Estado e sociedade: desafios em busca da liberdade frente à necessidade de proteção

Resumo: Trata-se de um ensaio teórico-reflexivo, com o objetivo de analisar a relação do Estado e da sociedade, haja vista a busca constante desta pela liberdade em face da necessidade de proteção. Para tanto, será realizada a análise de conteúdo, segundo o entendimento de teóricos ligados ao tema, afim de promover discussões, haja vista sua relevância, sobretudo, no momento no qual surge o poder regulatório da ação mercado no sistema capitalista, com visível tendência de autorregulação social.   

Palavras-chave: Estado. Sociedade. Autorregulação. Liberdade.

Abstract: It is a theoretical-reflexive essay, with the objective of analyzing the relationship between the State and society, given its constant search for freedom in the face of the need for protection. In order to do so, content analysis will be carried out, according to the understanding of theoreticians related to the subject, in order to promote discussions, given its relevance, especially at the moment when the regulatory power of market action arises in the capitalist system, with a visible tendency Social self-regulation.

Key-words: State. Society. Self-regulation. Freedom.

Sumário: 1. Introdução. 2. Liberdade na visão Isaiah Berlin. 3. Perspectiva de Karl Polanyi – Moinho satânico. 4. Considerações finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A relação entre o Estado e a sociedade é bastante difundida no estudo da teoria política e da sociologia, inclusive o homem médio também se vê apto para tratar dessa relação, todos têm algo para externar nesse sentido, quer seja pela divisão dessas esferas ou pelo reconhecimento de uma interdependência entre elas. A bem da verdade, a análise desse tema deve ser direcionada com base em dois eixos, a saber: a busca pela liberdade dos indivíduos frente à constante necessidade de proteção pelo Estado.

Nesse sentido, surgem algumas indagações acerca dos eixos mencionados, ou seja, seria o indivíduo capaz de organizar-se em sociedade, uma vez que esse é o primeiro passo para a transformação deste em um ser social, e determinar-se segundo esse entendimento, sem a necessidade da regulação de um ente superior; e o Estado seria capaz de exercer controle sobre a sociedade sem que esta assim consentisse.

Acerca dessa relação, Passos (2012, p. 236), ao analisar a formulação de Bolívar Lamounier, que entende o Estado, como um reflexo da sociedade, considerou que o Estado intervém em compasso com os interesses das classes dominantes.

“Assim, entre Estado e sociedade institui-se uma relação de correspondência em que os conflitos de classe, inerentes à sociedade capitalista, e as contradições, envolvendo os diferentes setores do capital, inserem-se no Estado, que tem a função de, através da máquina governamental, compatibilizá-los e presidi-los em favor dos interesses hegemônicos.”

Nosso estudo não possui a pretensão de trazer tais respostas, mas apenas a de dialogar sobre essas questões, afim de delinear a forma como aludido tema é tratado por alguns doutrinadores, que serão trazidos oportunamente neste ensaio.

 

2 Liberdade na visão Isaiah Berlin

A discussão acerca da liberdade dos indivíduos encontra-se atrelada a relação público e privada, Estado e indivíduo, em que pese a luta constante desse último pela liberdade de pensamento, de manifestação, de propriedade, de trabalho e, porque não também de regulação de sua própria existência. Aludida discussão é tratada na obra de Berlin (1981), que traduz duas ideias de liberdade, a saber: a liberdade negativa e a liberdade positiva.

Ao explicitar a liberdade negativa, Berlin (1981, p. 137) afirma que “quanto mais ampla a aérea de não-interferência, mais ampla minha liberdade”. De fato, essa liberdade seria consubstanciada no fato do indivíduo agir, sem que outros ditem como fazê-lo, ao indivíduo é permitido uma área mínima de não interferência, quer seja estatal, quer seja dos membros da sociedade privada.

Todavia, o mesmo autor (BERLIN, 1981, p. 137) também se preocupou com o limite dessa liberdade. Ora, promover a liberdade indiscriminada de todos acarretaria instabilidade, na medida que não havendo demarcação desta, os homens exerceriam, por certo, suas liberdades dentro das esferas de liberdades dos outros, o que desconfiguraria, por si só, a ideia de liberdade.  

“Suponhamos que, nas condições então predominantes, não poderia ser ilimitada, porque, se ainda fosse, acarretaria uma situação em que todos os homens podiam ilimitadamente interferir na atuação de todos os outros; e esse tipo de liberdade “natural” levaria ao caos social, onde as necessidades mínimas dos homens podiam não ser satisfeitas ou, então, as liberdades dos fracos podiam ser suprimidas pelos fortes.”

Já a liberdade positiva “tem origem no desejo do indivíduo em ser seu próprio amo e senhor”, ou seja, o homem como dominador de si próprio. Entretanto, esse autodomínio, segundo nos faz crê o aludido autor, pode ser desvirtuado por questões externas, ambientais. Assim, nos remota a incerteza sobre “estas paixões não seriam tantas subespécies da espécie idêntica de “escravo” – algumas sendo políticas ou legais, outras sendo morais ou espirituais?” (BERLIN, 1981, p. 142-143).   

Depreende-se das linhas acima traçadas pelo mencionado autor que seja qual for a liberdade aplicada, deve-se observar a mão reguladora do Estado nessa imposição, haja vista a necessidade de mitigação das esferas de liberdade, caso contrário, um indivíduo incorreria no limite da liberdade do outro (BERLIN, 1981, p. 168):  

“Obrigamos as crianças a irem para a escola, proibimos execuções públicas. Trata-se certamente de restrições à liberdade. Nós as justificamos na base de que a ignorância, a educação bárbara ou os prazeres e excitações cruéis são piores para nós do que a soma dos freios necessários para reprimi-los”. 

Entretanto, Hirschman (1976, p. 19) entende que a alternativa repressiva não seria a mais adequada na regulação do Estado face o indivíduo, pois “admitida a preponderante realidade do homem conduzido por impulsos, apaixonado, inquieto, mostram-se pouco convincentes tanto a solução repressiva quanto a de mobilizar as paixões”.

Contudo, o Estado possui um papel regulador dos níveis das espécies de liberdades, vez que o seu uso indiscriminado e sem limites cria desordem, além de obliterar o próprio exercício de liberdade pelos indivíduos.  

3 Perspectiva de Karl Polanyi – “Moinho satânico”

Segundo as formulações teóricas de Polanyi (2000, p. 51) a autorregulação da vida econômica no início da sociedade moderna provocou um “progresso miraculoso nos instrumentos de produção, o qual se fez acompanhar de uma catastrófica desarticulação nas vidas das pessoas comuns”. Nesse sentido, a sociedade não foi capaz de proteger-se dos impactos que o novo sistema de mercado incutia na vida das pessoas comuns, nem tampouco o Estado determinou-se em busca dessa proteção.

Todavia, essa desarticulação não fora limitada ao período da Revolução Industrial, vez que se verificam seus prelúdios já no século XVI, com os cerceamentos de terras na Inglaterra a que os camponeses foram obrigados, o que ocasionou uma migração para as cidades, porém nesse período, verificou-se uma tentativa de abrandamento desses impactos por parte da Coroa (POLANYI, 2000, p. 56-57):  

“A Inglaterra suportou, sem grandes danos, a calamidade dos cerceamentos apenas porque os Tudors e os primeiros Stuarts usaram o poder da Coroa para diminuir o ritmo do processo de desenvolvimento econômico, até que ele se tornou socialmente suportável – utilizando o poder do governo central para socorrer as vítimas da transformação e tentando canalizar o processo de mudança de forma a tornar o seu curso menos devastador.”

Com base nisso, verificam-se dois momentos históricos nos quais o Estado ora permanece inerte as necessidades sociais, ora exerce seu papel regulador da vida das pessoas comuns, em uma tentativa de abrandar os efeitos de um novo regime econômico que se instaurava na Inglaterra do século XVI. 

Vale destacar que, em meados do século XVIII, a sociedade inglesa já caminhava para uma tendência autorregulatória de seu mercado, e segundo o supracitado autor “é uma economia dirigida pelos preços de mercado e nada além dos preços de mercado” (POLANYI, 2000, p. 62). Então, pergunta-se: seria a sociedade autossuficiente ao ponto de se autorregular, como ela enfrentaria os efeitos deletérios da ação dos mercados, e o Estado não seria mais necessário para o enfrentamento da questão. Essas indagações foram em parte dirimidas na própria análise de como a história se desenrolou.   

Segundo o aludido autor “a sociedade humana poderia ter sido aniquilada, de fato, não fosse a ocorrência de alguns contramovimentos protetores que cerceavam a ação desse mecanismo autodestrutivo”. Ora, “mesmo durante o período mais ativo da Revolução Industrial, de 1795 a 1834, impediu-se a criação de um mercado de trabalho na Inglaterra através da Speenhamland Law” (POLANYI, 2000, p. 98-99).

Aludida lei era materializada na concessão de abonos, que asseguravam uma renda mínima ao pobre, independentemente de sua produção, assim, esse pobre que estava assistido, não se interessava pelo trabalho, já que este não ofertava boas condições. Mas como tratar a questão da pobreza, se “a mendicância era severamente punida; a vagabundagem era uma ofensa capital” (POLANYI, 2000, p. 110).

De fato, a pobreza é um problema capital, que deve ser entendido em todas as suas vertentes, para definição do modo como esta deve ser enfrentada, colocá-la ao arbítrio exclusivo da sociedade ou justificar sua causa na pouca inclinação do indivíduo ao trabalho, não nos parece a melhor solução, pois ambas fadariam ao insucesso de uma inglória luta.

As discussões acerca das esferas do Estado e da sociedade estão longe de chegarem a um ponto de resolução, haja vista a constante necessidade de proteção da sociedade face à busca desta pela liberdade, as próprias políticas de bem-estar social representam um exemplo de regulação benéfica do público sobre o privado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado não teve o condão de dirimir as controvérsias acerca da relação Estado e sociedade, mais especificamente quando se analisa a autonomia buscada pelos indivíduos diante da necessidade de proteção e segurança estatal, mas objetivou colacionar entendimentos teóricos para promover o aprimoramento do nível dos debates acerca dessa questão.        

Em que pese o advento do sistema capitalista, baseado na regulação dos mercados, tender para uma maior liberdade econômica e social dos indivíduos face ao Estado, não se pode desconsiderar o papel que o este ainda possui, qual seja, o de proteção e regulação de áreas inalcançáveis ao poder de regulação dos mercados.

De fato, a história pode comprovar o argumento acima explanado, vez que com a crise econômica de 1929 ocorrida nos Estados Unidos, período de aparente liberalismo econômico, o Estado se fez necessário para minorar os efeitos deletérios da mencionada crise, mediante mecanismos de intervenção econômica e social.

    

Referências
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: _____. Quatro ensaios sobre a liberdade. Trad. Wamberto Hudson Ferreira. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1981. p. 133-175 (Col. Pensamento Político, 39).
HIRSCHMAN, Alberto. As Paixões e os interesses: argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo. Trad. Lúcia Campeio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
PASSOS, Guiomar Oliveira. O caleidoscópio da relação entre Estado e sociedade: os diferentes ângulos de análise das perspectivas teóricas. Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 11, n. 2, p. 234 – 246, ago./dez. 2012.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Trad. Fanny Wrobel. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

Informações Sobre o Autor

Sara Morgana Silva Carvalho Lopes

Advogada, Pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera-Uniderp, Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e docente do curso de Direito da Faculdade de Tecnologia do Piauí (FATEPI)


Equipe Âmbito Jurídico

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