Direito Penal

Do Estupro de Vulnerável: A palavra da vítima

Autora: PENONI, Carolline. E-mail: caroll.penoni@gmail.com. Acadêmica do curso de Direito na Universidade UNIRG. Gurupi/TO.

Orientador: FURLAN, Fernando Palma Pimenta. E-mail: furlanadvocacia@hotmail.com. Profº. Me. no curso de Direito na Universidade UNIRG, Gurupi/TO.

Resumo: Um dos crimes que mais chamam a atenção na sociedade atual é o estupro de vulnerável. Caracterizado como sendo um crime sexual contra crianças, enfermos e doentes mentais, este crime resulta em inúmeros efeitos nocivos para as suas vítimas, modificando para sempre a sua personalidade, principalmente quando se encontra no estado de vulnerabilidade. Diante disso, o presente estudo tem como objetivo primário discutir sobre o crime de estupro de vulnerável. Nos objetivos secundários, discute-se a palavra da vítima como medida probatória do crime e a sua relevância para a pena final. Analisam-se ainda as consequências desse crime para a vítima, apresentando também as medidas protetivas e preventivas para que esses delitos não sejam mais cometidos. Para realizar esse estudo, tem-se como metodologia a pesquisa bibliográfica, baseada em livros, artigos científicos e na legislação brasileira. Nos resultados, ficou claro constatar que a palavra da vítima é de suma importância para a configuração do crime em análise, se tornando prova essencial para a punibilidade do agente.

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Palavras-chave: Estupro. Vulnerável. Vítima. Palavra. Consequências.

 

Abstract: One of the crimes that most calls attention in today’s society is the rape of the vulnerable. Characterized as a sexual crime against children, the sick and the mentally ill, this crime results in countless effects for its victims, forever changing their personality, especially when they are in a state of vulnerability. Therefore, the present study has as its primary objective to discuss the crime of rape of the vulnerable. In the secondary objectives, the victim’s word is discussed as an evidentiary measure of the crime and its relevance to the final sentence. The consequences of this crime for the victim are also analyzed, also presenting protective and preventive measures so that these crimes are no longer committed. To carry out this study, bibliographic research is based on methodology, based on books, scientific articles and Brazilian legislation. In the results, it was clear to see that the victim’s word is of paramount importance for the configuration of the crime under analysis, becoming essential evidence for the punishment of the agent.

Keywords: Rape. Vulnerable. Victim. Word. Consequences.

 

Sumário: Introdução. 1. Os crimes sexuais no Brasil. 1.1. Do crime de estupro. 2. O crime de estupro virtual: aspectos gerais. 2.1 Dos Posicionamentos Jurisprudenciais. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

O estupro de vulnerável é um dos crimes mais cometidos na atualidade, representando um retrocesso no combate aos crimes sexuais. Crianças menores de idade, enfermos ou deficientes físicos são constantemente assediados por adultos (de ambos os sexos) a ponto de serem vítimas de conjunção carnal sem o seu consentimento.

Os dados sobre esse tipo de crime são incertos pela falta de existência de um sistema que centralize as informações que atualmente chegam por diversos canais de atendimento, como delegacias, hospitais e denúncias. Mesmo assim, em dados recentes mostra que somente no estado de São Paulo, os casos de estupro de vulneráveis aumentaram 45,6% no primeiro semestre de 2018, quando comparados ao ano anterior. Os dados da Secretaria da Segurança Pública são alarmantes, sendo mais de 4 mil casos de estupros até o primeiro semestre de 2018, somente em São Paulo (SILVA, 2018).

No Brasil, cerca de 70% das vítimas de violência sexual são crianças e adolescentes, que configuram o estupro de vulnerável. Ainda sobre esse fato, cabe destacar que entre os fatores que contribuem para as dificuldades de manejo pelo sistema de Justiça, pode-se mencionar o fato de abusador e vítima pertencerem, em regra, ao mesmo grupo familiar (AZAMBUJA, 2012).

Desse modo, o presente estudo tem como escopo discutir o real papel da vítima na ocorrência do crime de estupro de vulnerável. De igual importância, também se discute as consequências desse crime. In casu, a vítima, por ser menor de idade e não ter o discernimento completo a respeito da sua própria sexualidade, não ter ideia do que ocorre, apenas sofre com essas práticas. Depressão, isolamento social, mudança de comportamento, alteração de humor, dentre outros, são alguns dos elementos que compõem as consequências ocorridas com as vítimas.

No decorrer dessa pesquisa procura-se responder a seguinte indagação: qual a influência da palavra da vítima no crime de estupro de vulnerável? Diante disso, essa pesquisa tem por finalidade analisar os aspectos jurídicos, sociais e jurisprudenciais a respeito da vítima no crime de estupro de vulnerável, apresentando os efeitos e consequências jurídicas desse delito.

 

  1. DOS CRIMES SEXUAIS

Os crimes sexuais sempre permearam o Direito Penal. Desde os primórdios das civilizações, atos sexuais não consensuais já eram praticados. As vítimas eram de todo tipo, de homens, mulheres e até crianças, de todas as idades, etnias e classes sociais. Ainda que em muitas culturas, tais atos não eram considerados como crimes, as suas consequências eram inevitáveis.

Durante muito tempo, no código penalista, os crimes contra a dignidade sexual eram denominados de crime contra os costumes. Como bem explica Greco (2017) essa expressão já não traduzia a realidade dos bens juridicamente protegidos pelos tipos penais. Se antes o objetivo era proteger a maneira como os indivíduos deveriam se comportar sexualmente diante da sociedade, agora o que importa é a proteção da dignidade sexual de cada um.

A dignidade sexual é uma das espécies do gênero da dignidade da pessoa humana. Sobre esse tema, Sarlet (2012) ao apresentar a definição de dignidade acentua que é a qualidade inerente e distintiva de qualquer ser humano, fazendo-o ser merecedor de respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. É em suas palavras, um complexo de direitos e deveres fundamentais que garantem a pessoa proteção contra todo e qualquer ato de natureza degradante e desumano.

Corroborando com esse entendimento, Nucci (2015) explica que a dignidade sexual está ligada diretamente à sexualidade humana. Nesse sentido, ela se torna um conjunto dos fatos, ocorrências e aparências da vida sexual de cada um. Está direcionada à respeitabilidade e a autoestima, a intimidade e a vida privada, ao qual permite-se dizer que o ser humano pode realizar seus desejos e atos sexuais como bem lhe aprouver, sem interferências de terceiros e nem mesmo do Estado.

Com base nesses conceitos acima, pode-se entender que os crimes sexuais ferem diretamente a dignidade sexual, ou seja, ocorre a ruptura da liberdade de escolha de cada um no âmbito da própria sexualidade. São crimes cujo um dos objetivos é denegrir a liberdade e dignidade sexual de terceiro.

O crime sexual pode ser interpretado como aquele crime que ‘obriga’ o outro a praticar ato sexual sem o seu consentimento. Muitas vezes se usa da violência ou da grave ameaça para que a vítima venha a praticar qualquer ação sexual sem a sua vontade.

Sob esse aspecto, Nucci (2015, p. 02) explica que se torna vítima de crime contra a dignidade sexual aquele que “foi coagido, física ou moralmente, a participar da satisfação da lascívia do agente, sem apresentar concordância com o ato. Pode, ainda, tornar-se ofendido aquele que, para a satisfação de outro interesse do agente, foi levado a atos sexuais não aprovados”.

Dentre os crimes que mais repercutem na esfera sexual, está o de estupro. Sobre esse crime, apresenta-se o tópico seguinte.

 

1.1 O CRIME DE ESTUPRO

Dentre os vários tipos de crimes sexuais, encontra-se o crime de estupro, considerado o mais grave de todos. Isso se explica pelo fato de que esse crime é uma ação que viola a disponibilidade do indivíduo, com uma atitude primitiva e selvagem, como nos animais.

Justamente pela sua gravidade, o crime de estupro sempre esteve presente no ordenamento jurídico brasileiro. Inicialmente se encontrou nas Ordenações Afonsinas, onde possuía duas definições: “Do que dorme com moça virgem, ou viúva por sua vontade” e o “Da mulher forçada e como se deve provar a força”. Conforme explica Estefam (2010), na primeira definição a finalidade era punir os pecados que iam contra a vontade de Deus. Sua sanção era o casamento ou a concessão de um dote. Na segunda definição, o de estupro violento, a pena imposta era a pecuniária.

Em seguida houve o Código Criminal do Império de 1830, ao qual o crime de estupro (art. 219) era descrito como “Deflorar mulher virgem menor de dezessete anos”. Neste código, o crime de estupro era extinto com o casamento ou com o pagamento de dote.

No Código Penal de 1890 o estupro (art. 266) estava inserido no título VIII que tratava “dos crimes contra a segurança e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. Nas Consolidações das Leis Penais em 1932, unificou-se o crime de estupro e do atentado violento ao pudor (art. 266, § 1º).

Nota-se que desde o seu início, o crime de estupro sempre foi focado na figura da mulher, sendo esta a maior vítima. Por conta disso, com a entrada em vigor do Código Penal de 1940, a mulher obteve grande destaque no seu texto. Isso pode ser visto no art. 213 que tinha o seguinte texto: “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” (BRASIL, 1940). Era inserido no Título VI que tratava dos crimes contra os costumes, já citados anteriormente.

Novas mudanças ocorreram na sociedade, e os crimes sexuais, inclusive os de estupro, foram tendo outras interpretações. A independência da mulher (profissionalmente e sexualmente), o divórcio, o avanço tecnológico, entre outros, foram movimentos que ajudaram a sociedade a se abrir mais a respeito da sexualidade humana.

Em decorrência desses fatores, os crimes sexuais tiveram que ser ampliados acompanhando assim a nova realidade social. Várias ações jurídicas foram feitas objetivando o enquadramento jurídico a essa nova realidade. Entre esses avanços, houve a promulgação da Lei 12.015/2009 que trouxe uma nova roupagem aos crimes sexuais.

Com o advento da Lei 12.015/09, o crime de estupro foi inserido agora no denominado “Crimes contra a Liberdade Sexual”. Em seu novo texto, encontra-se:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena: – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

  • 1.º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

  • 2.º Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. 

(BRASIL, 2009)

 

A respeito dos seus elementos, expõe-se:

 

São quatro os elementos que integram o delito: (1) constrangimento decorrente da violência física (vis corporalis) ou da grave ameaça (vis compulsiva); (2) dirigido a qualquer pessoa, seja do sexo feminino ou masculino; (3) para ter conjunção carnal; (4) ou, ainda, para fazer com que a vítima pratique ou permita que com ela se pratique qualquer ato libidinoso. O estupro, consumado ou tentado, em qualquer de suas figuras (simples ou qualificadas), é crime hediondo – Lei 8.072/90, art. V. (MAGGIO, 2013, p. 01)

Observa-se que no novo texto, prevê-se que o estupro é constrangimento a “alguém”, ou seja, não mais se focaliza apenas na figura da mulher, podendo ser qualquer indivíduo, inclusive o homem e até mesmo os transexuais. O objeto jurídico neste crime é a liberdade sexual. Conforme afirma Fernando Capez “as pessoas tem o direito de dispor do próprio corpo como também a plena liberdade de escolha do parceiro sexual, para com ele, de forma consensual, praticar a conjunção carnal ou outro ato libidinoso” (2012, p. 290). O objeto material é a pessoa constrangida.

Em relação aos sujeitos do crime de estupro, a Lei 12.015/09 colocou esse crime como sendo comum, onde o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (homem ou mulher). O sujeito passivo também pode ser qualquer indivíduo (homem ou mulher), independentemente de suas qualidades (honesta ou desonesta, virgem ou não, casada ou solteira, etc.) ou características (alta ou magra, loira ou ruiva, etc.).

Este crime é representado através do verbo constranger, que vem a significar compelir, obrigar, coagir ou forçar, o sujeito deve agir com violência ou grave ameaça. Na violência, usa-se o emprego da força física que acaba por dificultar ou impossibilitar qualquer meio de resistência ou defesa da vítima podendo resultar no ato sexual em si ou numa lesão corporal (MAGGIO, 2013).

Na grave ameaça, tem-se “a promessa da prática de um mal a alguém, de acordo com a vontade do agente, consistente na ação ou omissão, capaz de perturbar a liberdade psíquica e a tranquilidade da vítima” (MAGGIO, 2013, p. 22).

Cumpre frisar, de acordo com Cesar Roberto Bitencourt, que “para configurar o estupro é necessário o dissenso (não consentimento) sincero e positivo da vítima durante todo o ato sexual, ou seja, uma reação efetiva à vontade do agente de com ele ter conjunção carnal” (2012, p. 51). No caso em que a negativa não é sincera ou se depois de resistir, consentiu o ato sexual, não se fala em crime de estupro.

No elemento subjetivo, tem-se o dolo, que consiste na intenção doa gente em constranger alguém, com violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal. André Estefam lembra que “também estará configurado o estupro se a intenção do agente era humilhar a vítima, ganhar uma aposta dos amigos, contar vantagem a terceiros, etc.” (2011, p. 145). O que importa é que a liberdade sexual da vítima seja violada ou desrespeitada. Acrescenta-se que o crime de estupro não acata a modalidade culposa.

No concurso de crimes, segundo Capez (2012) é um tipo penal simples, que se divide em condutas alternativas ou então crime de condutas cumulativas, onde “a prática da conjunção carnal e de outros atos libidinosos praticados no mesmo contexto fático contra a mesma vítima, caracterizam crime único de estupro” (2012, p. 28).

No aspecto processual, Rogério Greco (2017) explica que o crime de estupro a ação penal é de iniciativa pública condicionada à representação do ofendido, e não mais de ação penal privada. Entretanto, há de se mencionar a Súmula 608 do STF que entende que “No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”.

Como o crime de estupro se encontra inserido no rol de crimes hediondos, o seu autor não tem o benefício da anistia, graça, indulto ou fiança. A pena deverá ser cumprida inicialmente em regime fechado, com progressão após 2/3 da pena, devendo o processo correr em segredo de justiça.

Passados esses ensinamentos gerais sobre o crime de estupro, parte-se para a espécie mais discutida: o crime de estupro de vulnerável.

 

  1. O ESTUPRO VIRTUAL

O termo vulnerabilidade nos remete inicialmente à pessoas sensíveis e desprotegidas, que não possuem força suficiente para se protegerem sozinhas. Numa visão mais formal, a vulnerabilidade pode ser entendida como aqueles indivíduos que “não tenham o necessário discernimento para a prática do ato e aquele que por qualquer outra causa não puder oferecer resistência” (GUIMARÃES, 2013, p. 63).

De origem latina (vulnerabilis), vulnerável “vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, feridas sangrentas com sérios riscos de infecção” (GRAÇA; REIS, 2010, p. 03). Demonstra sempre a incapacidade ou fragilidade de alguém, originada por circunstâncias específicas.

Para fins desse estudo, os indivíduos tidos como vulneráveis são aqueles suscetíveis a serem vítimas de atos delituosos por parte de terceiros. No caso em tela, são aqueles que não possuem discernimento ou força individual para se proteger diante de uma ação criminosa de cunho sexual.

Grego (2017) explica que diversas mudanças ocorreram nas últimas décadas a respeito dos crimes sexuais. Muitas foram às denúncias de ONGs e de grupos amparados pela ONU (Organização das Nações Unidas) que mostravam o tráfico, a violência e exploração de crianças e adolescentes. Devido ao aumento desses casos, o Direito brasileiro buscou colocar esse grupo dentro da norma penalista.

A priori, houve a criação no Congresso Nacional, de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, através do Requerimento 02/2003, assinado pela Deputada Maria do Rosário e pelas Senadoras Patrícia Saboya Gomes e Serys Marly Slhessarenko, que tinha o objetivo de investigar as situações de violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil (GRECO, 2017).

Essa CPMI encerrou oficialmente seus trabalhos em agosto de 2004, trazendo relatos assustadores sobre a exploração sexual no Brasil, culminando por produzir o projeto de lei nº 253/2004 que, após algumas alterações, veio a se converter na Lei nº 12.015/09, já descrita no tópico anterior.

Nessa norma, foi criado o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A). Com esse artigo, os vulneráveis ficam protegidos daqueles que praticam a violência (ou ameaça) sexual contra a sua liberdade e dignidade.

O crime de estupro de vulnerável nesse novo cenário está aludido no art. 217-A, do qual prevê:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

  • Incorre na mesma pena quem pratica ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
  • Vetado
  • Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

  • Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

(BRASIL, 2009)

 

Por esse artigo, qualquer ato carnal ou qualquer outro de natureza sexual em desfavor de menor de 14 anos está cometendo o crime de estupro contra pessoa vulnerável. Sobre esse artigo, Greco (2017, p. 01) explica que “convencionou denominar de estupro de vulnerável, justamente para identificar a situação de vulnerabilidade em que se encontra a vítima”.

Segundo Luis Regis Prado (2010, p. 624) “a vulnerabilidade, seja em razão da idade, seja em razão de estado ou condição da pessoa, diz respeito a sua capacidade de reagir a intervenções de terceiros quando no exercício de sua sexualidade”.

Também incluído no rol dos crimes hediondos, a respeito da vulnerabilidade do art. 217-A, Cezar Roberto Bitencourt aduz:

[…] o legislador optou por incluir, nessa classificação, pessoas que são absolutamente inimputáveis (embora não todas), quais sejam, menor de quatorze anos, ou alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Na realidade, o legislado faz uma grande confusão com a idade vulnerável, ora refere-se a menor de quatorze anos […], ora a menor de dezoito […]. A partir daí pode-se admitir que o legislador, embora não tenha sido expresso, trabalhou com duas espécies de vulnerabilidade, uma absoluta (menor de quatorze anos) e outra relativa – menor de dezoito (BITERNOURT, 2011, p. 89-90).

Em sua interpretação (art. 217-A), o crime em estudo pode ser efetivado por qualquer indivíduo, restando em crime comum. O sujeito passivo é o menor de 14 anos, enfermo ou deficiente mental ou ainda a vítima incapaz de reagir. Tem caráter de crime doloso, não cabendo a modalidade culposa, além de ser crime de Ação Pública Incondicionada, se consumando com a prática do ato de libidinagem, havendo a possibilidade da tentativa (GRECO, 2010).

Francisco Dirceu Barros ainda lembra que “para que o crime de estupro de vulnerável se configure, basta que o agente tenha conhecimento de que a vítima é menor de 14 anos e decida com ela manter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso” (2010, p. 20).

Ainda sobre esse crime, em 2018 se instituiu a Lei nº 13.718 onde acrescentou ao artigo 217-A (estupro de vulnerável), o parágrafo 5º: “As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime” (BRASIL, 2018).

Esse novo texto teve como objetivo “evitar que argumentos como experiência e antecedentes sexuais da vítima menor, sua ingenuidade, inocência, virgindade ou sua adesão ao ato autorizem a relativização da condição de vulnerabilidade” (SANTOS, 2018, p. 02). No que diz respeito à vítima com deficiência, permanece a exigência de que esta retire dela a capacidade de discernir, para que o estupro se configure.

Dentro da temática envolvendo o estupro de vulnerável um detalhe chama a atenção: a palavra da vítima. Por ser considerada vulnerável, a palavra da vítima muitas vezes se torna importante para a configuração do crime e seu meio de prova. Sobre essa questão e buscando responder a problemática desse estudo, segue-se o tópico seguinte.

 

2.1 A PALAVRA DA VÍTIMA NOS CRIMES DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

Durante anos, a vítima foi relegada a segundo plano quando os agentes jurídicos, detentores do poder de investigar e julgar, se deparavam com algum crime, seja ele de qualquer natureza. O foco principal, tanto da investigação quanto do julgamento era da figura do criminoso.

Tal realidade se tornou presente devido ao fato do sistema penal possuir uma característica de estigmatizar e excluir pessoas. Essa estigmatização se dá pela “separação que se faz entre “delinquente” e “vítima”, onde a vítima sofre o mesmo processo de privação de identidade que o delinquente. Suas expectativas não são levadas em conta” (CARVALHO; LOBATO, 2018, p. 01).

Com isso, a vítima é em grandes casos, no processo penal, um indivíduo esquecido, abandonado, não possuindo qualquer valor. Até mesmo no ordenamento jurídico brasileiro, são poucas as normas que objetivam em colocar a vítima como o bem maior a ser tutelado.

Entretanto, ainda que o papel da vítima fosse pouco observado, encontram-se atualmente muitos estudos e trabalhos que abordam o seu papel e a sua composição. A Vitimologia, por exemplo, vem trazendo em seu núcleo a análise ampliada da figura da vítima, abordando todos os seus aspectos.

A observação em relação a figura da vítima, tem-se modificado e encontrado espaço no meio jurídico penalista, ainda que de um jeito tímido e moroso. Apesar de essas análises terem se avançado, é pouco o que de fato se tem a respeito do papel da vítima, principalmente quando se analisa o caso concreto.

Antes de se adentrar no conceito de vítima, necessário se fazer uma diferenciação conceitual de termos que se encontra no Código de Processo Penal brasileiro, onde se tem a vítima, o ofendido e o lesado. O termo ofendido se designa aos delitos contra a honra e contra os costumes, enquanto o termo lesado se utiliza para os crimes contra o patrimônio.

Passados essas definições, vários são os conceitos para se configurar a vítima. Para Oliveira (2017, p. 108) vítima é “aquela pessoa que sofre danos de ordem física, mental e econômica, bem como a que perde direitos fundamentais, seja em razão de violações de direitos humanos (reconhecidos internacionalmente), bem como por atos criminosos comuns”.

Além disso, “conceitua-se vítima como qualquer pessoa que sofra lesão ou ameaça de lesão a um bem. Ou ainda, aquele que sofre lesão em consequência de uma conduta tipicamente punível pelo Estado” (COSTALONGA, 2014, p. 02).

Oriunda do latim victima ou victimae que representa “pessoa ou animal sacrificado ou que se destina a um sacrifício” (PIEDADE JÚNIOR, 2013, p. 86). No início, vítima tinha uma conotação religiosa, mas já passou e se tornou uma significação jurídica. Desse modo, “entende-se por vítima, qualquer pessoa que sofre infaustos resultados, seja de seus próprios atos, seja dos atos de outrem, seja de influxos nocivos ou deletérios, seja de fatores criminógenos, ou seja, do acaso” (FARIAS JÚNIOR, 2016, p. 250).

Como se percebe, existem muitas definições para a palavra vítima, que são encontradas em várias doutrinas. Para alguns doutrinadores a vítima faz parte de um fenômeno criminal, que ainda se encontra o crime, o delinquente e a pena (SOARES, 2016).

Nos crimes sexuais, a vítima possui extrema importância, principalmente porque os crimes sexuais são crimes bastante complexos e que são em sua grande maioria praticados às ocultas.

No caso em estudo, encontra-se o papel da vítima ligada a presunção de vulnerabilidade. Nesse ponto, ao olhar a questão da presunção de vulnerabilidade, deve-se analisar cada caso concreto, sempre abalizado na realidade social das partes, uma vez que em alguns casos, o ato sexual é algo tão normal ao menor, que ele não sofre qualquer consequência negativa, como ocorre nos casos de prostituição ou iniciação sexual por vontade própria (SOARES, 2016).

Nesse ponto, estar-se-ia falando a respeito da presunção relativa nos crimes de estupro de vulnerável. Em outras palavras, esses casos não podem ser interpretados de forma restrita. A interpretação jurisprudencial, ainda que a maioria entenda que essa presunção seja absoluta, também caminha para a observância da presunção relativa, do qual já se tem os seguintes julgados:

  1. TJBA: “A presunção de violência contida no artigo 224, alínea a, do Código Penal, pode ser relativizada quando houver prova induvidosa do consentimento da vítima maior de 12 (doze) anos com a prática do ato sexual. II – A aquiescência do ofendido descaracteriza o crime de estupro, uma vez que não há, na hipótese, ofensa à liberdade sexual” (Ap. 019659258.2007.8.05.0001/BA, 2.ª T., 1.ª C.C., rel. Pedro Augusto Costa Guerra, 24.07.2012).

 

Corroborando com os entendimentos acima expostos, a doutrina impõe que a questão da vulnerabilidade diante do crime em comento é relativa, haja vista que se entende que em determinados casos há um consenso e consciência plena da prática sexual do menor (NUCCI, 2014).

Portanto, a questão da vulnerabilidade da vítima nos crimes de estupro de vulnerável não pode ser radical ou limitativa, observando apenas o texto da lei. Deve nesses casos, analisar cada caso concreto, com base na figura da vítima e todo o seu contexto psicológico e social.

A par dessa discussão sobre a presunção de vulnerabilidade, no que concerne ao tema proposto, entende-se que a palavra da suposta vítima possui enorme valor, principalmente nos casos onde a sua palavra é a única prova da prática do delito criminoso. Ocorre que nesse contexto emerge inúmeras discussões a respeito da sua autenticidade e veracidade dos fatos, haja vista que muitos compreendem a fragilidade da prova testemunhal, em decorrência de ela ser facilmente manipulável, principalmente se a vítima é uma criança.

O que se vislumbra sobre esse tema é que não como afirmar categoricamente que a criança ou enfermo esteja sempre dizendo a real verdade dos fatos ou que está mentindo sobre os mesmos. Uma vez que o seu testemunho irá influenciar a decisão do julgador, essa questão se torna ainda mais importante a ser discutida.

A doutrina tem explicitado que nesses casos, é preciso que se faça a apreciação e confrontação entre o que vítima relatou com as provas obtidas durante a investigação a respeito da consumação do crime. Em outras palavras, o testemunho da vítima de crime de estupro de vulnerável deve ser sempre comparado com as provas obtidas, para que assim se verifique uma coerência (CERQUEIRA; COELHO, 2014).

Na colheita dessas informações, há alguns elementos a serem considerados: a) a veracidade das declarações; b) os efeitos psicológicos e emocionais sofridos pela vítima sendo expostos em juízo; c) a comparação entre o que é dito pela vítima e pelo réu; d) a observância dos princípios constitucionais, tais como o da prevalência do interesse do acusado (SILVA; VALE, 2018).

No primeiro elemento, o magistrado deve entender que o testemunho dado é uma prova relativa, ao ponto que se deve compará-la com as outras provas obtidas, para em seguida construir a sua convicção dos fatos relatados (VALE, 2018).

A respeito do segundo elemento, o que se busca é analisar in loco o trauma que gerou na vítima da ocorrência do crime em análise. Isso é feito no momento em que a vítima está relatando em juízo, os detalhes do que de fato ocorreu. Para isso, é preciso que o ambiente seja agradável, aconchegante, em sala especial, vide o perfil vulnerável do mesmo. Além disso, o recolhimento desse relato deve ser por psicólogo ou assistente social, que serão acompanhados por vídeo em tempo real pelo magistrado e outros interessados (VALE, 2018).

O terceiro elemento é o confronto direto entre a palavra da criança ou adolescente e a do réu. In casu, não é aconselhável que se tenha uma conclusão definitiva, ou seja, valer-se apenas da palavra da vítima ou a do réu (por entender que ele é adulto e que, portanto, tem menor chance de mentir ou fantasiar os fatos).

Por fim, este estudo caminha no entendimento de que a palavra da vítima, embora seja de enorme importância, deve-se confrontar o seu testemunho com as provas em concreto. Importante mencionar que não se deve negligenciar o princípio da prevalência do interesse do réu (in dúbio pro reo); que no caso analisado caso haver dúvidas sobre os fatos, tem-se que promover a absolvição do acusado (SILVA; VALE, 2018).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em razão do fato de não se poder deixar um delituoso sem a devida condenação nos crimes de natureza sexual, e nos casos de não haver provas da materialidade do delito, atribui-se enorme valoração à palavra da vítima nesses tipos de crimes, sejam eles praticados na clandestinidade ou não. No primeiro caso, se faz necessário que a palavra da vítima seja inalterada no curso da ação penal, também de maneira segura, coerente, estável e harmônica juntamente com a ocorrência dos fatos, para que assim não tenham uma inequívoca punição à um inocente.

Todavia, o testemunho da vítima nos crimes sexuais é também muito arriscado, sendo encontrada uma enorme quantidade de denúncias caluniosas e mentirosas, tendo como consequências o prejuízo na imagem social do acusado e a possível prisão de um inocente.

No caso em tela – crime de estupro de vulnerável – a valoração da sua palavra se torna ainda mais importante, haja vista que muito pode ser dito e elucidado por essas vítimas. No entanto, esse tema lança luz a diversas polêmicas relacionadas ao sexo, tema este bastante controverso. Um menor de idade, ainda não possui conhecimento necessário para aferir qual o valor da vida sexual. Nem o seu próprio corpo ainda não está totalmente adaptado para essa prática.

Ao ser vítima de estupro, a vítima menor de idade sofre os dilemas e dúvidas a respeito do seu próprio corpo e das ações relacionadas ao sexo, podendo inclusive, afetar a sua vida intima na fase adulta.

O que se entende nesse estudo é que os indivíduos vulneráveis vítimas de estupro, se faz necessário que a busca pelas provas tem de ser feitas de maneira extremamente cautelosa e detalhada, pois elas serão corroboradas com o que for dito pela vítima posteriormente. Desse modo, as declarações relatadas não devem ser consideradas únicas e certeiras, mas sim um balizador que, necessariamente, necessita de um confrontamento de ambas as falas, para assim chegar-se a conclusão de quem forneceu a versão mais plausível dos fatos, independentemente de quem seja ela, vítima ou réu.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Francisco Dirceu. Vulnerabilidade nos Novos Delitos Sexuais. Carta Forense, 02 de março de 2010.

 

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