Resumo: O trabalho aborda a efetividade dos direitos fundamentais sociais, objetivando analisar a imbricação entre as questões ambientais e as questões econômico-sociais e a complexidade de seu enfrentamento e solução adequados. O desafio está na implementação do desenvolvimento sustentável e do desenvolvimento humano, conceito mais abrangente. A efetividade dos direitos fundamentais depende da observância do correlato dever de proteção por todos os corresponsáveis, e é sob esta dúplice visão que devem ser considerados na Constituição brasileira o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever do Poder Público e da coletividade de defendê-lo, assegurando a sadia qualidade de vida às presentes e futuras gerações (art. 225). São tomados como referências o Preâmbulo e as disposições inaugurais da Constituição de 88 que delineiam o perfil do Estado Democrático e Social de Direito, bem como a elogiada Política Nacional de Educação Ambiental. Esta política, em plena sintonia com os valores e parâmetros constitucionais, estabelece como objetivos, dentre outros, a construção de uma sociedade ambientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade, igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade e sustentabilidade, preconizando, ademais, a incorporação da dimensão ambiental às políticas públicas. O embate entre posicionamentos desenvolvimentistas e ambientalistas aparece bem nítido nas decisões judiciais envolvendo o licenciamento ambiental de grandes hidroelétricas; e a imbricação entre questões sociais e questões ambientais se revela de forma contundente nas invasões e ocupações irregulares: o confronto, neste caso, é entre o direito à moradia e o direito à saúde, à qualidade de vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. As ocupações irregulares devem ser evitadas mediante providências adequadas e uma vez ocorridas, as situações concretas devem merecer tratamento diferenciado conforme as peculiaridades de cada caso. Tais considerações conclusivas, defendidas neste texto, são resultado de reflexões a partir de subsídios hauridos nas pesquisas bibliográfica e jurisprudencial. [1]
Palavras-chave: Direitos sociais – meio ambiente – desenvolvimento humano – alternativas energéticas – ocupação irregular.
Abstract: Work addresses the fundamental social rights effectiveness, aiming to analyze the interlink between environmental issues on one side, and social and economic issues on the other, and the complexity of confrontation and suitable solution. The challenge lies in implementing the classic concept of sustainable development and the more complete concept of human development. The effectiveness of fundamental rights depends on compliance with the correlative duty of protection for all partners and is under this duplicitous vision that should be considered in Brazilian Constitution the right to ecologically balanced environment and the duty of public authorities and the collectivity of defend him, ensuring the sound quality of life for present and future generations (art. 225). Are taken as references the Preamble and the inaugural provisions of the Constitution of 88 that delineate the profile of the Democratic and Social State of Law, as well as the praised National Policy on Environmental Education. This policy, fully in line with the constitutional values and parameters, set objectives, among others, building an environmentally balanced society, founded on the principles of liberty, equality, solidarity, democracy, social justice, responsibility and sustainability, the incorporation of environmental considerations in public policies. The showdown between developmental positionings and environmentalists appears well clear in judicial decisions involving environmental licensing of large hydropower stations; and the interlink between social issues and environmental issues is so scathing in invasions and irregular occupations. The confrontation, in this case, is between the right to housing and the right to health, quality of life and ecologically balanced environment. The irregular occupations should be avoided by appropriate measures and once occurring, the concrete situations shall be treated unequally as the peculiarities of each case. Such conclusive considerations, defended in this text, are result of reflections from subsidies of bibliographic and jurisprudential lookups.
Keywords: Social rights – human development – environment – energy alternatives – irregular occupation.
Introdução
O trabalho aborda a efetividade dos direitos fundamentais sociais, objetivando analisar a imbricação entre as questões ambientais e as questões econômico-sociais e a complexidade de seu enfrentamento e solução adequados. Muito embora a Constituição Federal seja pródiga em assegurar a todos uma ampla gama de direitos fundamentais, não é tarefa fácil a tentativa de harmonizar os variados interesses, bens e valores tutelados, muitos deles conflitantes entre si, e pouco relevância é atribuída aos correlatos deveres cuja observância por todos é imprescindível para a efetividade daqueles mesmos direitos. Se já é um grande desafio a implementação do desenvolvimento sustentável, o desafio é ainda maior quando se busca o desenvolvimento humano. Como conciliar as teses desenvolvimentistas com as teses ambientalistas quando se está diante de projetos de obras de infraestrutura que causam significativo impacto ambiental, e que geram intensa polêmica, como a construção de grandes hidroelétricas na Amazônia? E quando se trata de loteamento irregular ou ocupação em áreas protegidas, como conciliar o direito à moradia com o direito à saúde, à qualidade de vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado? São questionamentos complexos que serão aqui esboçados com base em pesquisas bibliográfica e jurisprudencial, e os casos concretos trazidos à colação servirão para as reflexões pertinentes.
1. Direitos e deveres fundamentais na Constituição Federal: a dúplice visão do art. 225
A Constituição Federal de 88 é conhecida por assegurar uma plêiade de direitos e garantias fundamentais, não apenas individuais, mas sociais, definindo de forma bem clara, desde o Preâmbulo, a vocação do Estado Democrático e Social de Direito nela delineado, destinado a assegurar “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
A cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa aparecem como fundamentos do Estado Brasileiro[2], que tem como objetivos desafiantes construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos, sem qualquer discriminação[3].
Estreitamente relacionado à dignidade da pessoa humana está o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de cuja efetividade dependerá a sadia qualidade de vida de todos nós.
A Constituição ostenta um dos mais completos e avançados sistemas de tutela ambiental, composto pelos art. 225 e 170, inciso VI, pelas disposições relativas à competência concorrente e comum em matéria ambiental (arts. 24, VI e 23, VI, VII) e outras normas dispersas.
O elogiado art. 225, inspirado nos princípios da Declaração de Estocolmo (1972) e na Constituição Portuguesa de 1976, proclama em seu caput:
“Art. 225. Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
A Constituição Federal, ao mesmo tempo que assegurou o direito fundamental de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impôs, de forma obrigatória, o dever, a co-responsabilidade do Poder Público e da coletividade de protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, dever este fundado na solidariedade e na eqüidade intergeracionais .
É sob esta dúplice visão, de previsão simultânea do direito fundamental e respectivo dever de proteção que o art. 225 da Constituição brasileira deve ser analisado. Não pode ser olvidado o aspecto da co-responsabilidade, mormente diante da necessidade da conscientização pública acerca da relevância da proteção ambiental para a maior efetividade das normas ambientais na realidade brasileira.
2. A imbricação das questões ambientais com as questões econômicas e sociais: a necessária transversalidade
Continua sendo um grande desafio a implementação do princípio do desenvolvimento sustentável, tendo em vista a difícil conciliação entre desenvolvimento econômico-social e proteção do meio ambiente. Exemplo mais ilustrativo é a resistência dos Estados Unidos em ratificar o Protocolo de Quioto, retardando sua entrada em vigor, o que foi possível somente em 16 de fevereiro de 2005, com a ratificação pela Rússia, que também resistiu grandemente à ratificação. A adesão ao Protocolo importa para os países desenvolvidos dele signatários restrições à produção industrial para fins de estabilização das emissões dos gases do efeito estufa.
Hoje tem-se a correta percepção de que as questões ambientais estão imbricadas com as questões econômicas e sociais, e que a efetividade da proteção ambiental depende do tratamento globalizado e conjunto de todas elas.
Nesta linha de entendimento, é elogiável a visão holística e adaptada à realidade brasileira preconizada pela Política Nacional de Educação Ambiental, instituída pela Lei nº 9.795/99, que define como um dos objetivos fundamentais da educação ambiental “o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos”[4].
Tendo em vista as peculiaridades da nossa realidade, deve ser feita “a abordagem articulada das questões ambientais locais, regionais, nacionais e globais, o reconhecimento e o respeito à prioridade e à diversidade individual e cultural” (art. 4º, VII), “o estímulo à cooperação entre as diversas regiões do país, em níveis micro e macrorregionais com vistas à construção de uma sociedade ambientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade, igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade e sustentabilidade” (art.5º, V).
E cabe ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, o que levou o Ministério do Meio Ambiente a inserir a transversalidade como uma das quatro diretrizes de suas ações: a consciência ambiental deve ser compreendida “pela sociedade brasileira e situada nas ações de governo: não como a preocupação exclusiva de um setor, um Ministério, mas como um componente de todos os setores. A política ambiental do governo deve estar no Ministério dos Transportes, da Agricultura, de Minas e Energia, em todas as ações de todos os setores. … Dessa forma, poderemos planejar a infraestrutura pensando desde o princípio nas questões socioambientais e não mais somente quando, uma vez o projeto pronto, o Governo tiver de submetê-lo ao processo de licenciamento ambiental”[5].
A dimensão ambiental deve ser incorporada não apenas nas políticas e ações de governo, mas também nas políticas e ações da iniciativa privada e de todos os cidadãos, e com a preocupação de que o desenvolvimento sustentável seja implementado no sentido do desenvolvimento humano, conceito difundido pela ONU e que contempla quatro dimensões complementares e integrais: 1) pressupõe que o crescimento econômico, por ampliar a oferta de bens e serviços à disposição da população, é uma condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento humano; 2) que este não ocorre num contexto de exclusão social, pois tem de se processar em benefício das pessoas; 3) que estas têm de ter acesso a informações, conhecimento e bens culturais para a sua própria promoção; 4) que a forma de crescimento econômico atual não venha a comprometer a gama das oportunidades das gerações futuras, ou seja, o desenvolvimento humano pressupõe a sua sustentabilidade[6].
3. Alternativas energéticas, agronegócio e os passivos ambiental e social
O Brasil ocupa uma posição estratégica peculiar no cenário internacional pela disponibilidade de alternativas energéticas provindas de fontes limpas e renováveis; pela tecnologia desenvolvida para a produção do etanol e pelo potencial para exploração dos biocombustíveis, tornando-o celeiro de projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) nas áreas de produção e co-geração de energias alternativas.
Importantes questões estão a merecer a atenção dos Poderes Públicos e da sociedade brasileira para a adequada formulação ou correção de rumos das políticas públicas relativas às alternativas energéticas (hidroenergia, termoenergia e agroenergia, em especial), ponto crucial das políticas de desenvolvimento nacional em tempos de mudanças climáticas globais e vigência do Protocolo de Quioto.
A retomada da construção de hidroelétricas de grande porte, a proliferação das termelétricas, o ressurgimento da importância da energia termonuclear, o aumento expressivo da agroindústria sucro-alcooleira visando a produção em grande escala de etanol, colocam à mostra o embate entre “desenvolvimentistas” e “ambientalistas”, com repercussão no Judiciário.
Se e até que seja implementada a “inserção estratégica da variável ambiental no momento prévio da tomada de decisões, em processo de gestão pública compartilhada de formulação de políticas, planos e programas governamentais”[7], é inevitável que continuem os embates judiciais envolvendo o licenciamento ambiental das obras de infraestrutura, entre as quais a construção das grandes hidroelétricas. A questão se torna particularmente complexa no contexto internacional atual diante da inegável vantagem do Brasil ter a hidroenergia como principal matriz energética.
A tormentosa questão diz respeito à difícil ponderação entre critérios técnico-jurídicos (cumprimento dos requisitos constitucionais e legais exigidos) e meta-jurídicos (políticos, econômicos, segurança e ordem públicas), estes últimos levados em consideração pelos Presidentes das Cortes de Justiça na apreciação dos pedidos de suspensão de liminares, tutelas antecipadas e sentenças contrárias ao Poder Público.
As decisões judiciais em processos de licenciamento ambiental de hidroelétricas devem se ater a uma análise estritamente técnico-jurídica, ou devem ter peso e serem mesmo preponderantes os critérios meta-jurídicos, como ocorre na Suspensão de Liminares?
Dois posicionamentos ilustram cada uma dessas tendências, e permitem importantes reflexões.
Raul Silva Telles do Valle, no texto “A crise energética e o apagão da Justiça”[8] é bem crítico do discurso desenvolvimentista, comentando decisões judiciais relativas ao licenciamento ambiental das Usinas Hidrelétricas de Belo Monte e de Barra Grande.
“A recente sentença do Juiz Federal de Altamira permitindo a continuidade do licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte merece ser lida com muita atenção por ser representativa de uma recente linha jurisprudencial relativa a grandes obras de infra-estrutura. Ela nos dá uma excelente amostra de como o discurso desenvolvimentista que vem tomando conta do governo, da mídia e, consequentemente, da sociedade, pode influenciar o maior guardião do Estado de Direito e, para muitos, a última linha de defesa contra o crescimento a qualquer custo: o Judiciário. (…)
Hoje a imparcialidade do juiz é um princípio fundamental, garantia de que o julgador se aterá aos fatos alegados e comprovados, os quais analisará única e exclusivamente a partir das fontes de Direito existentes. São essas garantias, formais, que impedem que decisões discricionárias se tornem abritrárias, e que razões políticas ou econômicas direcionem a prestação da tutela jurisdicional. (…)
No caso de Belo Monte, caberia ao juiz federal de Altamira analisar a validade do Decreto Legislativo por meio do qual o Congresso Nacional havia autorizado, sem saber de seus possíveis impactos e sem ouvir as comunidades indígenas afetadas, a instalação da UHE Belo Monte, e se isso deveria ter como conseqüência a paralisação do processo de licenciamento ambiental como requeria o Ministério Público Federal, autor da ação. Não estava em questão a importância da obra para o país, para a região, para a produção de alumínio ou para o lucro das multinacionais do Pará. A única pergunta feita era sobre a validade do referido decreto e qual conseqüência isso traria. (…)
No caso da usina hidrelétrica de Barra Grande também o Judiciário se curvou à suposta necessidade de produção de energia e, ignorando a maior fraude num processo de licenciamento ambiental já descoberta, bem como a existência de mais de 2.000 hectares de florestas com o mais alto grau de proteção legal, liberou a operação da barragem. (…)
Não há nada de mal em juízes decidirem questões jurídicas levando em consideração o contexto socioeconômico nacional, pois afinal a atividade jurisdicional deve ter como função a pacificação social e a promoção da justiça, o que seria inalcançável com juízes enclausurados em seus gabinetes e sem contato com o mundo real. Mas isso não significa que eles possam torcer ou esquecer a lei para decidir de acordo com aquilo que julgam, pessoalmente, ser mais conveniente do ponto de vista político. Decisões como essas quebram um dos pilares do Estado de Direito, que é o princípio da legalidade e do devido processo legal. O juiz pode interpretar a norma, mas não deixá-la de lado por se opor a seu conteúdo, ou por achar que não seria oportuno aplicá-la em determinada ocasião. (…)
Essa também foi a linha de argumentação utilizada pela presidente de nosso Supremo Tribunal Federal – STF, Ellen Gracie, uma semana antes, nos autos da Suspensão de Liminar nº 125/07, que tentava reverter a decisão do TRF que suspendia a validade da autorização de instalação de Belo Monte. Para a ministra, “a não viabilização do empreendimento, presentemente, compromete o planejamento da política energética do país e, em decorrência da demanda crescente de energia elétrica, seria necessária a construção de dezesseis outras usinas na região com ampliação em quatorze vezes da área inundada, o que agravaria o impacto ambiental e os vultosos aportes financeiros a serem despendidos pela União”.
Por sua vez, Jerson Kelman, então Diretor-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), no estudo denominado “O Teorema do limite central, a justiça e a questão energética”[9], faz um instigante contraponto, levantando questionamentos que não podem ser ignorados, e que contribuem para a reflexão ora objetivada:
“Na proposição e acatamento de ação civil pública para proteção do meio ambiente, prevista na Constituição Federal, é de se supor que a seguinte questão seja respondida positivamente pelos decisores tanto do Ministério Público quanto do Judiciário: “ a construção da usina causa danos ambientais?”
Percebe-se que, se for apenas essa a pergunta a ser respondida, não haverá qualquer nova construção em nosso país, visto que é praticamente impossível realizar uma obra sem danos ambientais. Como isso não é razoável, é preciso, também, responder uma segunda pergunta: “a não-construção da usina causa outros danos, sociais, econômicos, energéticos, e também ambientais?
Isso não quer dizer que se pretenda um salvo conduto para a construção de hidroelétricas. Haverá casos em que a construção não será recomendável, por conta de dano ambiental excessivo ou por exigir o reassentamento de significativo contigente populacional.
No caso de construção de usinas hidroelétricas, o “ideal” é que não haja qualquer impacto local, tanto ambiental quanto social. E o “indesejável” é que falte energia barata. A decisão será “ótima” se conseguir equilibrar os dois olhares, como faz o cérebro quando combina as mensagens enviadas pelos olhos em uma só visão integrada. É o que nos permite ter o senso de perspectiva.
A paralisação da construção de uma usina hidroelétrica causa sim danos ambientais, sociais, econômicos e energéticos a milhões de brasileiros. Sem energia elétrica, ou com energia, porém cara, o Brasil ficará menos competitivo e terá dificuldade em resgatar da pobreza um grande contingente populacional, ainda submetido a péssimas condições ambientais, principalmente nos grandes centros urbanos.”
Kelman vê fragilidades no modelo brasileiro de licenciamento, nas análises de impacto comumente feitas no Estudo de Impacto Ambiental, e chega a nega poder de veto ao órgão ambiental licenciador, sugerindo a transferência da tomada de decisões para o Conselho de Defesa[10].
É entendimento desta autora[11] que, mesmo no incidente de suspensão de liminar ou de sentença, há a necessidade de simbiose de critérios jurídicos e metajurídicos, como sucedeu na decisão proferida pelo Ministro Marco Aurélio Mello (Pet. 2604/ PA, julgamento: 26/10/2002). Com muita propriedade dá relevância ao exame do fundamento jurídico do pedido e indefere o pedido de Suspensão de Liminar formulado pela União Federal no caso da Usina Hidrelétrica Belo Monte:
“DECISÃO CIVIL PÚBLICA – MINISTÉRIO PÚBLICO – LIMINAR – USINA HIDRELÉTRICA BELO MONTE – ESTUDOS E SATISFAÇÃO DE VALORES – SUSPENSÃO – LIMINAR CONFIRMADA PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO – EXCEPCIONALIDADE NÃO VERIFICADA – INDEFERIMENTO DO PLEITO DA UNIÃO.
(…) A aferição da tese conducente à suspensão quer de liminar, de tutela antecipada ou de segurança não prescinde do exame do fundamento jurídico do pedido. Dissociar a possibilidade de grave lesão à ordem pública e econômica dos parâmetros fáticos e de direito envolvidos na espécie mostra-se como verdadeiro contra-senso.
É potencializar a base da suspensão a ponto de ser colocado em plano secundário o arcabouço normativo, o direito por vezes, e diria mesmo, na maioria dos casos, subordinante , consagrado no ato processual a que se dirige o pedido de suspensão.
Não há como concluir que restou configurada lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas, fazendo-o à margem do que decidido na origem, ao largo das balizas do ato processual implementado à luz da garantia constitucional de livre acesso ao Judiciário.
Na prática de todo e qualquer ato judicante, em relação ao qual é exigida fundamentação, considera-se certo quadro e a regência que lhe é própria, sob pena de grassar o subjetivismo, de predominar não o arcabouço normativo que norteia a atuação, mas a simples repercussão do que decidido.”
As diretrizes gerais da política de agroenergia para o período 2006-2011[12] são adequadamente formuladas. A preocupação está na sua implementação, e a sugestão é o exercício do controle social e judicial prévios para prevenção e correção desde logo de eventuais desvios dessas diretrizes, que são:
1) Desenvolvimento da agroenergia – pela expansão do setor de etanol, implantação da cadeia produtiva do biodiesel, aproveitamento de resíduos e expansão de florestas energéticas cultivadas, com abrangência nacional, objetivando a eficiência e produtividade e privilegiando regiões menos desenvolvidas.
2) Agroenergia e produção de alimentos – a expansão da agroenergia não afetará a produção de alimentos para o consumo interno, principalmente da cesta básica. Pelo contrário, co-produtos do biodiesel, por exemplo, torta de soja e de girassol, tendem a complementar a oferta de produtos para a alimentação humana e animal.
3) Desenvolvimento tecnológico – pesquisa e desenvolvimento de tecnologias agropecuárias e industriais adequadas às cadeias produtivas da agroenergia, que proporcionem maior competitividade, agregação de valor aos produtos e redução de impactos ambientais. Concomitantemente, deverá contribuir para a inserção econômica e social, inclusive com o desenvolvimento de tecnologias apropriadas ao aproveitamento da biomassa energética em pequena escala.
4) Autonomia energética comunitária – propiciar às comunidades isoladas, aos agricultores individualmente, cooperativados ou associados, e aos assentamentos de reforma agrária, meios para gerar sua própria energia, em especial nas regiões remotas do território nacional.
5) Geração de emprego e renda – a política de agroenergia deve constituir-se em um vetor da interiorização do desenvolvimento, da inclusão social, da redução das disparidades regionais e da fixação das populações ao seu habitat, em especial pela agregação de valor na cadeia produtiva e integração às diferentes dimensões do agronegócio.
6) Otimização do aproveitamento de áreas antropizadas – as culturas energéticas devem ser produzidas respeitando a sustentabilidade dos sistemas produtivos e desestimulando a expansão injustificada da fronteira agrícola ou o avanço rumo a sistemas sensíveis ou protegidos, como a floresta amazônica, a região do Pantanal, entre outras. Poderá, ainda, contribuir para a recuperação de áreas degradadas, podendo ser associadas ao seqüestro de carbono.
7) Otimização das vocações regionais – incentivo à instalação de projetos de agroenergia em regiões com oferta abundante de solo, radiação solar e mão-de-obra, propiciando vantagens para o trabalho e para o capital, dos pontos de vista privado e social, considerando-se as culturas agrícolas com maior potencialidade.
8) Liderança no comércio internacional de biocombustíveis – o Brasil reúne vantagens comparativas que lhe permitem ambicionar a liderança do mercado internacional de biocombustíveis e implementar ações de promoção dos produtos energéticos derivados da agroenergia. A ampliação das exportações, além da geração de divisas, consolidarão o setor e impulsionarão o desenvolvimento do País.
9) Aderência à política ambiental – os programas de agroenergia deverão estar aderentes à política ambiental brasileira e em perfeita integração com as disposições do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Quioto, aumentando a utilização de fontes renováveis, com menor emissão de gases de efeito estufa e contribuindo com a mitigação deste efeito por meio do seqüestro de carbono.
4. Ocupação irregular, direito à moradia e proteção do meio ambiente: desafios à prevenção e à regularização das situações consolidadas
As invasões e ocupações irregulares são cada vez mais freqüentes, e geram problemas ambientais e urbanísticos significativos, enfrentados ora com maior rigor ora com maior tolerância. Evitar e desestimular, até mesmo com providências drásticas, se necessário, tais invasões e ocupações, utilizando-se de forma eficaz os instrumentos de comando e controle, é o desejável. Como atribuir maior efetividade a tais instrumentos de comando e controle para coibir e desestimular a disseminação de loteamentos e ocupações irregulares?
Um conjunto de providências drásticas é sugerida por Victor Carvalho Pinto[13]:
1) O loteamento clandestino é tipificado como crime contra a Administração Pública pela Lei nº 6.766/79 (art. 50 a 52), todavia o poder dissuasório da condenação em pena privativa de liberdade está prejudicado pela possibilidade de sua substituição por pena alternativa, mormente porque generaliza-se a condenação do infrator à distribuição de cestas básicas, diante do desaparelhamento estatal para fiscalização do cumprimento das penas. Para se restabelecer o poder dissuasório da sanção penal deve ser introduzida a pena de perdimento do bem ilegalmente loteado como alternativa à prisão do empreendedor, com fundamento constitucional no art. 5º, XLVI.
2) As ligações oficiais para abastecimento de água e energia elétrica somente devem ser realizadas pelas concessionárias em assentamentos regulares ou em vias de regularização, ou seja, somente após a decisão do Poder Público de regularizar o assentamento, fundamentada em estudo técnico urbanístico realizado por profissional habilitado. A legislação da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) deve ser alterada para vedar às concessionárias de distribuição a ligação oficial em assentamentos ilegais e a tolerância às ligações clandestinas. As fórmulas de cálculo das tarifas também deverão ser analisadas, a fim de impedir que os prejuízos decorrentes das ligações clandestinas sejam repartidos com o conjunto da população.
3) A omissão das autoridades na fiscalização deve ser caracterizada explicitamente como hipótese de improbidade administrativa, permitindo a punição dos administradores coniventes com os loteamentos clandestinos. A propósito, o art. 52 do Estatuto da Cidade considerou atos de improbidade administrativa (nos termos da Lei nº 8.492/92) praticados pelo Prefeito, a não observância de várias determinações do mesmo Estatuto ( § 4º do art. 8º; art. 26; art. 31; § 1º do art. 33; incisos I a III do § 4º do art. 40; § 3º do art. 40 e art. 50), sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos e da aplicação de outras sanções cabíveis.
4) O princípio da auto-executoriedade dos atos administrativos, amplamente difundido pela doutrina, deve ser positivado em legislação federal, pelo menos na esfera urbanística, visando reduzir a demanda junto ao Poder Judiciário e ao Ministério Público e permitir uma atuação imediata das Prefeituras desde os primeiros atos de ocupação irregular, impedindo sua consolidação. Às guardas municipais deve ser atribuída, por meio de lei federal, competência para atuarem no exercício do poder de polícia municipal, considerando a fiscalização do uso do solo como um serviço municipal, com base no art. 144, § 8º da Constituição Federal. O princípio da auto-executoriedade dos atos administrativos é freqüentemente ignorado pelo Poder Judiciário, o que resulta na concessão de liminares contra o Poder Público, quando este age diretamente na repressão dos ilícitos urbanísticos. Além disso, as Polícias Militares recusam-se a obedecer diretamente ao Município, exigindo ordem judicial para a realização dos atos de embargo e demolição. Sobrecarrega-se a Justiça e perde-se tempo, durante o qual o assentamento se consolida.
4.1 Casuística: tratamento diferenciado das situações concretas, diante das peculiaridades
Os exemplos trazidos à colação servem para reflexões acerca da complexidade das questões urbano-ambientais, e ilustram diferentes situações que mereceram tratamento diferenciado por suas peculiaridades. No confronto entre questões ambientais e questões sociais, há situações em que a presença humana é incompatível e não pode haver qualquer grau de tolerância, de modo a ensejar situações consolidadas e irreversíveis.
Caso 1: A invasão dos “sem teto” em área de preservação permanente às margens de rio federal .
Neste primeiro caso houve invasão por “sem tetos”, na cidade de Terezina (PI), de uma área de 10 (dez) hectares em Área de Preservação Permanente (APP) ao longo das margens do Rio Poty, rio federal, após desmatamentos e queimadas. O Ministério Público Estadual promoveu ação civil pública na Justiça Federal em face do Município de Teresina, que nada fez para impedir a invasão. O juiz, de forma diligente, deferiu a liminar determinando várias providências, entre as quais que fossem retirados imediatamente os ocupantes e as construções efetuadas nos 100 (cem) metros das margens do Rio Poty, na Área de Preservação Permanente, oficiando ao IBAMA para delimitá-la e à Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal no Piauí para disponibilizar reforço policial para cumprimento do mandado de desocupação da área e retirada das construções. Ao Município proibiu qualquer ocupação e caso realizadas novas edificações foi arbitrada pena pecuniária por metro construído, valor a ser revertido a favor do Fundo (art. 11 e 13 da LACP).
Caso 2: Operação de desfazimento de loteamento irregular. Derrubada de cerca de 25 barracos e casas.
Equipes do Departamento de Uso do Solo Metropolitano – DUSM, da Secretaria do Verde e Meio Ambiente – SVMA, da Subprefeitura de M´Boi Mirim, da Polícia Militar Ambiental e da Guarda Civil Municipal derrubaram cerca de 25 barracos e casas em construção durante operação de desfazimento de loteamento irregular, no bairro Jardim Vera Cruz, no M´Boi Mirim, nas proximidades da Represa Guarapiranga, em São Paulo .
O loteamento, localizado num morro dentro de um sítio conhecido como São Pedro, de propriedade particular, vinha sendo instalado quando se iniciou o desmatamento clandestino no local, até então coberto de vegetação típica de Mata Atlântica, além de constituir uma área de proteção e recuperação dos mananciais da Bacia Hidrográfica do Guarapiranga. Técnicos do DUSM vistoriaram o local e constataram a invasão, desmatamento e ocupação com construções irregulares de barracos, procedendo a uma primeira operação de desfazimento do loteamento. Pouco tempo após, estiveram novamente no bairro e entregaram uma dezena de Autos de Advertência, concedendo prazo de 20 (vinte) dias para os invasores desocuparem a área, e na operação realizada praticamente todos os barracos e casas em alvenaria em construção que não estavam ocupadas, foram derrubados.
Segundo Celso Mazzotini Saes e Geraldo Gilson de Camargo[14], representantes da SMA no Pólo Sul de Fiscalização Integrada, operações como esta ajudam a manter a permeabilidade do solo e conseqüente contribuição hídrica ao reservatório, além de ajudar a combater o aumento da poluição das águas da represa.
Caso 3: Um exemplo de regularização fundiária bem sucedida em Porto Alegre
Diferentemente dos casos anteriores, em que, corretamente, não foram tolerados o desmatamento, a invasão e a ocupação com construções irregulares em área de preservação permanente às margens de rio em zona urbana (caso 1), e de loteamento irregular em área de proteção e recuperação dos mananciais (caso 2), ilustramos agora com exemplo de regularização fundiária de ocupação irregular, que pode ser excepcionalmente promovida, fora de APP e área de proteção de mananciais.
A experiência ocorreu em Porto Alegre com o chamado Condomínio dos Anjos, onde 60 famílias foram mantidas no local, que passou por um processo de urbanização em 2001; nele antes havia um amontoado de casebres precários chamado Vila das Placas. A ocupação irregular no local abrigava cerca de 250 pessoas, que viviam em habitações precárias, com ausência de infra-estrutura básica. Não havia banheiros e luz elétrica nas casas improvisadas. No início da década de 90, a comunidade começou a se organizar para obter melhorias em suas moradias e os moradores faziam uma exigência: queriam permanecer na área ocupada irregularmente.
Foram construídas 60 (sessenta) unidades habitacionais para as 60 (sessenta) famílias e implantados projetos de educação ambiental e de saúde, com aulas sobre atitudes básicas, como uso de interruptor de luz, banheiro e cozinha. As 60 (sessenta) famílias foram assentadas nas novas casas em fevereiro de 2001 e a partir daí, aumentaram o índice de escolaridade entre os jovens e o emprego formal, conforme relatos da prefeitura. No caso, os moradores mantêm contrato de concessão do direito real de uso com o Departamento Municipal de Habitação.
Conclusão
A efetividade dos direitos fundamentais depende da observância do correlato dever de proteção por todos os corresponsáveis, e é sob esta dúplice visão que devem ser considerados na Constituição brasileira o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever do Poder Público e da coletividade de defendê-lo, assegurando a sadia qualidade de vida às presentes e futuras gerações. O Preâmbulo e as disposições inaugurais da Constituição de 88 delineiam o perfil do Estado Democrático e Social de Direito, e a elogiada Política Nacional de Educação Ambiental, em sintonia com os valores e parâmetros constitucionais, preconiza a construção de uma sociedade ambientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade, igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade e sustentabilidade, preconizando também a incorporação da dimensão ambiental às políticas públicas. O embate entre posicionamentos desenvolvimentistas e ambientalistas aparece bem nítido nas decisões judiciais envolvendo o licenciamento ambiental de grandes hidroelétricas. A imbricação entre questões sociais e questões ambientais se revela de forma contundente nas invasões e ocupações irregulares: o confronto, neste caso, é entre o direito à moradia e o direito à saúde, à qualidade de vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. As ocupações irregulares devem ser evitadas mediante providências adequadas e uma vez ocorridas, as situações concretas devem merecer tratamento diferenciado conforme as peculiaridades de cada caso.
Doutora e Professora de D. Ambiental (PUC/SP), Desembargadora Federal (TRF-3ª Região)
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) regula o trabalho aos domingos, prevendo situações específicas…
O abono de falta é um direito previsto na legislação trabalhista que permite ao empregado…
O atestado médico é um documento essencial para justificar a ausência do trabalhador em caso…
O cálculo da falta injustificada no salário do trabalhador é feito considerando três principais aspectos:…
A falta injustificada é a ausência do trabalhador ao trabalho sem apresentação de motivo legal…
O artigo 473 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece situações em que o…