INTRODUÇÃO
Personalidade e Dignidade são atributos próprios do Ser Humano. Trata-se de caracteres que marcam a espécie humana, singularizando-a. São propriedades do homem, intrínsecas, por isto mesmo. Como são marcas vistas apenas na humanidade, devem ser preservadas. Precisam ser balizas indeléveis, colocadas em um grau de estima absolutamente diferenciado, posto que nenhum outro valor que se queira resguardar pode alcançar igual consideração por parte da sociedade e do Estado.
Da consideração de que Dignidade e Direitos da Personalidade são inatos à humanidade, resta assente que a função do direito é satisfazer pessoas. É esta sua natureza. A missão do sistema jurídico é, essencialmente, permitir a realização da Dignidade e dos direitos que a esta se associam, em especial os Direitos da Personalidade. Uma natureza e missão que só são cumpridas quando a pessoa é o componente essencial da fórmula jurídica.
Com a função de cumprir o anseio realizador da pessoa, a ordem constitucional trazida pela Carta Política de 1988 coloca cidadania e Dignidade, em si consideradas, como fundamentos da República. Ao mesmo tempo aduz para a necessária igualdade[1]. São parâmetros que condicionam o intérprete e o legislador ordinário, moldando o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte, marcando presença no ordenamento pátrio como cláusula geral da personalidade[2].
A cláusula geral referida se apresenta como ponto de partida para todas as situações em que algum aspecto ou desdobramento da personalidade esteja em pauta, estabelecendo a realização da Dignidade da Pessoa Humana como valor fundamental. Nas palavras de Perlingieri, uma decisão de prioridade a ser conferida à Pessoa Humana, que é “o valor fundamental do ordenamento, e está na base de uma série (aberta) de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela” [3].
A circunstância descrita indica uma complexidade axiológica no Código Civil brasileiro vigente. Uma paradoxidade[4] que exige atenção especial da atividade interpretativa, essencialmente no que diz respeito à Dignidade da Pessoa Humana. Esta assertiva tem por base a constatação de que ainda temos um código marcado pelo aspecto patrimonial, assim como a interpretação comum que deste se faz, e uma ordem pública constitucional imbricada de valores como solidariedade e isonomia substancial.
DIREITOS DA PERSONALIDADE: REFERÊNCIAS HISTÓRICAS
A consolidação da doutrina sobre os Direitos da Personalidade é um caminho longo e marcado por tortuosidades, iniciado, de modo embrionário, na Antiguidade Clássica.
A alusão à tortuosidade é marcante. Pensamos nisto porque é uma referência na história da humanidade a valorização do ter. Uma valorização percebida já entre os gregos, onde a noção de personalidade e pessoa estava associada ao papel social exercido.
Da consideração aposta, restam claros os porquês de a doutrina sobre a personalidade ser caracterizada por idas e vindas. Valorizar o ser em um mundo cujas marcas essenciais são status e patrimônio não poderia mesmo ser pacífico.
Visto o enfoque axiológico, um caminho histórico pode ser percorrido. Um caminho que deve ter o ponto de partida na História Antiga, tendo em vista as reflexões já presentes nesta época sobre o assunto. São reflexões que a nós parecem limitadas, mas, sem qualquer dúvida, contribuíram para a sedimentação da disciplina no mundo atual.
Iniciar um percurso histórico sobre os Direitos da Personalidade no mundo grego vai além do senso comum, porque estes direitos são marcados, na essência, pela subjetividade, e, na Grécia Antiga, vemos poucos traços subjetivos[5]. Por isto é de se destacar que – reconhecidos em toda a coletividade, como os conhecemos – os Direitos da Personalidade não foram objetos de consideração no mundo grego.
Às pessoas do universo grego se reconheciam apenas os direitos provenientes da condição social. Este é o grande diferencial do mundo grego, porque nesta perspectiva poder-se-ia falar de Direitos da Personalidade diferentes de acordo com a posição social, fato que a contemporaneidade rechaça até mesmo com a igualdade formal, mais ainda com a igualdade material.
Status pessoal, em si considerado, é o ponto de contraposição do mundo clássico com o mundo cristão, que emerge na Idade Média, estrutura o pensamento moderno e contribui para virada contemporânea. Esta contraposição é importante porque é a partir dela que se reconhece a condição de Dignidade em todos os Seres Humanos, consideração que redunda na construção da teoria dos Direitos da Personalidade, reconhecidos, a partir de então, em toda a coletividade.
A diferenciação de tratamento do indivíduo nestes períodos históricos é marcante. O Cristianismo faz referência a um homem que tem valor pelo fato de ser “Ser Humano”. É homem porque foi criado por Deus à sua imagem e semelhança, fato que o torna digno, portador de personalidade e capaz de alcançar a salvação. Todos, então, são portadores de Direitos da Personalidade. Todos têm liberdade, razão pela qual são responsáveis pelas opções que porventura façam.
Na Grécia, em outra medida, a idéia acerca de personalidade se baseava em status pessoal[6]. Personalidade, nesta quadra, estava associada a atos de heroísmos, como vitória em guerras ou jogos, por exemplo. Muito do que concebemos como inerente aos Direitos da Personalidade dizia, nesta ocasião, com o papel social desempenhado, e não com a condição de ser racional. Direitos da Personalidade, marcas que individualizam as pessoas no aspecto subjetivo, não eram reconhecidos em todos os integrantes do grupamento social.
Das referências assentadas evidencia-se que a palavra pessoa – com a acepção que a modernidade lhe outorga – não encontra correlato no mundo grego. Não se falava em pessoa, portanto não se fazia possível a consideração dos Direitos da Personalidade. Ainda assim, a partir de uma reflexão etimológica, chega-se a prósopon.
A expressão prósopon[7] foi utilizada em um primeiro momento para designar as máscaras utilizadas no teatro. Superada esta acepção passou a significar o papel encenado pelo ator em uma peça. Posteriormente passou a significar a função ocupada pelo indivíduo na sociedade, sem, contudo, significar o indivíduo em si mesmo[8].
A noção de pessoa como subjetividade humana, de que decorre a sedimentação dos Direitos da Personalidade, surge com a tradição teológico-cristã e sua reflexão sobre a trindade e a origem do homem. A este homem, feito à imagem do divino, deve se reconhecer os Direitos da Personalidade, afinal este é um indivíduo dotado de racionalidade.
A virada reflexiva quanto ao assunto em pauta ocorreu no Medievo. Este período, conquanto chamado por muitos de “a idade das trevas”[9], é o ponto de partida fático para o rompimento com a tradição clássica. Um rompimento repensado séculos depois com o racionalismo iluminista, que recobra parte da história antiga.
Pela limitação do conceito de personalidade (inerente ao mundo grego em razão da percepção primária de subjetividade interna) foi sobrelevada uma visão mítica da realidade. A referência ao mito, por outro lado, foi o ponto de partida para a construção de uma filosofia destacável. Buscava-se no conhecimento racional uma via de superação do misticismo.
Como se percebe, a filosofia nasce da necessidade de superação do pensamento mítico. A explicação dos fenômenos naturais através das divindades não mais satisfazia os anseios da população. Além do mais, o intercâmbio com outras culturas mostrava aos gregos sua limitação racional[10]. Assim, é o afã de compreender o mundo que justifica o desenvolvimento da racionalidade[11].
Na tentativa de compreensão racional da natureza já se podia perceber a figura do indivíduo. Nada obstante, este ainda se mostrava assombrado com os fenômenos. O homem ainda se via subjugado pelas forças naturais, precisando, então, de um maior desenvolvimento de sua visão racional.
No caminho grego de desenvolvimento da racionalidade é de se destacar a contribuição dos físicos jônios, a partir dos quais a noção de causa e efeito se torna mais latente, fator que se consolida na modernidade com o racionalismo de René Descartes. As causas passam a ser consideradas como do mundo dos homens, assim como os efeitos provenientes destas.
Superar o misticismo, como se percebe, corresponde à superação da idéia de caos. Configura, em análise teleológica, a elevação da razão[12], exponenciada na Idade Moderna com seu iluminismo.
O movimento racionalista grego pode ser identificado na matemática e na geometria. Tales de Mileto, a partir de conhecimentos geométricos, prevê eclipses. Anaxágoras já apontava ser o sol pedra incandescente, e não um deus. A vivência em polis permitiu uma integração mais acentuada. Assim os conhecimentos são repensados e divulgados com maior efetividade. O desenvolvimento da escrita e da moeda, somado a tudo isto, permitiu a criação de um espaço público para trocas e de consolidação do saber, a partir de então cada vez mais perene e partilhável por um número crescente de pessoas.
Do debate entre Sócrates e os sofistas houve a transferência das preocupações filosóficas da natureza para a vida social. Deste modo passa a interessar ao discurso filosófico o agir do Ser Humano, do que se inicia um movimento de desvelamento do universo das intenções, vícios e desejos.
Com todo o desenvolvimento que se possa destacar entre os gregos, não se pode falar em Direitos da Personalidade como marca atrelada à pessoa. Havia uma limitação pela noção de objetividade que associava o homem ao seu destino[13]. O homem nascia com um desígnio a cumprir. Não fazia sentido, portanto, se falar em autonomia da vontade.
O mencionado intercâmbio com outras culturas – que mostrou aos gregos sua limitação racional e lhes permitiu desenvolver a filosofia – contribuiu para a derrocada das Cidades-Estados, para a qual foi determinante Alexandre da Macedônia.
Alexandre da Macedônia contribuiu para a reflexão grega ao lhe apresentar um modo prático de ver o mundo. Desta contribuição despontaram[14] o epicurismo e o estoicismo, onde o indivíduo possui maior importância.
As reflexões epicuristas e estoicistas, na medida em que apontam para uma maior consideração do indivíduo, vão na direção do que consagrou o cristianismo séculos depois. Neste ponto é de se notar uma grande interseção[15] entre estes modos de encarar o mundo e o lugar ocupado neste plano pelos sujeitos. Um local privilegiado por levar em consideração as aspirações das pessoas e a responsabilidade destas em relação ao agir.
No mundo romano a noção de pessoa também é embrionária. Por isto mesmo não havia termos específicos para a designação de personalidade jurídica, capacidade jurídica e capacidade de fato. Havia uma confusão entre as locuções, justificada no fato de tais institutos não se ligarem à coletividade, mas apenas com determinados atores sociais.
A noção de papel social, que remonta a reflexão do teatro grego, é trazida para a problemática da personalidade. É de se dizer, assim, que, além das causas naturais[16], que nosso ordenamento consagra na configuração dos Direitos da Personalidade, era conditio sine qua non a conjugação de três modalidades de status[17]: libertatis, familiae e civitatis.
Quanto ao status libertatis é de se dizer que no Direito Romano os cidadãos, ou eram livres, ou eram escravos[18], sendo regra a liberdade. O escravo se assemelhava a um animal ou coisa, integrando o patrimônio de direitos subjetivos de seu possuidor. O escravo, por esta consideração, sofria numerosas restrições: não podia se casar legitimamente, possuir patrimônio, ser parte em juízo etc. Estava sujeito, ademais, à negociação e, até mesmo, a morte. Ficava, como se depreende, à mercê de seu proprietário.
Na realidade brasileira houve o instituto da alforria, através do qual se tornava livre o escravo. No mundo romano instituto semelhante se fez presente, a manumissão[19]. Um instrumento legal a partir do qual se fazia com que o escravo perdesse a condição escravocrata e se tornasse livre.
A perda da condição de escravo, que normalmente se dava pela manumissão, poderia ocorrer também por disposição legal. Mais uma vez similitudes com a realidade brasileira podem ser realçadas, vide as Leis do Ventre Livre, Saraiva-Cotegipe e Áurea, através das quais se concedeu aos escravos brasileiros do século XIX liberdade.
O status civitatis representava a dependência do indivíduo a uma comunidade juridicamente organizada. O Império Romano ainda é conhecido por sua grandeza. Nada obstante era prática romana a não-concessão[20] de cidadania, sobretudo aos povos dominados. Por isto se concebeu quatro classes de indivíduos: cives, latini, peregrini e barbari.
O status familiae era importante para a determinação da maior ou menor capacidade jurídica da pessoa. Em regra apenas o pater familias possuía plena capacidade jurídica. Aos poucos[21], entretanto, a capacidade foi sendo estendida aos alieni iuris ou filii familias.
A questão da capacidade é importante em Roma porque nesta realidade se mostrava legítima no plano legal a criação de classes de indivíduos, fato que nosso sistema estatuído não permite, muito embora nossa prática social ainda insista nesta realidade, vide os elevadores, que são sociais e de serviço. São diferentes não apenas em razão da utilização que destes se faz. São diferentes, sobretudo, em razão das pessoas que os utilizam.
A criação de classes de pessoas foi da ordem romana. Por isto, exatamente, muitos institutos ligados à capacidade podem ser detectados ao longo do sistema. Exemplo disto é a chamada capitis deminutio, percebida na doutrina de Cretella Júnior da seguinte forma:
“mudança de estado ocasionada pela perda do status libertatis, civitatis ou pela mudança do status familiae. Sendo a personalidade jurídica integrada por estes três elementos – libertas, civitas, familia, a deminutio pode recair sobre cada um deles, dando origem, então, a três espécies de capitis deminutiones – a máxima, a média e a mínima.”[22]
No mesmo seguimento da lição colacionada, aponta o professor Ebert Chamoun[23] para a existência de três possibilidades de perda da capacidade. Trata-se de possibilidades que tinham correlação direta com o modo romano de ver o mundo, ligado de forma estrutural à idéia de status. Assim, se se pode classificar um indivíduo de um modo ou de outro, não é de se estranhar a possibilidade de reclassificação. Quando se pensa no indivíduo a partir do papel que este desempenha na sociedade, soa razoável que, mudado o papel, mude também seu status.
Personalidade em Roma, como se percebe, é atributo eminentemente sectarista e determinado a partir de referências socialmente construídas. É de se considerar, então, a total divergência deste sistema com a construção constitucional brasileira, a partir da qual nenhum tipo de medida sectarista pode subsistir.
Conquanto a ordem posta pela Constituição da República Federativa do Brasil deixe muito clara a impossibilidade de interpretações do sistema que sejam excludentes, pensamos que, na problemática da transexualidade, nossa reflexão avança pouco em relação ao mundo romano. Na verdade, quando se diz em um projeto de lei que esta condição deve fazer parte da realidade registral do indivíduo, se criará, mesmo que pela via indireta, um cidadão cuja capacidade jurídica é diminuída[24].
Início e concessão dos direitos correlatos à personalidade jurídica, como se viu, é questão complexa no mundo romano. Em relação ao término da personalidade, todavia, não havia discussões. Esta terminava com a morte, sobre a qual não se conheciam presunções[25]. Nem mesmo nos casos de ausência se falava em morte. Assim como no Direito Penal moderno, havia uma noção de verdade real na aferição do fim da vida.
Fim da vida como suposto de término da personalidade é fato que nossa sociedade também considera, sobretudo em relação ao núcleo duro dos Direitos da Personalidade, exercíveis pelo seu titular, tão-somente. É de se considerar, entretanto, que, entre nós, os Direitos da Personalidade são projetados para além vida. A parte projetável destes direitos se encontra na orla e na periferia, essencialmente no que diz respeito aos reflexos pecuniários.
Quanto à proteção[26] dos Direitos da Personalidade em Roma, destaca-se que a maioria dos autores não se detém sobre o tema. Os que se dedicam ao assunto o fazem em breves linhas, caso de Elimar Szaniawski[27], que aponta ser a actio iniuriarum seu principal meio de proteção. A partir desta os ofendidos por injúrias tinham um meio de proteção.
Superado o período romano, chega-se ao Medievo. Neste período o cristianismo é o arcabouço que permite a colocação do homem na posição de ser racional e dotado de subjetividade. Esta doutrina afirma, desde os seus primeiros momentos, o indivíduo como um valor absoluto, exaltando o sentimento da Dignidade da Pessoa Humana[28] e proclamando uma organização da sociedade que permita o desenvolvimento pleno dos Direitos da Personalidade.
A consolidação do conceito de pessoa, para a qual foi ponto de partida o cristianismo, abre caminho para a formatação e fomentação dos Direitos da Personalidade como os concebemos. No sentido lecionado por Diogo de Campos[29], permite a libertação do homem, tornando-o portador de valores. Torna-o sujeito de direitos e impede a sua objetificação, no que sedimenta o terreno em que se plantam os ensinamentos sobre os Direitos da Personalidade.
À tomada de consciência do que é pessoa, marca indelével do cristianismo, segue um processo de secularização da crença. Deste fenômeno é notório o exemplo da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Esta obra é emblemática por propor uma conciliação[30] entre a crença e o intelecto, na direção de afastar a concepção de pessoa da perspectiva dogmática.
A secularização anotada está intimamente ligada à concepção de pessoa na Idade Média: ente moral dentro da doutrina cristã. O movimento de laicização, reclamado no renascimento, aponta para um homem que age e luta pelos seus direitos. Assim, é este homem quem fará brotar da pessoa natural o ente racional independente.
Chegada a Idade Moderna[31], grandes referências históricas podem ser destacas. Pela importância especial, todavia, devem ser ressaltadas as Revoluções Burguesas, a partir das quais se sedimenta que os Direitos da Personalidade são intrínsecos[32] à razão humana. São partes indissociáveis da substância racional de natureza individual. O indivíduo, racional em razão de sua natureza, é, a partir deste momento, o substrato que estrutura os Direitos da Personalidade.
Quando se afirma que todo indivíduo de natureza racional é Pessoa Humana, tem-se que a todos os indivíduos se deve reconhecer a condição de portador de Direitos da Personalidade. Assim, não se pode pensar em indivíduos que não tenham sua integridade psicofísica preservada. Esta integridade, pressuposto da personalidade, é realizada quando se respeita a Dignidade no que alude essencialmente: autonomia e racionalidade.
Considerar os Direitos da Personalidade nos casos de transexualidade, impele-nos a considerar que, conquanto a doutrina tenha avançado na direção do respeito à racionalidade e autonomia dos indivíduos, por um suposto de “preservação da ordem”[33], nossa prática ainda é limitada.
Falamos, como se sabe, a partir de um Estado laico. Ainda assim o discurso mítico se faz presente. O cristianismo, que permitiu a leitura da pessoa a partir da universalidade da condição humana, é usado nos dias de hoje como meio de negação de algumas realidades que estão na ordem do dia. Desta forma, especificamente em relação ao projeto de lei que visa a tratar da transexualidade, vemos idas e vindas que maculam o conceito de personalidade que nossa ordem parece ter querido preservar. Lobbies, cuja base está em uma interpretação do conceito cristão, são usados para a formatação de um projeto de lei cujo desenho se faz eminentemente segregador.
Pensar o Estado a partir do viés racional é importante para garantir sua integridade quando se fala em laicização. Esta consideração, que se deve ao Humanismo Renascentista[34], visa a conferir ao Ser Humano a condição de parte essencial da estrutura social.
O movimento humanista, que baliza o modo de pensar do século XVI, está na estruturação do movimento que sustenta as Revoluções Burguesas do século XVIII. Buscando inspiração no período clássico, há uma volta para as questões do homem e do mundo que este habita. Somado a isto, a Reforma propõe um modo de ver a realidade em que sucesso terreno se liga à salvação espiritual. Tais considerações permitem o fortalecimento da noção de indivíduo.
O movimento em exame permite uma releitura racional do mundo antigo. O discurso reformista, a seu turno, propõe uma leitura de mundo que atende a burguesia naquilo que a caracteriza. A idéia de liberdade, a princípio de marca religiosa[35], ganha corpo. Este movimento liberal estrutura as bases de uma eminente laicização, a partir da qual se separa Igreja e Estado no plano político.
O período examinado é de uma reflexão política intensa. Surgem as doutrinas contratualistas, com as quais se concede aos Estados uma noção de criação racional, afastada da idéia de Deus, ate então imperante. Na noção de Estado, criado a partir do pacto celebrado por indivíduos, que viviam no estado de natureza, se baseia o discurso sobre as liberdades políticas e os direitos e deveres dos cidadãos.
As cláusulas deste pacto, segundo Rousseau[36], refletiriam a vontade geral: união das vontades de cada indivíduo isoladamente, que legitimaria a existência do Estado político. O Ser Humano, nesta perspectiva, é fundamento constitutivo de qualquer sociedade. Infere-se disto, então, a necessidade de se resguardar os valores correlatos à Dignidade da Pessoa Humana e aos Direitos da Personalidade. Como o Estado é fruto da vontade de pessoas, este só faz sentido quando se volta para a realização das mesmas. Do contrário, descumprido estaria o contrato social.
A partir do contratualismo, enfatiza Grócio a teoria do Direito Natural[37], que traz em si a valorização da individualidade. Esta individualidade é importante porque coloca a razão como ponto comum a todos os humanos, guiando-os no sentido de uma secularização crescente do saber, conforme será observado durante todo o curso das Revoluções Burguesas[38].
Refletindo as mudanças ideológicas que se processavam no interior da sociedade, surge no plano jurídico a expressão “Direitos Fundamentais”, ocorrência da França da década de 1770. É concebida também a expressão “Direitos Humanos”[39], nos quais se incluem os direitos inerentes à Pessoa Humana e, portanto, os Direitos da Personalidade.
O reconhecimento efetivo dos Direitos Humanos é matéria controversa, tendo gerado a grande discussão entre Boutmy e Jellinek. Este atribuía tal feito à Declaração de Virgínia de 1776, promulgada na declaração de independência das colônias inglesas na América do Norte. Boutmy, a seu turno, afirmava terem os Direitos Humanos aportados originariamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Embora a Declaração de Virgínia preceda cronologicamente à Francesa, a história consagra que não logrou a universalidade desta. A Declaração de 1789, ainda que influenciada pelos debates travados na América, não se reduziu à cópia. Enquanto a Declaração Americana é concreta, precisando as modalidades de direito reconhecidas e definindo procedimentos jurídicos e políticos, a Francesa proclama direitos globais dos homens.
Ainda que se discuta sobre a estruturação dogmática dos Direitos Humanos no plano jurídico, não se pode negar a importância destes direitos para a solidificação dos Direitos da Personalidade.
A noção de solidificação dos Direitos da Personalidade nos parece acertada. Neste ponto, é de se considerar a lição do professor Tepedino[40], que detecta no século XIX o local propício para o desenvolvimento destes direitos como categoria própria.
Do que se desenvolveu sobre os Direitos da Personalidade, não parece acertado se afirmar que estes direitos foram criados pelas doutrinas alemã e francesa. Há, sim, um movimento doutrinário alemão e francês que contribui sobremaneira para a apreensão desta realidade. Como anuncia Tepedino, ocorre a categorização destes direitos como instância própria.
É de se dizer, contudo, que a consideração da pessoa como substância individual de natureza racional antecede ao movimento de apreensão anunciado. Esta consideração, que é base para a construção da personalidade como a concebemos, surge na Idade Média. Então, o que ocorre no século XIX, é um movimento de codificação e estruturação legal destes direitos enquanto categoria própria.
A consideração de que a construção doutrinária acerca dos Direitos da Personalidade surgiu no século XIX é negada na lição de Francisco Amaral[41]. Para este autor, como há entre os Direitos da Personalidade e Direitos Humanos e Fundamentais ligação de base, é de se ter que os direitos associados à personalidade começam a ser reconhecidos ainda no século XIII, quando se inicia o Constitucionalismo.
Independente da referência de que se parta, é inegável que o movimento oitocentista, que marca as grandes codificações, foi importante para a doutrina dos Direitos da Personalidade. Dizemos isto porque a racionalidade moderna serviu muito bem aos propósitos burgueses. Como serviu tais propósitos, não é de se estranhar a construção de um direito marcado pelo materialismo e fechado em si na intenção positivista de unidade, completude e coerência.
A partir do movimento de codificação toda a lógica do direito foi transferida para os textos postos. Em menor grau, ainda é assim. É verdade que nossos dias são marcados por um discurso de virada copernicana, mas na prática ainda somos tentados a reproduzir códigos. Há uma expectativa de segurança projetada na Lei Positiva. Uma segurança que apenas os códigos parece poder atender.
A CODIFICAÇÃO E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Não há direito sem pessoas. Direito existe para regular a vida dos homens em sociedade. O homem é ser social, como dizia Aristóteles. Por isto mesmo, por mais que os Direitos da Personalidade digam com aspirações da ordem individual, não há como se negar a necessidade dialógica entre individual e coletivo. Tal consideração é aposta porque tais direitos, em sua gênese, estavam associados tão-somente ao indivíduo. Mais ainda. Estavam associados aos bens que este indivíduo possuía.
Embora não se possa pensar um direito desligado da realização das pessoas, é fato que o movimento de codificação não partiu desta premissa. Por isto mesmo não é exceção a existência de regras positivadas que atendem mais à matéria que ao humano no que ele tem de substancial. Conquanto formalmente se negue isto, na prática ainda temos categorias de personalidade, tal como no mundo grego e sua consideração de que apenas determinados indivíduos seriam ouvidos.
O marco divisor do Direito Civil quanto à codificação é o Código Napoleão, publicado em 1804. Inspirado nos ideais racionalistas do Iluminismo não separou em dispositivo específico qualquer Direito da Personalidade. Foi considerado, ainda assim, completo pela Escola da Exegese, que o tinha por ordenamento sistemático e sem lacunas.
O primeiro diploma a positivar especificamente os Direitos da Personalidade foi a Lei Romena de 18 de março de 1895[42]. Em 1900 entra em vigor o Código alemão, que cuida do Direito ao Nome[43]. Em 1907 é publicado o Código Civil Suíço[44], que em seus artigos 29 e 30 aponta também para a necessidade de preservação do nome, atributo da personalidade humana.
A partir da vigência do Código Civil Italiano[45], em 1942, confere-se nova ênfase aos Direitos da Personalidade[46]. Em seis artigos do livro I, o diploma em comento cuida delle personne e della famiglia. Regulamenta, com isto, vários aspectos da personalidade, a saber: direito ao próprio corpo (art. 5º), direito ao nome (art. 6º) e sua tutela (art. 7º), sua tutela por razões familiares (art. 8º), direito ao pseudônimo[47] [48] (art. 9º) e direito à imagem, registrado no artigo 10.
Nos últimos tempos, nova etapa tem sido desenhada no que concerne aos Direitos da Personalidade. Trata-se da tutela específica destes direitos, que tem sido feita em capítulo próprio. Nesta direção caminharam o Código português de 1966 e o Código Civil brasileiro em vigor.
O tratamento dos Direitos da Personalidade em capítulos próprios, como ocorre com nosso Código Civil vigente, parece salutar. Não que a tutela conferida pela constituição seja precária. Não se trata disto. Não se pode perder de vista, contudo, que, desde o Positivismo Jurídico direito equivale à lei. Parece correto se afirmar que tivemos verdadeira revolução doutrinária no sentido da consideração da força normativa dos princípios, sobretudo os inscritos em sede constitucional. É certo também, todavia, que esta mudança não é pacífica na prática jurídica.
A consideração do parágrafo anterior fica latente nas hipóteses de transexualidade. Não há qualquer dúvida de que ao transexual se nega Direitos da Personalidade. Não há dúvidas de que a estrutura constitucional pode permitir uma leitura da problemática, visando, sobretudo, à integração social, que se faz correlata à Dignidade e a solidariedade.
Na prática, vê-se que a possível leitura integrativa, solidária e digna, não ocorre. Há um jogo de poder, no sentido do que propugna Bourdieu, que legitima a atuação jurisdicional no fato da necessária tutela estatal, e não na qualidade do serviço ofertado à população.
Neste seguimento, como falam muito alto os conceitos e preconceitos dos julgadores quando não há um parâmetro objetivo positivado, mesmo que se possa defender a não-necessidade da tutela dos Direitos da Personalidade na perspectiva codificada, em vista da chamada virada copernicana que impõe uma leitura do sistema à luz da constituição, logo, da Pessoa Humana, vemos com bons olhos o resguardo de um espaço próprio e positivado para o tratamento de direitos afetos à personalidade. Pode ser que evoluamos para um momento de material revolução copernicana. Enquanto isto, ainda é bom um código, ou mesmo leis esparsas, que elucide o espírito constitucional.
O DIREITO BRASILEIRO E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE: UMA BREVE HISTÓRIA CONSTITUCIONAL
As constituições brasileiras sempre consagraram os direitos e garantias individuais[49]. Merece destaque, nesta linha, a Constituição do Império, que em seu artigo 179 apontava para uma série “Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”.
Da leitura do caput do artigo sob exame observamos que estão afastados de sua tutela os escravos e estrangeiros residentes no País. É de se apontar, neste sentido, que a tutela à personalidade na realidade do Brasil-Império era semelhante ao regime vivenciado em Roma, em que havia regimes de tutela absolutamente diferentes e determinados pelo local que o indivíduo ocupava na escala social.
Os Direitos da Personalidade consagrados na Carta Imperial são liberdade (caput), inviolabilidade de domicílio (inciso VII), direitos autorais (inciso XXVI) e segredo de correspondência (inciso XXVII), todos inscritos no artigo 179 da aludida Constituição.
A liberdade de religião, inscrita no inciso V, era condicionada. Existiria alvedrio se se respeitasse a religião oficial: “ninguém pode ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública”.
A liberdade prevista no inciso V se assemelha à liberdade do consumidor americano interessado em comprar um carro Ford no início do século XX. Nesta época teria sido dito pelo fundador da empresa, Henry Ford: “você pode comprar Fords de qualquer cor, desde que preta”[50].Esta pseudo liberdade custou à empresa a liderança mundial na montagem de veículos, como a história anuncia.
Hipocrisias sistêmicas cobram um preço, muitas vezes alto. À empresa uma liderança mundial que não mais recobrou. Ao sistema jurídico uma oportunidade de ter em si unidade, coerência e completude na porção material. Não basta, desta forma, se dizer que existem Direitos da Personalidade. Estes precisam ser vivenciados.
A Constituição da República Federativa do Brasil diz que homens e mulheres são iguais em deveres e obrigações. Ao fazê-lo, não diz ter partido da noção genética, gonadal, cromossômica, psicológica, social ou antropológica de gênero. Nada obstante, como eleva a Pessoa Humana à condição de vértice do sistema, não parece ser constitucional qualquer consideração que mitigue este valor axiológico. Por isto mesmo, ao se falar em realização de pessoas, não parece fazer sentido se afirmar que se pode ser qualquer pessoa, desde que biologicamente heterossexual.
A visão constitucional permite uma leitura ampliativa dos Direitos da Personalidade. Assim, ou se realiza no mundo fático esta leitura, ou se assume o desrespeito pelos Direitos Fundamentais. Direitos da Personalidade, como possibilidade de realização psicofísica, impele-nos a uma leitura ampliativa do conceito homem-mulher enquanto realidade gonadal.
Na Constituição de 1824, que propõe uma falsa liberdade, é de se dizer que a noção constitucional de regra contra majoritária, reclamada pela modernidade já estava presente. Ainda que embrionária, a noção de Direitos da Personalidade já apontava para um escudo contra o arbítrio estatal.
A Constituição de 1824, que se seguiu à independência proclamada em 1822, determinava expressamente (art. 179, XVIII) que se elaborasse o mais rápido possível um Código Civil e um Código Criminal. Atendendo a esta determinação surgiu rapidamente o Código Criminal do Império em 1830. A determinação de criação de um Código Civil, todavia, não foi atendida nos 67 anos que vigeu a carta sob exame.
Atender ao comando constitucional em parte é criticável em vários aspectos. À época, contudo, não se falava em mecanismos como o Mandado de Injunção. Por isto, nada se poderia fazer diante da inércia do legislador. Ainda hoje pouco se tem feito nesta matéria. Conquanto tenhamos evoluído muito na discussão sobre os freios e contrapesos, a teoria da repartição de poderes ainda não foi repensada para cumprir o espírito constitucional. Desta forma, quando muito, nosso Supremo Tribunal Federal faz equiparações, caso do Direito de Greve do servidor. A atuação do Poder Judiciário como legislador positivo ainda é vista como temerária.
A crítica a que se alude no parágrafo anterior tem um fundamento. O fundamento está no paradoxo Ter–Ser. Quando se está a cuidar de questões atinentes ao ter, a preocupação do sistema se faz clara. Quando se está em questão o ser, obscuridades são percebidas ao longe.
A liberdade é um Direito Humano Fundamental que diz com a personalidade. Isto é sabido. É sabido também que os códigos que cuidam de matéria penal visam, em análise teleológica, a garantir a ordem sob pena de ocorrer a privação de liberdade. Neste ponto devemos pensar, à luz dos Direitos Humanos, os porquês do Código Criminal de 1830.
O Código Criminal surge seis anos após a Constituição de 1824. Isto nos faz pensar nas razões de ser do próprio direito. Quando se está a lidar com a situação dos desfavorecidos, a celeridade se faz carne. Os destinatários dos Códigos Penais, em geral, não são atores sociais de cuja máscara saia algum som. Como não falam (ou se falam não são ouvidos) qualquer ordem pode lhes ser dirigida.
Ainda hoje é assim. Aconteceu na vigência da Constituição surgida para celebrar a Independência do Brasil e a história insiste repetir. Igualdade formal, a partir da qual todos são iguais perante a lei, não se reflete em uma igualdade da lei perante todos. Por isto mesmo, não é preciso muito esforço para se visualizar espaços de igualdade. Não é preciso ir longe para se perceber, por exemplo, que atributos da personalidade, como a honra, estão diretamente ligados à posição social ocupada. Assim, se se negativa o nome de um magistrado, a indenização é “x”, pouco importando sua conduta. Se a negativação é de qualquer do povo, qualquer quantia indeniza.
O Código Criminal, como se viu, foi elaborado rapidamente. O Civil, que também deveria ter sido criado, já que a determinação constitucional assim prescrevia, não saiu do plano das idéias. Mesmo se tendo atribuído a Teixeira de Freias sua confecção, nunca foi concluído.
Embora o esboço projetado não tenha sido promulgado, é de se destacar sua lição acerca dos escravos, sobre os quais assim se manifestava:
“cumpre advertir que não há um só lugar do nosso texto onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas, se esse mal é uma exceção, que lamentamos, condenado à extinguir-se em época mais ou menos remota, façamos também uma exceção, um capítulo avulso na reforma de nossas leis civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade; fique o estado de liberdade sem seu correlativo odioso. As leis concernentes à escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas à parte e formarão nosso Código Negro.”[51]
Embora o discurso do professo baiano seja bem construído, não nos parece que negar a realidade seja a melhor técnica. Nesta linha, sabendo-se que a escravidão é pavorosa pelo que representa, especialmente na negação dos Direitos Humanos, soa contraditório se falar em Direitos da Personalidade quando existem status de pessoas. Em verdade, quando há espaços para a classificação de gente, não se pode falar em Direitos da Personalidade, pois só se pode falar destes direitos quando se tem assente que todos, indivíduos portadores de natureza racional, são considerados pela fórmula do sistema.
Ainda que a fala em personalidade em um contexto de classificação de pessoas traga em si um paradoxo de difícil solução, o artigo 16 do esboço comentado assim determinou: “todos os entes suscetíveis de aquisição de direitos são pessoas.” É de se ressaltar, contudo, a exclusão implícita no artigo, a partir da qual, a moda romana, não se considerava a pessoa a partir de sua condição humana, que é essencial. Não se seria pessoa em razão da forma racional individual e bípede, mas sim, e tão-somente, se o direito visse nesta configuração a possibilidade, ligada à idéia de aquisição de direitos.
Sabendo desta realidade, fica muito mais fácil se entender certas teorias sociológicas que falam da força do direito e de sua capacidade de auto-reconstrução e conhecimento. Esta força é tal que apenas o direito diz o que é direito. Esta realidade, somada à leitura positivada que se faz da disciplina, retira o aspecto valorativo desta consideração. Assim, se o direito diz que o transexual não é homem ou mulher, a quem se socorrer para resolver a contradição? O direito não pode, por definição, segregar ou excluir, mas se o fizer não há outra instância em que se possa reclamar o entendimento sectarista.
Ainda no projeto de Teixeira de Freitas, destaca-se o artigo 17. Neste se dizia que as pessoas são de existência visível (pessoa natural) ou de existência ideal, pessoa jurídica. Ainda assim, conquanto fale em pessoa natural, não explicita Direitos da Personalidade.
Vistas as realidades do Código Criminal e do projetado Código Civil, colacionadas em razão de terem sido determinadas pela Carta Impérial, o percurso constitucional deve ser retomado. Assim, chega-se à primeira Constituição da República.
As Constituições, como se sabe, são o paradigma da atuação estatal, já que concatenam os elementos essenciais de seu funcionamento, enunciando garantias fundamentais. Sabendo-se disto, e tendo em vista a Proclamação da República, ocorrida em 15 de novembro de 1889, restou assente a necessidade de feitura de um novo texto constitucional, criado em 1891.
A Constituição Republicana de 1891 apresentava em seu Título IV, Seção II uma “Declaração de Direitos”. No que concerne aos Direitos da Personalidade é importante porque supera a noção de status, formalmente presente na Carta Política de 1824.
Com a Carta Política de 1891, pela primeira vez em nosso país, estende-se aos estrangeiros direitos e garantias individuais. Além disto, ressalta a liberdade dos negros, já formalizada na edição de Lei Áurea em 13 de maio de 1888.
Na Constituição de 1891 os Direitos da Personalidade ganham força. O artigo 72, no seu caput, consagra a “inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”. Nos seus parágrafos fala do sigilo de correspondência (§ 18), da inviolabilidade de domicílio (§ 11), do direito à propriedade industrial (§ 25) e do direito autoral (§ 26).
A liberdade de culto, diferentemente do diploma anterior, está plenamente albergada no parágrafo 3° do artigo 72. Uma liberdade surgida no contexto onde o Estado se torna cada vez mais independente da Igreja e deixa de fazer sentido se falar em religião oficial, fato na Carta Imperial.
Ainda no corpo da Constituição em exame deve ser destacado o artigo 78. Este dispositivo é importante porque aponta não ser exaustivo o rol de Direitos da Personalidade previsto na Carta Política, no que anda bem. Tal consideração, repisada em todas as constituições posteriores, é respeitável porque afasta o Ser Humano do mundo das coisas. É destacável porque não pretende resumir a Pessoa Humana a objeto. A exaustão, de modo diferente do que ocorre com os direitos reais, não é pretendida.
Na linha constitucional chega-se à Constituição de 1934, que vigeu até 1937. Esta trouxe algumas inovações. A primeira delas foi a presença de um “título especial para a Declaração de Direitos, nele inscrevendo não só os direitos e garantias individuais, mas também os de nacionalidade e os políticos.”[52] Esta metodologia foi repetida na demais Cartas, ressalvada a de 1937.
Em referência à Constituição de 1934 é de se comentar seu artigo 113, que no caput consagra a liberdade. Nos seus incisos aponta ainda para: sigilo de correspondência (inciso VIII), inviolabilidade de domicílio (inciso XVI), direito à propriedade intelectual, abrangendo o direito às marcas e patentes e direito autoral (incisos XVIII a XX). O artigo 114, complementando o sentido do que anterior, explicita entendimento de que o rol previsto na Constituição não é exaustivo.
Em 10 de novembro de 1937 foi outorgada outra Constituição. Consoante José Afonso da Silva, uma Carta “ditatorial na forma, no conteúdo e na aplicação, com integral desrespeito aos direitos do homem, especialmente os concernentes às relações políticas.”[53]
Não-obstante a relevante consideração do professor José Afonso, destacamos o disposto em seu artigo 122. Neste se fala em “preservação de direitos e garantias individuais”[54]. O caput faz referência à liberdade[55]. O inciso VI fala de “inviolabilidade do domicílio e de correspondência, ‘salvas as exceções previstas em lei’”[56].
Após a ditadura instituída em 1937, restabelece-se a ordem democrática com a promulgação da Constituição de 1946. Seu artigo 141, que cuida de direitos e garantias fundamentais, dispõe sobre a inviolabilidade do direito à vida e a liberdade (caput), sigilo de correspondência (§ 6°), inviolabilidade de domicílio (§ 15), propriedade das marcas e patentes (§§ 17 e 18) e o direito autoral (§ 19).
A Constituição de 1967, primeira do período militar que antecedeu à reabertura democrática em que se gesta a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tratou dos Direitos da Personalidade de modo semelhante ao regime anterior, trazendo em seu artigo 150 as seguintes disposições: vida e à liberdade (caput), correspondência e sigilo das comunicações telegráficas e telefônicas (§ 7°), inviolabilidade de domicílio (§ 8°) e criações industriais e artísticas (§§ 24 e 25).
A Emenda Constitucional número I, surgida no auge das determinações arbitrárias do AI 5[57], veio para restringir. Assim, conquanto seu artigo 153, caput, mantenha a fala de preservação dos direitos à vida e liberdade, os parágrafos 9° e 10 aludam ao sigilo de correspondência e a inviolabilidade de domicílio e os parágrafos 24 e 25 assegurem direitos autorais e de patentes industriais, é fato que o artigo 154 permite uma releitura restritiva do sistema. Na prática, então, a emenda 1 (que pelo seu porte também é chamada Constituição de 1969[58]) importou na supressão de direitos nas mais variadas esferas.
Enquanto a Constituição de 1967 é marcada pela arbitrariedade, a Carta Republicana de 1988 é cingida pela consideração da Pessoa Humana e da Dignidade que desta decorre. Por isto mesmo, há uma profusão de Direitos da Personalidade ao longo de seu texto. Não restam dúvidas, então, de que o elemento democrático foi respeitado neta Constituição.
De modo muito produtivo para uma Constituição denominada cidadã, a Carta brasileira de 1988 coroa em seu artigo 5º a vitória histórica do povo brasileiro, marcado pela opressão nos mais variados planos. As disposições protetivas deste artigo, por isto mesmo, se irradiam em direções múltiplas, servindo de proteção contra os abusos estatais e até mesmo de particulares. Uma proteção que se faz perene e se pretende efetiva. Perene por não se sujeitar à possibilidade de reforma, o que é salutar em um país que em 19 anos (até 20/12/2007) produziu 56 emendas. Pretensamente efetiva, porque ainda não se conseguiu implementar as promessas da modernidade de modo destacável, daí a teoria da “constituição dirigente adequada a países de modernidade tardia”[59].
Do examinado artigo 5º podemos destacar Direitos da Personalidade essenciais: vida, liberdade, honra, sigilo, intimidade, imagem, criação intelectual, dentre outros. A expressão ampliativa por nós usada se justifica porque o regime dos Direitos da Personalidade não se resolve em numerus clausus, sobretudo em um regime constitucional que assegura expressamente (artigo 5º, § 2º) a possibilidade de outros direitos desta categoria se decorrentes de princípios ou de tratados internacionais.
É de se destacar que os direitos de cada indivíduo, sobre todas as projeções de sua personalidade, já estão protegidos no artigo 1º, III da Constituição Republicana em vigor. Ao se consagrar a Dignidade da Pessoa Humana, tem-se que vida digna implica em se ter, como pressuposto, o respeito a todos os aspectos físicos, psíquicos e intelectuais de cada Ser Humano.
Esta questão é absolutamente importante para o tema da transexualidade. Conquanto já tenhamos dito em outras passagens do texto, cabe ressaltar mais uma vez que a noção depreendida da Dignidade da Pessoa Humana surge para valorar os Direitos da Personalidade, in caso a idéia de integridade psicofísica.
Integridade, historicamente vista na perspectiva biológica, deve ser vista sob um enfoque valorativo. Assim, quando se pensa neste Direito da Personalidade na perspectiva constitucional (não nos esqueçamos da Dignidade), resta assente que a leitura deve ser para além da noção formal de integridade. É preciso se compreender integridade física, e, sobretudo, psíquica. Na psique se realizam as pessoas, seres racionais e dotados de autonomia. Se racionalidade e autonomia estão no âmbito psíquico, não vislumbramos outra leitura para a integridade que não contemple a realidade interna do indivíduo.
A valoração na leitura da integridade é um ponto crucial no estudo do Direito da Personalidade quando se discute transexualidade. Assim, quando o artigo 13 do Código Civil impede a disposição de parte do corpo, não se pode ler uma impossibilidade de (re)configuração do corpo, que ocorre com o transexual por ocasião da transgenitalização.
Da leitura do artigo 13 entendeu os juristas que participaram da I Jornada do Conselho da Justiça Federal que a idéia de exigência médica contida no diploma deveria englobar a noção o aspecto psíquico. Aduziram que quando se fala em bem-estar não se está assegurando apenas integridade física, fato que nos parece absolutamente convergente com a ordem constitucional vivenciada.
No item 1.6 do capítulo primeiro discutiu-se a necessidade da colocação da Pessoa Humana no centro do ordenamento jurídico. Para tanto aduzimos algumas considerações sobre a noção de Direito Natural e Positivo, idéias que pensamos dever ser retomadas para o desenvolvimento dos Direitos da Personalidade.
DIREITOS NATURAL E POSITIVO NA TEMÁTICA DA PERSONALIDADE
O embate entre as vertentes naturalistas e positivistas marca a Filosofia do Direito no início da Idade Contemporânea, quando emerge o Positivismo Jurídico como contraposição[60] estrutural ao Direito Natural.
Já na Antígona, de Sófocles, se sustentava a existência destes direitos: “corpo de normas ideais não-escritas, opostas aos estatutos reais e imperfeitos da vida cotidiana”[61] Na Idade Média, com o domínio da Igreja[62] e aceitação dos dogmas cristãos, estes direitos foram reconhecidos como sendo superiores a quaisquer outros e passíveis de serem apreendidos pela natureza humana. Na Idade Moderna o racionalismo ganha força e domina as correntes de pensamento.
Com o racionalismo[63] da Idade Moderna se assistiu uma intensa proliferação da proteção aos Direitos Individuais, com os quais se visava, a princípio, proteger o homem, individualmente considerado, da opressão estatal, não havendo preocupação em se ver tais direitos em relação aos particulares, daí o “tudo fazer, tudo poder”, que redundou em um liberalismo marcado pela exploração.
No ordenamento contemporâneo, ao menos em tese, vê-se uma ordem de direito que se mostra cada vez mais valorativa e menos descritiva. Uma possibilidade de releitura que deve muito ao movimento neoconstitucionalista[64], que propõe um diálogo entre Direitos Natural e Positivo. Um movimento que considerada a autonomia do Direito Positivo, mas, que, a um só tempo, reclama valores morais para legitimar o direito como um todo.
A discussão sobre as grandes correntes a partir das quais o direito tem sido visto historicamente foi trazida para o corpo do texto por permitir uma melhor compreensão sobre a transexualidade. Diz-se isto porque, a se fazer uma leitura meramente positiva do sistema, o fato da não-previsão de reconhecimento legitimaria certos entendimentos com viés sectarista, como os vistos no tópico a cuidar da jurisprudência.
Apontadas as concepções naturalistas e positivistas em breves linhas, é de se dizer que cumpre ao indivíduo, força motriz do fenômeno jurídico, dirigi-lo de modo que assegure o desenvolvimento pleno da personalidade e os direitos que a esta são inerentes. Tudo isto dentro de um espaço social cada vez mais complexo e marcado pela diferença.
Pensar o direito na quadra descrita, cuja marca é a multiplicidade notória, significa brindar com os valores cristãos presentes em Hegel: “o imperativo do Direito é, portanto: sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas”[65]. Este mandamento de respeito, cujas bases estão fincadas no ideário cristão, deve ser trazido para toda a realidade, sobretudo judiciária. Sabendo que é o direito quem pode se dizer, não mais atende a seus anseios qualquer resposta. A resposta deve ser a que se molde ao espírito da Constituição.
Mesmo que Hegel parta da perspectiva laica, não há como deixar de considerar que sua lição traz em si a máxima do cristianismo, inscrita em Levítico 19, 18: “não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Assim, ou se respeita o próximo como a si mesmo, lhe permitindo viver a diversidade que a solidariedade impele, ou o direito não se apresentará valorado. Será apenas uma disciplina que parte da referência objetiva do positivismo para dizer que “a” é pessoa, e que “b” não, realidade que a ordem jurídica constitucional diz não mais ser possível.
CONCEITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Após ter sido percorrido o histórico dos Direitos da Personalidade, cumpre-nos apontar como estes direitos têm sido percebidos e apresentados na atualidade. Um momento em que parece se tornar cada vez mais clara a noção de que a causa e objeto do Estado são as pessoas.
Durante muito tempo a noção de personalidade estava associada com a possibilidade da contração de direitos e obrigações. Na perspectiva positivista que defende Kelsen, a capacidade abstrata para possuir direitos e contrair obrigações na ordem civil[66]. Caracteriza, nesta concepção, a decorrência jurídico-normativa de um sistema posto que assegure tais possibilidades de acordo a parâmetros que o ordenamento estatui.
Conquanto a perspectiva positivista seja defensável na esfera dogmática, não nos parece ser este o espírito preservado em nossa Constituição da República. Por ser assim, por entendermos que o direito deve ser lido a partir da constituição, que consagra a Pessoa Humana, parece-nos que a personalidade se liga e se realiza no Ser Humano. Desta forma, ainda que se possa abstrair eventual privação de um Direito da Personalidade pelo ordenamento jurídico, esta privação não se mantém de per si. Não há meios de esta se manter caso contrarie o regime depreendido da Dignidade.
Na linha tracejada, parece-nos producente a visão jusnaturalista que afirma serem os Direitos da Personalidade, no chamado núcleo duro, inerentes à própria natureza humana, ocupando posição supra-estatal[67]. A positivação, por isto mesmo, é um meio de se garantir o exercício dos mesmos e de assegurar coercitividade e possibilidade de exigência, e, jamais, um veículo a partir do qual se possa negar direitos.
Serpa Lopes[68] define os Direitos da Personalidade como sendo atributos inatos ao indivíduo. Verdadeiras projeções biopsíquicas integrativas da Pessoa Humana que se constituem em bens jurídicos assegurados e disciplinados pela ordem jurídica imperante.
A definição de Serpa Lopes nos parece muito produtiva, porque não parte da premissa de que os Direitos da Personalidade são aqueles que a ordem jurídica estatui. Esta consideração se apresenta válida porque não se pode deixar de considerar que os direitos em exame não se encerram na sistemática dos numerus clausus. Ademais, existiriam antes mesmo do Estado, porque estão na ordem de constituição dos indivíduos e é a partir da reunião destes que o Estado é formado.
Na linha reflexiva que se percorre, tem-se que os Direitos da Personalidade são atributos jurídicos que se convertem em projeções da Pessoa Humana. Por isto mesmo são reputados direitos subjetivos privados de caráter não-patrimonial. Trata-se de direitos com os quais se visa a proteger a pessoa em face de todos os demais, sendo oponíveis erga omnes. São essenciais ao resguardo da Dignidade Humana. São, por esta razão, universais, absolutos, imprescritíveis, intransmissíveis, impenhoráveis e vitalícios.
No século XIX, quando eram percorridos os primeiros passos no estudo dos Direitos da Personalidade, surgiu a controvérsia acerca de como os definir. Para tanto foram consolidadas duas posições antagônicas. De um lado os que acreditavam tratar a personalidade de um todo indivisível. Do outro os que asseguravam ter a personalidade variadas projeções, entendimento que deu corpo à chamada Teoria Atomista.
A Teoria Atomista ganhou maior número de adeptos, principalmente porque permitia uma tutela mais concreta destes direitos. Ao anunciá-los de forma separada permitia a construção paulatina do instituto, isto é, permitia que se amadurecesse a percepção jurídica no sentido de se reconhecer os direitos inerentes à personalidade. Esta teoria oferece um diferencial em relação à monista, porque não obrigava ao ordenamento reconhecer, de uma só vez, todos os caracteres que se associam ao regime da personalidade.
A questão monista ou atomista, conquanto aparentemente resolvida, volta à cena nos dias de hoje. Ocorre, porém, que, marcada por outro enfoque. O uso indiscriminado da teoria atomista levou a que muitos considerassem os Direitos da Personalidade típicos, isto é, reconhecidos apenas se positivados.
Não nos parece ser este o melhor entendimento. Os Direitos da Personalidade, no que realizam a Dignidade da Pessoa Humana, são anteriores ao Direito Positivo. O que este faz é reconhecer os caracteres associados à personalidade.
Como se percebe, não se trata da criação de direitos, mas de reconhecimento. Por isto pensamos não ser produtiva a sustentação de que Direitos da Personalidade são os que a ordem positiva assegura. A previsão positiva é importante, sim, em razão da cultura jurídica que prima pela segurança da subsunção. Esta importância, então, é conjuntural, e não estrutural. Justifica-se enquanto tivermos aplicadores do direito envolto nos velhos dogmas positivistas.
No momento atual é motivo de discussão, também, a noção da indivisibilidade da personalidade. É crescente a importância conferida à necessidade de se tutelar o maior número de projeções da Pessoa Humana, sobretudo seus reflexos psíquicos e intelectuais, que marcam sua racionalidade. Tais projeções, todavia, não mais devem ser vistas como taxativas. Ao contrário, é imprescindível que o direito proteja também aquelas não especificamente positivadas.
A personalidade deve ser entendida como um valor ilimitado a ser tutelado. Tal consideração não impede que o ordenamento jurídico regulamente de forma expressa suas vertentes mais relevantes. Isto ocorrerá no afã de se facilitar a aplicação do direito[69], mas não a constituição do mesmo.
Entendendo-se que a personalidade é um valor a ser preservado, resta pacificado que é obrigação de cada membro da sociedade agir de modo a prover a todos os demais as condições condignas de existência. Por ser assim, incluem-se entre os Direitos da Personalidade neste momento os relativos à saúde, física e psíquica, ao trabalho e ao meio ambiente. Além disto, com o desenvolvimento das relações interpessoais em sociedade, não há dúvidas de que novos direitos relacionados ao desenvolvimento da personalidade serão reconhecidos no corpo social.
Dentro do se propõe, tem-se que é preciso se promover um afastamento da noção de Direitos da Personalidade da perspectiva meramente individual. Consoante Diogo de Campos Leite[70], conquanto sejam estes Direitos Individuais por definição, a vida social impõe uma leitura coletiva dos mesmos.
No equilíbrio entre o individual e o social o homem se realiza. Assim se assenta que o direito do homem à própria vida não lhe permite dispor desta. Por uma identidade de razão, para que ele respeite e defenda a vida de todos os demais, é preciso que preserve a sua. É do ponto de vista da incessante busca por uma melhor convivência entre os homens (idealmente marcada pelo respeito) que deve avançar o estudo dos Direitos da Personalidade.
A EXPERIENCIA OITOCENTISTA BRASILEIRA: DE BEVILÁQUA A REALE
O Código Civil de 1916, de autoria de Clóvis Beviláqua, não continha disposição expressa sobre os Direitos da Personalidade. Esta lacuna é atribuída à materialidade que o diploma parecia querer preservar. Uma materialidade que alguns doutrinadores[71] afirmam estar presente no próprio autor do código.
Não-obstante ao caráter notadamente materialista do código de 1916, há artigos neste diploma que consagram disposições que salvaguardariam Direitos da Personalidade. Nesta linhagem podem ser destacados os artigos 666, X (direito à imagem), 671, parágrafo único (sigilo de correspondência) e 649, 650, parágrafo único, 651, parágrafo único e 658, responsáveis pela tutela do direito moral do autor.
O regime de 1916 começou a ser formalmente superado com o Anteprojeto Orlando Gomes, de 1963. Neste, pela primeira vez, aparecem positivados de forma expressa no corpo do ordenamento os Direitos da Personalidade. No livro relativo às pessoas estavam previstos dois capítulos: um sob a rubrica de “Direitos da Personalidade” (artigos 29 a 37) e outro especial sobre o direito ao nome (artigos 38 a 44).
O anteprojeto tratou, ainda, do direito de se dispor do corpo (inclusive do cadáver) em seis artigos. Cuidou do direito à imagem em um artigo, da autoria em outro e do direito ao nome em seis dispositivos.
O artigo introdutório (29) dizia que “o direito à vida, à liberdade, à honra e outros reconhecidos à Pessoa Humana são inalienáveis e intransmissíveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária”. Em seu parágrafo único dispunha que “quem for atingido ilicitamente em sua personalidade pode exigir que o atentado cesse e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de sanções de outra natureza.”[72]
O Projeto de 1975, de autoria do professor Miguel Reale, a partir do qual foi gerado o Código Civil vigente, tomou o caminho de cuidar dos Direitos da Personalidade de forma expressa. Tutela, nesta linha, as pessoas físicas nos seus artigos 11 a 21.
A doutrina vem tratando dos Direitos da Personalidade. O professor Orlando Gomes[73], por exemplo, divide tais direitos em direitos à integridade física e direitos a integridade moral. O professor Caio Mário da Silva Pereira[74] cuida do direito ao nome, direitos à integridade física, direito à vida e direitos à integridade moral.
O Código Civil de 2002, ao tratar dos Direitos da Personalidade, inova na ordem infraconstitucional brasileira. A tutela oferecida por este diploma aos direitos em comento é absolutamente nova em relação ao regime depreendido do código revogado. Uma mudança através da qual se insere a temática em capítulo próprio.
A inovação no plano infraconstitucional não é exatamente uma novidade na realidade brasileira, já que a Constituição da República Federativa de 1988 traz uma proteção que é, em si, até mais abrangente. Nada obstante, é de se considerar o aspecto trazido pelo novo Código Civil, já que, conquanto tenhamos um discurso que prime pela capacidade normativa dos princípios, nossa prática ainda é marcada por regras. Desta forma, sabendo que a realidade é esta, toda e qualquer alteração que venha para explicitar o conteúdo constitucional é bem vinda.
A proteção à pessoa é tendência marcante do direito atual e é este o ponto de partida para que o professor Tepedino formule sua concepção da “cláusula geral de tutela da personalidade”[75].
Os Direitos da Personalidade, como já se disse, são inerentes à pessoa e a necessária Dignidade que desta decorre. Disto surgem cinco marcos fundamentais: a) vida; b) honra; c) imagem; d) nome; e, e) intimidade. Marcos que se irradiam nas mais variadas projeções e com diversidades distintas. Por isto mesmo faz sentido a construção doutrinária no sentido de que tais direitos possuem projeções nucleares, de orla e de periferia. São projeções distintas porque podem levar a diferentes possibilidades de exercício.
Os marcos consignados são basilares porque não se pode pensar em Direitos da Personalidade sem a consideração destes. Ocorre, contudo, que uma consideração meramente formal não mais atende a estes preceitos. Nesta linha é de se considerar que ao pensar em vida deve-se ter em mente uma visão ampla. Vida é vida digna, e Dignidade se realiza quando se vivencia o respeito à integridade, física e moral.
A noção de integridade, que retomaremos por ocasião da discussão sobre a cirurgia de transgenitalização, é importante. Diz-se isto porque a idéia de integridade física não se mostra capaz de abarcar a temática da transexualidade. Integridade, neste tema, diz muito mais com a realidade psíquica do que com a idéia de preservação dos caracteres sexuais originários e grafados no corpo.
Voltando a discussão para os limites prescritos nos artigos do Código Civil, tem-se que os Direitos da Personalidade são irrenunciáveis e intransmissíveis, conforme prevê o artigo 11 do diploma em comento. Desta forma, não há que se falar em afastamento volitivo[76] de tais direitos. Pode-se, sim, falar em afastamento de sucedâneos, sobretudo patrimoniais, dos Direitos da Personalidade, mas não o afastamento destes direitos considerados em si próprios.
A noção de transmissibilidade é bem enfrentada pelo professor português Oliveira Ascensão. Com clareza singular apresenta a noção de “núcleo duro, periferia e orla”[77], dados que permitem uma compreensão valorada acerca dos Direitos da Personalidade.
Da lição do professor Ascensão resta pacificada a noção de que os aspectos fundamentais da Dignidade estão na essência dos Direitos da Personalidade. Uma consideração feita com base na premissa de que os reflexos da Dignidade são passíveis de reconhecimento por todos, motivo pelo qual merecem tutela valorativa. Um apontamento que considera os Direitos da Personalidade em círculos diferentes, delimitados de acordo com a maior ou a menor interseção com a Dignidade da Pessoa Humana.
A consideração aposta anteriormente se mostra importante e é dela que se vale o professor Ascensão para reconhecer os Direitos da Personalidade em três zonas de admissibilidade: núcleo, orla e periferia.
Na zona do núcleo estão os Direitos da Personalidade que merecem proteção em todas as hipóteses, caso da vida. A periferia abrange os aspectos que, embora formalmente associados a um Direito da Personalidade, não dizem com a “personalidade ôntica”[78]. Trata, portanto, de aspectos da vida privada que escapam ao objetivo substancial de defesa da intimidade pessoal. A orla, por fim, é marcada pelas situações em que a personalidade está implicada, mas com menor significado que nos aspectos nucleares. Neste campo se encontra a possibilidade de limitação voluntária do exercício dos Direitos da Personalidade, desde que em respeito às normas de ordem pública.
À temática que estamos a desenvolver interessa, com relevo, as referências do artigo 13[79] do Código Civil, pelo qual se impede a disposição de parte do corpo. O artigo sob exame, marcado por um discurso médico legitimante, aponta que, havendo exigência médica, não se discute a segunda parte do comando legal.
A associação do artigo colacionado com a transexualidade é clara. Exatamente por sito entendeu o corpo de juristas participantes da I Jornada do Conselho da Justiça Federal que a idéia de bem-estar psíquico deve ser trazida à discussão. Sendo assim, não apenas integridade física interessa ao tema. É preciso se ter integridade psíquica, sobretudo porque é na psique que se realiza a pessoa, e não na configuração dos órgãos genitais.
O artigo 14, que veda qualquer disposição de parte do corpo a título oneroso, é importante por ressaltar a indisponibilidade dos Direitos da Personalidade. Ressalta, em verdade, a consideração de que valores associados à personalidade não podem ser resolvidos na esfera pecuniária, no que vai ao encontro do discurso sobre a Dignidade da Pessoa Humana: digno é o que não se aprecia financeiramente. Nesta linha, a disposição gratuita (com fins humanitários ou altruístas) é possibilitada por permitir a realização de valores associados à Dignidade, como a solidariedade social.
Os direitos do paciente estão consagrados no artigo 15 do Código Civil. Neste seguimento se entende que ninguém pode ser constrangido a tratamento médico ou intervenção cirúrgica que implique em risco de vida.
A questão envolvendo os pacientes aponta no sentido da chamada colisão de Direitos Fundamentais, onde de um lado se tem a liberdade – marcadamente religiosa, neste caso – e o direito à vida. Muito embora estejamos acostumados a tratar desta discussão em sede de um multi-culturalismo distante, fato é que a realidade brasileira tem enfrentado casos desta ordem com certa freqüência, especificamente com os “Testemunha de Jeová”.
A liberdade religiosa de que se está a tratar é tema de nossa doutrina[80] e jurisprudência[81]. Este assunto se mostra importante porque, conquanto seja lugar comum se dizer do caráter absoluto dos Direitos da Personalidade, há hipóteses em que o confronto ocorre com direitos de mesma relevância.
Entre os artigos 16 e 19 encontramos a proteção ao nome da pessoa natural, calcados na necessidade de afirmação da individualidade humana. Sobre o assunto nos deteremos com maior vagar ao tratar da mudança de nome nas hipóteses de transexualidade.
A questão da transexualidade mais uma vez vem à tona porque vai de encontro a um pilar doutrinário que sustenta o nome civil: sua definitividade[82]. Nesta linha tem-se que o nome é definitivo, sendo possível sua alteração em hipóteses bem delimitadas, já que segurança jurídica é uma das razões do direito, e a mantença do nome é um meio que a garante.
O artigo 20[83] consagra a proteção da imagem: imagem retrato (aspecto físico) e imagem atributo, pela qual se pretende preservar a repercussão social da imagem. No ponto pertinente à repercussão social temos que a “imagem atributo” se associa ao regime do nome, visto que a este se impregnam os reflexos morais e os atributos pessoais do indivíduo. Nisto é o depositário da imagem pública da pessoa, trazendo consigo as impressões da coletividade sobre seu portador.
Finalizando o tratamento dos Direitos da Personalidade no Código Civil temos o artigo 21, através do qual se pretende assegurar o Direito à Intimidade.
Como se pode perceber, a previsão no Código Civil é importante para os Direitos da Personalidade, mas não encerra o assunto. Consideramos a importância da previsão por termos consciência que a prática jurídica no Brasil é marcada pela confluência de regras, motivo pelo qual não têm aceitação pacífica os princípios. Conquanto o discurso da máxima cogência e normatividade seja da seara comum, a prática é de um direito subsuntivo. Sendo assim, vimos com bons olhos o processo de positivação dos Direitos da Personalidade em código[84].
Embora nos pareça de bom tom a codificação, pelas razões apostas em notas, temos por plenamente válida a proposição doutrinária no sentido de que os Direitos da Personalidade não se encerram em uma política fechada, como os direitos reais. Ainda assim, é de se ter por producente a reserva de um capítulo próprio para estes direitos no Direito Civil, sobretudo porque marca a vivência de um regime que se diferencia do anterior. Esta consagração, conquanto pudesse ser depreendida do corpo constitucional, permite uma (re)elaboração da dogmática civilística[85], na qual os Direitos da Personalidade desempenham papel fundamental.
Direitos da Personalidade são fundamentais para se entender o momento pelo qual passamos. Isto resta assentado quando se considera que a pessoa foi trazida para o epicentro do sistema jurídico. Sendo assim, não se tem como ignorar o fato de que estes direitos são necessários à realização da personalidade e da Dignidade nas relações jurídicas. São caracteres próprios da pessoa, paulatinamente reconhecidos pela ordem jurídica no decurso da história.
Do que se apresentou, mostra-se producente mais uma vez se trazer à colação a lição de De Cupis. Em sua obra, referência na matéria, está assente que todos os direitos, à medida que conferem conteúdo à personalidade,
“poderiam chamar-se Direitos da Personalidade. No entanto, na linguagem jurídica corrente, essa designação é reservada àqueles direitos subjetivos, cuja função, relativamente à personalidade, é especial, constituindo o minimum necessário e imprescindível ao seu conteúdo. Por outras palavras, existem certos direitos sem os quais a personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor concreto: direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam todo o interesse para o indivíduo — o que equivale a dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal’’[86]. (destacou-se)
Direitos da Personalidade, então, são o suposto para a realização da pessoa. Existem em razão desta e se voltam à sua realização. São direitos ligados à gente, motivo pelo qual não se pode fazer acerca deste uma leitura que limite a “realidade ôntica”.
APONTAMENTOS FINAIS
Do regime da Dignidade da Pessoa Humana desponta a teoria acerca dos Direitos da Personalidade. Uma categoria de direitos que foi percebida de forma mais acentuada com a apreensão dos Direitos Fundamentais, cuja positivação inicial se deu no século XIII com a publicação da Carta Magna.
Os Direitos da Personalidade são extremamente importantes porque é a partir deles que a pessoa se realiza, sendo a inclinação para se titular direitos e deveres inatos. Uma possibilidade de se ser sujeito de direitos estruturada de forma ínsita, e não mais de acordo com o papel social desempenhado, como a história relata.
Definidos como as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa, bem assim as suas emanações e prolongamentos, os direitos da personalidade são aqueles que se voltam essencialmente à proteção da Pessoa Humana. Uma proteção que deve ser efetiva, daí a CRFB de 1988 ter positivado alguns direitos associados à personalidade, especialmente o “direito à vida, liberdade, segurança, intimidade, vida privada, imagem, direitos autorais, incluídas as participações individuais em obras coletivas, reprodução da voz e da imagem”, os dois últimos como inovações.
Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Conferencista do CONPEDI. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Concursado da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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