Dumping social como fator de precarização das relações de trabalho

Resumo: dumping social são as agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas que geram um dano à sociedade, e constituem forma de precarização das relações de trabalho na medida em que, com tal prática, desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. 
 
Sumário: 1.Perspectiva Constitucional das Relações de Trabalho 2.Dumping Social como forma de vilipendiar os direitos sociais 3. Aplicabilidade “ex officio” do parágrafo único do artigo 404 do Código Civil pelo magistrado 4. Conclusão Referências Bibliográficas


1.Perspectiva Constitucional das Relações de Trabalho


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A importância dada ao trabalho, nos dias atuais, ganha cada vez mais atenção, tanto dos operadores do direito, quanto da própria sociedade.


O processo de conscientização impigido na sociedade em relação a seus direitos foi, e é, de suma importância para a efetiva concretização das garantias asseguradas na Constituição Federal.


Não é à toa que a Lei Maior, logo em seu art. 1º, consagra a dignidade da pessoa humana bem como os valores sociais do trabalho, à categoria de fundamentos do Estado Democrático de Direito.


Nas sábias lições do mestre Paulo Bonavides, a dignidade da pessoa humana possui densidade jurídica máxima, sendo pois princípio supremo no trono da hierarquia das normas, consubstanciando assim, todos os ângulos éticos da personalidade.


Vê-se assim que a dignidade perpassa quaisquer valores, posto que é inerente à vida humana, é um direito pré-estatal, que independe de merecimento pessoal ou social.


Logo salta aos olhos que a dignidade está na base do constitucionalismo, servindo de arcabouço jurídico para as demais normas do ordenamento e aqui destacam-se as normas trabalhistas.


De acordo com Francisco Gérson Marques de Lima, o Direito Constitucional chamou para si muitas das realidades e dos institutos do Direito do Trabalho, o que lhes conferiu supremacia e qualificadora previsão.


Desse modo, segundo o mesmo autor, o Direito Constitucional assumiu a paternidade da irrenuciabilidade salarial, dos princípios ordenadores do sindicalismo, dos limites de jornada e de vários direitos básicos consagrados na Constituição, tais como:


1. Consolidou o tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o que é essencial à condição do trabalhador frente ao empregador;


2. Elevou os direitos trabalhistas, antes infraconstitucionais, à condição de superioridade jurídica;


3. Estimulou os direitos de cidadania do trabalhador, mesmo dentro da empresa, assegurando-lhe a condição de cidadão, com prerrogativas inerentes a qualquer ser humano;


4. Firmou competências e atribuições a órgãos próprios, encarregados de aplicarem o Direito do Trabalho – destaca-se aqui a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho;


5. Estendeu a jurisdição constitucional e regramentos de garantias processuais também aos litígios trabalhistas: contraditório, legítima defesa, publicidade, devido processo legal etc.


A bem da verdade, a contribuição dada ao Direito do Trabalho pela Constituição Cidadã é inequívoca, na medida em que esta elenca direitos e garantias fundamentais concretizadas num extensivo rol de direitos sociais, alçados a nível constitucional. Contudo importa destacar que alguns dos institutos do Direito do Trabalho também foram absorvidos pela Constituição, tais como: valor social do trabalho, igualdade salarial, repousos, horas extras etc.


Imperiosa pois a importância das relações laborais na sociedade, vez que o homem encontra no seu labor, a concretização da sua dignidade como pessoa humana.


2.Dumping Social como forma de vilipendiar os direitos sociais


A “teoria do dumping social”, de acordo com o TST, teve origem no contexto de globalização da economia, com o conseqüente desmembramento das plantas industriais, como nos casos da produção de tênis e de bolas esportivas. Nesses conhecidos exemplos, constatou-se que as grandes indústrias desses materiais, transferiram a maior parte de sua produção para os países asiáticos, em que a mão-de-obra é sabidamente barata, alijada de qualquer direito que regulamente as relações de trabalho. Essa situação motivou um movimento mundial destinado a restringir o mercado para tais produtos resultantes da força de trabalho infantil de Bangladesh. Daí criaram-se os selos comprobatórios de que a mercadoria foi produzida em respeito aos direitos dos trabalhadores, o que geraria um plus para a empresa, demonstrativo de sua responsabilidade social.


Segundo a ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas), dumping social são as agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas que geram um dano à sociedade, pois com tal prática desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência.


Tal prática acaba, pois, favorecendo àquelas empresas que não observam a legislação trabalhista em detrimento daquelas que cumprem as regras impostas pelo ordenamento trabalhista. Dessa forma, a empresa inadimplente com as obrigações laborais acaba se favorecendo, pois gasta menos com o pagamento das obrigações legalmente impostas, o que as possibilita baratear seus produtos, gerando assim uma concorrência desleal em face das outras empresas. Essa conduta acaba estimulando a burla ao cumprimento efetivo das normas trabalhistas, gerando um círculo vicioso de desrespeito aos direitos sociais, constitucionalmente garantidos.


Evidencia-se que práticas como essa geram dano à sociedade, configurando ato ilícito por exercício abusivo do direito, vez que extrapolam os limites econômicos e sociais.


Salta aos olhos a necessidade de uma atuação repressiva do Poder Judiciário visando coibir referidas práticas ilícitas, vilipendiadoras dos direitos sociais. O respeito e a observância aos fundamentos do Estado Democrático de Direito não podem ser suprimidos frente a interesses pautados num capitalismo desleal.


A concretização dos direitos fundamentais tem de ser efetiva, posto que uma conduta contrária a essa lógica acabaria por esvaziar todo o contuúdo dessas normas, que passariam a figurar como normas meramente ilustrativas.


O extenso rol de direitos fundamentais dispostos na Constituição, segundo George Marmelstein, demonstra, sem dúvida, uma clara opção em favor desses direitos, indicando assim que o constituinte originário teve verdadeiramente a intenção honesta – e não meramente retórica – de fazer valer esses direitos.


Seguindo essa mesma linha, imperioso os conselhos propugnados por Noberto Bobbio de que não basta apenas enunciar os direitos; é preciso, sobretudo, protegê-los e concretizá-los.


3. Aplicabilidade “ex officio” do parágrafo único do artigo 404 do Código Civil pelo magistrado


A garantia de efetividade dos direitos fundamentais constitui uma obrigação não só dos operadores do direito, mas da sociedade em geral. Sob essa ótica é que, em determinados casos, nos quais referidos direitos não estejam sendo plenamente cumpridos, deve-se ousar em favor dos direitos fundamentais.


Pautado nesse entendimento, George Marmelstein afirma que a dignidade da pessoa humana é um valor que deve legitimar, fundamentar e orientar todo e qualquer exercício do poder.


Ora, se a dignidade da pessoa humana irradia seu conteúdo por todo o ordenamento jurídico, sendo considerado princípio supralegal, com efetividade máxima, não é incongruente pensar que os direitos fundamentais, inspirados por esse princípio, devem ser observados quando da aplicação da norma jurídica.


Contextualizando essa ótica, sob o aspecto do direito do trabalho, é que tem-se no art. 8º, parágrafo único, da lei celetista, autorização para que a Justiça do Trabalho utilize o direito comum como fonte subsidiária do direito laboral. Referido dispositivo impõe apenas um requisito, que deve ser observado: referida aplicação não pode se dar de forma a se incompatibilizar com os princípios da justiça especializada.


A referência do art. 8º ao direito comum, nas palavras de Octavio Bueno Magano, significa o repúdio de cavar um fosso isolacionista em torno do direito do trabalho.


Inserido nesse contexto, não configuraria uma aventura jurídica a aplicação ex officio do parágrafo único do art. 404 do Código Civil à seara trabalhista a fim de desestimular condutas como o dumping social, práticas como essa repita-se, potencialmente lesivas aos direitos sociais.


Corroborando com esse posicionamento, Jorge Luiz Souto Maior assevera que:


Em se tratando de práticas ilícitas que tenham importante repercussão social, a indenização, visualizando esta extensão, fixa-se como forma de desestimular a continuação do ato ilícito, especialmente quando o fundamento da indenização for a extrapolação de limites econômicos e sociais do ato praticado, pois sob o ponto de vista social o que importa não é reparar o dano individualmente sofrido, mas impedir que outras pessoas, vítimas em potencial do agente, possam vir a sofrer dano análogo.


A pertinência desses dispositivos no direito do trabalho é gritante, pois, normalmente, as agressões ao direto do trabalho acabam atingindo uma grande quantidade de pessoas, sendo que destas agressões o empregador muitas vezes se vale para obter vantagem na concorrência com outros empregadores. Isso implica, portanto, dano a outros empregadores que, inadvertidamente, cumprem a legislação trabalhista, ou, de outro modo, acaba forçando-os a agir da mesma forma, precarizando, por completo, as relações sociais,


que se baseiam na lógica do capitalismo de produção. Óbvio que esta prática traduz-se em dumping social, que prejudica toda a sociedade (…)


(…) Com relação às empresas que habitam o cotidiano das Varas, valendo-se da prática inescrupulosa de agressões aos direitos dos trabalhadores, para ampliarem seus lucros, a mera aplicação do direito do trabalho, recompondo-se a ordem jurídica, com pagamento de juros de 1% ao mês, não capitalizados, e correção monetária, por óbvio, não compensa de forma integral, nem o dano sofrido pelo trabalhador, individualmente considerado, quanto mais o dano


experimentado pela sociedade”.


Nesse contexo,o mesmo autor defende a aplicação da indenização suplementar propugnada pelo parágrafo único do art. 404, do Código Civil  como forma de desestimular a prática reiterada de tais condutas, senão vejamos:


“Portanto, as reclamações trabalhistas em face de uma mesma empresa que apresenta agressões reincidentes, tais como: salários, em atraso, pagamento de salários por fora, trabalho em horas extras de forma habitual, sem anotação de cartão de ponto de forma fidedigna e o pagamento do adicional correspondente; não recolhimento do FGTS; não pagamento de verbas rescisórias (…) devem resultar em condenação de uma indenização, por dano social, arbitrado ex officio pelo juiz, pois a perspectiva não é da proteção do patrimônio individual”.


No mesmo sentido do ilustre jurista, José Geraldo da Fonseca adota a mitigação do princípio da inércia, ao elaborar a 5ª proposta de ementa da 4ª Comissão da I Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, organizada pela Associação Nacional dos Juízes do Trabalho – ANAMATRA:


O parágrafo único do art. 404 do Código Civil é aplicável de ofício pelo juiz ou tribunal nas condenações por lesões patrimoniais e extrapatrimoniais reclamadas na Justiça do Trabalho”. (…)


Justificativa


Nem sempre a atualização do débito e os juros de mora a ele aplicáveis cobrem o efetivo prejuízo do trabalhador, especialmente nos casos de reparação moral e de indenização material.


O parágrafo único do art.404 do Código Civil fala em dívidas de dinheiro, mas o enunciado propõe a sua aplicação, de ofício, aos casos de reparação de lesões materiais e morais. Não há qualquer incompatibilidade nisso, e a instituição da indenização suplementar reforça o respeito à dignidade do trabalhador.


A proposta, contudo, não se transformou em ementa. Porém se nota que a valorização dos direitos fundamentais, especificamente a dignidade do trabalhador, ao se tolerar o desequilíbrio formal da relação processual, é tema que vem crescendo na doutrina e na jurisprudência, gerando debates acalorados.


Aliada à tese, existem os poderes conferidos ao Juiz do Trabalho, através do art. 765 CLT, de modo que ele pode determinar qualquer diligência capaz de assegurar a eficácia do direito material a que faz jus a parte.


Assim, pode-se concluir que, se no caso concreto a indenização suplementar for capaz de impedir uma violação à dignidade da pessoa, deve ser aplicada pelo juiz, ainda que não haja provocação, como medida do Estado em função da preservação dos direitos fundamentais, na condição de garantidor destes.A necessidade de intervir, pois, leva o Estado-Juiz, em alguns casos, a impulsionar o processo de ofício, adotando medidas que reestabeleçam o equilíbrio material entre as partes. Neste contexto, é viável a aplicação do parágrafo único do artigo 404 do Código Civil independentemente de provocação, para que possa dar máxima efetividade à dignidade da pessoa humana”.


A mudança proposta pela doutrina em relação ao tema em preço tem, cada vez mais, inspirado os Tribunais laborais do país na aplicação da indenização suplementar do Código Civil às relações de trabalho. Não à toa, o próprio TST já classifica essas agressões reiteradas como “dumping social”, recomendando que seja aplicado o parágrafo único, artigo 404 do Código Civil, como medida eficaz a ser adotada pelo Judiciário para coibir tais práticas.


Nessa vertente, colacionou-se o seguinte julgado da Justiça laboral pátria:


EMENTA: REPARAÇÃO EM PECÚNIA – CARÁTER PEDAGÓGICO – DUMPING SOCIAL – CARACTERIZAÇÃO – Longas jornadas de trabalho, baixos salários, utilização da mão-de-obra infantil e condições de labor inadequadas são algumas modalidades exemplificativas do denominado dumping social, favorecendo em última análise o lucro pelo incremento de vendas, inclusive de exportações, devido à queda dos custos de produção nos quais encargos trabalhistas e sociais se acham inseridos. “As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado Social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido ‘dumping social'” (1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, Enunciado nº 4). Nessa ordem de idéias, não deixam as empresas de praticá-lo, notadamente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, quando infringem comezinhos direitos trabalhistas na tentativa de elevar a competitividade externa. “Alega-se, sob esse aspecto, que a vantagem derivada da redução do custo de mão-de-obra é injusta, desvirtuando o comércio internacional. Sustenta-se, ainda, que a harmonização do fator trabalho é indispensável para evitar distorções num mercado que se globaliza” (LAFER, Celso – “Dumping Social”, in Direito e Comércio Internacional: Tendências e Perspectivas, Estudos em homenagem ao Prof. Irineu Strenger, LTR, São Paulo, 1994, p. 162). Impossível afastar, nesse viés, a incidência do regramento vertido nos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, a coibir – ainda que pedagogicamente – a utilização, pelo empreendimento econômico, de quaisquer métodos para produção de bens, a coibir – evitando práticas nefastas futuras – o emprego de quaisquer meios necessários para sobrepujar concorrentes em detrimento da dignidade humana.( RO   NUM: 00866;   3ª Região- Quarta Turma; relator: Júlio Bernardo do Carmo; DEJT DATA: 31-08-2009 PG: 75).


4. Conclusão


Desta feita, e de acordo com toda a fundamentação colacionada, o parágrafo único, do artigo 404 do Código Civil pode ser aplicado ex officio frente a agressões reicidentes à legislação trabalhista, tais como: não recolhimento de FGTS, salários pagos “por fora”, não concessão de intervalo para refeição e descanso, trabalho em condições insalubres ou perigosas, sem eliminação concreta dos riscos à saúde etc.


Portanto, e mais uma vez utilizando os ensinamentos de Jorge Luiz Souto Maior, a aplicação do dispositivo supracitado pode justificar tanto a fixação de uma indenização ao trabalhador, de caráter individual, diante da ineficácia irritante dos juros de mora trabalhista, quanto serve para impor ao agressor contumaz de direitos trabalhistas uma indenização suplementar, por dano social, que será revertida a um fundo público, destinado à satisfação dos interesses da classe trabalhadora.


É preciso que se tenha em mente a necessidade que urge de ousar para se garantir a efetividade dos direitos fundamentais. Nas palavras de Arion Sayão Romita, é preciso que se cumpra os preceitos estabelecidos nos direitos sociais com o intuito de obter a realização prática do valor supremo da dignidade da pessoa humana.


 


Referências bibliográficas

BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, p.37.

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 233.

FONSECA, José Geraldo da. Proposta nº 5 da 4ª jornada da ANAMATRA.  Disponível em: http://www.anamatra.org.br/jornada/propostas/com4_proposta5.pdf. Consulta: 15 de março de 2010.

LIMA, Francisco Gérson Marques de. Repensando a doutrina trabalhista: o neotrabalismo em contraponto ao neoliberalismo. São Paulo: Ltr, 2009, p.104.

MAGANO, Octavio Bueno. Manual de direito do trabalho. São Paulo: Ltr, 1992, v. 2, p.58.

MAIOR, Souto. Indenização por dano social pela agressão voluntária e reincidente aos direitos trabalhistas. Disponível em: http://www.anamatra.org.br/hotsite/conamat06/trab_cientificos/teses_aprovadas.cfm>. Consulta em 16 de março de 2010.

MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. p.176

ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 3ª ed. São Paulo: Ltr, 2009, p. 279.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

Informações Sobre o Autor

Maria Cláudia Gomes Chaves

Advogada, formada pela Universidade Federal do Maranhão-UFMA, pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-UNIDERP


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Equipe Âmbito Jurídico

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