Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002: Crítica acerca da possibilidade de discussão da culpa pela separação dos cônjuges

1 INTRODUÇÃO

O cunho deste artigo visa investigar a (ir)relevância da discussão da culpa de um dos cônjuges pela separação do casal quando este já se encontra separado de fato e um dos consortes vem a falecer. Ocorre que a matéria debatida merece destaque em face do disposto no artigo 1.830 do Código Civil, o qual gera grandes discussões doutrinárias no âmbito civilista.

A atecnia na elaboração do artigo 1.830 do Código Civil é notória, com intricada interpretação, além de possibilitar que aspectos superados no âmbito do direito de família sejam ressurgidos num limbo jurídico.

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Desta feita, esta breve exposição demonstrará os critérios mais equânimes em que o operador do direito deve basilar a aplicação do artigo ora elencado, visando evitar que injustiças sejam perpetradas no ordenamento jurídico brasileiro.

Para melhor compreensão do tema, uma breve análise da (im)possibilidade do debate da culpa pela separação do casal será abordada para que, assim, seus reflexos sejam utilizados na correta interpretação do artigo 1.830 do Código Civil.

Com estas ponderações, inicia-se a análise do objeto específico desta exposição, qual seja o estudo crítico de uma das problemáticas geradas pela atecnia jurídica do artigo 1.830 do Código Civil de 2002, focando o debate na parte in fine do referido artigo.

2 DO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE NA ATUALIDADE. BREVES LINHAS JURÍDICAS.

O Código Civil de 2002 representou relevante avanço para o direito sucessório do cônjuge porquanto o incluiu no rol dos herdeiros necessários[1] bem como o elevou as duas primeiras classes preferenciais sucessórias, em concorrência com os descendentes e ascendentes[2].

Desta feita, o cônjuge passou a ter direito à legítima assim como os descendentes e ascendentes do de cujus, além de herdar concorrentemente com estes ou, exclusivamente, caso não haja sucessor em linha reta.

Acerca da concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do falecido, merece destaque a ressalva de que o cônjuge vivo não será herdeiro caso tenha se casado com o autor da herança sob os regimes da comunhão universal de bens, separação obrigatória de bens ou comunhão parcial de bens sem que o falecido tenha deixado patrimônio particular.

Contudo, para se aferir os direitos sucessórios cabíveis ao cônjuge supérstite, em concorrência com os ascendentes do de cujus, a análise do regime de casamento se torna dispensável posto que, independentemente do regime escolhido, o cônjuge vivo herdará conjuntamente com os ascendentes do falecido.

Agora, caso inexistam descendentes ou ascendentes, independentemente do grau de parentesco, o cônjuge sobrevivente herdará a totalidade da herança. Ressalvas acerca do regime de bens também se tornam desnecessárias neste ponto porquanto não interferem na qualidade de herdeiro do cônjuge.

3 DA LIMITAÇÃO SUCESSÓRIA DO CÔNJUGE CONSOANTE O ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL.

Infelizmente, ao invés de simplificar e tornar mais claro os desejos legislativos, o Código Civil estabeleceu em seu artigo 1.830 intricado texto que reza que o direito sucessório do cônjuge supérstite se encerra quando este se encontra: a)separado judicialmente; b)separados de fato há mais de dois anos desde que a convivência do casal se tornara impossível com culpa do cônjuge sobrevivente.

No que concerne a exclusão do cônjuge que já se encontra separado judicialmente nenhuma crítica se levanta, pelo contrário, totalmente coerente a disposição de não se atribuir direitos sucessórios a uma pessoa que já não tenha vínculo matrimonial com o autor da herança à época de seu falecimento. Ademais, a tendência desta disposição é tornar-se obsoleta tendo em vista a Emenda Constitucional nº66 que extinguiu a separação judicial no Brasil, estabelecendo que a partir de 14 de julho de 2010 apenas o divórcio é o instrumento adequado para a dissolução do casamento.

Por outro lado, o fato do Código Civil possibilitar o questionamento da culpa de um dos cônjuges pela extinção da convivência do casal é matéria recriminada pela moderna doutrina, gerando eminentes críticas, como veremos abaixo.

4 DA DISCUSSÃO DA CULPA PELA SEPARAÇÃO DO CASAL. CONTENDA SUPERADA.

A Constituição Federal de 1988, em conjunto com o Código Civil de 2002, abandonaram a velha visão patriarcalista do antigo código civil, prevendo que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal devem ser exercidos igualmente pelo marido e pela esposa.

No entanto, apesar de “novo”, o Código Civil de 2002 já nasceu com algumas defasagens, dentre as quais podemos elencar a permanecia do aspecto da culpa do cônjuge pela separação do casal, objeto do presente estudo em relação ao artigo 1.830 do Código Civil, fato chamado “no mínimo, de retrógado”, segundo palavras da conspícua Maria Berenice Dias[3].

Quando a legislação pátria permitiu que o cônjuge inocente pela separação pudesse propor ação de separação declinando ao outro alguma das “culpas” do artigo 1.573 do Código Civil, o rol deste artigo tornou-se improfícuo e meramente exemplificativo quando o parágrafo único[4] do mesmo artigo possibilitou ao juízo da causa considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida conjugal.  

Destarte, inútil as condutas elencadas no artigo 1.573 do Código Civil, posto que o único fato que realmente importa para a separação de um casal é o fim do afeto. Se ainda houvesse amor de ambos, não haveria a separação.

Assim, o mero fato da existência de ação de separação litigiosa já demonstra o fim do amor entre os cônjuges, sendo desnecessária a identificação do evento culposo perpetrado por um dos cônjuges. Vejamos relato da eminente doutrinadora Maria Berenice Dias[5]:

“Felizmente, a jurisprudência passou a reconhecer como desnecessária a identificação de conduta culposa, bem como a dispensar comprovação dos motivos apresentados pelo autor para conceder a separação. O juiz, ao fixar os pontos controvertidos (CPC 331, §2º), impedia a discussão a respeito dos motivos do fim do casamento. […] A perquirição da causa da separação acabou perdendo prestígio. O fim do casamento passou a ser concedido independentemente da indicação de um responsável pelo insucesso da relação, seja porque é difícil atribuir a apenas um dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão da justiça na intimidade da vida das pessoas.”

No mesmo posicionamento, leciona Eduardo de Oliveira Leite[6]:

“Desde a mais tradicional postura de Pontes de Miranda até a posição de doutrinadores da atualidade a atribuição da culpa pelo fracasso do matrimônio a qualquer dos cônjuges não é mais admitida, substituindo-se aquele pressuposto de cunho subjetivo e privado pelo princípio da ‘deterioração factual’. Com efeito, como já se tem posicionado a jurisprudência nacional, não mais tem sentido, nem justificativa, a atribuição da culpa pelo rompimento da vida em comum, quando qualquer conseqüência pode advir desta declaração, bastando, para a decretação da separação, o reconhecimento do fim do vínculo afetivo”.

O Superior Tribunal de Justiça[7] também assim se manifestou:

“SEPARAÇÃO. Ação e reconvenção. Improcedência de ambos os pedidos. Possibilidade da decretação da separação. Evidenciada a insuportabilidade da vida em comum, e manifestado por ambos os cônjuges, pela ação e reconvenção, o propósito de se separarem, o mais conveniente é reconhecer esse fato e decretar a separação, sem imputação da causa a qualquer das partes. Recurso conhecido e provido em parte.”

Em memorável conclusão, Cristiano Chaves de Farias[8] relata que: “Impõe, por conseguinte, perceber que não há, seguramente, um único responsável pelo fracasso do amor. Ninguém é culpado por não mais gostar. Não há responsabilidade pela frustração do sonho comum.”.

5 DO ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E SUA PROBLEMÁTICA.

Dada uma visão geral concernente a irrelevância da discussão da culpa como motivo ensejador da separação de um casal, visão diferente não se poderia aplicar para o direito sucessório, porquanto o direito é uno e sua interpretação sistemática, não podendo repudiar eventual debate da culpa pela separação do casal em sede de direito de família e admiti-la em face do direito sucessório.

O falecimento de um ente já representa um grande desgaste para a família, sendo desnecessário e até mesmo desumano possibilitar que se ressurja debates e dores passadas acerca de eventual culpa de um dos cônjuges pela separação do casal.

Merece destaque o fato de que o cônjuge falecido não estará presente para sua defesa, gerando sérios problemas probatórios às partes, visto que a parte atacada como suposto culpado pela separação do casal já se encontra falecido. Seria cômico se na realidade não fosse trágica a situação imposta pela legislação pátria.

Em síntese, ao se analisar a tendência doutrinária e jurisprudencial de nossos tribunais, verifica-se a impertinência na manutenção da aferição da culpa em qualquer caso.

Frise-se que este tema já foi objeto do Projeto de Lei nº 4.944/2005, que pretendia reformar o artigo 1.830 do Código Civil nos moldes ora discutidos, sendo que este passaria a ter a seguinte redação: “Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados de fato.”. Tal preceito se coaduna perfeitamente ao debate retro exposto e solucionaria todas as problemáticas causadas pelo artigo 1.830 do Código Civil. No entanto, tal projeto de lei foi arquivado em 31 de janeiro de 2007, fazendo com que a esdrúxula disposição do artigo 1.830 do Código Civil permaneça em nosso ordenamento pátrio.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, percebe-se a necessidade de cautela para análise do artigo 1.830 do Código Civil, em especial na disposição de que o direito sucessório do cônjuge supérstite não se encerra quando este se encontra separado de fato há mais de dois anos desde que a convivência do casal se tornara impossível sem culpa do cônjuge sobrevivente.

A culpa não deve ser questão a ser debatida neste momento, sendo que o simples fato da ruptura da vida em comum, com falência da relação afetiva geradora do amor entre ambos, já basta para a ruptura do direito sucessório, seja o cônjuge supérstite culpado ou inocente pela separação do casal.

Culpado ou não, esta é questão particular do casal, não devendo o judiciário escancarar a intimidade dos cônjuges.

 

Referências
BRASIL. Código Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm. Acessado em 20 out. 2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 467.184-SP. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 05/12/2002. Disponível em http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200201068117&pv=010000000000&tp=51. Acessado em 20 out. 2010.
DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2010.
FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento, in PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coordenador). Afeto, Ética, Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito Civil Aplicado, volume 5: direito de família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. 

Notas:
[1] Art. 1.845, CC: São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
[2] Art. 1.829, CC: A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
[3] DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
[4] Art. 1.573, CC: Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos:
I – adultério;
II – tentativa de morte;
III – sevícia ou injúria grave;
IV – abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;
V – condenação por crime infamante;
VI – conduta desonrosa.
Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.
[5] DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
[6] LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito civil aplicado, volume 5: direito de família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 467.184-SP. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 05/12/2002. Disponível em http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200201068117&pv=010000000000&tp=51. Acessado em 20 out. 2010.
[8] FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento, in PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coordenador). Afeto, Ética, Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.


Informações Sobre o Autor

José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa

Professor de Direito Civil na Universidade de Cuiabá (UNIC) e advogado militante na área cível e consumerista


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Equipe Âmbito Jurídico

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