Resumo: Os direitos fundamentais assumiram um papel de destaque na Constituição brasileira de 1988, marcada pela preocupação do poder constituinte originário em combater as violações de direitos tão comuns na ditadura militar. O presente artigo científico tem como tema a eficácia dos direitos fundamentais, analisada em seus aspectos subjetivo e objetivo. Seu objetivo geral é estudar como ocorre a eficácia dos direitos fundamentais. Para tanto, são objetivos específicos analisar o que se entende por direitos fundamentais, por eficácia, e traçar, ao final, um parâmetro entre os direitos fundamentais e sua eficácia, por meio de uma investigação bibliográfica sob o método indutivo. Conclui-se que a eficácia dos direitos fundamentais possui dois aspectos: um subjetivo e outro objetivo, estando compreendidos no primeiro diferentes graus de efeitos, conforme a categoria de direitos fundamentais. Ainda, no aspecto objetivo, pode-se concluir que os direitos fundamentais possuem eficácia vertical, horizontal e irradiante.
Palavras chave: Eficácia. Aplicabilidade. Direitos fundamentais. Direito positivo. Ordem constitucional.
Abstract: The fundamental rights took an important role in Brazil’s 1988 constitution, marked by the constituent power concern about combat rights violations occurred in military dictatorship. This scientific article focuses on fundamental rights effectiveness, analyzed in its subjective and objective aspects. Its general objective is to study how the fundamental rights effectiveness occurs. Therefore, specific objectives are to analyze what fundamental rights means, effectiveness, and in the end, draw a parameter of the fundamental rights and their effectiveness, through a bibliographic research on inductive method. It follows that the effectiveness of fundamental rights has two aspects: one subjective and other objective, included in the first varying effects, depending on the fundamental rights category. Still, in the objective aspect, it can be concluded that the fundamental rights has vertical, horizontal and radiant effectiveness.
Key words: Effectiveness. Applicability. Fundamental rights. Positive law. Constitutional order.
Sumário: Introdução; 1.Direitos fundamentais; 2.Eficácia; 3. Eficácia dos direitos fundamentais; Considerações finais; Referências das fontes citadas.
INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem como tema a eficácia dos direitos fundamentais, analisada a partir de seus aspectos subjetivo (dependendo de cada categoria de direito fundamental) e objetivo (eficácias vertical, horizontal e irradiante).
Seu objetivo geral é estudar como se dá a eficácia dos direitos fundamentais, apresentando as especificidades do aspecto subjetivo da eficácia dos direitos fundamentais (direitos subjetivos de que são titulares as pessoas – físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras) e do aspecto objetivo, no tocante à eficácia irradiante e à horizontal (entre particulares) desses direitos.
Nesse sentido, se apresentam como objetivos específicos analisar, em um primeiro momento, o que se entende por direito fundamental, abrangendo aspectos terminológicos e espaciais, conceituais, históricos, e a positivação dos direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Em seguida, são abordados o conceito de eficácia e a eficácia das normas constitucionais em geral. Por fim, é destacada a eficácia específica de direitos fundamentais, sendo traçado um paralelo entre a determinação constitucional de aplicação imediata dos direitos fundamentais (expressa no art. 5º, parágrafo 1º da CRFB/1988), as categorias de direitos e os aspectos objetivos da eficácia de direitos fundamentais – eficácia horizontal e irradiante. Para tanto, faz-se uma investigação bibliográfica sob o método indutivo.
É notável a preocupação do constituinte originário com a garantia e a efetiva materialização dos direitos fundamentais. Isso porque, durante mais de 20 anos vigorou no Brasil um regime ditatorial que violava e limitava direitos individuais, situação que não poderia perdurar com a inauguração de um novo ordenamento jurídico democrático. Assim, os direitos fundamentais assumem papel de destaque no regramento brasileiro, com a criação de diversos mecanismos que garantem – ou tentam garantir – a máxima efetividade destes tanto social quanto juridicamente. Daí porque estudar a eficácia dos direitos fundamentais e os mecanismos para sua real observância tornou-se tão importante para a doutrina constitucional atual.
DESENVOLVIMENTO
1. Direitos fundamentais
1.1 Delimitação terminológica e espacial
Quando se trata do tema direitos fundamentais, surgem alguns problemas iniciais quanto à determinação da mais adequada expressão a ser utilizada: “direitos fundamentais”, “direitos humanos”, “direitos naturais”, “direitos do homem”, “direitos morais”, “direitos públicos subjetivos”, etc.
Para Ingo Sarlet[1], a preferência pelo termo “direitos fundamentais” se dá pelos seguintes motivos: a) é esta a que se encontra positivada na Constituição Federal de 1988, em seu Título II; b) a tendência majoritária na doutrina moderna constitucional em rechaçar expressões como “direitos naturais”, “direitos civis”, “direitos individuais”, “liberdades públicas”, “liberdades fundamentais”, porque anacrônicos (em desacordo com o atual estágio dos direitos fundamentais, notadamente na perspectiva de um Estado Democrático e Social de Direito) e insuficientes para abarcar a abrangência do assunto.
Gregorio Peces-Barba[2], por sua vez, sustenta que a expressão “direitos fundamentais” é a forma linguística mais precisa, tendo em vista que: a) é mais precisa que a expressão “direitos humanos”, e não tanto ambígua quanto essa; b) pode abarcar as duas dimensões em que se encontram os direitos humanos, sem cair nos reducionismos jus naturalista ou positivista; c) é mais adequada que “direitos morais” ou “direitos naturais”, porque estas não compreendem a faceta jurídico-positiva dos direitos humanos; d) se adequa melhor do que os termos "direitos públicos subjetivos” ou “liberdades públicas”, já que podem perder de vista a dimensão moral, e limitar-se à faceta positivada.
Cumpre destacar a confusão atual na doutrina no emprego dos termos “direitos fundamentais” e “direitos humanos” enquanto sinônimos. Certo é que os direitos fundamentais são sempre direitos humanos, já que seus titulares serão sempre seres humanos, individualmente ou coletivamente considerados. No entanto, entende-se que para abarcar aqueles direitos reconhecidos e positivados na ordem constitucional de um Estado usa-se a expressão “direitos fundamentais”, e para se referir aos documentos de direito internacional, que reconhecem direitos ao ser humano como tal, independentemente de local e tempo, de ordem supranacional, usa-se “direitos humanos”[3].
Assim, este estudo delimita-se terminologicamente no campo dos direitos fundamentais, ou seja, positivados na Constituição Fundamental de um Estado. Enquanto delimitação espacial, tem-se a República Federativa do Brasil.
1.2 Aspectos conceituais
Os direitos fundamentais são aqueles direitos que almejam fundamentalmente “criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana”, segundo Konrad Hesse. No entanto, fora proposta uma outra acepção mais restrita para explicar o tema: os direitos fundamentais são aqueles direitos que o ordenamento qualifica como fundamentais[4].
Segundo Carl Schmitt, os direitos fundamentais podem ser caracterizados por dois critérios formais e um material: do primeiro critério formal pode-se aduzir que são direitos fundamentais todos aqueles direitos e garantias especificados na ordem constitucional. Já o segundo critério formal estabelece que os direitos fundamentais são aqueles com grau mais elevado de garantia e segurança, grau esse constitucionalmente estabelecido – são imutáveis ou de alteração dificultosa. Pelo critério material, cada Estado possui seus direitos fundamentais específicos, porque estes variam de acordo com a ideologia, os valores e os princípios por ele adotados. Em uma perspectiva do Estado de Direito Liberal, por exemplo, direitos fundamentais são essencialmente aqueles direitos de liberdade do homem em face do Estado[5].
Para melhor compreender os direitos fundamentais, faz-se necessária a sua análise histórica, uma vez que essa evolução guarda relação de proximidade com a própria caracterização desses direitos, além de revelar a exata evolução da sociedade tal qual conhecemos hoje.
“A análise histórica torna-se extremamente útil para se explicitar a evolução e classificar os direitos e garantias fundamentais segundo seu conteúdo, tendo em vista que, a partir do início do constitucionalismo, é possível distinguir diversas “dimensões” de direitos, segundo os problemas ou condições do momento histórico em que foram desenvolvidos”[6].
1.3 Perspectiva histórica
Ao longo da história, a positivação de direitos seguiu as necessidades exigidas em dado momento. Isso porque o desenvolvimento nos campos social, econômico e tecnológico acarretou o surgimento de novas carências, que reclamaram novos direitos. Por exemplo, a revolução industrial criou condições fáticas que demandaram o surgimento dos direitos de proteção social. O atual desenvolvimento técnico e econômico, por sua vez, provavelmente trará consigo novas demandas de novos direitos[7].
Perez Luño[8] ressalta que a positivação dos direitos fundamentais resulta de uma dialética constante entre o desenvolvimento de técnicas para reconhecer tais direitos e a afirmação ideológica dos ideais de liberdade e dignidade humana.
Assim, os direitos fundamentais teriam surgido a partir de carências dos indivíduos com relação à sua liberdade e dignidade, tão desprestigiadas quando imperavam os valores sustentadores do Estado absolutista. Além disso, positivaram-se tais direitos a partir do momento em que o homem soube que teria meios para garanti-los e protege-los.
Segundo Norberto Bobbio[9], a positivação dos direitos fundamentais (ou direitos do homem, para usar o termo elegido pelo autor) teve sua evolução marcada por três fases:
“O desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar, para o indivíduo, ou para grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais – concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente, como autonomia – tiveram como consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –, como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou liberdade por meio do Estado”.
Essas três fases são também chamadas pela doutrina de gerações ou dimensões de direitos fundamentais. A par das discussões doutrinárias a respeito do melhor termo a ser utilizado (se “gerações” ou “dimensões”), neste trabalho busca-se utilizar o termo referido por cada autor citado.
“Desde o seu reconhecimento nas primeiras Constituições, os direitos fundamentais passaram por diversas transformações, tanto no que diz com o seu conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, eficácia e efetivação, razão pela qual se fala (como é o caso de Antonio E. Pérez Luño) até mesmo num processo de autêntica mutação histórica vivenciado pelos direitos fundamentais. Por outro lado, com o objetivo de ilustrar tal processo, passou a ser difundida — por meio da voz de Karel Vasak, a partir de conferência proferida em 1979 no Instituto Internacional de Direitos Humanos, em Estrasburgo, — a ideia de que a evolução dos direitos (humanos e fundamentais) poderia ser compreendida mediante a identificação de três “gerações” de direitos, havendo quem defenda a existência de uma quarta e até mesmo de uma quinta e sexta geração de direitos humanos e fundamentais”[10].
Segundo Paulo Bonavides[11], os direitos fundamentais passaram a se manifestar na ordem institucional em três gerações que traduzem um processo cumulativo e qualitativo. Na primeira geração, os direitos de liberdade. Na segunda, de igualdade, e na terceira, direitos de solidariedade.
Quanto à primeira geração, pode-se dizer que foram os primeiros a constar de uma ordem constitucional, e abarcam os direitos civis e políticos, que correspondem, em grande parte, à inauguração do constitucionalismo no Ocidente[12].
“Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”[13].
São direitos que expressam a valorização do indivíduo frente ao Estado, produto do pensamento liberal-burguês da época. Chamados de direitos negativos, expressam uma maior autonomia do indivíduo ante ao Estado, obrigando este a uma abstenção[14].
Na segunda geração de direitos fundamentais surgem os sociais, culturais, econômicos e os direitos coletivos ou de coletividades, enquanto manifestação do constitucionalismo do Estado social, e representam principalmente o valor da igualdade. De forma semelhante aos direitos de primeira geração, os de segunda expressam formulações filosóficas e políticas de cunho acentuadamente ideológico, e podem ser amplamente verificados nas Constituições do segundo pós-guerra[15].
“O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos que a acompanharam as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração formal de liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já no decorrer do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social”[16].
Em suma, os direitos sociais podem ser identificados por sua dimensão positiva, uma vez que o Estado passa a intervir na sociedade a fim de garantir o bem-estar das pessoas[17].
No entanto, esses direitos de segunda geração ou dimensão passaram por uma crise de efetividade, ante ao fato de serem direitos que exigem prestações materiais, atividades positivas do Estado, e que nem sempre podem ser concretamente garantidas. Recentemente, constituições formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, inclusive a brasileira de 1988, buscando tornar tais direitos mais efetivos e pôr fim a essa crise[18].
Na terceira geração de direitos fundamentais, surgem aqueles direitos que buscam atender aos anseios de um mundo dividido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, denotando o valor principal da fraternidade. São direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses individuais, de um grupo ou Estado. Se destinam ao gênero humano e têm por temas o desenvolvimento, a paz, o meio ambiente, a comunicação e o patrimônio comum da humanidade[19].
“Os direitos fundamentais da terceira dimensão, também denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade transindividual (coletiva ou difusa). Para outros, os direitos da terceira dimensão têm por destinatário precípuo “o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[20].
Há ainda quem entenda existir uma quarta geração de direitos fundamentais. Paulo Bonavides[21] sustenta que o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo podem ser classificados como direitos de quarta geração, e são resultado da globalização dos direitos fundamentais, e deles depende a máxima universalidade da sociedade futura – um mundo sem barreiras entre os diferentes Estados e povos.
Para outros autores, a quarta dimensão é marcada pelos avanços na área da informática (espaços virtuais, internet, etc.), da manipulação genética (clonagem, transgênicos, reprodução assistida, etc.), e que dão ensejo à necessidade de proteção à essência do ser humano e dos seres genéticos[22].
Paulo Bonavides[23] propõe ainda uma quinta geração, na qual se encontra o direito à paz: “O direito à paz é concebido ao pé da letra qual direito imanente à vida, sendo condição indispensável ao progresso de todas as nações, grandes e pequenas, em todas as esferas”.
Gerardo Pisarello[24], ao criticar a tese geracional dos direitos fundamentais, reflexiona que ela estabelece uma história excessivamente formalista dos direitos, não abrangendo seus defeitos e retrocessos. Os direitos sociais, tratados pela tese como direitos de segunda geração, estão longe de ser produto de uma evolução harmônica e inevitável, mas são resultado de conflitos pela abolição de privilégios e a transferência de poder e recursos de uns setores sociais a outros. Foram conquistas obtidas por reformas políticas em alguns casos, e por rupturas em outros; em certas ocasiões tiveram um alcance inclusivo e conseguiram melhorar as condições de vida de grandes coletividades e em outras, pelo contrário, tiveram um alcance limitado e excludente. Mas, em todo caso, foram sempre conquistas precárias, nunca garantidas de uma vez e para sempre e expostas, consequentemente, a um destino aberto de avanços e retrocessos.
Em que pese a correção de algumas críticas formuladas à tese das gerações dos direitos fundamentais, esta tem sua importância didática a fim de classificar e tornar mais claro o estudo do tema, daí porque tão difundida e aceita pelos doutrinadores.
Certo é que, ao longo da história, a existência dos direitos fundamentais possui como condição o existir de uma Constituição:
“A Constituição (e, neste sentido, o Estado constitucional), na medida em que pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada dos órgãos estatais, constitui condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no âmbito de um autêntico Estado constitucional. Os direitos fundamentais, consoante oportunamente averbou Hans-P. Schneider, podem ser considerados, neste sentido, conditio sine qua non do Estado constitucional democrático”[25].
Dessa forma, enquanto condição de existência e de eficácia dos direitos fundamentais (objeto principal do presente estudo), faz-se necessário tecer alguns comentários a respeito da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, que inaugurou o ordenamento vigente e estabeleceu os direitos fundamentais atualmente assegurados.
1.4 Os direitos fundamentais positivados na Constituição brasileira de 1988
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no ano de 1988, estabelece um vasto catálogo de direitos fundamentais, inovando no ordenamento pátrio ao tratar com tamanho apreço a matéria:
“Traçando-se um paralelo entre a Constituição de 1988 e o direito constitucional positivo anterior, constata-se, já numa primeira leitura, a existência de algumas inovações de significativa importância na seara dos direitos fundamentais. De certo modo, é possível afirmar-se que, pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, a matéria foi tratada com a merecida relevância. Além disso, inédita a outorga aos direitos fundamentais, pelo direito constitucional positivo vigente, do status jurídico que lhes é devido e que não obteve o merecido reconhecimento ao longo da evolução constitucional”[26].
Isso se deve basicamente ao período histórico que antecedeu sua promulgação: 21 anos de ditadura militar. Durante esse tempo, marcado essencialmente pelo autoritarismo, as liberdades fundamentais foram restringidas ou até mesmo aniquiladas. Daí o nascimento da Constituição de 1988, como uma reação do Constituinte e das forças sociais e políticas a tudo isso[27].
Além dos direitos vastamente e formalmente estabelecidos, a referida Carta ainda estabelece expressamente a possibilidade de outros direitos materialmente fundamentais, em seu artigo 5º, parágrafo 2º. Dessa forma, no sistema brasileiro são admitidos os direitos fundamentais formais (posições jurídicas expressamente reconhecidas e protegidas no diploma constitucional interno dos Estados) e os materiais (no sentido de seu conteúdo, que deve abranger direitos relativos a estrutura do Estado e da posição da pessoa humana na sociedade)[28].
Para estabelecer um conceito de direitos fundamentais em consonância com a ordem constitucional brasileira, Ingo Sarlet[29] propõe que são direitos fundamentais todas as posições jurídicas relativas às pessoas naturais ou jurídicas que foram integradas explícita ou implicitamente à Constituição (e retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos), assim como as posições jurídicas que possam ser e elas equiparadas por seu conteúdo e significado.
Assim, o ordenamento brasileiro abrange dois grandes grupos:
“(a) direitos expressamente positivados, seja na constituição, seja em outros diplomas jurídico-normativos de natureza constitucional; (b) direitos implicitamente positivados, no sentido de direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios constitucionais ou direitos subentendidos nas normas de direitos fundamentais expressamente positivadas, em suma, direitos que não encontram respaldo textual direto, podendo também ser designados de direitos não escritos”[30].
No primeiro grupo (dos direitos expressamente positivados) se encontram os direitos constantes do Título II da CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que estabelece os direitos e garantias fundamentais, os direitos fundamentais esparsos na Constituição e os direitos fundamentais previstos em tratados internacionais sobre direitos humanos[31].
Dentre estes direitos, podemos citar exemplificativamente o direito à vida, à liberdade, à igualdade, a gratuidade para os reconhecidamente pobres do registro civil de nascimento e da certidão de óbito[32].
No entanto, surge questionamento sobre a possibilidade de existirem direitos fundamentais positivados na legislação infraconstitucional: alguns doutrinadores entendem que “nada mais é (…) do que a explicitação, mediante ato legislativo, de direitos implícitos ou mesmo decorrentes do regime e dos princípios, desde logo originariamente fundados na Constituição”[33].
Nesse contexto estão inseridos os direitos da personalidade consagrados no Código Civil de 2002, que podem ser considerados como direitos deduzidos de uma cláusula geral de tutela da responsabilidade, ancorada no direito de liberdade e no princípio da dignidade da pessoa humana[34].
Já no segundo grupo (dos direitos fundamentais implicitamente positivados), podem ser encontrados por exemplo, os direitos à identidade genética da pessoa humana, à identidade pessoal, e as garantias do sigilo bancário e fiscal[35].
2. Eficácia
2.1 Aspectos introdutórios
Eficácia, aplicabilidade, efetividade são termos diversos utilizados pelos doutrinadores que se referem a um mesmo problema: a força jurídica das normas constitucionais, as quais “possuem uma normatividade “qualificada” pela supremacia da constituição no âmbito da ordem jurídica de um Estado Constitucional”[36].
No entanto, não há consenso na doutrina para que seja utilizada uma ou outra expressão.
Para José Afonso da Silva[37] o termo eficácia deve ser entendido em dois sentidos: o primeiro, da eficácia social da norma, ou seja, a aplicação da norma constitucional no mundo dos fatos. O segundo diz respeito à eficácia jurídica da norma constitucional, ou seja, à qualidade de produzir efeitos jurídicos ao regular situações e comportamentos positivados. Nesse sentido, a eficácia refere-se à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma constitucional, a possibilidade de sua aplicação jurídica.
O autor[38] destaca ainda a conexão entre os fenômenos da eficácia e da aplicabilidade, como sendo aspectos de um mesmo fenômeno, vistos sob pontos de vista diferentes:
“Aquela como potencialidade; esta como realizabilidade, praticidade. Se a norma não dispõe de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe eficácia, não dispõe de aplicabilidade. Esta se revela, assim, como a possibilidade de aplicação. Para que haja esta possibilidade, a norma há que ser capaz de produzir efeitos jurídicos”.
Luís Roberto Barroso[39] traz a expressão “efetividade” das normas constitucionais. Para ele, efetividade é a concretização dos preceitos normativos no mundo dos fatos, a consonância do ordenamento com a realidade social. Percebe-se, portanto, que a efetividade equivale à noção de eficácia social apresentada por José Afonso da Silva.
2.2 A eficácia das normas constitucionais em geral – classificações
Especialmente desde a Constituição brasileira de 1891, a doutrina tem destacado o tema da eficácia das normas constitucionais. Assim, foram propostas algumas classificações das normas da Constituição no tocante à sua eficácia e aplicabilidade.
A primeira classificação que prevaleceu foi a proposta por Ruy Barbosa, que, seguindo o modelo norte-americano, estabeleceu uma distinção entre normas autoaplicáveis ou autoexecutáveis (aquelas aptas a gerar efeitos sem depender de qualquer ação legislativa, com conteúdo determinado) e normas não autoaplicáveis ou não autoexecutáveis (que dependem de uma atividade do legislador para que possam produzir seus efeitos)[40].
“Há que ressaltar, ainda, que Ruy Barbosa – no âmbito de sua teoria sobre as normas Constitucionais – reconheceu que é com base na formulação da norma, isto é, da expressão literal de seu enunciado e de seu conteúdo, que se logrará perceber se determinado preceito constitucional é dirigido ao legislador ou se pode ser objeto de aplicação pelo Judiciário, o que, em última análise, depende da circunstância de a norma exigir (ou não) uma concretização em nível legislativo, de acordo com a sua possibilidade de, por si só, gerar efeitos jurídicos ou do fato de conter apenas princípios de cunho genérico”[41].
Também de relevante destaque tem-se a teoria proposta por Pontes de Miranda, que sugeriu uma nova terminologia, acrescentando alguns aspectos novos. Ele propôs a divisão das normas constitucionais em dois grupos: das normas bastantes em si mesmas (não dependem de atuação do legislador para alcançar eficácia plena) e das normas incompletas ou não bastantes em si mesmas (que requerem ação legislativa). Além disso, inovou na doutrina brasileira ao apresentar as normas constitucionais programáticas, que impõem limites ao legislador, já que este não pode contrariar os programas constitucionalmente estabelecidos[42].
Com o passar do tempo foram surgindo críticas e sugestões de reformulação da teoria da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. Uma das mais originais foi apresentada por José Horácio Meirelles Teixeira, que apresentou a eficácia gradual das normas constitucionais, que varia de mínimo a máximo. O autor sugeriu a classificação das normas constitucionais em dois grupos: normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada ou reduzida. No primeiro grupo estão compreendidas as normas que produzem todos os seus efeitos essenciais (objetivados pelo legislador constituinte) desde a promulgação da Constituição, e no segundo as que não produzem todos os seus efeitos essenciais desde logo, porque de insuficiente normatividade, deixando ao legislador ordinário a tarefa de complementação[43].
Logo em seguida surgiu no Brasil a teoria tricotômica da eficácia das normas constitucionais, proposta por José Afonso da Silva, que as dividiu em três grupos: normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada. As primeiras seriam aquelas normas dotadas de aplicabilidade direta, imediata e integral, que “desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta ou indiretamente, quis regular”[44].
No segundo grupo (das normas de eficácia contida) estão aquelas normas com interesses regulados suficientemente pelo constituinte, mas que deixam uma possibilidade de restrição aos poderes constituídos, respeitados os limites estabelecidos em lei ou em conceitos gerais enunciados na norma[45].
Por derradeiro, no terceiro grupo estão as normas de eficácia limitada, ou seja, normas constitucionais insuficientemente reguladas pelo legislador constituinte e que por isso são incapazes de gerar desde logo seus efeitos essenciais. Para tanto, dependem de atuação do legislador infraconstitucional. Esse grupo pode ainda subdividir-se em normas declaratórias de princípios programáticos e normas declaratórias de princípios institutivos/organizatórios[46].
Após a promulgação da CRFB/1988, Maria Helena Diniz acrescentou à doutrina brasileira uma proposta diferenciada – as normas constitucionais poderiam ser classificadas em quatro grupos: normas com eficácia absoluta (que não podem ser alteradas, nem mesmo por manifestação do poder constituinte derivado reformador), normas com eficácia plena (geram efeitos desde logo, que incidem diretamente sobre a matéria tratada), normas com eficácia relativa restringível (podem gerar todos os efeitos desde logo, mas admitem restrições ou regulamentações posteriores pela lei ordinária), e normas com eficácia relativa complementável ou dependente de complementação (possuem baixa normatividade, não são capazes de gerar seus efeitos desde logo). As últimas abrangem normas de princípios institutivos e as programáticas[47].
Diante da diversidade de classificações a respeito da eficácia das normas constitucionais em geral, cumpre estabelecer dois critérios comuns a todas – ou quase todas elas.
Em primeiro lugar:
“Todos os autores citados (mesmo Ruy Barbosa, considerando-se sua nota crítica em relação ao modelo norte-americano das normas não autoaplicáveis) partem da premissa de que inexiste norma constitucional completamente destituída de eficácia, sendo possível sustentar-se, em última análise, uma graduação da eficácia das normas constitucionais, visto que a eficácia não é necessariamente a mesma em todos os casos”[48].
Além disso, as classificações guardam identidade ao reconhecer a existência de normas constitucionais que não possuem suficiente normatividade, e por isso não geram seus principais efeitos de forma imediata. Para tanto, necessitam de uma atividade positiva do legislador a fim de regulamentar ou complementar aquele dispositivo – denominadas normas de eficácia limitada ou reduzida[49].
3. A eficácia dos Direitos fundamentais
Assim como as normas constitucionais em geral, as normas definidoras de direitos fundamentais não são homogêneas no que tange à função que exercem no ordenamento constitucional e às técnicas de positivação utilizadas. Pelo contrário, estas últimas também podem ser classificadas em categorias diferentes quanto à sua função ou técnica de positivação[50].
Assim, as diferenças entre os direitos fundamentais influenciarão na sua eficácia. Para Ingo Sarlet[51], é evidente que:
“A carga eficacial será diversa em se tratando de norma de natureza programática ou – se preferirmos – de cunho impositivo), ou em se tratando de forma de positivação que permita, desde logo, o reconhecimento de direito subjetivo ao particular titular do direito fundamental.”
Além das diferentes técnicas de positivação, aos direitos fundamentais também cabem diferentes funções. Neste sentido, podem ser classificados em dois grupos: os direitos de defesa (direitos de liberdade, igualdade, garantias, parte dos direitos sociais e direitos políticos) e os direitos a prestações (direitos à proteção, à participação na organização e procedimento e os direitos sociais de natureza prestacional)[52].
“Se os direitos de defesa, como dirigidos, em regra, a uma abstenção por parte do Estado, assumem habitualmente a feição de direitos subjetivos, inexistindo maior controvérsia em torno de sua aplicabilidade imediata e justiciabilidade, o mesmo não ocorre com os direitos a prestações. Estes, por exigirem um comportamento ativo dos destinatários, suscitam dificuldades diversas, que levaram boa parte dos autores, a negar-lhes aplicabilidade imediata e, em razão disto, plena eficácia”[53].
Nestes termos, necessário se faz analisar a eficácia dos direitos fundamentais de acordo com cada categoria.
3.1 A aplicação imediata das normas definidoras de direitos fundamentais
Estabelece o artigo 5º, em seu parágrafo 1º, da CRFB/1988: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”[54].
Este dispositivo constitucional simboliza a força normativa privilegiada de que gozam os direitos fundamentais, a importância que o poder constituinte originário deu a estes direitos, sem estabelecer qualquer distinção entre suas categorias, que não poderiam ser apenas positivados, mas também deveriam gozar de real eficácia.
“Pelo menos naquilo que corresponde ao entendimento dominante, no Brasil todas as normas de direitos fundamentais estão sujeitas, em princípio, ao mesmo regime jurídico. Isso não significa dizer, por outro lado, que todas as normas constitucionais (já por não fruírem do regime reforçado dos direitos fundamentais) tenham aplicabilidade direta em toda a sua extensão, no sentido de serem todas de eficácia plena, visto que, não raras vezes, há necessidade de interposição do legislador para alguns efeitos”[55].
Assim, em que pese a inexistência do estabelecimento de diferenças entre as normas definidoras de direitos fundamentais na Constituição, as incompatibilidades são reais. Por exemplo, alguns direitos sociais como o direito à saúde dependem de atuação dos poderes constituídos para que possam ser efetivamente garantidos, ao contrário do direito à liberdade, que independe de qualquer atividade infraconstitucional para sua efetivação.
“O fato de todas as normas de direitos e garantias fundamentais terem reconhecida sua direta aplicabilidade, não corresponde a afirmar que a eficácia jurídica (que não se confunde com a eficácia social ou efetividade) de tais normas seja idêntica; a multifuncionalidade dos direitos fundamentais e o fato de estes abrangerem um conjunto heterogêneo e complexo de normas e posições jurídicas, por si só já sustenta esta afirmativa. Além disso, há que levar em conta ser diverso o âmbito de proteção dos direitos fundamentais, assim como diversos os limites aos quais estão sujeitos, tudo a interferir na determinação dos efeitos jurídicos e da sua exata extensão”[56].
Em suma, o dispositivo em apreço estabelece um dever aos órgãos estatais de atribuir a máxima eficácia e efetividade possível às normas de direitos fundamentais, e assim, estas gozarão de, pelo menos, uma presunção de serem normas de eficácia plena, que independem de prévia atuação do legislador ordinário para que possam produzir seus efeitos. Por isso, os direitos fundamentais não poderão ter “sua proteção e fruição negada pura e simplesmente por conta do argumento de que se trata de direito positivado como norma programática e de eficácia meramente limitada”[57].
Ingo Sarlet[58] conclui que:
“A melhor exegese da norma contida no art. 5º, §1º, de nossa Constituição é a que parte da premissa de que se trata de norma de cunho inequivocamente principiológico, considerando-a, portanto, uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais, (…). Percebe-se, desde logo, que o postulado da aplicabilidade imediata não poderá resolver-se, a exemplo do que ocorre com as regras jurídicas (e nisto reside uma de suas diferenças essenciais relativamente às normas-princípio), de acordo com a lógica do tudo ou nada, razão pela qual o seu alcance (isto é, o quantum em aplicabilidade e eficácia) dependerá do exame da hipótese em concreto, isto é, da norma de direito fundamental em pauta.”
Nesse contexto, a aplicabilidade direta e a eficácia plena das normas de conteúdo negativo (como o já citado direito de liberdade) não geram maiores discussões, uma vez que independem de regulamentação legal para que possam ser reconhecidas. O mesmo não se pode dizer quanto aos direitos sociais, de dimensão positiva, que dependem de uma atuação estatal[59].
Assim, em princípio o mandamento da aplicação imediata das normas sobre direitos fundamentais refere-se a todas elas independentemente de sua função ou da sua técnica de positivação. Na prática, a aplicação imediata das normas definidoras de direitos fundamentais difere em cada categoria de direito, como será estudado a seguir.
3.2 A eficácia dos direitos fundamentais por categorias
Conforme supramencionado, a eficácia dos direitos fundamentais não se dá de forma homogênea para todos os direitos. Assim, fundamental se faz especificar a eficácia conforme as diferentes categorias de direitos fundamentais.
3.2.1 A eficácia dos direitos de defesa
Na categoria “direitos de defesa” se encontram principalmente os direitos de liberdade, igualdade, direitos-garantia, garantias institucionais, direitos políticos e posições jurídicas fundamentais em geral. São direitos que independem de uma atuação fática ou normativa dos órgãos do Poder Público, pelo contrário, reclamam desses órgãos (e dos particulares) uma abstenção, um dever de não intervenção na esfera de direitos do indivíduo[60].
“Na medida em que os direitos de defesa geralmente – e de forma preponderante – se dirigem a um comportamento omissivo do Estado, que deve se abster de ingerir na esfera da autonomia pessoal ou, de modo geral, no âmbito de proteção do direito fundamental, não se verifica, em regra, a dependência da realização destes direitos de prestações (fáticas ou normativas) do Estado ou dos destinatários da norma. Além disso, a aplicabilidade imediata e a plena eficácia destes direitos fundamentais encontram explicação na circunstância de que as normas que os consagram receberam do Constituinte, em regra, a suficiente normatividade e independem de concretização legislativa, consoante, aliás, já sustentava a clássica concepção das normas autoexecutáveis”[61].
Robert Alexy[62] estabelece que os direitos de defesa podem ser divididos em três grupos:
“Os direitos dos cidadãos, contra o Estado, a ações estatais negativas (direitos de defesa) podem ser divididos em três grupos. O primeiro grupo é composto por direitos a que o Estado não impeça ou não dificulte determinadas ações do titular do direito; o segundo grupo, de direitos a que o Estado não afete determinadas características ou situações do titular do direito; o terceiro grupo, de direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do titular do direito.”
No primeiro grupo (de direitos ao não-embaraço de ações), podem ser citados como exemplo os direitos de locomoção, de manifestação de crença, de educar os filhos. Todos esses são direitos fundamentais dos particulares que podem sofrer impedimentos ou dificuldades pelo Estado. O impedimento ocorre, por exemplo, quando o Estado coloca certa pessoa na prisão (está impedindo seu direito de locomoção). Já a dificultação se dá quando o primeiro cria circunstâncias que podem impedir a ação desejada pelo indivíduo[63].
Estão compreendidos no segundo grupo (de direitos à não-afetação de características e situações) aqueles direitos que impedem o Estado de atingir determinadas características e situações do titular de um direito. Por exemplo, pode-se mencionar a inviolabilidade de domicílio, as características da existência do ser humano, como a vida, saúde, liberdade, honra[64].
Já no terceiro grupo (dos direitos à não-eliminação de posições jurídicas) se encontram aqueles direitos que não podem ter suas posições jurídicas afetadas pelo Estado. Por exemplo, o direito de propriedade não pode ter a posição jurídica de proprietário afetada, a posição de certa pessoa ter permissão para expressar suas opiniões não pode ser afetada pela proibição de expressão de determinadas opiniões[65].
No que tange aos direitos negativos, Ingo Sarlet[66] observa que:
“Por derradeiro, (…) podemos concluir que em se tratando de direitos fundamentais de defesa, a presunção em favor da aplicabilidade imediata e a máxima da maior eficácia possível devem prevalecer, não apenas autorizando, mas impondo aos juízes e tribunais que apliquem as respectivas normas aos casos concretos, viabilizando, de tal sorte, o pleno exercício destes direitos (inclusive como direitos subjetivos), outorgando-lhes, portanto, sua plenitude eficacial e, consequentemente, sua efetividade”.
Nestes termos, conclui-se que os direitos fundamentais negativos, que exigem uma abstenção por parte do Estado e dos particulares (se considerada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais), não exigem maiores indagações acerca da sua aplicabilidade imediata e possibilidade de gerar, desde logo, esses efeitos essenciais, até mesmo pelo fato de serem direitos de fácil aplicação prática. Possibilitam, assim, a total observância do princípio positivado no artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal, anteriormente discorrido.
3.2.2 A eficácia dos direitos prestacionais
A par dos direitos negativos, existem aqueles direitos que exigem uma atividade estatal positiva – seja ela prática ou normativa – para que possam gerar seus efeitos essenciais. Neste grupo se encontram os direitos sociais prestacionais, os econômicos e culturais.
“É precisamente em função do objeto precípuo destes direitos e da forma mediante a qual costumam ser positivados (normalmente como normas definidoras de fins e tarefas do Estado ou imposições legiferantes de maior ou menor concretude) que se travam as mais acirradas controvérsias envolvendo o problema de sua aplicabilidade, eficácia e efetividade”[67].
Isso porque, diferentemente dos direitos negativos, os direitos positivos ou prestacionais têm por objeto uma conduta positiva do Estado (ou particulares, quando considerados destinatários da norma de direito fundamental), uma prestação de natureza fática, efetivamente prestada ou colocada à disposição dos seus titulares. Objetivam a realização da igualdade material, no sentido de conferir a todos a distribuição dos bens materiais e imateriais[68].
Nesse ponto, deve-se destacar a dimensão econômica desses direitos: uma vez que exigem uma atuação estatal positiva, demandam custos. Apesar dos direitos negativos também exigirem certa atuação positiva do estado para que sejam efetivamente realizados, e assim também demandarem custos, é na realização dos direitos prestacionais que essa dimensão assume proporções significativas.
“Já no que diz com os direitos sociais a prestações, seu “custo” assume especial relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação, significando, pelo menos para significativa parcela da doutrina, que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se despenda algum recurso, dependendo, em última análise, da conjuntura econômica, já que aqui está em causa a possibilidade de os órgãos jurisdicionais imporem ao poder público a satisfação das prestações reclamadas”[69].
Decorrente desta característica dos direitos fundamentais prestacionais, percebe-se o problema da efetiva disponibilidade do objeto pelo seu destinatário, ou seja, se este dispõe de recursos para que possa prestar efetivamente os direitos consagrados na norma constitucional. O Estado possui uma capacidade de disposição sobre os direitos limitada, e essa limitação de recursos constitui um limite fático à eficácia dos direitos prestacionais. Além disso, verifica-se a problemática da possibilidade jurídica da prestação: o Estado também deve ter o poder de dispor, a capacidade jurídica de implementar os direitos positivos. Daí o surgimento da teoria da reserva do possível “que, compreendida em sentido amplo, abrange tanto a possibilidade, quanto o poder de disposição por parte do destinatário da norma”[70]
Não é razoável que se admita a “reserva do possível” como elemento impeditivo da eficácia de um direito fundamental por meio de uma decisão judicial, mesmo no caso dos prestacionais. Os poderes públicos estão obrigados a maximizarem os recursos, e tornar mínima essa limitação fática à efetiva prestação dos direitos fundamentais[71].
Além das diferenças quanto ao objeto, também influenciam na eficácia dos direitos fundamentais diferenças relativas à forma de positivação. Isso porque, no que tange aos direitos prestacionais, existe uma dificuldade em se definir com precisão, já na Constituição, o objeto da prestação. E ainda: a prestação desses direitos depende, em grande parte, da tomada de decisões do poder público, além de muitas serem as tarefas impostas ao Estado, e este necessita de disponibilidade de recursos e dotação orçamentária para que possa cumpri-las[72].
“A dificuldade de se definir, já em nível constitucional, com certa precisão o próprio objeto da prestação é, sem dúvida, outro aspecto correlato que aqui não pode ser desconsiderado, ao menos no que diz com boa parte dos direitos sociais a prestações. Basta que se faça menção aos exemplos do direito à saúde, ao trabalho e à educação para se notar a pertinência da consideração. Quais exatamente as prestações que compõem o objeto do direito à educação? A nossa Constituição é, talvez, uma das que melhor traduz a problemática apontada, já que consagrou o direito social à educação em diversos dispositivos (arts. 6º e 205 e ss.), com distinta técnica de positivação, revelando que o objeto deste direito abrange variada gama de posições jurídico-subjetivas e objetivas”[73].
Quanto à legitimidade para tomada de decisões políticas, há quem sustente ser um entrave para a concessão judicial de direitos fundamentais. Isso porque tais políticas públicas seriam de competência discricionária da Administração e do poder legislativo, não podendo assim, serem objeto de controle pelo poder judiciário. Porém, deve-se atentar à garantia da inafastabilidade da jurisdição, consagrada no rol de direitos fundamentais da CRFB/1988[74].
“Outro critério que segue tendo relevância, diz respeito à utilização da noção de uma garantia dó mínimo existencial, pois são inúmeras as decisões judiciais que deferem pleitos de caráter prestacional mediante o argumento de que quando em causa o direito à vida e o mínimo existencial, não podem prevalecer as objeções habituais da reserva do possível, bem como da separação dos poderes, tudo a demonstrar que o direito à vida e o mínimo existencial assumem a condição de critério material de ponderação”[75].
Assim, o “mínimo existencial” estabelece que deve preponderar a posição jurídica do indivíduo ante às objeções da reserva do possível e da distribuição de competências. Ao indivíduo deve ser assegurado um mínimo de direitos que garanta a sua existência digna.
Por fim, o que deve prevalecer, também na seara dos direitos fundamentais positivos, é que “não é possível reduzir as normas que os consagram a normas programáticas, de eficácia diferida, dependente sempre e integralmente da atuação complementar do legislador infraconstitucional”, por força do dispositivo consagrado no Art. 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal[76].
“Por mais relevante que seja o papel do legislador infraconstitucional (o que, no caso dos direitos sociais, é de ser ainda mais enfatizado), não se poderá deixar a decisão sobre o conteúdo dos direitos sociais, na esfera plena e ilimitada de atuação do legislador. Dito de outro modo, também os direitos sociais não podem ter sua eficácia e efetividade, mesmo como direitos a prestações, integralmente, portanto, exclusivamente, condicionados por uma interposição legislativa, cuidando-se, nesta perspectiva, também de autênticos trunfos contra a maioria”[77].
Em que pese as diferenças apontadas entre a eficácia das normas de direitos fundamentais prestacionais e as negativas, existem algumas características comuns à eficácia de qualquer espécie de direito fundamental: 1) revogam todos os atos normativos anteriores e contrários à norma definidora de direito fundamental; 2) estabelece limites ao legislador, que não poderá afastar-se dos parâmetros estabelecidos nas normas de direitos fundamentais no exercício de sua função; 3) impõe a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos editados após a vigência da CRFB/1988; 4) constituem parâmetro de interpretação, integração e aplicação das normas constitucionais e infraconstitucionais; 5) impõem ao Estado que se abstenha de atuar contrariamente à norma definidora de direito fundamental; 6) impedem o legislador de abolir direitos fundamentais já outorgados (vedação ao retrocesso)[78].
Até aqui fora estudada a perspectiva subjetiva da eficácia dos direitos fundamentais, no sentido de serem poderes, liberdades ou ações que podem ser judicialmente efetivadas. No que segue, a eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais será tratada da sua perspectiva objetiva, quanto aos efeitos autônomos que geram em relação ao direito substancialmente consagrado. Nesse aspecto, verifica-se a eficácia horizontal e a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, explanadas a seguir.
3.3 A eficácia irradiante dos direitos fundamentais
Destaca Robert Alexy[79] que as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais compreendem não apenas direitos subjetivos do indivíduo contra o Estado, mas também representam uma ordem de valores que devem ser seguidos em todos os ramos do direito, e que fornecem diretrizes e impulsos a serem observados pela legislação, pela Administração e pela jurisprudência.
Conforme Ingo Sarlet[80]:
“Como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã denominou de uma eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme os direitos fundamentais, que, ademais, pode ser considerada – ainda que com restrições – como modalidade semelhante à difundida técnica hermenêutica da interpretação conforme à Constituição”.
Assim, a eficácia irradiante dos direitos fundamentais significa que os valores consagrados pelos direitos fundamentais positivados irradiam por todo o ordenamento jurídico, devendo ser observados na interpretação dos dispositivos infraconstitucionais e na atuação legislativa, executiva e judiciária[81].
Em suma, esta tese impõe a observância dos valores protegidos pelos direitos fundamentais para toda e qualquer atuação estatal, seja ela do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário.
Ela proporciona ainda, a efetiva aplicação das normas sobre direitos fundamentais nas relações privadas, uma vez que condiciona a interpretação e a aplicação das cláusulas e conceitos constantes das leis infraconstitucionais – boa-fé, interesse público, ordem pública, etc. – aos seus valores consagrados[82].
3.4 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais
No que tange aos sujeitos envolvidos em uma relação jurídica fundamental, temos os titulares e os destinatários. Os primeiros são aqueles sujeitos de direitos, a quem o direito é garantido. Os segundos são os sujeitos passivos dos direitos fundamentais, aqueles a quem incumbe respeitá-los e garanti-los.
Quanto aos seus destinatários, apesar de a Constituição Federal não prever expressamente quais são, não há dúvidas de que se destinam, precipuamente, aos órgãos estatais. Trata-se da denominada eficácia vertical dos direitos fundamentais:
“Os direitos fundamentais são concebidos, originariamente, como direitos subjetivos públicos, isto é, como direitos do cidadão em face do Estado. Se se considerar que os direitos fundamentais são prima facie direitos contra o Estado, então parece correto concluir que todos os Poderes e exercentes de funções públicas estão diretamente vinculados aos preceitos consagrados pelos direitos e garantias constitucionais”[83].
No entanto, os direitos fundamentais também podem ser atingidos por ações de particulares contra particulares. Nestes termos, surge a discussão sobre a eficácia privada – ou horizontal – dos direitos fundamentais, ou seja, o dever de respeito e de garantia destes também nas relações privadas.
“Assim o conceito de eficácia privada ou horizontal baseia-se na ideia de oponibilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas, ou seja, não somente nas relações Estado-Cidadão, mas também entre particulares. Significa, portanto, aplicação da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas como direito subjetivo, com fundamento na Constituição”[84].
Para Alexy[85], a influência das normas sobre direitos fundamentais nas relações cidadão-cidadão resta demonstrada pelo fato de existirem, no rol de direitos a que faz jus o cidadão perante o legislador, direitos a proteção contra outros cidadãos e a certos conteúdos de ordem jurídico-civil.
No Brasil, atualmente, não se encontram maiores questionamentos acerca da possibilidade de os particulares também serem destinatários das normas definidoras de direitos fundamentais. O que ainda gera controvérsias na doutrina é o modo pelo qual se vinculam os particulares, bem como os efeitos decorrentes. Assim, surgem duas teorias: a primeira, dos que defendem a eficácia mediata ou indireta das normas sobre direitos fundamentais nas relações entre particulares (ou seja, dependem de atividade do legislador para que possam ser implementadas). A segunda teoria sustenta a eficácia imediata ou direta, defendendo que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais geram efeito desde logo, quando entrou em vigência a Constituição[86].
A evolução da jurisprudência nos tribunais superiores brasileiros tem apontado para a prevalência da tese da eficácia direta dos direitos fundamentais na esfera das relações entre particulares. Como exemplo, o STF – Supremo tribunal Federal reconheceu a incidência das garantias do devido processo legal e da ampla defesa em uma relação associativa, ou seja, entre particulares[87].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, chega-se à conclusão que o poder constituinte originário outorgou aos direitos fundamentais maior proteção no que tange à sua eficácia, notadamente pelo fato de determinar, no art. 5º, parágrafo 1º da Carta constitucional, a aplicação imediata desses direitos. Além disso, a doutrina vem desenvolvendo mecanismos que corroboram para uma cada vez maior eficácia e aplicabilidade desses direitos, seja no tocante à sua efetiva materialização, seja no âmbito de incidência ou no tocante aos sujeitos da relação jurídica.
Quando se fala em direitos fundamentais, consideram-se duas acepções principais do termo: a primeira, mais ampla, determina que são direitos fundamentais aqueles direitos que almejam criar e manter os pressupostos essenciais de uma vida digna e com liberdade. A segunda, mais restrita, estabelece que direitos fundamentais são aqueles que o ordenamento vigente determina. Tais direitos são, na verdade, conquistas históricas da sociedade, tendo seu rol se ampliado gradativamente na medida em que surgiam novas necessidades, frutos do desenvolvimento da economia, da tecnologia, etc.
Importa destacar que tais direitos, para serem concretizados, necessitam de eficácia. O termo eficácia abrange dois aspectos relevantes: um social, também chamado de efetividade, que versa sobre a aplicação da norma no mundo dos fatos. Outro jurídico, que representa a qualidade de um direito produzir efeitos jurídicos, ao regular situações e comportamentos positivados.
De um lado, os direitos fundamentais necessitam de eficácia social para que cumpram a função para a qual foram criados, melhorando as condições de vida das pessoas. Por outro lado, a eficácia jurídica faz-se importante porque permite que determinada norma efetivamente regulamente as relações jurídicas.
A eficácia, especificamente dos direitos fundamentais, pode ser compreendida em dois sentidos: o subjetivo e o objetivo. Pelo subjetivo, os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos que podem ser exigidos por seus titulares, são direitos positivados na Constituição que gozam de aplicação imediata por força da norma, apesar de existirem graus diferentes de eficácia, de acordo com a função ou com a técnica de positivação desse direito. Um direito prestacional, por exemplo, tem menor grau de eficácia em relação a um direito negativo, em razão de suas características peculiares.
No sentido objetivo da eficácia de direitos fundamentais, verifica-se a tese da irradiação dos direitos fundamentais: estes devem servir como paradigma de intepretação das normas infraconstitucionais, além de serem de observância obrigatória no exercício das funções legislativa, executiva e judiciária. Além da eficácia irradiante, surge na doutrina a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a qual preconiza que os direitos fundamentais devem ser observados também nas relações privadas, entre particulares. No tocante às relações entre Estado e particulares, ou eficácia vertical dos direitos fundamentais, não surgem maiores dúvidas.
Essa proteção qualificada de que gozam os direitos fundamentais, tanto por parte da norma quanto por parte dos operadores do direito, reside justamente nos assombros de um passado de ditadura, onde os direitos fundamentais eram limitados e até mesmo inexistentes. Além disso, refletem a perspectiva de um Estado de Bem-Estar social, em que o Estado atua no sentido de garantir a igualdade material entre seus cidadãos. A eficácia dos direitos fundamentais depende disso: um Estado preocupado com a igualdade social deve garantir a eficácia dos seus direitos sociais positivados. Um Estado democrático de direito deve fazer eficaz os direitos civis e políticos de seus indivíduos. No entanto, apesar de condenável, a realidade da eficácia dos direitos ainda depende do representante do Estado no caso concreto, das vontades políticas dominantes no momento.
Mestranda em constitucionalismo e produção do direito na UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí. Pós-graduanda em Direito Notarial e Registral na Damásio educacional
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