“A lei, em geral, é a razão humana, enquanto
governa todos os povos da terra; e as leis políticas e civis de cada nação
devem ser apenas casos particulares onde se aplica esta razão humana.
Devem ser tão próprias para o povo para o qual foram feitas que seria um acaso muito grande se as leis de uma nação pudessem
servir para outra. (…)
Devem
ser relativas ao físico do país; ao clima gélido, escaldante ou temperado; à
qualidade do terreno, sua situação e grandeza; ao gênero de vida dos povos,
lavradores, caçadores ou pastores; devem estar em relação com o grau de
liberdade que a sua constituição pode suportar; com a religião de seus
habitantes, com suas inclinações, com suas riquezas, com seu número, com seu
comércio, com seus costumes, com seus modos. Enfim, elas possuem relações entre
si; possuem também relações com sua origem, com o objetivo do legislador, com a
ordem das coisas sobre as quais foram estabelecidas.”1
Tão
feliz e preciso foi o mestre iluminista na exposição de suas idéias que hoje
não existe qualquer dúvida da possibilidade de se visualizar os valores e as
características mais íntimas dos habitantes de cada país, através da
análise cautelosa dos seus ordenamentos jurídicos.
Entretanto,
o exame de uma única norma ou de ordenamentos estabelecidos em situações
excepcionais não é suficiente para a percepção dessa estreita relação.
Ao
revés, é imperiosa a identificação do mesmo instituto ou da mesma previsão
protecionista em várias expressões legislativas, máxime nas normas de natureza principiológica onde são traçados inquestionáveis padrões
comportamentais, para que se possa vislumbrar uma real manifestação do que move
a maioria dos indivíduos componentes de determinada comunidade.
O bem “vida”
como corolário do sentimento do povo brasileiro
No
Brasil, por mais que soframos os efeitos nefastos de uma altíssima inflação
legislativa, fácil é a constatação de que elegemos certos valores como
corolários do sentimento pátrio.
Indubitavelmente,
a proteção ao maior de todos os bens – a vida – encontra-se inserida neste
seletivo rol, sendo ainda possível afirmar que essa proteção, após rápido
desenvolvimento, mostra-se nos dias atuais firme e
intangível, ressalvadas tão somente situações excepcionalíssimas.
Com
efeito, legisladores de todos os períodos do século passado (séc. XX), deram
provas da intolerância de nosso povo a qualquer tipo de ataque ao bem “vida”. A forma como se apresenta o capítulo dos
crimes contra a vida inserido no nosso Código Penal é
um bom exemplo da questão em foco, assim como as previsões do art. 4º do Código
Civil e do art. 5º da Constituição Republicana de 1988.
Até
mesmo o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 6º, inc. I, prescreve a proteção do direito à vida, sendo, por fim,
importante lembrar o dispositivo que anima o art. 7º do Estatuto da Criança e
do Adolescente, o qual, ao dedicar-se ao amparo do direito à vida, o faz de
forma a demonstrar que o ser humano começa a possuí-la antes mesmo do seu
efetivo nascimento.
Preceitua
o art. 7º do E.C.A.: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à
vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam
o nascimento e o desenvolvimento, sadio e harmonioso, em condições dignas
de existência” (grifos).
A
convicção popular do nosso povo de que a vida inicia-se antes do nascimento
Da
análise sistemática do preceito acima transcrito com o Capítulo I do Título I
do nosso Código Penal (crimes contra a vida), onde está tipificado o aborto,
deflui-se claramente a intenção do legislador de transpor para a norma legal a
convicção íntima do povo brasileiro, segundo a qual, todo feto possui vida
desde os primórdios de sua concepção, muito embora encontre-se
durante os nove meses de gestação numa constante formação orgânica.
Sem
relutância, pode-se asseverar que, seja por critérios religiosos ou pelas
comprovações científicas irrecusáveis, de uma maneira geral, os indivíduos
integrantes de nossa sociedade entendem que a proteção da vida humana só é
exercida de forma plena se desde a fecundação do óvulo pelo espermatozóide for
ela defendida e respeitada.
Ademais,
não é de hoje que, com base nesse juízo popular, nossa legislação veda de forma
genérica a prática abortiva em qualquer estágio da gestação. Desde 1830 já era
o aborto um comportamento execrado pelo nosso ordenamento, posto que previsto
no capítulo referente aos crimes contra a segurança da pessoa e da vida do
Código Criminal do Império.
Hodiernamente,
subsistem apenas duas exceções à regra de jamais se permitir a
destruição do objeto da concepção, sendo elas: a possibilidade de aborto quando
a vida da gestante está em perigo em função da gravidez e quando tenha esta
decorrido da consumação de um estupro.
São,
portanto, o aborto terapêutico ou necessário (1ª exceção) e o sentimental ou
honroso (2ª exceção), duas das pouquíssimas situações extremas em que o nosso
repositório de leis permite o sacrifício do bem “vida”.
Apenas
para efeito de registro, uma vez que não se trata do objeto do presente ensaio, confesso acalentar a esperança de que o aborto
decorrente de estupro seja banido definitivamente da categoria de aborto legal.
Tal procedimento, sob a justificativa de resguardar a dignidade da ofendida, dá
ensejo à invulgar situação na qual, ao confrontar-se o direito à vida com um
outro direito individual personalíssimo, não pende a balança que dirime o
aparente conflito para o lado do, antes insofismável, direito de viver.
É
exato que o Estado deve procurar impedir que a mulher seja forçada a ficar
grávida de quem ela não queira, contudo não se justifica,
como forma de cumprimento dessa importante atribuição estatal, o assassínio de
um ser inocente, que, por não ter realizado coisa alguma, por nada poderia se
arrepender nem muito menos ser punido.
Dita
previsão, embora legal, é um resquício da responsabilidade penal objetiva e uma
afronta ao princípio segundo o qual a sanção criminal não deve ultrapassar o
seu limite subjetivo, ou seja, a pessoa do condenado.
Aborto
eugênico: definições e confrontações doutrinárias
Todavia, ao invés de debates incentivadores da
diminuição das hipóteses legais de aborto, a sociedade, impulsionada por um dos
benefícios do recente avanço tecnológico – a possibilidade de se diagnosticar
malformações fetais ainda no início da gravidez -, reacende a discussão acerca
do chamado aborto eugênico ou profilático, o qual, por definição, é o tipo de
aborto que atende às exigências da eugenia, ciência que estuda as condições
mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana.
Evidentemente,
nem todos os defensores da legalização do aborto eugenésico
concordam com o conceito acima transcrito. Aliás, grande parte destes intelectuais esposa a tese de que o aborto seletivo, como
também é conhecido, deve ser legalizado tão somente para que seja permitida a
interrupção da gravidez quando o feto apresente malformação irreversível da
qual decorra a inviabilidade da vida extra-uterina. Essa proposição acaba por
se constituir num verdadeiro “meio termo” entre a legalização da forma clássica
do aborto eugênico e a sua proibição total.
Com
base nos argumentos dessa corrente de pensamento, inúmeras decisões judiciais
vêm sendo proferidas no sentido de se autorizar a prática abortiva quando a
gestante comprova a mencionada inviabilidade, por intermédio de laudos
médicos.
No
entanto, noutras decisões judiciais servem também como fundamento para a
autorização do aborto profilático, além da comprovação da
inviabilidade da vida pós-parto, a comprovação de deficiência física ou
mental e ainda a comprovação da mera possibilidade da deficiência. Dito entendimento,
esdrúxulo e cruel, que assume o risco de condenar à morte feto perfeito física
e mentalmente, pode ser visualizado no seguinte aresto:
“Recurso
– Jurisdição Voluntária – Autorização Judicial – Gravidez – Má Formação
Congênita – Interrupção – Ausência de Previsão Legal – Em se tratando de
processo de jurisdição voluntária, em pedido de autorização judicial, possível
que, na via recursal, se adentre o mérito da causa, ainda que, pela decisão
recorrida, tenha sido julgado extinto o processo, sem o exame da parte
meritória, notadamente quando o caso sub examine está
a exigir decisão urgente. – É de se autorizar a interrupção da gravidez em
caso de constatação de feto com má formação congênita, Encefalocele
Occipital, capaz de reduzir em 50% (cinqüenta por cento) a probabilidade de
nascimento com vida, e, na hipótese de sobrevida, se houver possibilidade de
ocorrer, em 90% (noventa por cento) dos casos, o retardo mental. – Na
decisão judicial, melhor que se fique com a realidade, se existente descompasso
entre esta e a norma jurídica.” (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, proc. 230209-6, j. Ferreira Esteves) – destaquei-
Pode
parecer que, ao se tachar o posicionamento acima registrado como esdrúxulo e
cruel, estar-se-ia exagerando, de vez que o feto do caso específico tinha alta
possibilidade de apresentar deficiência mental ou de morrer no parto. Contudo,
na realidade, é verossímil a afirmação de que, além destas características, o
julgado transcrito detém outras duas: infundado e inconseqüente.
Infundado
porque, como visto, da forma como se apresenta o nosso conjunto normativo, fora
das pouquíssimas exceções legais não é admissível, nem suportável, qualquer ato
atentatório à vida humana, seja ela limitada pela deficiência física ou mental,
esteja ela ameaçada de um termo final prematuro.
A
linha de pensamento retratada no acórdão caracteriza com perfeição a doutrina
do verdadeiro aborto eugênico, pois que veda o nascimento de seres “anormais” –
detentores de características alheias à normalidade – e até mesmo com simples
possibilidade de anomalia, tendo sempre como finalidade evidente o
aperfeiçoamento da raça.
E
não se diga, como muitos vêm fazendo, que o aborto
eugênico, em qualquer das suas hipóteses, por salvaguardar a gestante de um
dano psicológico, constitui-se, na verdade, numa forma de aborto necessário.
Essa
interpretação extensiva e descabida parte do pressuposto de que o aborto
necessário ou terapêutico preserva a saúde
física ou mental da mãe, entretanto o art. 128 do Cód. Penal, em seu inciso I,
é por demais claro ao dispor que o aborto será permitido:
“quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante”. (grifei)
Ora,
será que o dano psicológico alegado, e de fato existente, possui o condão de
por fim à vida da gestante? É possível diante da previsão
legal estender o aborto terapêutico às situações de mero risco à
saúde psíquica da gestante?
O
Prof. Genival Veloso de França, notável doutrinador
do ramo da Medicina Legal, faz referência, em artigo de sua lavra2, a um trabalho publicado na Folha de S. Paulo
onde os autores Martins e Martins desvendam com muita propriedade a origem
dessa estranha interpretação:
“(…)
no começo do século, permitia-se o aborto quando era necessário optar entre a
vida da mãe e a vida do filho; mais tarde, quando a medicina evoluiu e esses
casos passaram a ser raríssimos – mais ainda: hipotéticos – as legislações
passaram a substituir a expressão “vida da mãe” por “saúde da
mãe”, entendendo-se, então, saúde, não como no passado, como ausência de
grave enfermidade, mas como o “estado de perfeito bem-estar físico,
psíquico e emocional da mulher”.”
Tendo
em vista que a legislação pátria, conforme anotado, refere-se à vida da mãe e
não, como querem alguns, à saúde dela e considerando ainda que o aborto necessário
apenas é admitido como último recurso, resta
completamente afastada a possibilidade de se estender ao aborto eugênico o
permissivo legal em tela.
É,
por outro lado, inconseqüente o julgado supra referido. O órgão prolator assina
a “sentença de morte” de um ser humano, sob a justificativa de ter que romper
com a norma legal posta, exclusivamente, para evitar a possibilidade de a
requerente vir a gerar um natimorto ou uma criança que, por ser deficiente, na
sua ótica, constituir-se-ia num sério problema, mesmo que por parco período.
Acresça-se
a isso que o dito acórdão não sopesa a repercussão extremamente negativa que o
seu conteúdo provocará. Mais sofrimentos serão
causados aos deficientes, seja por aumentar a discriminação para com os mesmos,
seja por fazê-los pensar que o sentimento da sociedade para com eles é o de que
são seres execráveis e dispensáveis, antes mesmo de nascer.
Ora,
se havia possibilidade do feto nascer morto (50%), também havia a possibilidade
contrária. Tem qualquer magistrado o direito de, diante de uma situação como
essa, ser pessimista? Por que apostar? Por que escolher impedir a ultimação de
um processo natural do qual poderia resultar mais um ser vivo que, deficiente
ou não, viria chorar, mas também sorrir; odiar, mas também amar; errar, mas
também acertar; causar tristeza, mas também alegria; enfim, viver?
Em
palavras de Rudolf Von Ihering
3
“(…)
injustiça alguma cometida pelo homem, qualquer que seja a sua gravidade, pelo
menos para o senso moral ileso, pode ser, de longe, comparada com a injustiça
praticada pela autoridade investida em suas funções, pela graça de Deus, quando
ela própria viola o direito. O “homicídio da justiça”, como a nossa
língua costuma chamar, de forma tão apropriada, é o verdadeiro pecado moral do
direito. O defensor e guardião da lei transforma-se em
assassino, e o ato que pratica assemelha-se ao do médico que envenena o doente,
ao do tutor que estrangula o pupilo”.
O
“homicídio da justiça” ao qual se refere Ihering
pode muito bem ser transportado para o nosso tempo e para o específico caso das
decisões judiciais que autorizam, ainda que contra legem,
o aborto de fetos que apresentam deficiência ou a mera probabilidade desta.
Aqui, a Luta pelo Direito transmuda-se na Luta pelo Direito à Vida.
Perspectiva
de legalização
Esse
embate apresenta prognósticos sombrios em nosso país, em virtude da tramitação
no Congresso Nacional de um anteprojeto cujo objetivo é alterar o art.
128 do Código Penal que passaria a conter a seguinte redação:
“Art. 128 – Não constitui crime o aborto
praticado por médico se:
I
– não há outro meio para salvar a vida ou preservar a saúde da gestante;
II
– a gravidez resulta de violação da liberdade sexual, ou do emprego não
consentido de técnica de reprodução assistida;
III
– há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro
apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais. (…)” (grifos inexistentes no original)
A
aprovação desse anteprojeto consistirá na vitória dos que defendem a doutrina
clássica do aborto eugênico. Mais, caracterizará um
incrível contra-senso, pois, de acordo com o que foi explicitado alhures, a
tendência mais moderna do nosso legislador, externada em normas aplaudidíssimas
como o C.D.C. e o E.C.A., é exatamente a de confirmar o Brasil como um país
garantidor dos direitos fundamentais de todos os que aqui habitam e transitam,
em especial dos direitos à igualdade e à vida.
Essa
tendência legislativa não advém do mero acaso, é ela decorrência da estreita
relação, demonstrada por Montesquieu, existente entre os valores mais íntimos
do nosso povo e a formação das nossas leis positivas.
Também
não foi por acaso a referência feita ao direito à igualdade, pois que a
projetada previsão legal, além de indiscutivelmente relegar a um plano inferior
a proteção ao direito à vida, flagrantemente atenta contra o princípio
constitucional e internacional da igualdade quando deixa de resguardar aos
comprovadamente deficientes e, repita-se, aos que possuem a mera probabilidade
de serem deficientes o direito de nascer e de viver, prerrogativa essa
amplamente assegurada a todos os demais seres humanos.
Sem
dúvida, é, no mínimo, desalentador conjeturar que poderemos ter em nossa pátria
uma legislação que, além de legalizar o aborto eugênico, permitirá, em não
raras situações, o aborto puro e simples, isto é, o aborto de feto
perfeitamente normal, pleno em sua constituição física e psíquica.
Causa
igualmente profundo pesar imaginar que seres humanos podem vir a ser impedidos
de nascer pelo simples fato de portar a Síndrome de Down,
por exemplo, ou não possuir todos os seus membros perfeitamente formados, não
escutar de forma perfeita ou, ainda, ter disfunção hormonal, dentre muitos
outros casos.
Em
matéria noticiada pelo Prof. Genival Veloso de
França, no artigo citado em epígrafe, o professor Jérome
Lejeune, pesquisador da Universidade René Descartes,
de Paris, especialista em Genética Fundamental e descobridor da causa
genética da Síndrome de Down, declara: “Os fetos que
apresentam problemas, as crianças que nascem doentes, com síndrome de Down, por exemplo, têm todo
direito de viver, o mesmo direito dos seres humanos considerados 100%
saudáveis. Os defensores do aborto dizem que o feto na barriga da mãe,
especialmente nas primeiras semanas da gravidez, ainda não é pessoa, ainda não
vive. Isso é uma distorção da verdade científica” (grifo).
Este
mesmo cientista, após ser perguntado se o aborto eugênico não seria uma prática
em favor da criança, sentencia: “O aborto resolve o problema dos pais, não o
dos filhos. É ingênuo acreditar que os pais defendem o aborto porque o feto tem
um problema irreversível. Na verdade, essas pessoas se servem das doenças
detectadas pelos modernos exames pré-natais para que tenham o direito de se ver
livres de uma criança com malformação, para não terem problema”.
E,
com muita propriedade, arremata: “O nascimento de uma criança com problemas,
mentais ou físicos, é uma revelação terrível. Os pais sofrem profundamente e
este sofrimento pode levar a duas situações: uma é a reaproximação do casal,
que se une como nunca. Outra possibilidade é os pais não suportarem o golpe e
aí a família se quebra. Mas a experiência mostra que há menos divórcios nas
famílias cujos filhos têm deficiência do que nas famílias com filhos normais.”
Nada
como o comentário de quem lida diariamente com o “problema” de um filho
deficiente.
De
fato, não se pode negar que o diagnóstico de deficiência física ou mental do
rebento que está para nascer consiste num abalo difícil de ser superado por
qualquer casal, no entanto, caso fosse realizada uma pesquisa com as pessoas
que tiveram a experiência de conviver com um filho nessas condições, até mesmo
com aquelas que a isso foram obrigadas, com certeza, grande parte delas
relataria como foi importante em suas vidas a vinda
deste ser, independentemente de ter ele falecido em poucos dias, meses, anos ou
ainda permanecer vivo.
Além do mais, ao seguir-se o raciocínio segundo o
qual o feto deficiente não deve nascer, pois enfrentaria uma existência de
sofrimento e privações – um pseudo-argumento para o Dr. Jérome
-, seria admissível que os juízes do nosso país autorizassem o aborto, por
exemplo, do sexto filho de um casal de sertanejos pobres e desempregados ou do
feto que não é bem-vindo pela gestante e etc.
Ou
seja, em outras palavras, se fossemos na esteira da orientação supra registrada
acabaríamos por banalizar de tal forma o aborto que seria melhor, até mesmo
para o bem do Judiciário, a sua legalização definitiva.
Em
suma, impende constatar que absolutamente nenhuma proposição ou tese, argumento
ou estudo é capaz de tornar aceitável o aborto de fetos com malformações que
importarão em deficiências físicas ou psíquicas. Que dizer então do aborto de
fetos com a mera possibilidade de possuírem tal característica?
Todas
as teorias favoráveis a esses posicionamentos, além de inconstitucionais e
ilegais, são imorais, antiéticas e desumanas, devendo ser, portanto, proscritas
do meio em que vivemos.
Discussão
distinta é a observada nas hipóteses de apresentar o feto malformação que venha
a inviabilizar a sua vida extra-uterina.
Distinta
porque, para os que defendem a interrupção da gestação de feto anencéfalo, por exemplo, de nada adianta argumentar que
existe vida naquele ser até o instante da ruptura do cordão umbilical.
Com
efeito, a tese esposada é a de que não há justificativa para se levar adiante
uma gravidez quando se sabe de antemão que o feto seguramente não sobreviverá.
Essa imposição, segundo afirmam, implicaria num dano psicológico desnecessário
à gestante.
A
bem da verdade, senti-me, a princípio, impelido a concordar com tal posição,
visto que ela se me afigurava bastante racional.
No
entanto, refletindo acerca do tema, não consegui obter uma resposta positiva
para alguns questionamentos de cunho jurídico, científico e ético que surgiram.
Afinal,
como seria a definição jurídica de inviabilidade? A lei seria modificada a cada
novo avanço da medicina que a influenciasse ou a previsão seria genérica, como
por exemplo: “é permitido abortar quando restar comprovada a impossibilidade de
vida extra-uterina”? Sendo genérica, como é mais lógico pensar, qual
comprovação se exigiria: a dos médicos ou a dos cientistas que trabalham
diariamente buscando novas descobertas no campo da reconstituição ou construção
de órgãos, como, por exemplo, o cérebro?
Nesse
contexto cabe ainda indagar: se a ciência avançasse nas descobertas suprareferidas e permitisse que os mais abastados tivessem
auxílio biogenético no sentido de desenvolver o cérebro do seu rebento, haveria
inviabilidade para os que detêm menos riquezas? Esta inviabilidade monetária
seria abrangida pela lei?
E
não se imagine que tais avanços científicos constituem pura ilusão! Na revista Science de julho de 2001 foi divulgada uma pesquisa
pioneira realizada por cientistas americanos, através da qual foram injetadas
células humanas embrionárias no cérebro de um macaco que ainda estava no útero
da mãe. Elas se instalaram perfeitamente e corrigiram erros neurológicos. “No
futuro, essa técnica poderá ser utilizada para reverter anomalias cerebrais dos
bebês durante a gestação”, afirma o Dr. Curt Freed.
Ademais,
já noutra linha de raciocínio, após a aprovação de uma lei que autorizasse o
aborto nos casos de inviabilidade de vida pós-parto não ocorreria uma pressão
social para que o permissivo fosse estendido para abranger também as hipóteses
de pura deficiência?
O
efeito psicológico da legalização do aborto dos fetos considerados inviáveis
provocaria em algumas mães que gestassem um feto
deficiente o raciocínio de que melhor seria se eles fossem inviáveis, pois
então poderiam ser abortados. Isso já ocorre hoje em função das decisões
judiciais que, mesmo contra expressa disposição normativa, autorizam esse tipo
de aborto!
Por
outro lado, tudo na natureza: os componentes do reino vegetal, do reino
mineral, os animais irracionais, mesmo os microscópicos, têm a sua importância,
eis que cumprem algum papel, desempenham alguma função, e por isso são
protegidos e resguardados. Será que o feto hoje considerado inviável também não
tem a sua importância, não cumpre algum papel?
Talvez,
ante os ainda limitados conhecimentos científicos da humanidade atual, não;
mas, quem pode garantir quais serão as descobertas futuras. Não podemos olvidar
que para Hipócrates, pai da medicina, uma simples febre se cuidava com a
sangria. Hoje isso é um absurdo. O que será que pensaremos daqui a algumas
décadas acerca da existência de fetos que nascem desprovidos do cérebro?
Impossibilidade,
ante a atual legislação pátria, de os magistrados permitirem o aborto de fetos
cuja malformação diagnosticada inviabiliza a vida extra-uterina
A
despeito de tudo isso, mesmo que não se considere válido nenhum dos
questionamentos formulados, entendo que autoridade judiciária alguma pode
deferir, com base nas leis em vigor, um pedido referente à prática do aborto de
feto inviável. A nossa lei, em nenhuma hipótese, prevê qualquer sustentáculo a
uma decisão como essa.
Da
mesma forma que o magistrado, possuidor de idéias contrárias ao aborto
decorrente do estupro, é obrigado por lei a o permitir quando a ofendida assim
o requer, o juiz que se filia à corrente dos que defendem a legalização do
aborto de fetos inviáveis, está obrigado por lei a negar a autorização
caso a gestante a peça.
O
raciocínio é indisfarçavelmente o mesmo. E se alguém tivesse
que reclamar desta analogia, que fosse o primeiro magistrado, de vez que,
enquanto na situação referente ao aborto de fetos inviáveis a subjugação das
convicções pessoais do julgador pela fria previsão legal acarreta um dano
psicológico desnecessário à gestante, na hipótese respeitante ao aborto
decorrente de estupro a mesma subjugação das convicções pessoais do julgador
implica na interrupção da gestação de um feto quase sempre perfeito, física e
mentalmente.
Nem
sempre o que se entende como certo e justo é expresso na norma legal. É
evidente que o Estado-juiz não está de todo impedido de tomar a iniciativa, por
suas decisões, de adequar as normas positivas às
exigências sociais. Tal iniciativa, todavia, limitada por se constituir numa exceção,
apenas é legitimada quando expressa princípios e valores próprios das pessoas
que representa, o que não é verossímil no que tange ao
tipo de aborto ora tratado.
Conclusão
Urge,
portanto, empreender esforços para que o sentimento de uma minoria não tome
vulto em nossos corações ressequidos e desalentados pela
rotina diária e pela indiferença.
Não
se pode permitir que as injustiças e atrocidades banalizadas em nosso meio
façam surgir seres endurecidos a ponto de permitir verdadeiros vilipêndios à moral
de nossa gente e às conquistas da nossa história.
É
preciso coerência em defesa da vida, como muito bem disse o Dr. Luiz Flávio
Borges D´Urso, pois “quem é
contra a pena de morte, contra a eutanásia, contra o suicídio assistido, não
pode posicionar-se a favor da eliminação da vida pelo aborto”. 4
Assim
posta a questão, concluo essas singelas considerações,
formuladas ainda no início da minha vida profissional, lembrando, mais uma vez,
as lições do iluminado Charles de Secondat, Barão de
Montesquieu, por expressarem estas suas palavras a minha certeza íntima de que,
apesar das nossas limitações, somos todos responsáveis pela construção de uma
sociedade mais digna e mais justa:
“Se eu pudesse fazer com
que todos tivessem novas razões para amarem seus deveres, seu príncipe, sua
pátria, suas leis, com que pudessem sentir melhor sua felicidade em cada país,
em cada governo, em cada cargo que ocupam, considerar-me-ia o mais feliz dos
mortais.
Se
eu pudesse fazer que aqueles que comandam aumentassem seus conhecimentos sobre
o que devem prescrever, e se aqueles que obedecem encontrassem um novo prazer
em obedecer, considerar-me-ia o mais feliz dos mortais.
Considerar-me-ia o mais feliz dos mortais se eu
pudesse fazer com que os homens conseguissem curar-se de seus preconceitos.”
5
Notas
1 Montesquieu, Charles
de Secondat, Baron de; O Espírito das leis, 2ª ed.,
2ª tiragem, pág. 16/17, trad. Cristina Murachco.
2 Recuperado no site www.terra-juridica.com
em data de 21/08/2001
3 A Luta pelo Direito, Ed. RT, 1ª ed., 2ª tiragem,
pág. 74/75, trad. de José Cretella Jr. e Agnes Cretella
4
artigo
publicado no site www.jusnavegandi.com.br
e recuperado em data de 20/08/2001
5 Op. cit., p. 06/07.
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