daquele que exerce as funções jurídicas em Pasárgada, pode-se afirmar, a partir de Boaventura, que esse discurso tende a apresentar um espaço argumentativo mais amplo e adequado.
Os anos passaram, e hoje observa-se que as associações de moradores já não produzem um discurso tão pluralista. Pelo contrário, são controladas por facções criminosas empresarialmente organizadas ligadas ao tráfico de drogas e de armas, que ditam suas regras através do medo. Em contrapartida, ergue-se uma política criminal punitiva que criminaliza, etiqueta e elimina seletivamente do convívio social aqueles que vivem em “Pasárgada”, excluídos das relações de consumo, portanto, não-consumidores.
Segundo Aury Lopes Jr.[34]:
“a sociedade coloca o indivíduo não-consumidor à margem (literalmente marginal), introduzindo-o no sistema penal, que na sua atividade de seleção atuará com toda dureza sobre o rotulado, o etiquetado, o não-consumidor. Até porque quem não é consumidor não é visto como cidadão.”
A idéia de que algo precisa ser feito para garantir o funcionamento do organismo social acaba legitimando a utilização do direito penal para eliminar o elemento disfuncional, garantindo, assim, a ordem pública e a estabilidade social.
De fato, trata-se de um modelo que se aproxima das políticas internacionais de combate ao terrorismo, enxergando no “outro” a figura do inimigo, permitindo uma reação punitiva mais incisiva, com mais rigor e maior exemplaridade, mesmo que com isso se estabeleçam as maiores injustiças e atrocidades contra o ser humano, destituído de sua irrevogável condição de cidadão.
5 Considerações Finais
Por fim, cumpre destacar, possíveis soluções para a apontada contaminação assimétrica do direito penal contemporâneo. Dessa forma, faz-se necessário buscar sua efetiva adequação ao cenário brasileiro de 1988.
O apanhado teórico aqui realizado permite-nos constatar desde logo que, a partir da segunda metade do século XX, consolidou-se no Brasil e em quase todo o cenário ocidental um modelo de constitucionalismo que pôs fim ao positivismo legalista.
Restou instituído, a partir de então, um discurso jurídico com ampla positivação de direitos fundamentais, cujo fio condutor está diretamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana. Legislação, doutrina e jurisprudência tendem (ou pelo menos devem tender) a convergir nesse sentido.
Em larga medida, esse quadro encontra justificativa a partir das atrocidades contra os direitos humanos, praticadas pela Alemanha nazista, contribuindo para o despertar de uma consciência ético-axiológica do Direito.
Vale aqui retomar-se a idéia de que, na visão do positivismo legalista, o Direito era concebido estritamente como um sistema puro e fechado de regras. Aos princípios era relegado um papel, dito secundário, de auxiliar no preenchimento de lacunas de orientar a atividade interpretativa.[35]
Entretanto, tem-se que o cenário nacional, a partir de 1988, estabeleceu a construção de uma nova abordagem do Direito. Ensejou-se a abertura do sistema jurídico, representado por uma “malha jurídica” que não se constitui apenas de regras, mas também de princípios e valores que se hierarquizam axiologicamente na tópica incidência, com vistas à concretização de um Estado Social e Democrático de Direito.[36]
Ainda assim, inobstante a mudança do quadro político brasileiro, caracterizada pela passagem do autoritarismo para a democracia – inclusive com a positivação do princípio da dignidade da pessoa humana, no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal – observa-se que a estrutura do sistema de justiça criminal ainda não está claramente adequada ao modelo propugnado pelo Estado Democrático de Direito. Em razão disso, pode-se dizer que vem sofrendo um momento de crise de legitimidade de seu poder punitivo.
De fato, a dignidade da pessoa humana é hoje concebida, simultaneamente, como limite e tarefa dos poderes estatais[37], exigindo postura do Estado que proporcionalmente respeite tanto a proibição de excesso quanto de insuficiência na sua proteção e conformação.[38]
Exige-se hoje dos operadores do Direito uma postura de respeito e proteção da integridade física e moral dos cidadãos. Nesse contexto, as normas constitucionais passam a desempenhar o papel de orientá-los na construção e na aplicação[39] do Direito. Segundo Aury Lopes Jr. [40]:
“Com a Constituição de 1988 e a instituição do Estado Democrático de Direito, rompeu-se um paradigma de maior relevância para o sistema jurídico. O novo modelo de Estado impõe uma nova forma de produção do direito e, acima de tudo, uma nova postura do operador jurídico, pois a função transformadora e promovedora que o Direito passa a desempenhar tem sua eficácia pendente da atuação daquele.”
Entretanto, observa-se que, na realidade brasileira, o sistema de justiça criminal está imiscuído da idéia de combate à criminalidade e aos criminosos, sob justificativa de manutenção da ordem pública e da estabilidade social, ainda que em detrimento de direitos fundamentais, relegando a dignidade do cidadão a um plano secundário.
A lição de Ingo Sarlet[41] é no seguinte sentido:
“Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático (e Social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), o Constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.”
A exemplo, tem-se que as proibições da pena de morte, da tortura e da aplicação de penas corporais, positivadas no artigo 5º de nossa Constituição, configuram, justamente, limites negativos ao exercício punitivo do Estado. Isso equivale a dizer que resta de fato representada uma postura radical do legislador constituinte contra o legado jurídico totalitário decorrente de uma doutrina positivista legalista.
A despeito disso, a realidade social nem sempre harmoniza-se com as normas programáticas estabelecidas pela Constituição Federal. É nesse sentido que toma lugar a veemente crítica de Aury Lopes Jr.[42] acerca do desrespeito das instituições jurídicas frente à Constituição Federal, principalmente no que diz respeito ao seu artigo 5º. São as suas palavras:
“Infelizmente nossa Constituição já supera os 15 anos de vigência e continua sendo (no recorte anteriormente definido) uma ilustre desconhecida em muitas delegacias, foros e tribunais brasileiros, incluindo, obviamente, alguns péssimos exemplos dados pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.
Diariamente nos deparamos, desde a tribuna, nas audiências, nas delegacias, com um certo desprezo quando é invocada a violação deste ou daquele dispositivo constitucional. Não raras vezes, presenciamos suspiros de enfado, de ironia até, quando citado o art. 5º da Constituição. É impressionante como é comum ouvirmos comentários do estilo: lá vêm eles com o discurso da Constituição, invocando novamente os tais direitos fundamentais, vamos deixar a Constituição para lá…não é bem isso que ela quis dizer…”
Ainda que eventualmente se considerasse a adequação de doutrinas de exceção às sociedades onde originalmente foram introduzidas (Estados Unidos e Alemanha), não se podem relegar os preceitos fundantes da nossa malha jurídica, compreendendo nossa realidade social a partir de uma perspectiva periférica.
O ser humano não é passível de qualquer espécie de “coisificação”, nem deve ser tratado como mero objeto frente ao poder punitivo do sistema de justiça criminal. Diante disso, há que ser permanentemente buscada a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais.
Advogado em POA/RS. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS
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