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Estado de exceção permanente e global

Resumo: Basicamente, o objetivo do texto é demonstrar como a modernidade se utilizou da Razão de Estado para legitimar o uso do poder de forma instrumental – de modo bem específico, ainda podemos dizer que a Razão de Estado se converteu em Estado de Exceção Permanente e Global. [1]


Temos que a luta por conservação, entretanto, tem suas bases recorrentes lançadas no Renascimento: a razão que atuando como suporte do poder, apresentou-se, antes como Razão de Estado, depois como excepio. Aliás, também não há coincidência em se dizer que no Renascimento nasceu essa tempestiva busca da razão, com Bacon, Descartes e a reta razão de Hobbes, e que logo migraria para a Razão de Estado, na forma do Estado-Nação: expansivo, invasivo, que fez uso recorrente da força do colonizador.


No Iluminismo, o esclarecimento, nem que mantido sob o efeito da ameaça da guilhotina, foi o prisma ou mote adotado pela mesma reta razão — seu suporte, como vimos, foi a Razão de Estado. Desse modo, percebemos este uso tempestivo da coerção, em nome da razão que liberta, no Renascimento e no Iluminismo: “deve-se cortar o mal pela raiz, isto é, pela cabeça”.


A Razão de Estado e a coerção


A Razão de Estado, na primeira fase da chamada “modernidade clássica” (liminarmente, a partir do Renascimento) e a Modernidade Tardia (formando-se na segunda fase da modernidade clássica – Iluminismo – até a contemporaneidade[2]), nada mais são do que formas de “atualização” do “fluxo de racionalidade política” presente no “desencantamento do mundo” que sempre orientou o longo processo civilizatório da humanidade. Portanto, para melhor compreender esse processo repleto de procedimentos (dentre eles destaca-se o “uso instrumental”, utilitário, da cognição, da razão), é preciso reconstruir alguns conceitos-chave de Weber, como: ação e relação social, desencantamento do mundo, dominação racional-legal, Estado de Direito[3]. Na verdade, a força que a racionalidade instrumental ganha, também é resultado do desenvolvimento da ciência (como “lógica empregada”, gnosiologia, método), como esfera de valor da modernidade. Quer dizer, o sonho humano (depois revelada fantasia e desastre) de ver uma ciência interessada e capaz de “dominar a natureza”, transformou-se, ampliou-se e por que não haveria um interesse em manipular o mundo, das coisas e dos homens? O que nos indicaria isto, ainda com Weber, foi o fator primordial, essencial, “instrumental”, alcançado pela ética protestante propulsora do trabalho gerador de riqueza sem admoestações de consciência ou fé. Ao homem comum (e também ao cientista), Weber ainda revela, seguindo o “realismo político”, que devemos assinalar os espaços em que se sobressaem os “políticos que vivem para a política” e não só os que “vivem da política”. Então em Weber há uma tensão entre os dois movimentos. Porém, ao que parece, nos “tempos sombrios” de que nos falava com imenso pesar (sobre suas próprias costas, mesmo!) Hannah Arendt, predomina a dominação. Hoje em dia, em tempos de barbárie, poucos se dão ao luxo de elaborar mecanismos de legitimação que passem obrigatoriamente pela aceitação/adesão do participante, contribuinte. Aliás, como Weber bem poderia nos dizer, em poucos têm restado a “vocação para a política”, quanto mais a necessária “sedução do poder” que quer legitimar-se. Infelizmente, tem prevalecido a lógica da vita mea, mors tua. Esquecemo-nos completamente das lições clássicas da necessária prudência e da virtus, pois não é difícil avaliar que, mesmo em situações crônicas, a ratio deve servir como meio moderador, inclusive aos resistentes e combatentes: Mors ultima ratio (“a morte é a última razão”).


De forma irônica, também devemos pensar que o mesmo molde da Razão de Estado na chamada primeira modernidade, nos dois séculos seguintes (XVI e XVII) viria a instituir o Estado de Exceção e o Iluminismo, no pós-Revolução Francesa. Portanto, o que se chama de segunda modernidade, foi a contradição em si mesma, pois elaborou concomitantemente a razão que liberta e a razão que oprime. Por isso, é preciso não só buscar o logos da modernidade, revelar as construções e as convicções, como também o descompasso, o descompromisso com o todo, as contradições, as insuficiências, as nebulosas. Utilizaremos a chave conceitual “ação social quanto aos fins”, de Weber, para entender a relação ou passagem da Razão de Estado (clássica em Hobbes e em Maquiavel) ao Estado de Exceção. Nesta junção destaca-se a justificativa da soberania do poder estatal a qualquer custo — neste caso, “os fins justificariam os meios. Portanto, a outra chave teórica complementar, “ação social quanto aos valores”, deve ser tomada a fim de se averiguar se ou quando pode haver a vigência de uma outra ética complementar (senão substitutiva) a esta, em que as justificativas do poder necessariamente tem de se defrontar com as demandas sociais e a legitimidade requerida. No caso da ação social quanto aos valores, adentramos ao campo do Estado Democrático de Direito — este, também como um “modelo típico ideal”, e ainda que aí se encontrem tanto o Estado de Sítio Político (como analisara Marx a partir de 1848, na França e na Europa insurreta) quanto a versão contemporânea do estado de emergência econômica (nos países de terceiro mundo). Em síntese, deveremos nos deter um pouco mais em elementos como a racionalização, a intelectualização e a instrumentalização (tecnicismo), ou seja, como a Razão de Estado, na forma do Estado Cientificista, utiliza-se do processo de desencantamento do mundo, principalmente ao longo dos séculos XIX e XX.


O Iluminismo gerou a exceção


O Iluminismo nos legou a exceção, a partir da França de 1791, porém, a base argumentativa de que o direito não é liberdade, antes que seja coerção, provém de Kant:


“O direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade … Assim, a lei universal do direito, qual seja, age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, é verdadeiramente uma lei que me impõe uma obrigação” (Kant, 2003, pp. 75-78).


O direito estrito é aquele sem compromisso obrigatório com a moral ou que não tem restrições éticas. A Lei Universal do Direito garante-se pela coerção e não pela liberdade. Isto se deve à necessidade de se obedecer imperativamente a uma determinada Lei Universal. Portanto, o Direito não se verifica por meio de uma “escolha possível” (faculdade de agir – facultas agendi), “ação com perspectiva jurídica” (facultas legem) ou livre arbítrio, mas sim pela imposição de uma certa “verdade” imposta e assegurada pela imposição coercitiva do poder hegemônico (Poder Extroverso), a quem a própria Lei Universal lhe assegura e atribui, também coercitivamente, a noção de Legitimidade (note-se que sempre imposta coercitivamente).


Assim, o que se convencionou chamar de luta pelo reconhecimento (Honneth), ainda que de fundamental importância à consagração de valores e de direitos democráticos, também não escapa das regras do uso instrumental da exceção, uma vez que as Constituições democráticas acabam por legitimar a exceção como meio de defesa da própria democracia. Aliás, esta foi a manipulação traçada a partir da Constituição de Weimar, de 1929, denominada até então de baluarte da democracia e do Estado Social. Cabe salientar que o conceito/realidade da Modernidade Tardia remonta ao Renascimento – e não como se afirma, tradicionalmente, ao Iluminismo – porque é no contexto da concentração do poder sob os auspícios do Estado-Nação que se evidencia a Razão de Estado. Por sua vez, a Razão de Estado permanece na esteira do Estado e no Direito Moderno, bem como hodiernamente. Por isso, para visualizar a metamorfose da Razão de Estado em Estado de Exceção é necessário verificar as bases teóricas e históricas da Razão de Estado, efetivamente a fim de notabilizarmos o que se modificou, neste longo período histórico, para que se organizasse a nova estrutura política e jurídica legitimadoras. O Iluminismo, por seu turno, tem um significado essencial (aliado à Razão de Estado renascentista) porque foi no século XVIII, pós-Revolução Francesa de 1789, que se verificou a primeira fase da transformação. Neste momento, vimos emergir o famoso expediente político/jurídico do Estado de Sítio. A tomada do poder é realizada em nome da soberania; mas o que é soberania no âmbito deste trabalho?


A Soberania que faz uso permanente da Razão de Estado


Soberania é um dos elementos formais do Estado no conjunto de seus poderes institucionais, pelos quais exerce autoridade absoluta sobre qualquer outro poder, no âmbito interno, e situa-se no mesmo plano de poder dos outros Estados. Logo a soberania interna é o império que o estado exerce, coercitivamente, sobre o seu território e a sua população; e soberania externa é a sua independência e igualdade perante outros Estados, o seu poder de autodeterminação.


Portanto, leis, atos e sentenças de outro país, ou qualquer declaração de vontade, não terão eficácia no Brasil quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 17).


A soberania é concebida de duas maneiras distintas: como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira; ou como expressão do poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do estado, este é que tem o poder de decisão em última instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica. A independência se apóia no poder de fato que tenha o Estado, de fazer prevalecer sua vontade dentro de seus limites jurisdicionais.


A conceituação jurídica de soberania se baseia se baseia na igualdade jurídica dos Estados e pressupõe o respeito recíproco, como regra de convivência. Neste caso, à prevalência da vontade de um Estado mais forte, nos limites da jurisdição de um Estado mais fraco, é sempre um ato irregular, antijurídico, configurando uma violação da soberania, passível de sanções jurídicas. E mesmo que tais sanções não possam ser aplicadas imediatamente, por deficiência de meios materiais, o caráter antijurídico da violação permanece, podendo servir de base a futuras reivindicações bem como à obtenção de solidariedade de outros Estados.


A soberania caracteriza-se por ser:


Uma – porque não se admite num mesmo Estado a convivência de duas soberanias.


Indivisível – porque além das razões que impõe sua unidade, ela se aplica à universalidade dos fatos ocorridos no Estado, sendo inadmissível, por isso mesmo, a existência de varias partes separadas da mesma soberania.


Inalienável – pois aquele que a detém desaparece quando ficar sem ela seja o povo, a nação, ou o Estado.


Imprescritível – porque jamais será verdadeiramente superior se tiver prazo certo de duração. Todo poder soberano aspira a existir permanentemente e só desaparece quando forçado por um à vontade superior.


Como age o Poder diante da Razão de Estado


Aqui indicamos algumas transformações da Razão de Estado, das bases da Modernidade Tardia em que se fundeou o Estado-Nação (Renascimento), passando pela Revolução Francesa e a instituição do Estado de Sítio (1791), até que culminasse sua metamorfose político-jurídica na Constituição de Weimar (1919), e assim seguisse a Razão de Estado vertida em Estado de Exceção Permanente.


Neste sentido, o Estado de Exceção é um resquício absolutista — não se trata de uma revolta do Absolutismo, é apenas um resquício que sobrou da limpeza. Não é uma transposição cega de instrumentos autocráticos do passado para o presente, mas o uso de mecanismos de controle com efeitos similares.


Portanto, Razão de Estado quer dizer que a ratio está a serviço do Estado (e não exatamente servindo à sociedade), daí que seria lógico, racional seguir as ordens do mais forte — e é isto que define a Razão de Estado como ideologia que aposta em um sistema fechado, completo, totalizador, e que (por definição) não pode reconhecer fissuras na soberania: do latim – superanus.


Em uma frase: Razão de Estado é o uso soberano da força em desconsideração às mínimas noções de direito e Justiça. Como descreveu Carl Schmitt, acentuando este mesmo tom, soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção.


Já nos momentos de crise aguda, instaura-se o Estado de Sítio Político (Marx). Nestes casos, não é incomum confundir-se o interesse partidário com a Razão de Estado, e disso nasce o golpe de Estado.


Do ponto de vista institucional hegemônico assim se opera a transformação da Razão de Estado na legalidade pretendida ao Estado de Exceção. Por isso, diferentemente do golpe de Estado, o Estado de Sítio Político não é uma ilegalidade, uma vez que tem previsão legal.


Desta associação do cálculo à política, também decorre a associação da razão ao Estado e, portanto, nestas circunstâncias, a violência não é tida como atitude irracional — na guerra da autoconservação do poder, todos os meios são válidos (os fins justificam os meios).


Então, pode-se dizer que o Estado de Exceção é a mais pura inflexão da razão política e se fundamenta ou se alimenta no mito da virilidade (virtù) e da segurança. Apresentadas as justificações do poder, este liame entre Razão de Estado e circunstâncias emergenciais (para nós, Estado de Exceção Permanente) retoma-se, exatamente, a idéia de que as necessidades impõem os meios aos fins.


Proposição (i)lógica do Estado de Exceção


É certo que o direito é parte fundamental do processo cultural de racionalização que acompanha a humanidade, como essencial ao processo civilizatório ou de humanização.


Ocorre que, como vimos, a partir da modernidade clássica do pós-Revolução Francesa, este mesmo processo racional atribuído em boa soma à própria consagração do direito nos trouxe o fenômeno da exceção constitucional.


A partir de então, a racionalidade político-jurídica nos legou o Estado de Exceção – uma forma de solução de litígios e conflitos político-jurídicos que passou a incluir na regra, meios de negar a própria regra.


Como as medidas de exceção foram incorporadas e justificadas pelo positivismo constitucional, não haveria legitimidade nos discursos político-jurídicos que viessem a alegar a inconstitucionalidade de tais medidas de exceção subversivas das regras.


Encontramos o liame constitucional que faltava ao poder abusivo para estabelecer e ramificar sua hegemonia ou soberania opressiva.


Também é interessante pensar que o subversivo não mais seria aquele que se volta contra a condução regular das regras, pois, com a exceção às regras, tornou-se eficaz e legítimo descumprir as regras básicas e iniciais: normatividade, positividade, regularidade, previsibilidade.


A regra pode ser questionada com a anuência de um componente reinante no interior desta mesma regra. Trata-se, sem dúvida, de um engenhoso e hábil labirinto jurídico no interior da própria regra.


Eficazmente articulada, esta modalidade de lógica jurídica, em que a regra (premissa maior) determina a exceção (premissa menor), autorizando-a descumprir o próprio preceito. Isto é, a conclusão é que a premissa menor está autorizada a se desvincular da premissa conformativa.


Assim, ou vemos aí uma negação frontal à lógica aristotélica ou, então, alçamos a exceção à condição de premissa maior e as regras à posição de premissa subalterna.


Todavia, mesmo neste sentido, como ver lógica no postulado que admite a exceção mitigar a força inaugural da regra?


Será razoável supor que não há mais que se falar em exceção à regra, doravante substituída pela diretriz de que a regra é exceção?


Aliás, o poder será subversivo quando lançar mão da exceção para fazer prevalecer sua própria regra ou comando de poder?


Ou subversivos serão os defensores das regras, quando denunciarem e se voltarem contra o uso da exceção – que (in)justamente descumpre as regras pré-estabelecidas?


De outro modo, se a exceção é alçada à custódia de regra, aquele que se utiliza da exceção, por força da obviedade, não descumpre a regra. Diz-se inclusive que se cumpre a regra até o limite (limiar da não-regra), quando se autoriza o uso quase intempestivo da exceção.


Por obra deste silogismo, quem usa da exceção para descumprir a regra não subverte nem a lógica e nem a regra. A habilidade do pressuposto da exceção fundiu as premissas maior e menor num só conjunto (i)lógico.


Minuta e máximas do Estado de Exceção


O Estado de Exceção é ele mesmo efeito da calculabilidade jurídica presente no antigo Estado de Sítio perpetrado em nome do Iluminismo, no pós-1789 (8 de julho de 1791, na Assembléia Constituinte francesa).


Se é correto que o povo não se inclina à democracia total, em que tenha que decidir os desígnios do poder e do governo a todo instante ou se isto é impossível na democracia de massas; é igualmente certo dizer, como Weber, que há uma “vontade de dominação”. Todavia, só o Estado de Exceção é capaz de metamorfosear esta “vontade de governo” em vontade súdita.


Aliás, a exceção nasceu antes da Regra, pois a fórmula do Estado de Direito, como o conhecemos hodiernamente, é um produto acadêmico do século XIX (arquitetado por Robert von Mohl), a partir da Alemanha, como sinônimo de imperatividade, impessoalidade, neutralidade e defesa constitucional dos direitos fundamentais conquistados.


Somente após, nos séculos XIX e XX, é que o Estado de Exceção encontraria abrigo no Estado de Direito – previsibilidade, racionalidade, reciprocidade, proporcionalidade, regularidade seriam, desde então, causa-efeito deste modelo novecentista de Estado de Direito. Hoje, portanto, podemos dizer que este modelo de Estado de Direito tem sua causalidade na Razão de Estado.


No século XX, em trabalho de legitimação da própria exceção, Carl Schmitt – o famoso jurista alemão – procurou estabelecer uma coerência interna entre Estado de Direito e Estado de Sítio, como máxima expressão da soberania constitucional e da Razão de Estado.


Adaptando Weber, pode-se dizer que o Estado de Exceção procura evitar (por todos os meios de força) que o Estado soberano deixasse de existir sociologicamente – caso viesse a desaparecer a probabilidade de ocorrência de ações sociais com sentido.


Entre Razão de Estado, soberania e Estado de Exceção, por um lado, e, por outro, a sociedade, deve subsistir uma relação social objetivamente unilateral, hierárquica e monista: dado o Poder Extroverso.


Em suma, o Estado de Exceção confirma-se como força oponível à sociedade e à legitimidade democrática:


– Tem no ato de conquista um ato projetado – e nisto está sua virtú, pois reina o poder de mandar da instituição compulsória. A liberdade é cedida ao controle monocrático da liberdade.


– Ratifica o poder imposto; nega-se ao poder proposto. A psicologia individual se completa na ética pagã da resignação. Restaurou regras do Absolutismo: regis voluntas suprema lex (a vontade do rei é a lei suprema).


– Desnuda a virilidade que se soerguia no Estado soberano de Hobbes. Foi, digamos, uma adaptação, metamorfose necessária aos desafios dos séculos seguintes – uma fusão/demonstração externa que vislumbrasse segurança e soberania (força e vigor).


– Constitui-se, na prática, num projeto/processo teleológico baseado numa ética racional quanto aos fins políticos. Carl Schmitt lhe patrocinou as garantias constitucionais necessárias para que se configurasse como ética racional quanto aos meios legais.


– Corresponde à dominação racional-legal levada às últimas conseqüências. O Estado de Exceção corresponde ao mais moderno e espetacular formato de organização e de centralização legítima (legal) do poder soberano. A dominação racional-legal é a via jurídica que oportuniza a legitimidade.


– Recorre à normalidade a fim de obter empréstimos de significados, agindo em razão de uma necessidade política premente, mas para ir além, abaixo, fora e inclusive contra esta normalidade que o abrigava. Não culpa os injustos pelas injustiças.


– Proporciona um massivo sentimento de impotência, simplesmente, porque deixa de ser verdade que só é verdadeiro, o que é verdade para todos. Seu tempo é o do presente-transitório: efemeridade, transitoriedade. Impõem-se pela violência, nutrindo-se da corrupção (real e de sentidos).


– Substitui o círculo virtuoso (liberdade, igualdade) por um círculo vicioso (coerção, opressão). Subsume as potencialidades às necessidades. Combate as principais virtudes republicanas: emancipação, autonomia, responsabilidade. Não se entende como República porque nega sistematicamente o “mundo da vida pública”. Não compreende a lógica da República, em que as mesmas pessoas que mandam são as que obedecem.


– Resume-se, juridicamente, na implementação de permissivos constitucionais altamente inibitórios (de direitos) e coercitivos (da ação social e política). Diz violar a Constituição no interesse da própria Constituição. Criminaliza a ordem democrática e estiola os direitos fundamentais.


– Transformou a conquista histórica dos direitos humanos na defesa e confirmação do não-Estado (sociedade civil como garantias individuais de direitos oponíveis ao Estado ou restritivos à Razão de Estado) em Estado de não-Direito: em que os próprios direitos humanos, compreendidos em suas gerações, são vilipendiados e frontalmente negados.


– Não reconhece o poder como fonte de reconhecimento social. Obstaculiza o entendimento recíproco, interativo, porque não reconhece meios não-coercitivos. Não legitima nenhum consenso singularmente não-impositivo. Incentiva o controle social a partir das hostes do poder heterônomo.


– Descaracteriza a regra, subverte-a, transformando a exceção em regra e, assim, inclui a exclusão.


– Transformou a Razão de Estado em Religião do Estado. Expande ideologias proto-fascistas que alimentam o Estado de não-Direito.


– Alimenta a insegurança pública e dela se retro-alimenta. Obtém sua anuência por meio da fabricação do medo. O pacifismo lhe é mau porque a vida é uma guerra permanente (slogan fascista). Viva la muerte (slogan falangista).


– Reafirma a cultura da morte: é um Estado de Execução. Há o culto do heroísmo que contempla a morte. É um produto dileto da moderna racionalidade, mas que se alimenta de mitos e de místicas. Prepondera um domínio carismático: “crença nos poderes mágicos, revelações e culto do herói” (Weber).


– Em virtude de suposta desinteligência social, produz e utiliza inteligentemente regras de exceção. Tem na excepcionalidade o princípio da totalização.


– Produz a lógica de que, para cada direito, há uma exceção. Reproduz um desencantamento jurídico em que, para cada exceção há uma regra de garantia de mais-poder. Regula a garantia de direitos por meio de restrições.


– É um expediente do capital globalizado. Encontra forças na internacionalização de recursos restritivos, excludentes e uniformizadores.


O Estado de Exceção ora nega, violenta, ora se utiliza de instrumentos e garantias constitucionais em favor do uso/abusivo da força pública contra a própria regra democrática. Com isto, o Estado de Exceção arrebenta as garantia dos direitos humanos.


O Estado Penal, por sua vez, é o derivativo criminal, carcerário do Estado de Exceção – desse modo, pretende conferir continuidade e confiabilidade à soberania no século XXI, baseando-se no medo, na suspensão dos mesmos direitos civis (a exemplo da ampla defesa e do Princípio da Dignidade) e na coerção, retração dos direitos políticos. O Estado Penal também acalenta um retorno à Lei de Taleão.


Assim, sob o silogismo apontado, a forma clássica do Estado de Sítio, a previsão temporária coercitiva que visa sanar a anormalidade pode se perpetuar, desde que o próprio Estado julgue que as causas que lhe motivaram ainda permaneçam — aí o estado de alerta não seria desligado.


De acordo com a Teoria Política Clássica seria como a descrição do Estado lutando contra a sociedade — um contra-senso porque o contrato social não fora programado para voltar-se contra a própria sociedade que lhe dera origem.


Em suma, por Estado de Exceção entende-se a imposição de regras de negatividades, pois este poder-direito:


– Não promulga de valores humanistas: convivialidade, civilidade, isonomia. Converte o legítimo discrímen em discriminação. Não reconhece o direito como regulamento que sobrevém à práxis. É pendular no equilíbrio para auferir a autoridade, ante a liberdade. Atinge a sociedade (em nome da Autoconservação do Estado) com a máxima força unilateral. Somente reconhece o cidadão do Estado, nunca o cidadão da sociedade. Postula a heterodoxia ética. Permite que o provisório se torne permanente. Mantém o governo dos homens, deturpando o governo das leis. Não reconhece o poder como “agir em concerto na regra”, uma vez que privilegia o “agir no concreto, pela exceção”.


O Estado de Exceção Permanente e Global prospera sempre que esmaecem a verdade republicana e a legitimidade do poder social. Como asseverava Cícero, há que se respeitar os institutos da República – especialmente sob o alcance da necessidade. A seguir, veremos algumas reflexões e lições de Cícero acerca da República, como forma de não se permitir o uso de meios de exceção:


1. Na República predomina a Justiça.


2. A maior necessidade é a virtude.


3. Não se governa a República, mesmo em perigo, com improvisos.


4. Para o republicano, a felicidade está em combater a ignorância.


5. O homem digno da República reúne os atributos da humanidade.


6. Na República, cada um sabe o que é seu.


7. A política não decorre da necessidade, mas sim da sociabilidade.


8. A dissensão promove discórdia; a igualdade traz equilíbrio social.


9. Deve-se proteger o Estado contra o furor.


10. Na República, “o valor tomará armas contra o furor”.


11. O compromisso com a República é um compromisso com a verdade.


12. A virtude republicana é capaz de superar as necessidades e os desafios.


Nenhuma necessidade tem legitimidade para afastar a honestidade, diria Aristóteles, uma vez que o governo dos justos impõe regras para governar sem o uso da exceção. Vejamos algumas máximas de Aristóteles para o governo virtuoso que nos ajudariam a combater o uso de regras de exceção e evitar o Estado Penal:


1. A República deve combater a exceção.


2. Ao Estado só deve interessar a honestidade.


3. A equidade não admite a exceção.


4. A cidade deve ser protegida com a virtude.


5. O ostracismo é a mais grave pena de exceção.


6. O ostracismo não pode ser a regra punitiva movida contra o povo.


7. Só há semelhantes se há justiça e honestidade.


8. A necessidade deve ser subordinada à honestidade.


9. Bem governar é garantir que a ninguém falte o pão.


10. A politirania produz a regra da exceção em massa.


11. O corpo deliberativo é o soberano do Estado.


12. Há crime de Estado quando se atenta contra a Constituição.


13. Prudência é editar leis que proíbam a concentração de poder.


14.O soberano deve ser mais fraco do que a nação inteira.


15. O governo virtuoso combina a educação do povo com o conhecimento e respeito à Constituição.


Para nós, este misto de sitiados e o Outro, mais do que nunca é preciso retomar os clássicos, pois não pode haver condescendência alegando ignorância sobre a presença constante do Estado de Exceção Permanente e Global.


 


Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. A Política. São Paulo : Martins Fontes, 2001.

Del ROYO, Marcos & MARTINEZ, Vinício Carrilho. Hamlet: homem de virtù. IN : Estudos de Sociologia, UNESP/Araquara, v. 26, 2008, pp. 77-89.

CÍCERO, Marco Túlio. Da República. 5ª ed. Rio de Janeiro : Ediouro Publicações, s/d.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Col. Os Pensadores. 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1983.

KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa : Edições 70, 1990.

______A Metafísica dos Costumes: a doutrina do direito e a doutrina da virtude. Bauru, SP : EDIPRO, 2003.                         

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe – Maquiavel: curso de introdução à ciência política. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 1979.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da Dominação Racional à Legitimidade (anti)Democrática. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP/Marília, 2010.

MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

______ A Guerra Civil na França. São Paulo : Global, 1986.

______ As lutas de classes na França (1848-1850). São Paulo : Global, 1986b.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte : Del Rey, 2006.

WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.

______ O Estado Racional. IN : Textos selecionados (Os Pensadores). 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1985, p. 157-176.


Notas:

[1] O artigo é uma síntese da Tese de Doutorado Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da Dominação Racional à Legitimidade (anti)Democrática. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP/Marília, 2010.

[2] Outra concepção de Modernidade Tardia tem como referência os anos 70, como contraponto à pós-modernidade, ou seja, define-se de forma congruente com a globalização neo-liberal ou ainda imperialismo tardio.

[3] Ainda que a expressão Estado Democrático de Direito não seja devida e nem empregada por Weber, é a este conjunto político que suas suposições nos conduziram já nos anos 50-60 do século XX, por Verdú e Díaz.

Informações Sobre os Autores

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto I da Universidade Federal de Rondônia; Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais (UNESP); Doutor em Educação (USP); Doutor em Ciências Sociais (UNESP); Mestre em Educação (UNESP); Mestre em Direito (Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro – PR); Bacharel em Direito e em Bacharel em Ciências Sociais (UNESP).

Marcos Del Roio

Professor.Livre-Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da UNESP/Marília


Equipe Âmbito Jurídico

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