Ficou implícito no capítulo anterior que o direito penal é tão útil sem o direito processual quanto “os pés sem as pernas”. [1] Daremos aqui, visto a relevância do assunto, um capítulo próprio para a necessidade do processo.
O processualista civil Humberto Theodoro Júnior aponta como uma das características da jurisdição ser ela atividade secundária. Secundária – diz o escritor – porque, através dela, o Estado realiza coativamente uma atividade que deveria ter sido, primariamente, exercitada de maneira pacífica e espontânea, pelos próprios sujeitos da relação jurídica submetida à decisão.[2]
A secundariedade é característica da jurisdição cível. Nunca da jurisdição penal.
Na área criminal vige o princípio nulla poena sine judicio, o qual significa que a pena não pode ser aplicada sem processo anterior. Não basta para a aplicação e execução de pena uma mera atividade administrativa ou policial[3]. Não se admite nenhuma espécie de transação entre o agente e o Estado. Mesmo que o acusado manifeste expressamente sua culpa e seu desejo de submissão à pena, não poderá o Estado, sem o processo, executar o direito de punir.
O princípio nulla poena sine judicio, inserto na maioria dos ordenamentos jurídicos dos povos civilizados, encontra, em nossa sistemática, proteção no artigo 345 do Código Penal, que tipifica e sanciona o crime de “fazer justiça com as próprias mãos”: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”. Os romanos já puniam este delito, do que se conclui que a proteção do princípio não é recente.
Mas existiram e existem exceções ao princípio. Os exemplos históricos de inflição de pena sem processo nos são trazidos por Eugenio Florian: o procedimento chamado palatino, pelo qual o juiz, em caso de flagrante delito, podia impor uma pena sem procedimento; pactos sobre a pena entre o juiz e o acusado que ocorriam em Nápoles[4].
Dois exemplos atuais no exterior de exceção ao princípio, Cintra, Grinover e Dinamarco nos lembram do caso de submissão à pena (plea of guilty) do direito inglês; transação (bargaining) no direito americano entre a acusação e a defesa para que seja imposta pena de delito de menor gravidade que o imputado ao réu[5].
No Brasil, a Lei 9.099/1995, a qual dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, regulamenta a aceitação de proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade nas infrações penais de menor potencial ofensivo. Trata-se de hipótese excepcional de aplicação de pena sem processo.
Não podendo a pena ser aplicada, em princípio, sem processo, sendo o processo o meio pelo qual se aplica o direito penal para absolver os inocentes e condenar os culpados, sendo no processo que o acusado terá de pleitear sua liberdade, a importância do direito processual penal está em que a efetiva e correta aplicação de suas normas representa uma garantia individual do cidadão. É a garantia de que ninguém será punido sem a prévia formação da culpa em juízo. É a proteção contra o abuso. É o Estado de Direito “desconfiando de si mesmo”. Dando relevância a essa noção do processo como garantia individual estão as palavras de Ferri: “enquanto que o Código Penal é o ordenamento dos criminosos, aos quais se aplica uma vez comprovada sua participação no delito, o Código de Processo Penal é o código dos homens honrados, que podem, por erro ou maldade de alguém, ser suspeitos de um delito”[6].
A emancipação do direito processual do direito substancial é fato relativamente recente.
Hugo Alsina leciona que os romanos, frente a um caso concreto, não questionavam se tinham o direito, mas sim se tinham a ação. Direito de ação e direito substancial eram conceitos que não se distinguiam na doutrina romana[7].
Não faz muito tempo, alguns juristras, entre os quais estão Carmignani e Carrara, na Itália, e Feuerbach e Grolman, na Alemanha, comentavam o direito processual penal dentro do estudo do direito penal[8].
O primeiro código de processo penal só surgiu no início do século passado.
Atualmente, no Brasil, o direito processual penal dispõe de um Código próprio e é individualizado expressamente pela Constituição Federal que, no artigo 22, inciso I, letra b, resguarda a exclusiva competência da União para legislar sobre a matéria.
Entretanto, cumpre ressaltar, não são exatamente estes aspectos normativos que fundamentam a autnomia da disciplina. A razão da autonomia não está em que o direito processual penal tem um tratamento individualizado na lei maior ou em que possui um texto legal que agrupa suas normas. Estas circunstâncias representam apenas sintomas de uma autonomia que lhes é anterior.
A razão da autonomia do direito processual penal reside em que esta ciência contém método e objeto próprios. O método é o técnico-jurídico e o objeto é o processo penal.
O método técnico-jurídico como leciona Maggiore, é constituído de três momentos: a exegese, a dogmática e a crítica. No primeiro momento, o jurista interpreta a disposição legal para dela extrair os princípios que contém. A dogmática compreende a organização dos princípios extraídos com a exegese em institutos e a coordenação sistemática destes mesmos institutos. Em uma última fase, a crítica, inquire-se o valor de certos princípios no ordenamento jurídico em consideração às novas exigências do meio social, objeto das normas.
Direito processual penal e direito processual civil não se confundem. Os princípios que informam um e outro quando não são distintos, se apresentam neles com forma e intensidade diversas. Analise-se a importância das distintas conseqüências da indisponibilidade do processo penal e da disponibilidade do processo civil e se verificará o quanto se distanciam as duas ciências.
Se a autonomia do direito processual penal frente ao direito processual civil é facilmente percebida, mais o é ainda sua autonomia diante do direito penal. Entre o direito processual penal e o processual civil existem pontos de contato, mesmo porque são ramos de uma mesma ciência que é a ciência processual. Alguns conceitos básicos de direito processual civil são aplicáveis ao direito processual penal, tanto é que, não raro, o estudioso do processo penal recorre à doutrina processual civil e vice-versa. Há verdadeira exportação de conceitos, doutrinas e teorias, o que em nada prejudica o elemento lógico da ciência importadora, pelo contrário, o fenômeno auxilia o progresso científico das ciências jurídicas.
Já entre o direito processual penal e o direito que lhe é substancial, estas transações não ocorrem. Dois processualistas, um civil e outro penal, terão certamente, numa conversa técnica, muito mais assunto em um diálogo do que o estudioso do processo penal e o penalista. O direito penal torna possível a vida social, protegendo os bens jurídicos fundamentais. Delimilita o direito de punir do Estado e, por conseqüência, resguarda o de liberdade do cidadão. O campo de atuação do direito processual penal é diverso. Regula relações processuais que vinculam os sujeitos do processo. Não se preocupa com a estrutura do crime mas com temos outros, como o da competência, o da ação, o das nulidades, o dos recursos, etc…
Qual a finalidade direta do direito processual penal? Para que servem imediatamente as normas de processo? A resposta não pode ser outra: as normas de processo têm por objetivo regulamentar o processo mesmo. O processo penal é um conjunto de atos cuja forma, tempo, lugar e sucessão são regulados pelo direito processual. Este sistema jurídico normativo regula tanto o processo neste seu aspecto exterior, como também, por reflexo, em seu aspecto interior, que se constitui por um complexo de direitos e obrigações contido em relações e em situações jurídicas.
Para que serve esta regulamentação do processo? Estamos, a perguntar qual a finalidade indireta do direito processual penal. Regulamenta-se o processo para que com ele possa ser aplicada a lei penal. A aplicação da lei penal é, portanto, a finalidade indireta do direito processual penal.
Aplicar a lei penal não significa, apenas, punir o culpado, significa também absolver o inocente e garantir sua liberdade. Para que se aplique a lei penal, punindo culpados e liberando inocentes, é indispensável procurar a verdade real. Perseguir a verdade real quanto ao fato, quanto à personalidade do agente, quanto aos seus antecedentes, através do processo, é indispensável para que se aplique a lei penal. A persecução da verdade real é a forma pela qual o direito processual penal atinge seu fim indireto (aplicação da lei penal).
[2] THEODORO JÚNIOR. Humberto. Processo de conhecimento. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. tomo I, p. 46.
[6] apud RAMIREZ, Sergio Garcia. Curso de derecho procesal penal. 2a. ed. México, Porrúa, 1977. p. 13.
[7] ALSINA, Hugo. Tratado teórico-práctico del derecho procesal civil y comercial. Buenos Aires, Compañía Argentina, 1941, p. 41.
[8] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 3. ed. São Paulo, José Bushatsky, 1978, v. I, p. 9.
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