Resumo: o aborto é tipificado criminalmente e integra o rol de bens jurídicos que, por sua importância, merecem especial amparo. É hodiernamente desnecessária a proteção a um bem que pode vir a ser tutelado em esferas que não um processo judicial, no qual a mulher, em uma posição já fragilizada, expõe-se a mais uma situação conflituosa. O tema é complexo e polêmico, mas formas alternativas devem ser aventadas para lidar com esta realidade social que é, hoje, um problema.
Palavras-chave: abortamento; bioética; descriminalização; desjurisdicionalização.
Sumário: 1. Aspectos Introdutórios 2. Breve Escorço Histórico 3. Questões Controvertidas 4. Aborto Anencefálico 5. Métodos Contraceptivos? 6. Projetos de Lei 7. Prisma Sociológico 8. Dados Estatísticos 9. Legalizar? 10. Conclusão
1. Aspectos Introdutórios
É extremamente complexo promover uma abordagem a respeito do abortamento[1] e [2] por conta da estigmatização criada em torno da palavra, ensejando, por conseqüência, posicionamentos identificados como “politicamente corretos”. Nas palavras das professoras Débora Diniz e Dirce Guilhem[3]:
“Não há como se aproximar da bioética e de seus temas tão provocativos, como o aborto, a eutanásia ou a clonagem, e manter-se imune à controvérsia moral que a acompanha. A bioética provoca dois sentimentos contraditórios nas pessoas: o fascínio e a repulsa.”
Desta forma, falar a favor de um tema assim tão problemático e controverso é abrir, ao autor das sentenças, a abissal possibilidade de ser desqualificado, e não os seus argumentos, sendo alvo do famigerado argumentum ad hominen. Este é um erro crasso, capaz de obnubilar o desenvolvimento de debates teóricos e científicos acerca de um assunto de relevante importância e consequências na vivência hodierna:
“O abortamento representa um grave problema de saúde pública. Estima-se que ocorram, considerando apenas o Brasil, mais de um milhão de abortamentos induzidos ao ano, sendo uma das principais causas de morte materna no País. Por atravessar um emaranhado de aspectos sociais, culturais, econômicos, jurídicos, religiosos e ideológicos, é tema que incita passionalidade e dissensão, parecendo, sob consideráveis perspectivas, distante de saída.”[4]
Ademais, discorrer sobre abortamento é dificultado pelo fato de as pessoas relacionarem-no com a porvindoura maternidade ou paternidade, atentando para o assunto não de uma forma racional, mas sentimental, emotiva, desprezando conceitos e determinações científicas e apegando-se a argumentos e idéias apriorísticas, preconceituosas e fundadas em anseios que ultimam por conduzir a discussão a uma grave falta de rigor técnico-científico. É imprescindível analisar a possibilidade de ser promovido o abortamento a partir de um viés não restrito ao lado emocional ou religioso, mas por uma perspectiva social, econômica, jurídica e, principalmente, racional.
Do latim, abortus, de ab-ortus; tem como sentido a privação do nascimento. Segundo F. Carrara[5], o aborto pode ser definido como “morte dolosa do feto dentro do útero”, ou “violenta expulsão do feto do ventre materno, da qual resulte a morte”. Atualmente, para a maioria dos penalistas, estas são definições insuficientes, não caracterizando a prática do aborto de forma primorosa por ser um raciocínio pautado no causalismo, amplamente calcado em causa-efeito. De acordo com o entendimento sufragado por F. Antolisei[6], renomado penalista italiano, uma melhor conceituação pode ser efetuada considerando-o como a morte dada ao nascituro ainda dentro do útero (intra uterum), podendo ser também decorrente da provocação de sua expulsão.
Magalhães Noronha consegue ser impressionantemente sintético em seu conceito: “é a interrupção da gravidez, com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo, embrião ou feto.” [7]. Ao partir de tal acepção, é possível identificá-lo segundo o período do desenvolvimento em que venha a ocorrer, classificando-o como ovular (sobrevém nos dois primeiros meses de gestação), embrionário (nos dois meses seguintes) e fetal (do quinto mês em diante).
Após assentados tais conceitos iniciais e introdutórios, passa-se a discorrer acerca do desenvolvimento histórico da prática humana de por fim à vida intrauterina antes de decorrido todo o transcurso gravídico.
2. Breve Escorço Histórico
Em períodos históricos passados, o abortamento era tido como um indiferente penal. Não obstante, seria negligente deixar de mencionar que, historicamente, a introdução da idéia de aborto, relacionada à morte de um ser humano, foi introduzida pelo cristianismo[8], o que impregna, de imediato, de forte essência religiosa qualquer tentativa de discussão que venha a ser travada sobre o tema:
“A partir do século XVIII a mesma proteção penal [dada ao homicídio] passou a estender-se sobre o feto desde o momento da geração, o que veio a tornar-se regra geral no século passado. A punição do aborto como homicídio foi seguida pelos práticos e pelo Direito Penal Comum, sendo imposta comumente a pena capital.”[9]
Anteriormente, era considerado o feto um apêndice ocasional ligado ao organismo materno, podendo a mesma livremente dispor sobre ele, como se objeto fosse. Nessa época, qualquer dano ocasionado por conta de uma prática abortiva era punido, mas não se pensava na proteção de uma futura vida que estava em curso, e sim na incolumidade física da mulher, ou na frustração das esperanças de um pai à sua descendência.
Na codificação criminal pátria de 1830[10], não se encontrava tipificado o aborto praticado pela própria gestante. Apesar disso, tal conduta era sancionada quando executada por terceiro, com ou sem o consentimento da “mulher pejada”. O Código Penal de 1890[11] passou a promover uma distinção da prática que ocorresse com e sem a expulsão do feto, e, o auto-aborto, embora tipificado, recebia redução da terça parte se o crime fosse cometido para ocultar desonra própria.
Atualmente, encontra-se albergada a tipificação nos artigos 124 ao 128, do Código Penal, havendo as possibilidades expressas de provocação de aborto por médico nos casos denominados de aborto necessário, “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”, e o aborto ético ou sentimental, em casos em que o concepto é fruto de violência sexual cometida contra a mulher. O eminente penalista, Aníbal Bruno, levanta ainda o interessantíssimo questionamento, em uma nota de rodapé: “discute-se entre os autores se a ameaça de suicídio por parte da gestante justifica a intervenção” [12], para que ocorra o sacrifício da vida do feto.
Conhecido o transcurso histórico e apresentado o atual tratamento legislativo dispensado à matéria, convém analisar de forma breve e concisa algumas questões polêmicas derredor do tema.
3. Questões Controvertidas
Os autores pátrios beiram a unanimidade no tocante à definição do bem jurídico tutelado, considerando como tal a vida humana em formação. Não é o objetivo restringir este trabalho a uma discussão estéril e infrutífera de contestação, impugnando o que é e quando há o inicio da vida. Este é um questionamento, segundo a professora de Bioética da UnB, Débora Diniz, “metafísico-religioso pouco suscetível a um julgamento razoável em um Estado de Direito pluriconfessional” [13]. Desta forma, se for ser levada em consideração o posicionamento majoritariamente adotado por alguns embriologistas de que o desenvolvimento humano inicia-se com a fecundação, momento em que os gametas masculinos e femininos fundem-se para a formação do zigoto (do grego zygotos, acoplados), ter-se-á algumas possíveis contradições.
Para mitigar uma possível incoerência, tem sido comum a utilização de recursos e jogos semântico-lingüísticos com apelo a termos – pré-embrião, mórula, embrião somático, blastocisto, jovem embrião – na tentativa de dissimular a presença da vida em seus dias iniciais e possibilitar o uso de embriões em clonagens terapêuticas e pesquisas com células-tronco embrionárias. É possível perceber, nestes casos, o interesse de excluir o ser gerado com gametas da espécie humana, rebaixando-o, escondendo o seu verdadeiro status[14].
Entretanto, se é possibilitado o uso de embriões em tais ocasiões, por que não viabilizar a prática do aborto? O que é levado em consideração para demarcar a tênue linha permissiva existente entre os embriões (leia-se: vidas) utilizados para a prática de clonagens e pesquisas (que matam futuros seres humanos), e os que são destruídos por meio do aborto?
Em ambos os casos estamos diante do bem vida humana, e tais condutas poderiam ser consideradas como típicas, afetando bens jurídicos tutelados. Porém, só uma delas é penalizada, o que demonstra uma incoerência dentro do ordenamento jurídico-penal. Uma vez que se encontra permissão para o descarte de futuras vidas humanas para pesquisas, é extremamente incoerente, desconexo, ilógico não permitir que seja efetuado o aborto.
Ainda tomando-se como referência o bem jurídico protegido, há outra marcante incongruência ao ser permitida, em nossa codificação penal, art. 128, inciso II, a realização de manobras abortivas, efetivada por médico quando precedido da autorização da prenhe cuja gravidez seja decorrente de ato sexual violento e indesejado, ou seja, do estupro. Em tais situações há um conflito de direitos fundamentais que não pode ser resolvido sem que se faça uso da técnica da ponderação de interesses, usando-se o princípio da concordância prática ou cedência recíproca[15], forjado nos domínios do neoconstitucionalismo.
Por intermédio de tal técnica, deverá ocorrer um sopesamento, balanceamento, ponderação dos bens jurídicos que se encontram em rota de colisão. Assim, por que, na situação supracitada (caso do estupro), permitiu-se, por meio da legislação penal, a qual é infraconstitucional, a violação do bem jurídico vida humana intra-uterina, preterindo-o, pensando-se no resguardo da dignidade da mulher que foi violentada?
Malgrado não seja o direito à vida um direito fundamental absoluto, já que encontra limitações na teoria dos limites imanentes dos direitos fundamentais e até na própria Carta Magna, este é, pressuposto para o reconhecimento e exercício de outros direitos. Desta forma, e sendo o Código Penal anterior à Constituição Federal de 1988, não é possível ocorrer a recepção constitucional de tal dispositivo, o qual se mostra flagrantemente inconstitucional, devendo, para resguardo do ordenamento jurídico, ser expurgado de nossa codificação.
Ao defender a inconstitucionalidade de tal dispositivo penal, pode parecer que há um conflito de ideias dentro deste artigo, mas esta é uma contradição apenas aparente, pois, em toda a redação, a proposta é de demonstrar que a questão do aborto não perpassa única e exclusivamente pela esfera individual, pessoal de uma mulher; vai muito além do indivíduo, pois possui fortíssimas consequências sociais.
Não se pode olvidar e deve ser respeitado o viés daqueles que colocam em proeminente posição o direito individual da mulher, servindo como exemplo a postura exarada no seguinte fragmento:
“Em todo caso de abortamento, a atenção à saúde da mulher deve ser garantida prioritariamente, provendo-se a atuação multiprofissional e, acima de tudo, respeitando a mulher na sua liberdade, dignidade,autonomia e autoridade moral e ética para decidir, afastando-se preconceitos, estereótipos e discriminações de quaisquer natureza, que possam negar e desumanizar esse atendimento.”[16]
Contudo, não é este o argumento principal a ser utilizado neste trabalho para evitar que a figura feminina continue a ser punida caso venha a praticar um abortamento. Poderia tal comportamento ser considerado egoístico, malgrado não se possa negar a relevância e suporte do direito que está sendo posto em questão. Assim, para que possa ser uma prática abortiva legítima e constitucional deverá estar amparada por motivações mais abrangentes, como as de cunho econômico-social, por exemplo.
Apesar de não ser mais possível impedir que ocorra uma prática tão comum, corriqueira e geradora de tantos encargos e ônus à Administração Pública, como será demonstrado adiante, escorá-la como possibilidade plausível de manifestação da liberdade individual ou reprodutiva feminina pode vir a ser considerada uma abordagem errônea e distorcida, a qual coloca em evidência o alto grau de individualismo presente, hodiernamente, em nossa sociedade.
Sendo assim, faz-se mister compreender que a possibilidade de execução do abortamento encontra-se escorado em um suporte muito mais sólido e abrangente do que o simples confronto entre o direito à vida intra-uterina e a liberdade individual reprodutiva da mulher que foi estuprada: é uma questão de interesse de todo o corpo social. Ao partir de tal posicionamento, a tese da desjurisdicionalização e descriminalização do tipo penal de aborto resta imunizado de algumas de suas críticas, sendo ressaltados valores sociais maiores e mais importantes[17] para que tal conduta possa ser examinada fora da esfera criminal.
4. Aborto Anencefálico[18]
Pensando a questão do aborto por um viés distinto, mas, não menos polêmico: qual a justificativa para a obrigação imposta à mulher de continuar uma gestação que se tem total consciência de que o fruto da concepção não irá resistir por um período maior do que alguns minutos, horas ou, no máximo, dias? Este é caso dos fetos anencefálicos (ou anencéfalos), aqueles que não dispõem nem de parca formação encefálica que o possibilite viver além do tempo mencionado. Esta circunstância é muito distinta das hipóteses de má formação cerebral do concepto, as quais possibilitam a sobrevivência, apesar de tal defeito acarretar péssimo desenvolvimento e qualidade de vida para a futura vida humana.
Assim, poder-se-ia dizer que é senso comum, ou mesmo fato notório, os encargos econômicos e os efeitos hormonais e comportamentais que abalam o estado psíquico-fisiológico da mulher durante a gravidez. Desta forma, será que é coerente esperar que ela comporte todo esse ônus em prol de uma “pseudo-vida” que, científica e empiricamente, encontra-se comprovado que não terá capacidade de viver superior a algumas poucas horas ou dias?
Além disso, o critério utilizado por nosso ordenamento é o da morte encefálica, segundo o art. 3º, da Lei 9.434/97[19]; assim, não há como discordar do entendimento proferido pelo Prof. José Henrique Pierangeli[20]:
“Realmente, com a falta de cérebro, o feto não pode nascer com vida e, se isso vier a ocorrer, a vida será apenas efêmera, pelo que seria desumano obrigar uma mulher a arrastar por nove meses uma gestação da qual não poderá resultar uma vida. A nosso ver, pelo menos num primeiro momento, parece-nos inexistir em tal situação um bem jurídico a proteger, o que torna a conduta atípica […]”.
Desta forma, como não considerar um feto anencefálico como um mero apêndice ocasional[21] que acarreta enormes encargos à mulher? Assim, não se mostra plausível o impedimento à mulher de promover o abortamento em hipóteses de anencefalia fetal.
Ao sair do âmbito de abordagem de uma esfera infraconstitucional e passando a analisar a questão sob o prisma dos direitos fundamentais, não há como identificar um direito “de peso” contraposto ao da mulher para que possa ser utilizado para impedir, impossibilitar a realização do abortamento. Como considerar como vida àquele apêndice, ligado momentaneamente ao organismo materno, que não detém nenhuma capacidade de sobrevida e viabilidade superior a meros dias, mesmo com todo auxílio material e pessoal de hospitais bem aparelhados?
O que é que poderia ser argumentado em sentido contrário, para impedir que o direito à integridade física e a incolumidade psíquica da gestante seja executado de forma plena, ao invés de se encontrar debilitada por conta de uma gravidez que não tem chance alguma de produzir um ser humano com um mínimo de viabilidade, que justifique tal sacrifício?
A abertura da possibilidade de abortamento em casos de anencefalia não deveria nem entrar em pautas de deliberação e discussão. Este é um tema que teria entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico, caso fosse devidamente analisado, sem se evidenciar juízos muito mais vinculados ao campo emocional ou religioso[22] do que propriamente técnico, científico e devidamente racional.
5. Métodos Contraceptivos?
Ultrapassadas algumas questões polêmicas, faz-se mister discorrer acerca de métodos ditos e considerados como contraceptivos, confrontando-os com alguns entendimentos técnicos da seara da embriologia.
Outra flagrante contradição facilmente identificável, mas amplamente negligenciada, é relacionada ao dispositivo intra-uterino (DIU), sendo que grande parte da literatura técnica especializada e a Organização Mundial de Saúde o considera como meio abortivo. Nos EUA, por exemplo, enquanto perdurou a proibição legal do aborto, era proibida tanto a comercialização quanto a implantação do dispositivo[23]. Trata-se de um método dito contraceptivo, atuante como agente exógeno, que, de fato, não impede a concepção, e sim a nidação – a implantação superficial do blastocisto no endométrio, que ocorre após a primeira semana de fecundação – por meio da irritação do endométrio[24].
Além do DIU, há certa polêmica em torno da pílula do dia seguinte (denominado tecnicamente de Método de Yuzpe: consiste na injeção de altas doses de uma associação de hormônios[25]), a qual deve vir a ser tomada, para impedir a gravidez, de modo eficaz, nas primeiras 72 horas após o relacionamento sexual[26]. Tais lapsos temporais, tanto do DIU quanto da pílula do dia seguinte, abrem possibilidades suficientes para que ocorra não somente a fecundação, mas a ocorrência de clivagens[27] do zigoto, com a formação de blastômeros, podendo até mesmo alcançar o estágio de mórula[28].
É possível, portanto, inferir que tais métodos atuam como meios abortivos, os quais não se encontram permitidos por nossa codificação penal e que, por motivos diversos, passam “despercebidos”. Sendo assim, fica circunstanciado que, em nosso país, a morte dada ao nascituro não se encontra tão rigorosamente restrita às circunstâncias elencadas no Código Penal. Desta forma, falta somente uma maior elasticidade para que seja permitida a prática do aborto, não somente nos dias iniciais da fecundação, mas também em períodos posteriores.
6. Projetos de Lei
O debate é acirrado em sede legislativa, podendo-se constatar a pressão exercida por bancadas parlamentares amplamente influenciadas por entendimentos religiosos, o que finda por desviar o foco da discussão do devido âmbito técnico e jurídico.
Na linha de pensamento legalizador[29], e não apenas descriminalizante, pode-se apresentar o posicionamento de algumas feministas, as quais propõem que seja legalizado o aborto, sempre por livre decisão da mulher, até as doze primeiras semanas de gravidez.
No âmbito jurídico-legislativo, o Projeto de Lei n. 176, de 1995[30], proposto pelo deputado José Genoíno (PT), permite o abortamento por livre opção da gestante até o nonagésimo dia de gravidez e obriga a rede hospitalar pública a realizar o procedimento. Seguindo uma linha mais ortodoxa e radical, o Projeto de Lei n. 1.135/91[31], dos ex-deputados petistas Eduardo Jorge e Sandra Starling, propõe a descriminalização[32] do aborto por meio da revogação do art. 124 do CP.
7. Prisma Sociológico
Por uma ótica diversa, ao levar em consideração o viés sociológico e deslocar o foco do artigo de uma abordagem meramente jurídica, após sucinto período de pesquisa, foi possível alcançar a seguinte ilação: o aborto é amplamente praticado por pessoas provenientes de classes sociais mais abastadas[33]! Assim, as consequências gravosas da realização de abortamentos inseguros são mais sentidas pela camada populacional de baixa renda. Não pode ser negligenciado que os custos de saúde pública por tais atos terminam, também, por onerar toda a sociedade.
Além disso, deve-se evidenciar que mulheres oriundas de famílias que podem arcar com os custos de uma viagem ao exterior, para locais em que o aborto não é proibido, o fazem. Por meio de tal conduta, encontram-se agasalhadas pelo princípio da territorialidade, já que “considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado” (artigos 5º e 6º do Código Penal). Além disso, não são atingidas pelo princípio da extraterritorialidade, pois para ser aplicada, ao brasileiro, a lei penal pátria, deve “ser o fato punível também no país em que foi praticado” (artigo 7º, II, par. 2º, b do Código Penal).
Assim, mulheres oriundas de famílias em que a questão financeira não configure um obstáculo, e que possuam uma orientação jurídica mínima acerca de tempo e lugar do crime, territorialidade e extraterritorialidade, ficam possibilitadas de praticar o abortamento sem que venha a ser incriminadas por conta de sua conduta.
Desta forma, somente aquelas mulheres sem proeminente situação aquisitiva ficariam impossibilitadas de abortar, o que termina por demonstrar que está sendo ferido um dos Princípios Fundamentais, ou melhor, um dos Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil constante no art. 3º, da CF/88, o qual assevera que deve “promover o bem de todos sem preconceitos […] e quaisquer outras formas de discriminação”.
Não estaria, com isso, sendo possibilitada uma forma de discriminação econômica e desrespeito ao princípio da isonomia material entre as mulheres[34] deste país?
8. Dados Estatísticos[35]
Ao promover análise do ponto de vista sócio-econômico e tomando como referência a consulta ao DataSus (Departamento de informática do Sistema Único de Saúde) é evidente também o número de mulheres provenientes de classes de baixa renda que praticam o aborto em clínicas clandestinas e mal equipadas, as quais são depois atendidas em hospitais públicos, gerando encargos e onerando um sistema que já se encontra debilitado.
Segundo dossiê da Rede Feminista de Saúde, “o Brasil gasta por ano cerca de US$ 10 milhões no atendimento das complicações do aborto inseguro” [36]. Serve de parâmetro que, somente no ano de 2004, aproximadamente 240 mil mulheres (a um custo médio unitário de R$ 125,00) foram atendidas na rede pública, provenientes de complicações oriundas da prática abortiva, e, em 2006, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 2.200 abortamentos e cerca de 220 mil curetagens – raspagem uterina promovida após os abortos – sendo que as maiores taxas de curetagens foram originárias da região Nordeste. Além disso, é consenso entre os especialistas que, no caso do abortamento, é extremamente comum a ocorrência da sub-notificação, havendo um número muito maior de lesões e mortes, as quais terminam como cifras ocultas.
É o que fora constatado no seguinte excerto da estimativa feita pela Organização Mundial de Saúde[37]:
“Where induced abortion is restricted and largely inaccessible, or legal but difficult to obtain, little information is available on abortion practice. In such circumstances, it is difficult to quantify and classify abortion. What information is available is inevitably not completely reliable, because of legal, ethical and moral considerations that hinder reporting. Occurrence tends to be under-reported in surveys, and unreported or under-reported in hospital records. Of course, there are no records on women who do not seek post-abortion care in hospitals. Only the “tip of the iceberg” is, therefore, visible in the number of deaths and the number of women who suffer severe trauma, or who have an infection or severe blood loss and seek medical care”. (Grifou-se)
Após ter contato com tais dados informativos, torna-se explícito que a realização do abortamento é um fato recorrente em nossa sociedade. Ignorar essa realidade é somente aumentar as possibilidades de uma prática mal feita e sem sucesso, significando uma maior oneração do erário, com maior dispêndio desnecessário para a rede pública de saúde, é o que se comprova com a seguinte afirmativa:
“Pesquisa realizada em Uganda, na África, demonstrou que tratar das complicações de aborto inseguro em hospitais pode custar 10 vezes mais do que oferecer procedimentos de interrupção voluntária da gravidez em unidades de atenção primária.”[38]
Tais gastos poderiam ser evitados e minorados frente à possibilidade de ser feito o aborto de forma legal, assistida por médicos e enfermeiros, em locais adequados e não insalubres.
Esta não é uma questão que perpassa somente na ideia de proteção à vida e à saúde dessas mulheres, as quais recorrem ao abortamento inseguro, mas na possibilidade de reduzir gastos públicos, minorando impactos sociais. Não obstante, segundo informações do Painel de Descriminalização do Aborto[39], realizado em Brasília, “Em algumas cidades, o aborto inseguro está entre as cinco primeiras causas de mortes maternas, sendo que em Salvador [no Estado da Bahia], desde o início da década de 90, é a primeira causa de mortalidade materna anualmente”.
Desta forma, olvidar as nefastas conseqüências da atual postura negligente que se está a evidenciar é somente possibilitar que a cada ano mais e mais mulheres possam vir a ser vítima de uma prática tão comum e corriqueira, mas que acarreta odiosos dispêndios e efeitos na vida social brasileira hodierna. Além disso, permite o consumo desnecessário de verbas estatais que poderiam estar sendo muito melhor aplicadas em outras áreas, ou mesmo no próprio campo da saúde, em vez de tentar minorar as consequências da mantença da proibição criminal com a tipificação da conduta de abortar.
9. Legalizar?
Faz-se mister salientar que esta não é só uma questão envolvendo a ponderação de interesses entre o direito à vida do feto e o direito à autonomia reprodutiva da mulher. É um quesito muito mais amplo e que merece ter reconhecido o interesse público e social. Segundo o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, este é um tema que enseja a realização de plebiscito para resolver acerca da legalização, ou não, das práticas abortivas.[40]
Um estudo[41] realizado pelo Grupo Curumim e o Ipas Brasil, organizações não governamentais, chega à conclusão que a existência de uma tipificação penal da prática abortiva não constitui impedimento à realização do aborto. Além disso, tem-se, hodiernamente, consciência de que países com legislações mais rigorosas, tais como Brasil, México e Peru têm maiores taxas de abortamento que Holanda, Canadá e Inglaterra, os quais contam com legislações mais brandas.
Por configurar ainda como uma prática delituosa, pode terminar provocando um efeito contrário: fazer com que a mulher busque uma solução alternativa para o estado gravídico indesejado em locais inadequados, sendo maiores as chances de realização de um abortamento inseguro. Além disso, o abortamento inseguro é reconhecido pela comunidade internacional como um problema de saúde pública grave, desde a década de 1990. Segundo a Organização Mundial de Saúde[42] (OMS), inseguro é o “procedimento para interromper a gestação não desejada realizado por pessoas sem as habilidades necessárias ou em um ambiente que não cumpra os mínimos requisitos médicos, ou ambas as condições”.
Com isso, pretende-se demonstrar que a manutenção de uma tipificação penal da conduta de abortar, hoje, gera efeitos negativos que não podem ser relegados, necessitando-se, urgentemente, de uma reforma legislativa para que tal prática, ao menos, deixe de ser considerada criminosa. Não há como negar que o ideal seria a legalização da conduta abortiva, o que geraria a responsabilização estatal na área da saúde às mulheres que optassem por interromper a gravidez. Todavia, este é o passo seguinte a ser alcançado, sendo prioritário que haja, inicialmente e ao menos, a desjurisdicionalização e descriminalização de tal comportamento.
10. Conclusão
Diante de tudo quanto fora exposto, pode-se chegar às seguintes ilações:
a) A questão do abortamento envolve direitos muito mais abrangentes que a mera disputa entre o direito à vida do feto e a liberdade reprodutiva da mulher, alcançado alargado espectro social com a afetação na vida de toda sociedade brasileira hodierna. Com isso, continuar a criminalizar a conduta de abortar, não é apenas uma restrição frontal e direta ao direito feminino, individualmente considerado, mas sim a todo o corpo da sociedade que sofre com os efeitos funestos do aborto inseguro. Os gastos de saúde pública que se tem não devem continuar a existir.
Tudo isso é efeito da proibição da interrupção voluntária da gravidez, levando numerosa parcela da população de baixa renda a se submeter a procedimentos “cirúrgicos” inadequados que resultam não só na morte de muitas mulheres, mas também em desnecessários gastos com hospitalização e tratamento dessas pessoas que praticaram o abortamento.
b) Escorar a possibilidade de ser promovido o abortamento unicamente na liberdade individual é um erro, aspecto simplista de encarar uma questão complexa, pelo menos uma forma de pensar que põe em relevo o alto grau de individualismo e egocentrismo que vem sido vivenciado nas sociedades capitalistas modernas.
c) A ideia inicial é que seja promovida, pois, a desjurisdicionalização do tratamento dispensado aos casos que envolvem a interrupção prematura do estado gravídico. O foro adequado para tratar de tais questões não é na justiça criminal e perante um juiz regularmente investido, mas sim, através do debate político e implementação de medidas de saúde para que a mulher que já se encontra em fragilizado estado físico, psicológico e emocional possa receber o devido tratamento por parte das autoridades do Estado, para que se evite a sua submissão ao mais gravoso aparato punitivo estatal, que é o Direito Penal.
d) Ultrapassado o estágio da desjurisdicionalização, consequentemente, deixará de ser a conduta de abortar criminosa, sendo imperiosa a revogação do tipo penal atualmente existente, para que este comportamento deixe de ser enquadrado em um ilícito para se tornar uma situação de cuidado e amparo pelas autoridades públicas, devendo existir programas de governo voltados para este gravíssimo problema que é a morte de inúmeras jovens por conta da prática abortamentos inseguros.
Local de debate acerca do tema não deve ser restringido às faculdades de direito aos juízos criminais, mas sim no âmbito do Poder Executivo e por representantes do Poder Legislativo, para que seja possibilitada a conscientização e promovida a proteção e defesa de uma parcela social que já está sendo submetida a um enorme dilema, que é a interrupção da gravidez com a conseqüente finalização da vida intrauterina que a mulher carrega em seu ventre.
e) Devem ser esquecidos os preconceitos, sentimentalismos e ideais religiosos apriorísticos que impedem a devida discussão derredor de um tema de fulgente importância. Com isso, poderá ser feito um programa de conscientização sexual e reprodutivo, que irá melhorar a condição de vida de mulheres que estejam passando por uma gravidez indesejada, além de evitar mortes e gastos hospitalares com abortamentos inseguros, os quais são hoje amplamente realizados, conforme anteriormente demonstrado.
Uma alternativa plausível, coerente seria a substituição dos tribunais por instâncias de natureza não-penal, no âmbito administrativo, por exemplo, intentando alcançar uma conjuntura de menor exclusão social e, ao mesmo tempo, protetivo da vida e dignidade das inúmeras mulheres que se encontram em estado gravídico indesejado.
f) A dogmática penal deve evitar a introspecção, não se devendo restringi-la à preparação de teorias abstratas, que se descolam do meio social na qual estão insertas. Deve, pois, evitar o efeito bolha ou redoma de cristal, no qual o teórico do direito se aparta, por completo, da conjuntura em que está inserido. Desta forma, é mais do que necessária uma discussão teórica de nível, mas esta deve existir concomitantemente com a maior conexão possível com a realidade social. Sem isso, torna-se a discussão vazia de significação, objetivo e conteúdo. Portanto, retirar o tema do abortamento da esfera criminal não é só um argumento de retórica, mas sim uma necessidade.
Advogado; Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia; Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
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