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Estado laico e Estado ateu: uma resposta e uma proposta (breve discurso sobre ateísmo, democracia e metafísica)

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Introdução

Em recente artigo publicado em periódico especializado (KRAUSE, Paul Medeiros. Estado laico e Estado ateu. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1678, 4 fev. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10911> Acesso em: 04 fev. 2008), Paul Medeiros Krause desfilou uma série de “argumentos” com o suposto objetivo de apontar o que o princípio do Estado laico “pretende, na verdade”. Espero, com este pequeno artigo, dar uma resposta ao referido artigo e demonstrar algumas das precipitações e dos entimemas salpicados ao longo do texto para, em via oposta à defendida pelo texto, afirmar que um Estado laico não é, como imagina o autor, um ateísmo institucionalizado. Respeitando o ambiente escolhido pelo autor para fundar sua opinião, farei pontuações partindo do debate filosófico contemporâneo para tentar mostrar as apressadas incoerências e deslizes de seu argumento. Minha intenção central, a despeito de procurar desconstruir os argumentos do autor, é mostrar como a filosofia política contemporânea – utilizarei principalmente o filósofo pragmatista americano Richard Rorty –, com a crise da metafísica ocidental, se livrou tanto da pressuposição teísta quanto da ateísta na construção de um Estado Democrático. Primeiramente criticarei o artigo de Paul Medeiros Krause, por representar um ponto de vista paradigmaticamente metafísico, onto-teológico, para doravante defender uma perspectiva antiessencialista e antimetafísica de democracia, mostrando que a superação da metafísica de presença é um passo fundamental para uma utopia radicalmente democrática. Em outras palavras, a ausência de uma natureza humana “intrínseca” não anula a solidariedade, como o autor implicitamente afirma, mas, pelo contrário, possibilita sua plenitude.

1. Balaio de doutrinas

O primeiro equívoco do autor é juntar, sob um mesmo conceito, os “filósofos ateus, marxistas, liberais, utilitaristas e existencialistas”. Não é preciso dizer que em várias passagens de seu texto as referências se embaralham e se confundem, evidenciando um profundo desconhecimento – ou, insisto em acreditar, uma ingênua “pressa” nos julgamentos – dos temas (des)tratados e referenciados. Isso fica evidenciado, dentre outros trechos, na seguinte afirmação: “Para as filosofias ateístas, notadamente a marxista e o liberalismo radical, as vítimas da sociedade ou o indivíduo, respectivamente, podem tudo: matar e mentir em nome da revolução socialista, realizar abortos, dar cabo à própria existência e viver uma sexualidade conforme o seu gosto pessoal”. Bom, primeiramente convenhamos que “dar cabo à própria existência” não parece ser algo característico do marxismo. A subjetividade forçosamente engendrada na razão comunista e sua redução à materialidade ideologicamente apropriada mostram que a frase destacada convém apenas com o liberalismo, de modo que seria melhor que o autor escrevesse um texto um pouco mais longo que, no entanto, não procurasse juntar um conjunto completamente heterogêneo de correntes sob uma perspectiva ingenuamente maniqueísta que trate esses pensamentos como “mal intencionados”. Segundo, como será mostrado adiante, é revoltante que se compare “matar e mentir” a, por exemplo, “viver uma sexualidade conforme o seu gosto pessoal”.

Na verdade, o autor não sabe muito bem onde sustentar sua inquieta “argumentação”. Em uma passagem do texto, afirma, se referindo à contemporaneidade (onde ele encaixa todas essas correntes, em oposição a um saudoso outrora caracterizado “pela prevalência do homem interior, pela convicção da existência de uma alma racional, nota essencial do ser humano e criadora de cultura, como também de valores transcendentes que lhe norteiam a existência, dentre eles a solidariedade”), que esta é uma época em que “predominam o homem exterior e correntes de pensamento materialistas, que negam a existência de uma alma racional no homem”. Já em outra passagem, afirma, numa pueril contradição, que “trata-se de uma ideologia racionalista, deturpação da racionalidade”. Usando a expressão conclusiva e explicativa “trata-se”, o autor afirma, contradizendo a citada passagem anterior onde atribui a esta ideologia a “negação de uma alma racional”, que este é um pensamento racional, deturpação da racionalidade. Mas o que significa um pensamento racional que é uma deturpação da racionalidade? Afinal, é racional ou não? Em várias passagens do texto o autor descredencia o ateísmo por sua “incapacidade lógica” de demonstração; entretanto, diante destas citadas afirmações absurdas, ficamos a pensar que a lógica passa realmente bem longe daqui.

O desfile de confusões segue por todo o texto, travestindo de postura crítica um discurso fortemente religioso, como se revela no final da explanação, onde o autor afirma que “o Estado brasileiro caminha para se tornar um Estado com religião oficial “. Mas vamos com calma. O autor afirma que a ideologia do Estado laico é, na verdade, a “institucionalização de um Estado totalitário ateu, que decretou a morte de Deus e que investe duramente contra a liberdade religiosa”. Primeiro: eu não consigo, honestamente, perceber como o Estado laico brasileiro, supostamente ateu, “investe duramente contra a liberdade religiosa”. Num país onde líderes religiosos são pegos levando fortunas não declaradas para fora do país, onde canais de televisão investem pesadamente em programas religiosos que arrebanham e extorquem principalmente as camadas mais pobres da já fustigada população, onde, ao entrarmos em tribunais e repartições públicas, encontramos crucifixos, capelinhas e placas com mensagens cristãs (frise-se “cristãs”, pois as religiões afro-originárias e as indígenas, por exemplo, não têm qualquer espaço), onde a Constituição em seu preâmbulo afirma-se elaborada “sob a proteção de Deus”, onde as instituições religiosas têm lobbys fortíssimos nas casas legislativas, onde estas mesmas instituições isentam-se de impostos (não discuto os méritos desta isenção), onde até mesmo a cédula de dinheiro, maior símbolo do “materialismo” que o autor ataca, contém a inscrição “Deus seja louvado”, é realmente tentador imaginar quais seriam esses “duros ataques à liberdade religiosa” (interessante perceber que em outra parte do texto o autor critica o liberalismo por sua “liberdade absoluta”. Seria somente a liberdade religiosa, então, a válida? Mais curioso ainda é o fato de nem mesmo o autor concordar com isso, uma vez que afirma que o Estado brasileiro está caminhando para uma religião oficial – pois se há uma oficial, há também outras cujas liberdades de veneração são prejudicadas). Diante desta percepção do Brasil e sua ideologia cristã, o disparate ressentido do autor contra o ateísmo soa fortemente como um alarde de “teoria da conspiração” que visa aniquilar o princípio secular e democrático da instituição pública como ambiente laico – e não ateu. A história brasileira e mundial está repleta de exemplos de dogmatistas que espalharam falsos alardes para destruir princípios democráticos; contudo, creio prudente evitar relembrar esses episódios. Segundo: o autor afirma que o Estado está caminhando para uma “religião oficial”. Diante da ditadura cristã, que “religião oficial” seria esta? Retroagiríamos ao século XVI e XVII e tentaríamos catequizar índios e afro-descendentes? Deixo maiores reflexões para o leitor.

2. Sobre ateísmo, democracia e metafísica

Em primeiro lugar, destaco que o texto de Paul Medeiros Krause é objetivamente anti-democrático, em nome de um “Ser Criador”. Falarei sobre democracia, entretanto, pois, como indica o título deste artigo, não quero me limitar a uma resposta, mas elaborar também idéias para uma proposta que vislumbre a possibilidade de uma democracia sem metafísica. Portanto, neste presente trabalho disponho-me a criticar aquilo a que se chama metafísica, que, segundo Derrida, é “um jogo fundado, constituído em nome de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranqüilizadora, ela própria subtraída ao jogo”(DERRIDA, 2002, p.231).  Em face dessa subtração, que possibilita o domínio da Presença, “o centro (…) é o ponto em que a substituição dos conteúdos, dos elementos, dos termos, já não é possível. (…) Sempre se pensou que o centro, por definição único, constituía, numa estrutura, exatamente aquilo que, comandando a estrutura, escapa à estruturalidade. Eis porque, para o pensamento clássico da estrutura, o centro pode ser dito, paradoxalmente, na estrutura e fora da estrutura” (Idem, p.230). Com essa passagem Derrida afirma que o pensamento metafísico é marcado por uma afirmação da essência (que constitui, na definição de Heidegger, a Presença) que comanda o que é certo e o que é errado e suas permutas e hierarquias, sem contudo se comandar a própria essência. A partir dessa definição, tanto o teísmo quando o ateísmo são nocivos à democraria, pois se baseiam em uma visão metafísica do mundo, visto que ambas as perspectivas afirmam uma “verdade” fundadora (entretanto, o próprio Paul Medeiros Krause mostra a incapacidade de se provar a inexistência de Deus – o que, somando-se à impossibilidade de se provar outrossim a sua existência, nos impele a, como aconselhou Rorty na esteira da filosofia analítica de Viena (notadamente Carnap) ou mesmo da filosofia pós-nietzschiana (notadamente Heidegger), abandonar a questão, considerando o problema da existência ou inexistência de Deus um pseudo-problema (scheinproblem)).

Em Contigência, ironia e solidariedade, Richard Rorty comete um pequeno deslize ao dizer que um projeto destranscendentalizante de democracia seria ateísta. Trata-se, no entanto, de um equívoco que podemos desconstruir com o próprio Rorty, que, em muitos aspectos, creio, soube superar a metafísica melhor, por exemplo, do que Heidegger e Derrida. A superação do teísmo da democracia (uma democracia onto-teológica, como defende Paul Medeiros Krause, baseada numa razão humana e teológica) somente pode se dar como permissão desse teísmo, bem como do ateísmo. Como dito no parágrafo anterior, a existência da transcendência (teísmo) é tão metafísica quanto a existência da sua inexistência (ateísmo) – isso significa que, como também já foi afirmado anteriormente, para uma sociedade democrática pós-metafísica o ateísmo é tão ofensivo quanto o teísmo, no âmbito da fundamentação da democracia. Em outras palavras, Rorty, a despeito dessa afirmação ateísta (na verdade, se analisarmos a filosofia de Rorty, vemos que sua intenção era dizer “ateísta” no sentido de não-teísta, o que é diferente de dizer afirmar isso em sentido anti-teísta), nos ensina que é possível construir uma democracia sem uma Presença originária (exemplificada por Derrida em A escritura e a diferença pela sucessão histórica (da Grécia até os dias de hoje) do “eidos, arquê, telos, energeia, ousia (essência, existência, substância, sujeito) aletheia, transcendentalidade, consciência, Deus, homem, etc” (Idem, p.231)). O que Rorty quer dizer, em consonância com o antilogocentrismo de Derrida, é que não precisamos de nenhuma essência intrínseca, nenhuma natureza humana, para motivar e fundamentar uma sociedade democrática. O risco de um pensamento metafísico, como o que encontramos no texto trabalhado, é a tentação de querer determinar a vida das pessoas, suas opções particulares – que nada têm a ver com a liberdade ou a opinião do próximo –, em nome de tal ou qual razão, divina ou secular. Isto implica na tendência metafísica que Rorty chamou de representacionismo (ou representacionalismo): a idéia de que algum pensamento, baseado numa consciência ou subjetividade transcendental cartesiano-kantiana, epistemológica, é capaz de conhecer (representar, espelhar) a “realidade”, ou a essência de alguma coisa como a “natureza humana”, a Justiça, o Bem, ou mesmo, como mostrou Sellars, “a perspectiva do Olho de Deus”. Dentre infindos outros, o principal problema do representacionismo é a possibilidade de alguém se achar digno de conhecer a “verdade”, seja em nome de Deus, da Razão Humana ou de todas essas presenças originárias elencadas por Derrida, e, agindo em nome do que é certo, considerando a correção em relação a essa essência primeva, querer dominar a amplidão de possibilidades de existências e de modos de ser de outras pessoas, ou, o que é ainda pior, de todas as pessoas.

Em alguns raros momentos “quase sem querer” de lucidez, no entanto, Paul Medeiros Krause percebe os males históricos causados pelo ateísmo. Posso complementar sua percepção com a lembrança dos males históricos causados pelo teísmo, como exemplificado pela Inquisição do medievo e por todos os totalitarismos que a Igreja Católica já apoiou. Isso reforça, mais uma vez, a minha opinião de que um Estado Democrático não tem que se envolver nem com teísmos nem com ateísmos. Esse pensamento, claro, pode ser consubstanciado em um Estado laico – que basicamente, a despeito dos abusos históricos cometidos pelos ateus, nada tem a ver com ateísmo: algo não-religioso (que permite a religiosidade tanto quanto a não religiosidade) é bem diferente de algo anti-religioso, e o texto constitucional em nenhum momento se afirma “ateu” – muito pelo contrário, como mostra seu preâmbulo de intenções. Por falar em Constituição, passemos ao próximo tópico.

3. Sobre como viver nossas vidas

Na já citada passagem “para as filosofias ateístas, notadamente a marxista e o liberalismo radical, as vítimas da sociedade ou o indivíduo, respectivamente, podem tudo: matar e mentir em nome da revolução socialista, realizar abortos, dar cabo à própria existência e viver uma sexualidade conforme o seu gosto pessoal”, o autor demonstra todo o seu dogmatismo e preconceitos ao comparar absurdamente “matar e mentir” com “dar cabo à própria existência e viver uma sexualidade conforme o seu gosto pessoal”. As críticas do autor em relação a “viver uma sexualidade conforme o seu gosto pessoal” são mais um exemplo de uma moral metafísica, uma vez que a complexidade dos afetos é resumida à dualidade material, “natural”, e que em função de sua naturalidade – o centro da estrutura apontado por Derrida – pretende determinar os jogos da afetividade e da opção sexual. Em relação à comparação que é feita entre matar e mentir e “dar cabo à própria existência”, minhas objeções mais contundentes não passam de uma profunda lamentação. Com esse tipo de pensamento, fica evidenciada a vocação que as faculdades de Direito brasileiras têm de formar dogmáticos (e estes, com suas falas “oficiais”, de formarem uma massa igualmente dogmática, discriminadora e exclusora – que, ironicamente, se exclui).

Um exemplo da motivação onto-teológica do autor é sua discriminação contra, por exemplo, a prostituição, numa clara defesa do controle dos corpos exercido primeiramente pela Igreja e depois desta pelo Estado (Foucault). No tocante ao ateísmo, não vejo absolutamente nenhum sentido na junção que o autor faz entre este e a prostituição. Muitas prostitutas (e prostitutos) são religiosas, inclusive a probabilidade de haver uma ateísta é, acredito, ínfima. E se o autor está pensando que a relação se dá no âmbito de uma “degradação” da vida (o que tacitamente parece ser), cabe-nos perguntar de que vida estamos falando. Isto fica claro no outro exemplo dessa metafísica opressora: o caso da eutanásia, também lembrado no texto como resultado desse ateísmo “monstruoso”. Ora, o que é a proibição da eutanásia e da prostituição senão uma imposição de uma idéia de vida, a determinação forçada de um conceito historicamente construído que se pinta absoluto? A instituição possui sua própria definição de “vida”, baseada na materialidade, e que prevalece sobre a própria concepção particular do sujeito com sua própria vida, sua própria existência. Imaginemos uma situação: o sujeito está enfermo, subjugado ao seu leito, e não considera mais que o que vem sofrendo possa ser chamado de “vida”. A proibição de dar cabo a essa vida – sua vida – em nome da “vida” institucionalizada evidencia a virilidade das mãos com as quais a instituição nos furta aos nossos próprios sentimentos, pensamentos, opiniões; o que, em face da liberdade de crença e expressão principiologizados na Constituição, é um completo contrasenso, pois convém perguntar: o que é uma expressão? – somente falar? Nossa liberdade é então reduzida à verbalidade? A liberdade existe somente enquanto pronúncia, e não enquanto ato? Cabe-nos igualmente perguntar: o que é uma crença? É uma celebração religiosa? – eu diria que não, pois se diz crença, e não “crença religiosa”. Então até onde vão as possibilidades de nossa crença? Quem as determinará?, e sobretudo quem determinará sua ação? A Constituição, este jogo de sins e nãos que se jogam uns contra os outros? Se a crença é permitida, seria apenas no âmbito da “vida” que a instituição prega que devemos cultuar? Mais profundamente, onde está assentado esse conceito de “vida”? Qual é a Presença que o permite e o conforma? Ele mesmo?, daí sua pretensa inquestionabilidade? Ou Deus, como quer Paul Medeiros Krause? A Razão Humana, como queria, dentre outros, Kant? A materialidade anti-teísta e materialmente determinada, como esbaforavam os opiários marxistas?

O que a instituição deveria fazer nesses casos não é proibir sua ocorrência, mas incentivar sua não ocorrência através de programas educacionais e incentivadores da não-degradação das pessoas. Embora eu não ache que a prostituição deva ser proibida, pois somente a cada pessoa individualmente cabe a utilização de seu corpo, a prostituição coloca as pessoas em situações perigosas, agressivas, que põem em risco a própria saúde física dessas pessoas. O que o Estado deveria fazer é garantir as condições para que não seja necessário correr esse risco para sobreviver. O mesmo se dá com a questão das drogas e do aborto. Em relação às drogas, sua proibição apenas suga recursos dos cofres públicos em nome de uma moral repressora que coloca jovens em situações de risco nas favelas, nas “bocas de fumo”, em ambientes nocivos e violentos. Afinal, qual o argumento contra as drogas? Alguns dizem que, pelo fato de sua psico-atividade, elas seriam instigadores da transgressão criminosa. Mas, diante de mais um dos paradoxos do Brasil, cabe-nos perguntar: e o álcool, consumido sem pudores até mesmo pelo Presidente da República? Não seria também um deturpador do “agir corretamente”? E, mais profundamente, alguém acredita que a proibição da venda de drogas faz com que algum assaltante, por exemplo, deixe de cheirar cocaína para assaltar e, como acontece muitas vezes, matar? O problema do Brasil é que se trata de um país onde se perseguem espectros; isso já foi apuradamente demonstrado por Gilberto Freyre, quando diz que o brasileiro, mesmo para fazer valer seus valores virtuosos, vai de encontro à instituição. E olhe que Freyre fala de valores “virtuosos”; imagine os não-virtuosos…

No caso do aborto, temos aí mais um exemplo do hábito institucional de privilegiar a proibição em detrimento da educação. As pessoas cometem o grave erro de confundir o ensejo pela descriminalização do aborto com o ensejo do aborto, e frise-se que são duas coisas completamente distintas. Ser simplesmente a favor da legalização do aborto – e não necessariamente do aborto, implica em defender uma livre postura diante do tema, evitando dessa forma que se caia em uma postura metafísica, seja para ser a favor ou contra tal prática. Ser a favor da legalização é primar justamente pela ausência que desconstrói a transcendentalidade habitual da instituição democrática, pois permitimos uma pluralidade de posicionamentos a respeito da questão. A instituição, no entanto, erra mais uma vez ao manter a proibição, no que tange ao privilégio que cede à ideologia do proibitismo frente à educação democrática. Ou seja, penso a proibição do aborto da mesma forma que penso a das drogas, da prostituição, da eutanásia: que a marginalização dessas práticas somente coloca nossos jovens, nossas mulheres, aqueles que pensam em terminar a própria vida, em situações perigosas e violentas. No caso do aborto, quantas jovens não morrem ou passam por sérios traumas todos os dias em clínicas clandestinas (refiro-me às clínicas nivelando por cima, para não falar de outras práticas ainda mais marginais de aborto…), nas mãos de pessoas – na maioria das vezes – de índole muito duvidosa.

A desconsideração da importância da educação para uma sociedade democrática leva a esse vício de proibição. Isso aconteceu mais recentemente na proibição do racismo. Desistindo de tentar contar com a educação de cidadãos, a instituição simplesmente proibiu a manifestação do racismo – o que, obviamente, apenas camufla o racismo, que continua acontecendo de formas mais inconfessas (por exemplo, na contratação de um branco em detrimento de um negro numa disputa por uma vaga de emprego). Mas a problemática das cotas raciais em universidades já mostrou que a instituição brasileira não faz a menor idéia de como tratar a questão dos negros. Fala-se também, ultimamente, em proibir a homofobia, no sentido da manifestação de preconceito contra homossexuais, o que é igualmente preocupante, uma vez que mais uma vez se apela à proibição para tentar modelar o comportamento. A discriminação, no entanto, apenas evolui de maneiras mais profundas.

Enquanto o aborto ainda é crime, a atitude mais comum é fingir que ele não acontece (o problema acaba sendo deixado para as adolescentes, que o buscam de forma desesperada e completamente sem apoio da família e da sociedade). Se o aborto fosse legalizado, a probabilidade de se tornar tema de discussão na mesa de jantar é bem maior, visto que o assunto estaria declaradamente problematizado no espaço público, nos meios de comunicação, etc. As mães e pais se veriam impelidos a conversar com suas filhas e filhos sobre os riscos de um aborto, sobre a importância de se privilegiar a vida, sobre a beleza da maternidade, tudo isto diante da declarada possibilidade de seus filhos buscarem dar fim a uma gravidez com um aborto. As escolas também tratariam isso mais diretamente, e os hospitais teriam procedimentos saudáveis para a realização do aborto, caso assim fosse livremente decidido; procedimentos não apenas médicos, mas terapêuticos e também educacionais. A mesma coisa pode ser dita na questão das drogas: se os “outros sonhos” de Chico Buarque se realizassem e a maconha fosse comprada na tabacaria, medidas educacionais poderiam ser abertamente empreendidas por toda a sociedade, incluindo a família, as escolas e faculdades, o Estado, e milhares de jovens não precisariam passar por perigos em locais clandestinos de compra de drogas, assim como outros milhares de jovens pobres não precisariam passar pelos perigos do tráfico para sobreviver.      

4. Secularismo solidário, ausência e comunidade

Com este trabalho, advogo pela democracia em favor de uma ausência que desbanque a Presença milenar que se erige como constituinte de nossos juízos mais corretos. Essa ausência, contudo, precisa ser inaudita, fraca (como intui o “pensamento fraco” Gianni Vattimo e sua pretensão de acabar com as raízes do pensamento “forte” do programa da metafísica ocidental). É uma ausência que não pode ser dita, nem como ausência, pois cairíamos na tolice auto-anuladora de dizer a presença dessa ausência, colocando-a como sucessora de Deus ou da Razão. Se eu falo sobre ela neste texto, isto se dá em razão de um problema lingüístico que surge na linguagem pela minha obrigação de ser coerente, de afirmar, de construir uma verdade para apresentar. Por este motivo, penso ser a de Richard Rorty a melhor das propostas para superação da metafísica, uma proposta que consiste em um silêncio anti-reflexivo e anti-abstracional que nos guie à ação, à prática, a diferenças que façam diferença na prática. Este silêncio afirma a ausência sem precisar, contudo, afirmá-la afirmativamente. Isso pode ser evidenciado na proposta que fiz, parágrafos atrás, de pararmos de achar que a democracia tem alguma coisa a ver com o ateísmo ou com o teísmo, bem como com o irracionalismo ou o Racionalismo transcendente, e assim em diante: somente dessa maneira nos livramos de lógicas binárias que são a marca maior da metafísica e da pretensão realista, como mostra Rorty em A filosofia e o espelho da natureza. Precisamos realizar um segundo processo de secularização, onde se efetivará a travessia da objetividade à solidariedade (William James), da epistemologia à ética. Acredito que o único caminho de acabarmos com o preconceito, com a exclusão moral, com a hierarquia metafísica dos valores (em oposição a uma hierarquia meramente normativa, com base em premissas construídas em comunidade, e não descobertas transcendentalmente), é rumarmos em direção a esta prática da ausência, que constitui uma aceitação, um estar aberto, um permitir o outro. Lutar por uma democracia não-metafísica (reitero que a democracia não pode ser “antimetafísica”, pois seria igualmente metafísica; de outro modo, deve ser não-metafísica) significa abandonar a crença de que há valores absolutos com os quais podemos dizer ao outro o que é certo, ou o modo com que o outro deve viver a própria vida ou encarar o desafio de existir, de ser-aí. Uma verdade sobre a vida deve ser construída, e não encontrada “aí” no mundo, pois “aí” ela não está a não ser como linguagem, como nos mostrou Wittgenstein (para quem a tarefa de procurar um “significado” primeiro era uma tentativa marcada por uma ação infinita, e que, portanto, não é prudente), e a linguagem não é nenhuma entidade não-humana (como as vezes até Heidegger e Derrida quase disseram), mas simplesmente um instrumento com o qual lidamos com o mundo que nos circunda.

Em uma de suas últimas entrevistas, questionado a respeito dos riscos do fascismo, Rorty disse acreditar que se o fascismo chegasse à América seria por vias de fundamentalismos religiosos. Mas acrescento que qualquer fundamentalismo (o caráter primordialmente presente da Presença) é um possível canal por onde fascismo pode chegar até nós, pois, como disse Roland Barthes em sua famosa Aula, o fascismo não é proibir de dizer, mas obrigar. Discordo apenas de Barthes no sentido de que existem fortíssimos laços subterrâneos que ligam a proibição à obrigação. Contudo, qualquer doutrina, seja teísta, ateísta ou secularmente racional, que intente obrigar peremptoriamente nossos juízos morais a se aproximarem de um ideal alheio às suas próprias pulsões de significação, precisa ser apartada da instituição para que o caráter democrático desta instituição se acentue e se estabeleça.

Por fim, reafirmo que um Estado laico não precisa ter nada a ver com um Estado ateu, que obrigue todos ao ateísmo. Isto é um absurdo. Para que qualquer metafísica seja individualmente professada é necessário que a instituição pública, como defende Rorty em Contingência, ironia e solidariedade, seja esvaziada, seja desterritorializada (usando uma acepção deleuziana). A instituição não deve ter rosto: nem Deus, nem Anticristo, nem Razão Transcendente, nem Cosmos, nada. Nem mesmo o nada: o rosto do Estado deve ser múltiplo; ou seja, a ausência da Presença implica na presença de todas as diferenças e modos de ser, da livre-determinação de todos os cidadãos individualmente, sem imposição de crenças ou opiniões. Nisto se funda democraticamente um Secularismo Solidário, um pensamento laico, fraco, amplo.

 

Referências bibliográficas
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002.
KRAUSE, Paul Medeiros. Estado laico e Estado ateu. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1678, 4 fev. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10911>. Acesso em: 04 fev. 2008.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins, 2007.
_____________. Ensaios sobre Heidegger e outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
_____________. Objetivismo, relativismo e verdade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Lucas Camarotti

 

Acadêmico de Direito em Recife/PE

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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