Resumo: Busca fazer uma leitura crítica da legislação sobre a escolha, pelos órgãos da Administração Pública, da lei de regência de contratos internacionais, à luz da doutrina tradicional sobre a matéria. Com base em exame das normas aplicáveis ao assunto, dos argumentos tecidos pelos doutrinadores brasileiros, pelo Poder Judiciário e pelo Tribunal de Contas da União em julgamentos relevantes sobre a matéria, conclui-se que há plausibilidade na tese que defende que órgãos da Administração Pública brasileira podem escolher a lei de outro país como lei de regência dos contratos de direito privado firmados com partes estrangeiras, mesmo que aqueles órgãos sejam os proponentes dos negócios jurídicos. Contudo, malgrado a plausibilidade da tese, também se percebe que, diante do estado atual da doutrina e da jurisprudência brasileiras, a escolha da lei estrangeira como lei de regência contratual fora dos parâmetros estritos da Lei de Introdução ao Código Civil parece envolver nível significativo de risco legal, o que recomenda cautela em sua adoção.
Palavras-chave: Lei de regência. Contratos Internacionais. Administração Pública. Risco Legal.
Abstract: The paper aims to critically review the law on the choice of the governing law of contracts that are celebrated by Brazilian public entities with foreign parties, in light of the traditional doctrine on the issue. I examine the applicable law, the analyses made by leading Brazilian commentators and relevant judgments proffered by the Judiciary Power and by the Federal Court of Auditing (Tribunal de Contas da União) to conclude that the choice of the law of a foreign country as the governing law of the contracts executed by the country’s public entities with foreign parties can be considered legitimate. Nevertheless, the current state of the doctrine and judicial thinking indicates a significant level of legal risk in the adoption of the law of a foreign country as the governing law of a contract outside the strict parameters set out by the Brazilian Private International Law Act (Lei de Introdução ao Código Civil), thus suggesting that Brazilian public entities should be careful in adopting such a clause in its international contracts.
Keywords: Governing Law. International Contracts. Public Administration. Legal Risk.
Sumário: Introdução. 1. Normas Cogentes e Normas Dispositivas na Lei de Introdução ao Código Civil. 2. A Autonomia da Vontade na Administração Pública. 3. Precedentes do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas da União sobre a matéria. Conclusão.
Introdução
A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (LICC)[1], prevê que “[p]ara qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem” (art. 9º, caput) e que “[a] obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente” (art. 9º, § 2º).[2] Segundo entendimento de parte dos doutrinadores brasileiros (RODAS, 1985, p. 28-30; FRANCESCHINI, 1985, p. 137; ARAUJO, 1997, p. 104; DINIZ, 1999, p. 260), que se reproduz em número significativo de decisões dos tribunais pátrios, esses dispositivos são mandatórios. Isso significa, para esses juristas e magistrados, que os comandos do art. 9º da LICC devem ser obrigatoriamente observados pelas pessoas domiciliadas no Brasil que celebrem contratos internacionais.
Sob uma perspectiva pragmática, isto é, a partir dos comandos de ação transmitidos pelas normas a seus destinatários (FERRAZ JR, 1986, p. 12-33), a interpretação dada por aquela parte da doutrina e da jurisprudência aos mencionados preceitos da LICC permite aos sujeitos domiciliados no país que celebram negócios jurídicos internacionais as seguintes alternativas:
i) firmar o contrato no país cuja lei desejam aplicar à relação jurídica (lex loci celebrationis);
ii) aplicar ao contrato a lei do país em que se encontra a parte estrangeira, caso seja ela a proponente do negócio;
iii) aplicar ao contrato a lei brasileira, caso seja a parte brasileira a proponente da avença.
Ainda segundo essa interpretação dada ao art. 9º da LICC, em uma negociação internacional, para escolherem a lei de um país diferente daqueles em que se encontram domiciliadas, as partes deveriam assinar o instrumento no território desse terceiro país, celebrando o contrato “entre presentes”. Caso contrário, em se tratando de contrato “entre ausentes”, isto é, quando assinatura não se dá no mesmo local, a escolha da lei recairia sobre o país de residência do proponente. (RODAS, 1985, p. 29; DINIZ, 1999, p. 267-268; AMARAL, 2004, p. 225).
O presente trabalho pretende fazer uma crítica à mencionada posição da doutrina e da jurisprudência sobre o art. 9º da LICC, buscando lançar novas luzes sobre o tema. Será dado enfoque à hipótese de eleição de lei estrangeira em contratos internacionais celebrados pela administração pública, especificamente em contratos de direito privado da administração.[3] Nesse passo, serão examinados os fundamentos e os requisitos para que entidades de direito público possam adotar lei de outro país para reger as obrigações por elas assumidas em contratos internacionais, independentemente do local do domicílio do proponente.
Do estudo da doutrina e da jurisprudência existente sobre a matéria, algumas conclusões são extraídas. Em primeiro lugar, vê-se que é plausível uma interpretação do art. 9º da LICC que possibilite a livre escolha da lei de regência de contratos de direito privado. Quando aplicado aos negócios celebrados pela administração pública, esse raciocínio deve ser ponderado pela obediência aos princípios constitucionais que informam a atividade do poder público. Assim sendo, os entes de direito público podem eleger legislação de Estado estrangeiro como lei de regência dos contratos, desde que existam fundamentos de fato e de direito para a escolha, como forma de atender aos princípios positivados no art. 37 da Constituição da República (BRASIL, 1988).
Ademais, não obstante as ponderações descritas no parágrafo anterior, conclui-se que o sistema jurídico brasileiro, no estado atual de desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência, não oferece parâmetros flexíveis para a escolha de lei estrangeira como lei de regência de contratos entre ausentes com partes domiciliadas no exterior, sejam eles celebrados por particulares ou por entidades integrantes da administração pública. Diante desse nível de risco legal, a solução prática encontrada pelos juristas tem sido a utilização da arbitragem como método de solução de controvérsias. A possibilidade de a administração pública adotar a arbitragem em seus contratos e a discussão a ela relativa, contudo, não são abordadas nesse trabalho.
1 Normas Cogentes e Normas Dispositivas na Lei de Introdução ao Código Civil
A quaestio juris fundamental a ser apreciada neste trabalho diz respeito ao grau de liberdade que tem a administração pública para adentrar relações jurídicas contratuais regidas por lei estrangeira.
Preliminarmente, porém, faz-se necessário delimitar essa questão de forma mais precisa, pois os termos do parágrafo anterior podem dar a entender que se está a estudar qualquer relação jurídica contratual da qual participe a administração pública. As avenças às quais se dirige este trabalho são estritamente aquelas em que não existe poder de sujeição ou supremacia da administração sobre sua contraparte, ou, como denominado pela doutrina, sobre os contratos de direito privado da Administração, nos quais predomina o regime jurídico de direito privado. Assim sendo, nesse trabalho não serão abordados os contratos administrativos, no sentido técnico do termo.[4]
Feita a delimitação do problema, duas etapas de raciocínio parecem ser necessárias para o alcance de uma proposta de solução:
i) Definir qual é a força vinculante do dispositivo da LICC que cuida da aplicação de lei estrangeira aos contratos. A saber, trata-se de norma cogente, portanto imperativa, ou de norma dispositiva, que possibilita às partes dispor livremente sobre a matéria?
ii) Respondida essa questão, descobrir em que medida um ente da administração pública pode exercer seu poder de disposição, tendo em vista os ditames constitucionais e legais.
Independentemente da perspectiva filosófica que fundamenta a organização humana em sociedade e, a partir daí, legitima a existência do poder político e seu exercício por alguns indivíduos, que presentam uma entidade coletiva – chamada convencionalmente, desde o fim da Idade Média, de Estado –, essa entidade, como titular de um poder soberano, tem a capacidade para compelir os indivíduos que compõem a comunidade que lhe é subordinada à observância de regras de comportamento por ela definidas.
Esse poder de estabelecer as regras comportamentais ou de “dizer o direito”, todavia, sujeita-se sobretudo a limites espaciais, encontrando-se restrito ao território no qual se situa o Estado e, portanto, não se aplicando além de suas fronteiras (DINIZ, 1999, p. 15), ressalvadas exceções em determinadas matérias.[5]
As regras de direito estabelecidas por um Estado para valer e serem observadas em seu território, porém, não são sempre imperativas ou cogentes, impondo ou proibindo comportamentos às pessoas e, assim, impedindo essas últimas de afastar a incidência de ditas normas conforme disponham em negócios privados. Embora, como relata Pontes de Miranda (1970, p. 56), assim tenha sido “nos primeiros tempos”, o direito que se observa em época contemporânea contém traços cada vez mais marcantes de “supletividade” ou “dispositividade”, deixando aos interessados o poder de afastá-lo, caso queiram (IDEM, ibidem, p. 56).
Tem-se, portanto, no primeiro caso (o das normas cogentes), a sujeição incondicional dos interessados à incidência e aos efeitos dessas regras, independentemente de suas vontades. No segundo, o das normas dispositivas, sua incidência ocorre sempre que as partes sejam omissas no tratamento do assunto sobre o qual dispõem as normas, o que equivale a dizer que os interessados podem, desde que o façam expressa ou implicitamente, estabelecer regras próprias, mais adequadas à consecução de seus interesses.[6]
É possível dizer, portanto, que, na presença de normas dispositivas, as partes de um negócio jurídico têm a liberdade de traçar o regime jurídico que esperam ver respeitado na transação ou, igualmente, têm a faculdade de dispor, entre elas, diferentemente do que estipula a norma posta. Em não o fazendo, por outro lado, incide a norma dispositiva.
A seu turno, o exercício dessa liberdade de dispor sobre matérias não afetas a normas cogentes reside, em essência, no reconhecimento da autonomia da vontade, instituto que, embora tenha sofrido críticas ao longo do século passado, ainda é presente na seara civilística, com gradação, sob o nome de liberdade de contratar. (TENÓRIO, 1944, p. 211).
Portanto, é mister distinguir entre situações em que se está a tratar de normas cogentes e em que casos são as normas dispositivas. Especificamente para o propósito deste trabalho, é preciso averiguar se as normas extraídas do art. 9º, caput e § 2º, da LICC são cogentes ou dispositivas.
Nessa tarefa, estamos com Serpa Lopes (1959, p. 23-24) e Cunha Gonçalves (apud SERPA LOPES, 1959, p. 24), que trazem luzes à questão com auxílio da ratio legis da norma, isto é, de seu fim imediato. Assim é que, nas palavras de Cunha Gonçalves:
“[…] se êste fim fôr a tutela do interesse geral, a proteção da personalidade, ou da família, a segurança e publicidade das relações jurídicas, a satisfação das supremas necessidades sociais, a garantia das liberdades cívicas, a estabilidade das instituições econômico-sociais vigentes, as respectivas normas representam o jus cogens, são coativas; e se se trata de interêsses meramente individuais, derivados de convenções, suscetíveis de transmissão, renúncia e transação, teremos normas dispositivas.” (apud SERPA LOPES, 1959, p. 24, grifos no original).
Posto o critério, ao serem observados os dispositivos constantes da LICC, percebe-se que, na parte que toca aos art. 1º a 6º, as normas ali presentes são regras de sobre-direito, isto é, são regras que disciplinam as demais regras do ordenamento no que tange a sua vigência, eficácia e interpretação.[7] Vale dizer que, dada a finalidade a que se destinam, parecem tratar-se de regras imperativas, inafastáveis pelas partes de um negócio jurídico.
De outro lado, encontram-se nos art. 7º a 17 da LICC normas de direito internacional privado brasileiro (ESPÍNOLA; ESPÍNOLA FILHO, v. 1, 1995, p. 7; DINIZ, 1999, p.5), ou seja, regras destinadas à resolução de conflito de leis no espaço, para os fatos jurídicos que apresentam conexão com ordenamentos divergentes e autônomos. (DINIZ, 1999, p. 19). Em linha com o exposto acima sobre o critério traçado por Serpa Lopes (1959, p. 23-24) e Cunha Gonçalves (apud SERPA LOPES, 1959, p. 24), os textos dos citados dispositivos de direito internacional privado precisam ser interpretados para que se chegue à conclusão de que se está a tratar, em alguns casos, de normas cogentes ou, em outros, de normas dispositivas. Nesse sentido, a exemplo das primeiras, pode-se citar a regra posta no caput do art. 7º, que dispõe sobre a personalidade e alguns direitos a ela associados, bem como sobre direitos de família – assunto que é objeto dos parágrafos 1º a 3º, que contêm regras atinentes ao casamento –, as normas constantes dos art. 8º e 10 a 17, para citar as mais evidentes.
Por sua vez, é possível encontrar norma dispositiva no art. 9º da lei, especialmente no que tange às obrigações convencionais, isto é, obrigações oriundas de negócios jurídicos, onde a vontade das partes parece atuar por excelência.[8] Nesse tocante, excluídas as questões relativas à capacidade para contratar e aos vícios do consentimento, cuja disciplina prende-se às condições de manifestação da vontade e, portanto, não se sujeitam à disponibilidade dos agentes, entende-se que a essência (ou substância) e os efeitos de obrigações convencionais, nelas incluídas as obrigações contratuais, podem ser submetidos à lei que as partes elegerem para o negócio (lex voluntatis). (ESPÍNOLA; ESPÍNOLA FILHO, v. 3, 1995, p. 417-418).[9]
Sobre o assunto, assim se manifestam Espínola & Espínola Filho, em clássica obra sobre a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, ao citarem Cereti:
“Praticamente, o recurso à vontade das partes, para a determinação da lei aplicável, tem um valor substancial, que nenhum outro sistema apresenta. Mas, além disso, tem uma base de verdade científica, porque a obrigação não pode ser localizada no espaço, não encontra uma relação de conexão segura e constante com uma lei determinada, como acontece com os direitos das pessoas (cidadania e domicílio) e os das coisas (lex rei sitae). Na grande variedade das relações derivadas do fato voluntário do homem, a conexão só pode ser dada pela própria vontade no ato em que esta se sujeita a uma lei determinada.” (CERETI, 1940, p. 695-696 apud ESPÍNOLA; ESPÍNOLA FILHO, v. 3, 1995, p. 417)
Contudo, como se pode presumir, a referida liberdade para a escolha da lei aplicável aos contratos, admitida no art. 9º da LICC, não é absoluta. A mesma doutrina que a admite registra importante ressalva de que devem ser respeitadas as regras imperativas do lugar onde for constituída a obrigação. (TENÓRIO, 1944, p. 209-210; SERPA LOPES, 1959, p. 201; ESPÍNOLA; ESPÍNOLA FILHO, v. 3, p. 418). Na prática, as partes em um contrato internacional poderiam eleger a lei de regência das obrigações ali constituídas, desde que não desrespeitassem as regras cogentes do local onde as obrigações se originaram. Assim, caso a lei do lugar onde se deu o surgimento da obrigação não admita a escolha de outra legislação, e semelhante comando for imperativo, não poderão as partes, validamente, proceder de outra maneira.
Para a questão estudada neste trabalho, como visto acima, trata-se de contratação impulsionada por entidade integrante da administração pública brasileira com pessoa domiciliada no exterior. A descoberta do lugar de constituição da obrigação, portanto, não se faz em consulta direta e exclusiva ao caput do art. 9º, mas por meio de seu § 2º, que indicará o mencionado lugar, em caso de contratação entre ausentes. (DINIZ, 1999, p. 258-259). Preceitua o dispositivo, in verbis, que “[a] obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.” Dessa forma, sendo a proposta emitida pelo ente brasileiro às contrapartes estrangeiras, parece não restar dúvida de que a obrigação se reputará constituída no Brasil, devendo, assim, ser a lei brasileira observada no que tem de normas cogentes para que eventual eleição de lei estrangeira possa ser validamente aplicável ao contrato.
O raciocínio levado a efeito até aqui é consistente com as situações em que seja escolhida a arbitragem para a resolução de conflitos e disputas sobre o contrato. É que o § 1º do art. 2º da Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996 (BRASIL, 1996), permite às partes “escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.”[10] É dizer: as partes poderão escolher a lei de outro Estado para reger e interpretar as obrigações de um contrato, para efeito do julgamento em sede arbitral, desde que as regras eleitas não violem os bons costumes e a ordem pública do país.
Em essência, embora a ordem pública não deva ser confundida com a força imperativa das regras jurídicas, percebe-se no direito pátrio que a escolha da lei estrangeira para reger contratos cujas obrigações sejam consideradas constituídas no País está condicionada à observância do tripé composto de normas cogentes, ordem pública e bons costumes, conforme indica a interpretação sistemática dos citados art. 9º, caput e § 2º, da LICC (BRASIL, 1942) e art. 2º, § 1º, da Lei de Arbitragem (BRASIL, 1996).
2 A Autonomia da Vontade na Administração Pública
Se é possível afirmar, como feito acima, que o ordenamento brasileiro, em prestígio à autonomia da vontade, admite a eleição de lei estrangeira para reger contratos internacionais que tenham uma das partes residente ou domiciliada no país, cabe examinar até que ponto e em que condições pode uma entidade integrante da administração pública exercer sua liberdade de contratar, com vistas à adoção da legislação de outro Estado para os negócios jurídicos que celebra.
A questão é pertinente, pois, ainda que neste estudo se esteja a tratar de contratos de direito privado da Administração, isto é, de relações jurídicas em que o Estado brasileiro não se faz presente com seu poder de império, de sujeição, mas sim como um particular, em princípio em pé de igualdade com a contraparte, surge dúvida sobre a possibilidade de o administrador público agir de maneira diversa ao prescrito na regra legal, como é o caso do art. 9º e § 2º da LICC (BRASIL, 1942). A solução da dúvida parece apontar para a combinação do regime de direito privado a que está submetida a Administração nas contratações ora examinadas e a natureza disponível dos citados dispositivos da LICC. Nessa situação, portanto, a entidade estatal poderia contratar no exercício de suas prerrogativas, como se outro agente privado fosse, usando o espaço dado pelo ordenamento para o exercício da autonomia da vontade dos indivíduos. Não obstante, é pertinente registrar que o exercício da liberdade de contratar estatal não se faz tão livremente, eis que, em razão do princípio republicano, deve o administrador pautar-se permanente pela preservação do interesse público, que se materializa nos princípios incrustados em nosso ordenamento, sobretudo na Constituição da República (BRASIL, 1988).
A esse respeito, ademais dos princípios inseridos no Título I do texto constitucional, é necessário observar aqueles constantes de seu art. 37, caput,[11] específicos para a atividade da administração pública. Diante, portanto, de prescrição de observância à legalidade, à impessoalidade, à moralidade, à publicidade e à eficiência, indaga-se se como o administrador público pode exercer a liberdade de contratar no que toca à eleição de lei estrangeira. Tarefa árdua, se destinada a generalizações, a resposta à indagação pode ser formulada a partir da premissa de que a adoção da lei nacional seria a primeira e mais natural atitude, tendo em vista a maior familiaridade dos servidores do Estado brasileiro, inclusive dos serviços jurídicos, com suas próprias normas e a economia de recursos que, em tese, tenderia a produzir. Assim sendo, em primeiro lugar, para que essa premissa possa ser afastada, preferindo-se a lei estrangeira à nacional, deve haver razões de fato, passíveis de comprovação ou demonstração, de que a escolha da lei brasileira tornaria inviável ou por demais dispendiosa[12] a mesma contratação.
Atendido esse requisito, o ato de escolha da lei de outro Estado deve, em prestígio aos princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência, recair sobre um ordenamento capaz, a um só tempo, de bem atender aos fins buscados com a contratação, de propiciar segurança jurídica à Administração e de reduzir os custos de transação das partes, em razão de sua notoriedade e do conhecimento generalizado de suas regras pelos participantes do mercado. É o caso, por exemplo, da adoç ão da lei da Inglaterra e do País de Gales ou da lei do Estado de Nova York, nos Estados Unidos da América, nas transações efetuadas nos mercados financeiros internacionais, tendo em vista a familiaridade dos profissionais de finanças e de direito com as regras daqueles ordenamentos, a suposta melhor preparação desses profissionais para resolver eventuais conflitos entre as partes e a tradicional predominância daqueles sistemas jurídicos como lei de regência dos négocios financeiros internacionais.
3 Precedentes do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas da União sobre a matéria
Muito poucas são as decisões judiciais acerca do tema apreciado neste parecer, não tendo sido encontrada nenhuma sobre a questão específica de eleição de lei estrangeira para reger contratos de direito privado da Administração. Não obstante, das decisões judiciais e do Tribunal de Contas da União encontradas, é possível ter visão de um panorama aproximado de como essa questão seria enfrentada pelos tribunais e órgãos de controle brasileiros.
Em primeiro lugar, identifica-se antigo precedente do Supremo Tribunal Federal[13], no qual é discutida a homologação de laudo arbitral que, com base em lei da Alemanha, julgara controvérsia contratual entre empresa brasileira e empresa suíça. No aresto, embora a questão sobre a escolha de lei estrangeira não seja enfrentada diretamente, a decisão é proferida sob a premissa de que seria regular a eleição de lei estrangeira de Estado distinto daquele em que as partes se encontram domiciliadas. Ademais, encontram-se duas decisões de tribunais do Estado de São Paulo,[14] que, fundadas no princípio da autonomia da vontade, admitiram a possibilidade de as partes elegerem a lei de regência de suas relações jurídicas contratuais. (BOLZANI; CARVALHO, 2007, p. 107-127).
Por sua vez, os precedentes jurisprudenciais que tratam de procedimentos de arbitragem em contratos celebrados pela administração pública não enfrentam questão atinente à escolha de regras para reger as obrigações entre as partes,[15] o mesmo ocorrendo com as decisões proferidas pelo Tribunal de Contas da União.[16] No que diz respeito às decisões desse último, deve-se ressaltar que os precedentes encontrados sobre o citado assunto versavam, em sua maioria, sobre adoção de juízo arbitral em contratos administrativos, não se enquadrando, portanto, no objeto deste parecer, que se volta para os contratos privados da Administração.
Assim sendo, não obstante a plausibilidade da tese exposta acima, a ausência de julgamentos específicos sobre a matéria discutida nesse artigo impede que se assegure a aceitação, pelo Poder Judiciário ou pelos órgãos de controle da Administração, da eleição de lei estrangeira em contratos privados da Administração.
Conclusão
Conclui-se, portanto, em face do disposto na Constituição da República e no ordenamento infraconstitucional, que é palusível a tese segundo a qual as entidades de direito público podem firmar contratos de direito privado, com cláusula de regência por lei estrangeira, ainda que se encontrem na qualidade de proponente dos negócios jurídicos. Em todo o caso, devem ser observadas as normas cogentes do ordenamento pátrio. Nesse mister, é indispensável que haja razões de fato, passíveis de comprovação ou justificação, de que a escolha da lei brasileira tornaria inviável ou mais dispendiosa a contratação pretendida.
Não obstante, também é possível concluir que o sistema jurídico brasileiro, no estado atual de desenvolvimento de sua doutrina e jurisprudência, não parece oferecer parâmetros flexíveis para a escolha de lei estrangeira como lei de regência de contratos entre ausentes com partes domiciliadas no exterior, sejam eles celebrados por particulares ou por entidades integrantes da administração pública. A solução prática encontrada pelos juristas tem sido a utilização da arbitragem. A possibilidade de a administração pública adotar a arbitragem em seus contratos e a controvérsia a ela relativa, contudo, não são abordadas nesse trabalho.
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Notas:
[1] Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. (BRASIL, 1942).
[2] Art. 9º, caput e § 2º, da LICC, in verbis (Idem, ibidem):
“Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. […]
§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.”
[3] Sobre a distinção entre contratos administrativos e contratos de direito privado da administração pública, cf. as obras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2004, p. 245-249), Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 567-568), Marçal Justen Filho (2006, p. 283-284 e 308-310) e Fernanda Kellner de Oliveira Palermo (2008, p. 103-132).
[4] Cf. nota de rodapé anterior.
[5] Cf., a exemplo, os art. 5º e 7º do Código Penal Brasileiro. (BRASIL, 1940).
[6] Essa descrição seria também aplicável às normas interpretativas, isto é, àquelas que somente incidem se há dúvida a respeito do sentido daquilo que estabeleceram as partes, ou seja, às normas que, embora admitam o exercício da vontade dos sujeitos, não aceita que esse exercício seja lacunoso, ambíguo. Cf., sobre o assunto, Pontes de Miranda (1970, p. 58-61).
[7] Segundo Maria Helena Diniz (1999, p. 3), as regras presentes nos art. 1º a 6º “contêm normas emanadas do espírito da Constituição Federal, como, p. ex., as atinentes à publicação e à obrigatoriedade das leis.”
[8] A ressalva é necessária, pois, em se tratando de obrigações ex lege, isto é, obrigações decorrentes diretamente da lei, seus efeitos são dados inexoravelmente pela própria lei, à revelia da vontade do obrigado. Dentre essas obrigações incluem-se as oriundas de delitos, quase-delitos e quase-contratos, como é o caso da gestão de negócios e da repetição do indébito. Nesses casos, via de regra, o direito aplicável é aquele do local em que se originou a obrigação, tendo em vista a essencialidade desse direito para a própria formação da obrigação (ESPÍNOLA; ESPÍNOLA FILHO, v. 3, 1995, p. 388-403).
[9] No mesmo sentido, cf. o que expõe Oscar Tenório (1944, p. 210-211), que defende ser admitido o exercício da autonomia da vontade ante o art. 9º da LICC, embora o dispositivo não o preveja expressamente, como o fazia o art. 13 da antiga Introdução ao Código Civil, que acompanhou o Código de 1916. Na mesma linha, SERPA LOPES (1959, p. 201) reconhece a liberdade de escolha da lei de regência dos contratos.
[10] Para um entendimento completo do dispositivo, cita-se integralmente o art. 2º da Lei de Arbitragem (BRASIL, 1996):
“Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes.
§ 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.
§ 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.”
[11] “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]” (destacou-se).
[12] O dispêndio aqui tratado pode referir-se, no caso de um contrato de empréstimo, por exemplo, às taxas de juros cobradas pelas instituições financeiras estrangeiras, que tenderiam a elevar-se em caso de imposição de observância à lei brasileira, uma vez que o conhecimento do sistema jurídico pátrio, que não é o de uma praça financeira tradicional, implica custos àquelas instituições estrangeiras, e esses custos são corriqueiramente incorporados aos juros cobrados pelo empréstimo.
[13] SE-AgR 2.178-1-Alemanha, Rel. Min. Antonio Neder, Tribunal Pleno, julg. 08.11.1979.
[14] 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo (extinto), AI 1.247.070-7, 12ª Câmara, Rel. Juiz Beretta da Silveira, julg. 18.12.2003; Tribunal de Justiça de São Paulo, ACi 7.030.387-8, 24ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Salles Vieira, julg. 18.10.2007, DJE 13.12.2007. O citado julgado do 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo foi apreciado pelo STJ no REsp 804.306-SP, mas não se abordou questão atinente à possibilidade de eleição de lei de regência, apenas de lei de foro, isto é, da escolha do foro competente para apreciar demandas entre as partes.
[15] Cf., a exemplo, MS 11.308/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julg. em 9.4.2008, DJe 19.5.2008.
[16] Cf. Decisão 286/1993, Rel. Min. Homero Santos, Plenário, julg. em 15.7.2003, DOU 4.8.1993; Acórdão 906/2003, Rel. Min. Lincoln Magalhães da Rocha, Plenário, julg. em 16.7.2003, DOU 24.7.2003; Acórdão 537/2006, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, Segunda Câmara, julg. em 14.3.2006, DOU 17.3.2006; Acórdão 1099/2006 – Plenário, Rel. Min. Augusto Nardes, julg. em 5.7.2006, DOU 10.7.2006.
Mestre em Direito (LSE, Reino Unido, 2011). Especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (IDP, Brasil, 2009). Bacharel em Direito (USP, Brasil, 2004). Procurador do Banco Central do Brasil desde 2006
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