Resumo: De acordo com o neoconstitucionalismo, ou pós-positivismo, os princípios inseridos em uma Constituição têm força normativa, o que reforça, no Direito Processual Civil, o seu caráter de instrumento para implementação e efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Ao se partir da premissa de que não se pode interpretar qualquer instituto processual dissociado do conteúdo axiológico-normativo dos princípios constitucionais que regem a sua aplicação, o presente trabalho propõe-se a investigar a constitucionalidade da prerrogativa processual do duplo grau obrigatório, ou remessa necessária, previsto no art. 475, do Código de Processo Civil (CPC), em face do princípio da igualdade, ou isonomia, consagrado no art. 5°, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88). Ao se considerar o fator concreto de desigualdade estabelecido como critério legal de discriminação, qual seja, a hipossuficiência do Estado em Juízo, e os pressupostos teóricos justificadores da sua existência, indaga-se se a remessa necessária seria adequada, suficiente e necessária para a proteção dos interesses públicos. Para tanto, revisita-se o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular e utiliza-se o princípio da proporcionalidade como instrumento de interpretação e de solução de conflitos principiológicos, concluindo-se, ao final, que o instituto processual do duplo grau obrigatório implica evidente ofensa ao princípio constitucional da igualdade.
Palavras-chave: Duplo grau obrigatório; Força normativa da Constituição; Princípio da igualdade; Princípio da supremacia do interesse público sobre o particular; Princípio da proporcionalidade.
Abstract: According to the New Constitutionalism, or Post-positivism, the constitutional principles have a normative force, what reinforces in Civil Procedure Law its character as an instrument for implementation and realization of fundamental rights and garantees. Starting from the premise that one can not reading any procedural institute disconnected from the normative-axiological content of constitutional principles, this study proposes investigating the constitutionality of the procedural prerogative of obligatory double degree of jurisdiction, or obligatory re-examination, required under Article 475 of the Brazilian Code of Civil Procedure, confronting the principle of equality, or isonomy, expressed on the Article 5°, caput, of the Brazilian Constitution of the Federative Republic of 1988. Considering the concrete factor of inequality established as the legal criterion for discrimination, that are the procedural deficiencies of the Estate in Court, it´s inquired whether the obligatory re-examination is appropriate, necessary and reasonable to the protection of public interests. In order to do that, the principle of supremacy of public interests over private interests is revisited and the principle of proportionality is used as a principle of interpretation and solution of conflict between principles. At the end, one concludes that the procedural institute of obligatory double degree of jurisdiction implies obvious insult to the constitutional principle of equality.
Keywords: Obligatory double degree of jurisdiction; Normative force of Constitution; Principle of equality; Principle of supremacy of public interests; Principle of proportionality.
Sumário: 1. Introdução – 2. O duplo grau obrigatório: breves considerações – 2.1. A Fazenda Pública em Juízo – 2.2. Antecedentes históricos do duplo grau obrigatório – 2.3. Natureza jurídica e feição atual do duplo grau obrigatório – 3. Os princípios constitucionais da legalidade e da igualdade – 4. Revisitando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular – 5. Supremacia do interesse público x igualdade: colisão de princípios – 6. A inconstitucionalidade do duplo grau obrigatório – 7. Conclusões – Abstract – Referências.
1. INTRODUÇÃO
O princípio da igualdade, ou da isonomia, esculpido no art. 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88), prescreve que todos são iguais perante a lei. Do ponto de vista processual, implica igualdade de condições de atuação e armas entre os litigantes e encontra regulamentação infraconstitucional no art. 125, inciso I, do Código de Processo Civil (CPC).
No entanto, quando em Juízo, ao Estado foram legalmente conferidas uma série de prerrogativas processuais que parecem configurar tratamento diferenciado em relação aos particulares, tais como: prazos dilatados, intimações pessoais, isenções de custas, honorários reduzidos e a remessa necessária ─ ou duplo grau de jurisdição obrigatório ─, prevista no art. 475, do CPC, objeto do presente estudo.
Ocorre que a existência do duplo grau obrigatório, a par de estabelecer desigualdade processual entre as partes, também aparenta causar, ainda, um retardamento excessivo ao processo, desprestigiando a decisão de primeiro grau, que se torna totalmente inócua, mesmo em face da inexistência de recurso voluntário do ente público.
Dessa forma, não obstante a sua larga aceitação doutrinária e jurisprudencial, consagrada em súmulas de Tribunais Superiores, o referido instituto processual merece um olhar mais detido em cotejo com os princípios constitucionais que regem o processo.
Com efeito, o Direito Processual moderno não pode ser estudado de forma dissociada do conteúdo axiológico-normativo dos princípios constitucionais, sendo importante indagar, em relação à remessa necessária, se haveria, de fato, uma desigualdade entre a Fazenda Pública em Juízo e o particular, a justificar a sua existência. Se seria razoável postergar a satisfação do direito do autor, que tem razão em sua pretensão, simplesmente por litigar em face do Estado. Se não haveria ofensa ao interesse público na solução célere das demandas e na eficácia dos provimentos jurisdicionais de primeiro grau. E, ademais, se não haveria quebra do princípio constitucional da isonomia.
O presente estudo questiona, assim, a constitucionalidade do reexame necessário, mediante pesquisa eminentemente teórico-documental, que utiliza como fontes tanto a bibliografia nacional, quanto a jurisprudência dos Tribunais Superiores e os dispositivos legais pertinentes.
A metodologia empregada tem como marco teórico o chamado neoconstitucionalismo, ou pós-positivismo, que parte da premissa de que os princípios constitucionais têm força normativa, o que reforça, no Direito Processual Civil, o seu caráter de instrumento para implementação e efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Para tanto, utiliza-se, como obras-base, os estudos feitos por Barroso (2008) e Bonavides (2008).
Após considerações introdutórias acerca dos fundamentos teóricos e práticos que justificam a existência das prerrogativas processuais conferidas ao Estado e sobre o perfil histórico e atual do duplo grau obrigatório, este artigo cuida de investigar o conteúdo material do princípio da legalidade, sua relação com o princípio da isonomia e em que essa consistiria, do ponto de vista processual. Posteriormente, efetua uma análise crítica do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, conforme proposto por Ávila (2007), para então solucionar o aparente conflito existente entre a igualdade e a supremacia do interesse público, à luz do princípio da proporcionalidade, utilizado como instrumento de interpretação.
A escolha do tema é justificada tanto pela atualidade do enfoque pós-positivista, quanto pela existência de divergência doutrinária a respeito, em que pese a sua ampla aplicação jurisprudencial, bem como pela sua relevância social, dadas as repercussões processuais que podem advir do reconhecimento de eventual inconstitucionalidade da remessa necessária.
2. O DUPLO GRAU OBRIGATÓRIO: BREVES CONSIDERAÇÕES
Antes de se adentrar na discussão acerca da constitucionalidade do instituto processual do duplo grau obrigatório, impende tecer considerações introdutórias sobre os fundamentos teóricos e práticos que justificam a sua existência, ao lado das demais prerrogativas processuais conferidas aos entes públicos, bem como sobre o seu perfil histórico e atual.
2.1. A Fazenda Pública em Juízo
O direito de ação é dirigido contra o Estado-Juiz — que tem o monopólio da função jurisdicional — por quem diz ter uma pretensão resistida (autor) em face de outrem, denominado réu, segundo Cintra, Grinover, Dinamarco (2007); Marinoni (2006); Santos (2007) e Theodoro Junior (2003).
No entanto, o Estado, na defesa dos seus interesses, também pode figurar como parte no processo, seja como réu ou autor, em razão da proibição da autotutela.
Pelo fato de assumir os encargos financeiros da demanda, normalmente, quando se refere ao Estado em Juízo, ou seja, na condição de parte processual, utiliza-se a expressão Fazenda Pública, nesse termo compreendidas todas as pessoas jurídicas de direito público[1] — União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e fundações públicas:
“[…] em Direito Processual, a expressão Fazenda Pública contém o significado de Estado em juízo. Daí por que, quando se alude à Fazenda Pública em juízo, a expressão apresenta-se como sinônimo do Estado em juízo ou do ente público em juízo, ou, ainda, da pessoa jurídica de direito público em juízo”[2].
A Fazenda Pública postula judicialmente por meio dos seus procuradores, que detêm capacidade postulatória enquanto advogados públicos, na forma do art. 36, do CPC, e, simultaneamente, a representam, ou presentam[3], judicialmente, nos termos do art. 12, incisos I e II, do diploma processual[4].
Além disso, o Poder Público em litígio, quer no pólo ativo quer no passivo, encontra tratamento legal diferenciado em relação ao particular, caracterizado pela existência de certas prerrogativas instituídas exclusivamente em seu benefício, dentre as quais se podem citar, sem a pretensão de esgotar o assunto: prazos dilatados (art. 188, do CPC; art. 1º-B, da Lei n.º 9.494/97); intimações pessoais (art. 38, da Lei Complementar n.º 73/93; art. 25, da Lei n.º 6.830/80); isenções de custas (art. 4°, inciso I, da Lei n.° 9.289/96; art. 39, da Lei n.° 6.830/80); dispensa de preparo prévio (art. 511, § 1°, do CPC); redução ou supressão do valor dos honorários de sucumbência (art. 20, § 4°, do CPC; art. 1º-D, da Lei n.º 9.494/97); e a remessa necessária (art. 475, do CPC).
Trata-se de rol meramente exemplificativo, uma vez que o exame minucioso de todas as prerrogativas processuais existentes extrapola o objeto do presente trabalho.
Convém destacar que, de acordo com a doutrina administrativista exemplificada por Di Pietro (2008), Meirelles (2002) e Bandeira de Mello (2008), a existência das prerrogativas em geral conferidas ao Estado se justifica para possibilitar a consecução das finalidades públicas a que a Administração colima. Nesse sentido:
“Para assegurar-se a autoridade da Administração Pública, necessária à consecução de seus fins, são-lhe outorgados prerrogativas e privilégios que lhe permitem assegurar a supremacia do interesse público sobre o particular.
Isto significa que a Administração Pública possui prerrogativas ou privilégios, desconhecidos na esfera do direito privado […].
[…] as prerrogativas colocam a Administração em posição de supremacia perante o particular, sempre com o objetivo de atingir o benefício da coletividade[5].
No desempenho dos encargos administrativos o agente do Poder Público não tem a liberdade de procurar outro objetivo, ou de dar fim diverso do prescrito em lei para a atividade. […] os deveres, poderes e prerrogativas não lhe são outorgados em consideração pessoal, mas sim para serem utilizados em benefício da comunidade administrada[6].
No campo da Administração […] procedem as seguintes conseqüências ou princípios subordinados:
a) posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo interesse público e de exprimi-lo, nas relações com os particulares;
b) posição de supremacia do órgão nas mesmas relações.
Esta posição privilegiada encarna os benefícios que a ordem jurídica confere a fim de assegurar conveniente proteção aos interesses públicos instrumentando os órgãos que os representam para um bom, fácil, expedito e resguardado desempenho de sua missão. Traduz-se em privilégios que lhe são atribuídos. Os efeitos desta posição são de diversa ordem e manifestam-se em diferentes campos”[7].
E, especificamente em relação às prerrogativas processuais, seria essa a justificativa teórica para a sua existência, como restou bem sintetizado por Souto (2000): “Esse instituto jurídico decorre, como visto, de uma imposição legal que tem por escopo resguardar o interesse público”[8]. No mesmo sentido:
“Exatamente por atuar no processo em virtude da existência de interesse público, consulta ao próprio interesse público viabilizar o exercício dessa sua atividade no processo da melhor e mais ampla maneira possível, evitando-se condenações injustificáveis ou prejuízos incalculáveis para o Erário e, de resto, para toda a coletividade que seria beneficiada com serviços públicos custeados com tais recursos.
Para que a Fazenda Pública possa, contudo, atuar da melhor e mais ampla maneira possível, é preciso que se lhe confiram condições necessárias e suficientes a tanto. Dentre as condições oferecidas, avultam as prerrogativas processuais, identificadas, por alguns, como privilégios. Não se trata, a bem da verdade, de privilégios. Estes — os privilégios — consistem em vantagens sem fundamento, criando-se uma discriminação, com situações de desvantagens. As “vantagens” processuais conferidas à Fazenda Pública revestem o matriz de prerrogativas, eis que contêm fundamento razoável, atendendo, efetivamente, ao princípio da igualdade, no sentido aristotélico de tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual[9].
O reexame obrigatório é ditado pelo interesse público e não fere o princípio da isonomia, pois uma coisa é a lei desinteressar-se pela aceitação do particular ao julgado, e outra é exigir reexame da sentença, em razão do interesse relevante em jogo”[10].
Do ponto de vista processual, objetiva-se, com tais benefícios, compensar supostas deficiências de ordem técnica, material e humana do Estado em litígio, de forma a implementar a igualdade processual entre as partes:
“Ora, a Fazenda Pública, que é representada em juízo por seus procuradores, não reúne as mesmas condições que um particular para defender seus interesses em juízo. Além de estar defendendo o interesse público, a Fazenda Pública mantém uma burocracia inerente à sua atividade, tendo dificuldade de ter acesso aos fatos, elementos e dados da causa. O volume de trabalho que cerca os advogados públicos impede, de igual modo, o desempenho de suas atividades nos prazos fixados para os particulares.
Demais disso, enquanto um advogado particular pode selecionar suas causas, recusando aquelas que não lhe convêm, o advogado público não pode declinar de sua função, deixando de proceder à defesa da Fazenda Pública[11].
Não é por demais repetir que o duplo grau obrigatório, o prazo maior para recorrer, etc. não são nem nunca foram privilégios, no sentido que muitos procuram imprimir ao vocábulo.
Constituem-se, isso sim, numa garantia que o legislador em boa hora conferiu à coisa pública, que não pertence ao servidor eventualmente encarregado de administrá-la ou defendê-la, mas a toda a sociedade. Em suma, o legislador, com essas medidas, tem procurado garantir o patrimônio de todos contra a irresponsabilidade de alguns. […]. Por essas e por outras razões é que os denominados “privilégios” precisam ser encarados sem paixões, sem partidarismo, mas com a razão voltada para a realidade de que eles intentam proteger o patrimônio de toda a sociedade”[12].
Moraes (2003), da sua experiência como Procurador do Estado, ressalta certos aspectos da estrutura judiciária e das dificuldades que os advogados públicos, diferentemente dos particulares, encontram no exercício da defesa da Fazenda Pública e que justificariam a manutenção das prerrogativas processuais existentes, tais como: excesso de demandas, impossibilidade de selecionar e recusar causas, grande extensão do território nacional, exigências de ordem burocrática na obtenção de informações necessárias à defesa judicial do Estado, limitações orçamentárias para contratação de novos advogados públicos e servidores de apoio, dentre outras, e conclui:
“[…] parece-me que as razões existentes para justificar essas prerrogativas processuais são procedentes e, no nosso entender, há, quanto à previsão legal destas prerrogativas, respeito e, principalmente, cumprimento ao princípio da isonomia constitucionalmente assegurado”[13].
Pode-se dizer, destarte, que há uma espécie de presunção da hipossuficiência do Poder Público em Juízo, a justificar a manutenção das prerrogativas processuais existentes.
Em que pese não se ter como objeto de estudo a generalidade dessas prerrogativas, para a análise da remessa necessária, é relevante compreender seus fundamentos teóricos e práticos, ao lado dos demais benefícios processuais conferidos à Fazenda Pública, uma vez que a constitucionalidade do instituto processual em exame será verificada à luz do princípio da proporcionalidade, que leva em conta todos esses fatores, o que será melhor explicitado nos tópicos 5 e 6.
2.2. Antecedentes históricos do duplo grau obrigatório
O duplo grau obrigatório não é instituto novo no ordenamento jurídico nacional. Segundo Nery Junior (1993), “tal medida é tradicional no direito brasileiro, oriunda do sistema medieval e sem correspondente no direito comparado […]”[14]. E, de acordo com tal autor (1993), as razões históricas do aparecimento da remessa obrigatória remontam ao processo inquisitório. Assim, “o direito lusitano criou, então, a ´apelação ex officio´, para atuar como sistema de freio àqueles poderes quase onipotentes do juiz inquisitorial”[15].
Também Cunha (2007) tece breve comentário acerca dos fundamentos históricos do reexame necessário, ressaltando que o então chamado recurso de ofício é originário do Direito Processual Penal português e tinha como objetivo “[…] servir como um contrapeso, a fim de minimizar eventuais desvios do processo inquisitório, cujas regras não se estenderam ao processo civil, sempre fincado no princípio dispositivo”[16].
Vê-se que, originaria e diversamente da sua feição atual, o reexame necessário se prestava a proteger o indivíduo contra eventuais arbítrios do Estado-Juiz.
Na redação do CPC vigente até 1997, era cabível o duplo grau obrigatório em todas as hipóteses de sentenças proferidas que ensejavam gravame à União, aos Estados e aos Municípios, de anulação de casamento ou que julgassem procedentes os embargos contra a execução de dívida ativa da Fazenda Pública.
A partir da Lei n.° 9.494/97, foi estendido o duplo grau às autarquias e fundações públicas, sendo esse o perfil que perdurou até o advento da Lei n.° 10.352/01, a qual implicou considerável redução nas possibilidades de cabimento da remessa necessária, o que será objeto da parte seguinte.
2.3. Natureza jurídica e feição atual do duplo grau obrigatório
Com a modificação introduzida no art. 475, do CPC, pela Lei n.° 10.352/01, ficou dispensada a remessa necessária nas hipóteses de condenação ou direito controvertido de valor certo não excedente a sessenta salários mínimos, inclusive no caso de procedência dos embargos do devedor em execução de dívida ativa até esse valor[17], bem como nos casos de sentença fundada em jurisprudência do plenário ou súmula do Supremo Tribunal Federal (STF) ou de súmula do tribunal superior competente, sendo esta a redação atual da referida norma processual:
“Art. 475 CPC. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).
§ 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.
§ 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.
§ 3o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente”[18].
Didier Junior e Cunha (2008) lembram, também, que a legislação extravagante prevê outras hipóteses de cabimento do duplo grau obrigatório, tais como a sentença concessiva do mandado de segurança e a sentença de extinção da ação popular por carência de ação ou improcedência do pedido[19] e não olvidam a possibilidade de dispensa do reexame necessário na hipótese prevista no art. 12 da Medida Provisória n.° 80-35/01[20].
Convém, ainda, recordar a inexistência da remessa necessária nos processos de competência dos Juizados Especiais Federais, nos termos do art. 13, da Lei n.° 10.259/01.
Dessa forma, pode-se dizer que a feição atual do reexame necessário, pelo menos em causas de conteúdo patrimonial, pode ser resumida ao binômio: condenação da Fazenda Pública e interesse econômico superior a sessenta salários mínimos (excepcionadas as hipóteses do § 3°, do art. 475, do CPC, e dos arts. 12 da MP n.° 80-35/01 e 13 da Lei n.° 10.259/01).
Muito já se discutiu acerca da natureza jurídica desse instituto processual, que já foi considerado verdadeira modalidade recursal.
Contudo, ausente, principalmente, a voluntariedade e a tipicidade inerentes aos recursos, não se pode concebê-lo como tendo natureza recursal, em conformidade com Cunha (2007), Didier Junior, Cunha (2008) e Nery Junior (1993).
Assim, de acordo com a doutrina dominante representada por Didier Junior, Cunha (2008), Marinone, Arenhart (2007) e Nery Júnior (1993), o duplo grau obrigatório tem a natureza jurídica de condição para a eficácia da sentença proferida em prejuízo da Fazenda Pública, obstando o seu trânsito em julgado enquanto não revista pelo tribunal, bem como impedindo a sua execução provisória pelo autor vitorioso em primeiro grau.
Também nesse sentido é a jurisprudência dominante do STF, consagrada na Súmula n.º 423, que menciona que: “não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege”[21].
Ademais, esse instituto processual foi criado exclusivamente a favor do ente público, como pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) na Súmula n.º 45, in verbis: “no reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública”[22].
Os fundamentos do referido acórdão precedente de tal verbete sumular, proferido no julgamento do REsp n.º 14.238/SP, revelam o caráter nitidamente tendencioso do duplo grau obrigatório, ao obstar o agravamento da condenação imposta à Fazenda Pública, ainda que, no reexame, seja constatado algum erro in procedendo ou in iudicando em detrimento do particular que deixou de recorrer[23].
Trata-se de tratamento diferenciado e destinado, exclusivamente, à proteção do interesse do Estado em Juízo, uma vez que o reexame necessário “[…] só pode beneficiar a parte a favor de quem foi criado”[24], razão pela qual Theodoro Junior (2003) fala em um verdadeiro “remédio processual de tutela dos interesses de uma das partes”[25].
Importante, também, ressaltar que, segundo Nery Junior (1993) e a jurisprudência dominante no STJ, o duplo grau obrigatório refere-se apenas a sentenças definitivas, ou seja, que extinguem o processo com resolução de mérito, não alcançando as sentenças terminativas[26].
Ocorre que, de acordo com a Súmula n.º 325 do STJ, esse instituto processual tem devolutividade plena sempre que houver condenação do Estado. Assim, “a remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado”[27].
Coerentemente, e desde que essa condenação seja superior a sessenta salários mínimos, por força do § 2º, do art. 475, do CPC, ter-se-á de admitir a remessa necessária mesmo no caso de sentenças terminativas no que tange a eventual condenação em honorários, como ressaltam Didier Junior e Cunha (2008):
“Jorge Tosta alude à situação de a sentença terminativa proferida contra o Poder Público conter condenação ao pagamento de verba honorária. Nesse caso, entende ele que é cabível o reexame, se o valor da verba honorária for superior a 60 (sessenta) salários-mínimos. Parece razoável esse entendimento. O Superior Tribunal de Justiça corrobora esse entendimento, tendo, aliás, editado o enunciado n.º 325 da Súmula da sua Jurisprudência Predominante, cujo teor tem a seguinte redação: […]. Significa, então, que há reexame necessário no tocante a qualquer condenação imposta contra a Fazenda Pública, ainda que se restrinja aos honorários de sucumbência. Cumpre, todavia, consignar, que somente há reexame necessário, mesmo no caso a que se refere o referido enunciado sumular, se o valor da condenação for superior a 60 (sessenta) salários mínimos. Assim, se a Fazenda Pública for condenada ao pagamento de honorários no valor de até 60 (sessenta) salários-mínimos, não haverá reexame necessário”[28].
O duplo grau obrigatório, porém, não alcança as decisões interlocutórias proferidas em prejuízo da Fazenda Pública, exceto se se revestirem da natureza de sentenças parciais de mérito (art. 269, do CPC), ou seja, se resolverem definitivamente parte da controvérsia da causa, sendo aptas, portanto, a ensejar a formação da coisa julgada material, conforme Didier Junior e Cunha (2008).
Insta ressaltar, por fim, que se admite a aplicação do disposto no art. 557, do CPC, ao referido instituto, nos termos da Súmula n.º 253 do STJ, que dispõe que: “o art. 557 do CPC, que autoriza o relator a decidir o recurso, alcança o reexame necessário”[29].
3. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LEGALIDADE E DA IGUALDADE
A República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito, na dicção do art. 1º, caput, da CR/88.
Segundo Silva (1992), enquanto um Estado de Direito é caracterizado pela submissão ao império da lei, pela separação de Poderes (ou funções) e pelo enunciado e garantia dos direitos individuais, a ordem jurídica de uma Democracia é emanada por órgão legislativo composto por representantes do povo, nos termos do art. 1°, § 1°, da CR/88[30].
De acordo com Bandeira de Mello (2008), o princípio da legalidade “[…] é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá identidade própria”[31].
A legalidade no Estado Democrático de Direito, porém, não é apenas formal. Antes, reveste-se também de um conteúdo material que visa a realizar aqueles princípios que a ordem jurídica consagra. Em razão disso, salienta Silva (1992):
“[…] a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as transformações políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas”[32].
Faria (2007) chega a dizer que “[…] as leis devem ser justas e democráticas, de modo a traduzir os verdadeiros e reais interesses da sociedade. As leis, divorciadas desses valores, são injustas e contrariam a idéia de Estado de Direito”[33].
Desse conteúdo substancial do princípio da legalidade decorre a conclusão de que a lei encontra na CR/88 seu fundamento de validade não apenas formal, mas também material:
“Ao se dizer que a lei encontra limite e contorno nos princípios constitucionais, admite-se que ela deixa de ter apenas uma legitimação formal, ficando amarrada substancialmente aos direitos positivados na Constituição. A lei não vale mais por si, porém depende da sua adequação aos direitos fundamentais. Se antes era possível dizer que os direitos fundamentais eram circunscritos à lei, torna-se exato afirmar que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais.
Mas, se essa nova concepção de direito ainda exige que se fale de princípio da legalidade, restou necessário dar-lhe uma nova configuração, compreendendo-se que, se antes esse princípio era visto em uma dimensão formal, agora ele tem conteúdo substancial, pois requer a conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais[34].
Ao se partir de uma nova hermenêutica constitucional, tem-se a premissa de que os princípios inseridos na CR/88 têm força vinculante[35], ou seja, normativa[36], e hierarquicamente vinculam e legitimam toda a legislação infraconstitucional. Nesse sentido:
“As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem e se intepretam todas as normas infraconstitucionais. […] A efetividade da Constituição é a base sobre a qual se desenvolveu, no Brasil, a nova interpretação constitucional”[37].
De acordo com essa fase do constitucionalismo moderno, a que se dá o nome de neoconstitucionalismo ou pós-positivismo, em conformidade com Ávila (2008), Barroso (2008)[38], Bonavides (2008)[39] e Didier Junior (2008), tanto na criação das leis quanto na interpretação e aplicação do Direito posto, seja de qual ramo for, deve-se buscar a outorga de concretude aos direitos e garantias fundamentais estabelecidos constitucionalmente.
Por esses motivos, não se pode pretender o estudo do Direito Processual dissociado do conteúdo axiológico-normativo dos princípios constitucionais que regem o processo em um Estado Democrático. Da mesma maneira:
“O processo é instrumento de realização do direito material. Quanto o processo é voltado à efetivação do direito material público, é ele mecanismo de concretização da própria razão de ser do Estado social, Democrático e de Direito a que se refere a Constituição Federal. É assim, instrumento de efetivação da própria cidadania, se é que correto acentuar existir cidadania que não possa ser vivenciada e experimentada concretamente por dada sociedade, pelos cidadãos. Nessas condições, o direito processual público é o realizador do Estado Democrático de Direito. Acesso (e saída) à Justiça é tema que também diz respeito ao Poder Público em Juízo. Sem uma tutela jurisdicional efetiva não há Estado de Direito”[40].
“O estudo do Direito Processual sofreu a influência desta renovação do pensamento jurídico. O processo volta a ser estudado a partir de uma perspectiva constitucional (o que não é novidade), mas agora seguindo esse novo repertório, que exige dos sujeitos processuais uma preparação técnica que lhes permita operar com cláusulas gerais, princípio da proporcionalidade, controle difuso de constitucionalidade de uma lei etc”[41].
“Torna-se, portanto, relevante a perspectiva do sistema processual a partir da observância dos princípios, garantias e regramentos que a Constituição impõe. Exige-se, sempre com uma visão crítica de todo o ordenamento jurídico, que as regras relacionadas com o processo subordinem-se às normas constitucionais de caráter amplo e hierarquicamente superiores”[42].
“O processo é um procedimento, no sentido de instrumento, módulo legal ou conduto com o qual se pretende alcançar um fim, legitimar uma atividade e viabilizar uma atuação. O processo é o instrumento através do qual a jurisdição tutela os direitos na dimensão da Constituição. É o modulo legal que legitima a atividade jurisdicional e, atrelado à participação, colabora para a legitimidade da decisão. É a via que garante o acesso de todos ao Poder Judiciário e, além disto, é o conduto para a participação popular no poder e na reivindicação da concretização e da proteção dos direitos fundamentais”[43].
Ao avançar nesse entendimento, a teoria neo-institucionalista do processo, capitaneada por Leal (2008), afasta o seu caráter meramente instrumental para conferir-lhe o status de instituição constitucionalizada (ao lado do próprio Estado) e para implementar os direitos fundamentais, baseando-se nos princípios da chamada processualidade democrática (contraditório, ampla defesa, isonomia, direito a um advogado e livre acesso à jurisdição). Assim:
“[…] instituição não é aqui utilizada no sentido de bloco de condutas aleatoriamente construído pelas supostas leis naturais da sociologia ou da economia. Recebe, em nossa teoria, a acepção de conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional com a denominação jurídica de processo, cuja característica é assegurar, pelos princípios do contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e expressos no ordenamento constitucional e infra-constitucional por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal) como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados”[44].
Ao compartilhar esse mesmo raciocínio, Gomes e Sousa (2008) esclarecem que o processo não deve ser visto apenas como um instrumento de resolução de conflitos, como o faz a corrente instrumentalista, antes deve ser enxergado sob a ótica da efetiva realização dos direitos fundamentais.
Dessa forma, com base numa visão não apenas instrumental, mas democrática do processo, que considera o conteúdo material do princípio da legalidade, conclui-se que a norma processual deve, necessariamente, ser instrumento adequado de realização dos direitos e garantias fundamentais. Portanto:
“[…] o processo deve estar adequado à tutela efetiva dos direitos fundamentais (dimensão subjetiva) e além disso, ele próprio deve estar estruturado de acordo com os direitos fundamentais (dimensão objetiva). No primeiro caso, as regras processuais devem ser criadas de maneira adequada à tutela dos direitos fundamentais […]. No segundo caso, o legislador deve criar regras processuais adequadas aos direitos fundamentais, aqui encarados como normas, respeitando, por exemplo, a igualdade das partes e o contraditório”[45].
Nesse particular, dentre todos os direitos e garantias fundamentais estabelecidos constitucionalmente, sobrepõe-se a garantia da igualdade, ou da isonomia, consagrada no caput do art. 5°, da CR/88, como um princípio constitucional geral, nas lições de Gerra Filho (1996) e Barroso (2008), que ilumina e vincula a interpretação de todos os demais direitos e garantias estabelecidos nos incisos do mesmo artigo.
De acordo com o referido princípio, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza […]”[46].
Para Ávila (2008), a igualdade consistiria, simultaneamente, tanto em uma regra proibitiva de discriminações, quanto em um princípio-fim e, ao mesmo tempo, um postulado de interpretação e aplicação do Direito. Nesse sentido:
“A igualdade pode funcionar como regra, prevendo a proibição de tratamento discriminatório; como princípio, instituindo um estado igualitário como fim a ser promovido; e como postulado, estruturando a aplicação do Direito em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim)”[47].
Isso significa dizer que não apenas o aplicador e o intérprete devem se pautar de acordo com a igualdade, mas também o legislador está adstrito à sua observância, a fim de que as leis não sejam editadas em desacordo com a isonomia, consoante bem ressaltado por Bandeira de Mello (1993): “A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitamente todos os cidadãos”[48].
Do ponto de vista processual, Didier Junior (2008) explica que o princípio da isonomia implica a concessão de idênticas condições de atuação e a paridade de armas entre os litigantes[49] e encontra previsão expressa no art. 125, inciso I, do CPC.
A propósito, Nunes (2008), respaldado nos ensinamentos de Leal (2008), ressalta que, no Estado Democrático, a simétrica paridade de armas e a garantia de influenciar na decisão judicial são facetas da garantia do contraditório, pois “impõe-se, assim, a leitura do contraditório como garantia de influência no desenvolvimento e resultado do processo”[50].
Do mesmo modo, para Lucon (1999), a igualdade processual, para além de um conteúdo formal, deve ser vista substancialmente como um meio concreto de proporcionar às partes condições de real acesso ao Judiciário e de poder influenciar na prestação jurisdicional (igualdade material), já que:
“No processo, a isonomia revela-se na garantia do tratamento igualitário das partes, que deve ser vista não apenas sob o aspecto formal, mas também (e principalmente) analisada pelo prisma substancial. A paridade das partes no processo tem por fundamento o escopo social e político do direito; não basta igualdade formal, sendo relevante a igualdade técnica e econômica, pois elas também revelarão o modo de ser do processo. Enquanto a igualdade formal diz respeito à identidade de direitos e deveres estatuídos pelo ordenamento jurídico às pessoas, a igualdade material leva em consideração os casos concretos nos quais essas pessoas exercitam seus direitos e cumprem seus deveres”[51].
A existência de prerrogativas processuais instituídas por lei, exclusivamente em prol da Fazenda Pública, conforme referido no capítulo 2, itens 2.1 e 2.3, e a doutrina dominante, exemplificada por Cunha (2007), Di Pietro (2008), Meirelles (2002), Bandeira de Mello (2008), Moraes (2003) e Souto (2000), implementariam a igualdade material entre as partes, partindo-se do pressuposto de que o Poder Público, ao litigar em Juízo com um particular, seria, por assim dizer, hipossuficiente e, como tal, merecedor de uma tutela especial.
É esse, aliás, o entendimento consagrado pelo Pleno do STF, ao final da década de 1970, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n.° 83.432/SP[52].
Na esteira desse entendimento, pela clareza, merecem transcrição os ensinamentos de Cunha (2007):
“Como se vê, não se pode negar que, no mundo todo, a Fazenda Pública é bem diferente dos particulares, razão por que recebe tratamento diferente. Por isso mesmo, a doutrina já nega a existência de igualdade entre a Fazenda Pública e os particulares.
Ora, sabe-se que o princípio da isonomia traduz a idéia aristotélica (ou, antes, “pitagórica” como prefere Giorgio Del Vecchio) de “igualdade proporcional”, própria da “justiça distributiva”, segundo a qual se deve tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual. Sendo a Fazenda Pública desigual frente ao particular, somente estará atendido o princípio da igualdade se lhe for conferido tratamento desigual.
Considerando que o princípio da isonomia decorre dessa idéia de tratar igualmente os iguais, tratando-se os desiguais de maneira desigual, existem várias regras, no Código de Processo Civil, que contemplam tratamento desigual, e nem por isso se está a afrontar o princípio da isonomia. Muito pelo contrário. Nesses casos, atende-se ao princípio da isonomia.
Tudo isso, aliado ao fato de a Fazenda Pública ser promotora do interesse público, justifica a manutenção de prerrogativas processuais, e não privilégios, instituídas em favor das pessoas jurídicas de direito público”[53].
Contudo, é importante indagar se a existência do duplo grau obrigatório estaria, de fato, promovendo a igualdade processual entre as partes e se o interesse público restaria, efetivamente, tutelado pela obrigação de reexame de toda sentença contrária à Fazenda Pública não enquadrada nas hipóteses de dispensa legal referidas nos itens 2 e 2.3 deste estudo.
Segundo os ensinamentos de Bandeira de Mello (1993), o princípio da igualdade comporta fatores de discriminação juridicamente aceitos e toleráveis, desde que haja razoabilidade e harmonia com os demais interesses protegidos constitucionalmente. Com isso:
“[…] as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição”[54].
Para Ávila (2008), a efetiva implementação da igualdade deve levar em conta os fins e os meios empregados. Dessa maneira:
“A concretização do princípio da igualdade depende do critério-medida objeto de diferenciação. Isso porque o princípio da igualdade, ele próprio, nada diz quanto aos bens ou aos fins de que se serve a igualdade para diferenciar ou igualar as pessoas. As pessoas são iguais ou desiguais em função de um critério diferenciador. […]
Vale dizer que a aplicação da igualdade depende de um critério diferenciador e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma conclusão, tão importante quanto menosprezada: fins diversos levam à utilização de critérios distintos, pela singela razão de que alguns critérios são adequados à realização de determinados fins; outros, não. Mais do que isso; fins diversos conduzem a medidas diferentes de controle. Há fins e fins no Direito. Como postulado, sua violação reconduz a uma violação de alguma norma jurídica. Os sujeitos devem ser considerados iguais em liberdade, propriedade, dignidade. A violação da igualdade implica violação a algum princípio fundamental”[55].
Nesses termos, se na conhecida lição de Aristóteles a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, então, com base nos ensinamentos de Ávila (2008) e Bandeira de Mello (2008), para se perquirir acerca da constitucionalidade do reexame necessário deve-se investigar se o critério ou meio utilizado (prerrogativa processual do duplo grau obrigatório) seria adequado ou necessário à realização do fim colimado pelo legislador (proteção do interesse público), considerado o fator concreto de desigualdade (suposta hipossuficiência da Fazenda Pública frente ao particular em Juízo) e se não haveria algum excesso.
4. REVISITANDO O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PARTICULAR
A Administração Pública, em um Estado Democrático de Direito, existe, basicamente, para a realização do interesse público ou bem comum. Portanto, “os fins da administração pública resumem-se num único objetivo: o bem comum da coletividade administrada. Toda a atividade do administrador deve ser orientada para esse objetivo”[56].
Para Costa (2003), a satisfação dos interesses da coletividade é a finalidade única do Poder Público, pois “[…] o Estado, em toda a sua atuação, deve sempre buscar um único objetivo, qual seja, a realização do interesse público”[57].
O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular implica a prevalência dos interesses da Administração em relação aos interesses privados e decorre exatamente dessa finalidade pública perseguida pelo Estado. Desse modo, “a primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral”[58].
Na abalizada lição de Bandeira de Mello (2008), o referido princípio consiste em um:
“[…] verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último”[59].
Em razão dessa supremacia e pressupondo a hipossuficiência do ente público em Juízo, é que, em geral, administrativistas e processualistas, entre eles Cunha (2007), Di Pietro (2008), Meirelles (2002), Bandeira de Mello (2008), Santos (2007) e Souto (2000), justificam a existência das prerrogativas processuais a favor da Fazenda Pública, antes referidas neste trabalho.
Entretanto, conforme adverte Bandeira de Mello (2008), nem sempre os interesses defendidos pelo Estado correspondem aos interesses da coletividade, referindo-se à distinção comum na doutrina italiana entre os interesses primários (públicos ou da coletividade, propriamente ditos) e secundários (ou individuais) do Estado. Esses últimos, normalmente, de cunho econômico, associados com os interesses do Erário. De maneira que:
“[…] não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público. É que, além de subjetivas estes interesses, o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos, não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito”[60].
De acordo com esse renomado administrativista (2008), haveria supremacia apenas quando o Estado encarna os interesses públicos propriamente ditos, ou primários. Portanto:
“[…] fácil é ver-se que as prerrogativas inerentes à supremacia do interesse público sobre o interesse privado só podem ser manejadas legitimamente para o alcance de interesses públicos; não para satisfazer apenas interesses ou conveniências tão-só do aparelho estatal, e muito menos dos agentes governamentais”[61].
Ocorre que a moderna teoria administrativista, representada por Duarte (2006), Binenbojm (2007) e Sarmento (2007), embalada pelos estudos inicialmente feitos por Ávila (2007), na década de 1990, passou a questionar a existência dessa supremacia enquanto princípio e deixou de encará-la de forma absoluta ou como um elemento autodemonstrável e inerente a todo ato praticado pelo Poder Público, toda vez em que há conflito de interesses entre particulares e entes públicos.
Nesse primoroso estudo, Ávila (2007) criticou a caracterização da supremacia do interesse público como um axioma, entendido como “[…] uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que não é nem possível nem necessário prová-la”[62]. Ademais, revelou estar convencido de que “[…] não há uma norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o particular no Direito brasileiro”[63] e considerou que as prerrogativas conferidas à Administração Pública encontrariam seu fundamento na legalidade, aduzindo ainda que:
“Não se está a negar a importância jurídica do interesse público. Há referências positivas em relação a ele. O que deve ficar claro, porém, é que, mesmo nos casos em que ele legitima uma atuação estatal restritiva específica, deve haver uma ponderação relativamente aos interesses privados e à medida de sua restrição. É essa ponderação para atribuir máxima realização aos direitos envolvidos o critério decisivo para a atuação administrativa. E antes que esse critério seja delimitado, não há cogitar sobre a referida supremacia do interesse público sobre o particular”[64].
Ao perfilhar esse mesmo entendimento, Duarte (2006) também ressalta que a existência do interesse público somente pode ser aferida no caso concreto mediante ponderação dos interesses envolvidos. Com isso:
“De ver-se, pois, que não se pode afirmar a existência de interesse público senão no caso concreto, sendo que, não raro, o interesse público poderá corresponder à proteção do interesse individual carecedor de guarita pelo Estado, sendo a ausência de um conceito unívoco de interesse público, portanto, um primeiro fundamento para se espancar a suposta supremacia do interesse público sobre o privado. […]
Tal como é apresentado pela doutrina tradicional, independentemente das possibilidades fáticas e normativas, a abstrata aplicação do princípio em apreço exclui a possibilidade de ponderação dos interesses envolvidos, pois o interesse público deve ter sempre, segundo sua dicção, maior peso relativamente ao interesse particular, sem que diferentes opções de solução e uma máxima realização das normas em conflito (e dos interesses que elas resguardam) possam ser sopesadas”[65].
Sarmento (2007), por sua vez, considera que, ao se afirmar aprioristicamente a supremacia do interesse público toda vez em que estão envolvidos interesses do Estado em conflito com os dos particulares, “[…] prestigia-se apenas um dos pólos da relação, o que se afigura também incompatível com o princípio da hermenêutica constitucional da concordância prática”[66].
Não se desconhece, todavia, a crítica feroz de Carvalho Filho (2007) à teoria da desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, representando, nesse particular, uma visão mais tradicional, porque:
“Algumas vozes se têm levantado atualmente contra a existência do princípio em foco, argumentando-se no sentido da primazia de interesses privados com suporte em direitos fundamentais quando ocorrem determinadas situações específicas. Não lhes assiste razão, no entanto, nessa visão pretensamente modernista. Se é evidente que o sistema jurídico assegura aos particulares garantias contra Estado em certos tipos de relação jurídica, é mais evidente ainda que, como regra, deva respeitar-se o interesse coletivo quando em confronto com o interesse particular. A existência de direitos fundamentais não exclui a densidade do princípio. Este é, na verdade, o corolário natural do regime democrático, calcado, como por todos sabido, na preponderância das maiorias. A “desconstrução” do princípio espelha uma visão distorcida e coloca em risco a própria democracia; o princípio, isto sim, suscita “reconstrução”, vale dizer, adaptação à dinâmica social, como já se afirmou com absoluto acerto”[67].
Considere-se, porém, que o conceito de interesse público deve ser aduzido do próprio ordenamento jurídico, conforme Bandeira de Mello (2008) mesmo o reconhece, ainda que se refira ao princípio da supremacia como um axioma. De modo que:
“O princípio cogitado, evidentemente, tem, de direito, apenas a extensão e compostura que a ordem jurídica lhe houver atribuído na Constituição e nas leis com ela consoantes. Donde, jamais caberia invocá-los abstratamente, com prescindência do perfil constitucional que lhe haja sido irrogado, e, como é óbvio, muito menos caberia recorrer a ele contra a Constituição ou as leis. Juridicamente, sua dimensão, intensidade e tônica são fornecidas pelo Direito posto, e só por este ângulo é que pode ser considerado e invocado”[68].
Dessa forma, engloba todos aqueles valores eleitos constitucionalmente como relevantes e, do ponto de vista processual, tanto a igualdade processual entre os litigantes quanto a celeridade procedimental e a eficácia dos provimentos judiciais, presentes, respectivamente, nos arts. 5º, caput, 37, caput, e 5º, LXXVIII, da CR/88 integrariam a noção de interesse público.
Conquanto aceite a existência da supremacia como princípio, divergindo, portanto, da tese de Ávila (2007), Osório (2000) reconhece ser difícil estabelecer um conceito apriorístico e material de interesse público, “[…] dada a grande diversidade de conteúdos que um interesse público comporta, e tendo em vista a enorme variedade de situações nas quais pode incidir e operar funcionalmente”[69]. Admite, também, que o seu conteúdo deve ser extraído do sistema, posto que é evidente “[…] que a superioridade do interesse público sobre o privado não pode ser deduzida de princípios exclusivamente morais ou políticos, pois carece de uma recondução à normatividade própria da CF”[70].
Assim sendo, conclui-se que a existência do duplo grau obrigatório não pode ser justificada a priori apenas à luz de suposta supremacia do interesse público, encarada como um axioma, ou seja, tomada como elemento autodemonstrável e indiscutível toda vez em que há conflito com um interesse particular.
Antes e independentemente da adoção ou não do posicionamento de Ávila (2007) acerca da inexistência da supremacia como princípio, deve-se reconhecer que o conceito de interesse público somente pode ser extraído do sistema jurídico em conjunto com os demais valores eleitos constitucionalmente como relevantes, mediante ponderação dos interesses envolvidos.
5. SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO X IGUALDADE: COLISÃO DE PRINCÍPIOS
Na remessa necessária, de acordo com a interpretação dada pelo STJ, consubstanciada na Súmula n.º 45[71], consoante tratamento específico no capítulo 2, item 2.3, é vedada qualquer piora na condenação da Fazenda Pública, ainda que, por ocasião do novo julgamento, se verifique algum tipo de erro de julgamento ou de procedimento desfavorável ao litigante particular que deixou de recorrer.
O manifesto intuito de beneficiar exclusivamente o Estado implica aparente ofensa à igualdade processual entre as partes, evidenciando o conflito entre os princípios da supremacia do interesse público e da isonomia, relativamente ao referido instituto processual.
Contudo, diversamente do que ocorre no confronto entre regras, em que uma vale ou não vale, a colisão de princípios, na lição de Bonavides (2008), citando Alexy, resolve-se na dimensão do valor, não havendo que se falar em anulação ou revogação de um pelo outro e sim em preponderância de um deles no caso concreto. Nesse sentido:
“Com a colisão de princípios, tudo se passa de modo inteiramente distinto, conforme adverte Alexy. A colisão ocorre, p. ex., se algo é vedado por um princípio, mas permitido por outro, hipótese em que um dos princípios deve recuar. Isto, porém, não significa que o princípio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que uma cláusula de exceção nele se introduza.
Antes, quer dizer — elucida Alexy — que, em determinadas circunstâncias, um princípio cede ao outro ou que, em situações distintas, a questão da prevalência se pode resolver de forma contrária.
Com isso — afirma Alexy, cujos conceitos estamos literalmente reproduzindo — se quer dizer que os princípios têm um peso diferente nos casos concretos, e que o princípio de maior peso é o que prepondera”[72].
A propósito, bastante esclarecedores os ensinamentos de Barroso (2008):
“Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. Ocorre que, em ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À visa dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação”[73].
Para se aferir qual princípio terá mais peso e deverá preponderar no caso concreto, vem sendo reconhecida a crescente importância do princípio da proporcionalidade como princípio de interpretação. Com isso:
“Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca desde aí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado”[74].
No autorizado dizer de Barroso (2008), ele funciona “[…] como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema”[75].
Guerra Filho (1996), igualmente, entende que se deve lançar mão da proporcionalidade no caso de colisão entre princípios, “[…] para evitar o excesso de obediência a um princípio que destrói o outro, e termina aniquilando os dois, deve-se lançar mão daquele que, por isso mesmo, há de ser considerado o ‘princípio dos princípios’: o princípio da proporcionalidade”[76].
O princípio da proporcionalidade está implícito no ordenamento jurídico brasileiro e tem sede material no princípio da igualdade, o qual está expresso no art. 5°, caput, da CR/88[77].
Para Barroso (2008), razoabilidade e proporcionalidade podem ser tratadas como um e único princípio:
“Sem embargo da origem e do desenvolvimento diversos, um e outro abrigam os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos. Por essa razão, razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis”[78].
Ávila (2008), por sua vez, classifica a proporcionalidade como um postulado, não um princípio[79], cuja análise envolve a verificação de três aspectos: adequação, necessidade e proibição de excessos (ou proporcionalidade em sentido estrito), distinguindo-o do postulado da razoabilidade, enquanto dever de eqüidade, congruência e equivalência. Assim:
“O postulado da proporcionalidade exige que o Poder Legislativo e o Poder Executivo escolham, para a realização dos seus fins, meios adequados, necessários e proporcionais. Um meio é adequado se promove o fim. Um meio é necessário se, dentre todos aqueles meios igualmente adequados para promover o fim, for o menos restritivo relativamente aos direitos fundamentais. E um meio é proporcional, em sentido estrito, se as vantagens que promove superam as desvantagens que provoca. A aplicação da proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim.
Ocorre que a razoabilidade, de acordo com a reconstrução aqui proposta, não faz referência a uma relação de causalidade entre um meio e fim, tal com o faz o postulado da proporcionalidade”[80].
Adota-se, no presente estudo, a expressão princípio da proporcionalidade. Contudo, a abordagem considera os três aspectos levantados por Ávila (2008) ─ adequação, necessidade e proibição de excessos ─ dada a sua precisão para a solução do problema proposto.
Como bem compreendido por Binenbojm (2007), havendo tratamento diferenciado estabelecido por lei, a existência da remessa necessária deve ser submetida ao teste da proporcionalidade para análise da sua constitucionalidade:
“[…] as hipóteses de tratamento diferenciado conferido ao Poder Público em relação aos particulares devem obedecer aos rígidos critérios estabelecidos pela lógica do princípio constitucional da igualdade. É dizer: qualquer diferenciação deve ser instituída por lei, além de sujeitar-se, no seu contexto específico e na sua extensão, ao teste da proporcionalidade.
Portanto, para que um privilégio em favor da Administração Pública seja constitucionalmente legítimo, é mister que:
(I) compressão do princípio da isonomia, isto é, a discriminação criada em desfavor dos particulares seja apta a viabilizar o cumprimento pelo Estado dos fins que lhe foram cometidos pela Constituição ou pela lei;
(II) o grau ou medida da compressão da isonomia, isto é, a extensão da discriminação criada em desfavor dos particulares deve observar o limite do estritamente necessário e exigível para viabilizar o cumprimento pelo Estado dos fins que lhe foram cometidos pela Constituição ou pela lei;
(III) por fim, o grau ou medida do sacrifício imposto à isonomia deve ser compensado pela importância da utilidade gerada, numa análise prognóstica de custos para os particulares e benefícios para a coletividade como um todo”[81].
Pretende-se, dessa forma, a fim de se verificar se a remessa necessária atende ao princípio da proporcionalidade, questionar se esse instrumento promove o fim de resguardo ao interesse público, se, dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover tal finalidade, não haveria outro menos limitador de direito fundamental e se as vantagens trazidas pela existência do referido instituto processual compensam as desvantagens provocadas ao princípio da igualdade, na esteira dos questionamentos feitos por Ávila (2008)[82].
6. A INCONSTITUCIONALIDADE DO DUPLO GRAU OBRIGATÓRIO
O exame da natureza jurídica e das hipóteses de cabimento da remessa necessária, bem como a análise dos fundamentos de ordem prática e teórica, que supostamente justificariam a sua existência, revelam que há evidente prestígio aos interesses defendidos pela Fazenda Pública em detrimento dos interesses dos particulares.
Nos termos do tópico precedente, o referido instituto processual deve passar pelo crivo da proporcionalidade, a fim de ter a sua constitucionalidade confirmada, o que não ocorre, conforme se verá.
Com efeito, ao se indagar se esse meio promove o fim de proteção ao interesse público, a resposta há de ser, necessariamente, negativa.
É que nem todo interesse que o Estado defende judicialmente reveste-se da natureza de interesse público, consoante tratamento específico no capítulo 4. Dessa forma, não se pode pressupor, aprioristicamente, que sempre que o Estado litiga em face do particular, ou vice versa, está na defesa de interesses primários[83].
Considere-se, outrossim, que o conceito de interesse público engloba todos os valores consagrados constitucionalmente, o que autoriza dizer que é do interesse público tanto a justiça quanto a celeridade procedimental e a eficiência, ou efetividade, do processo e dos provimentos judiciais (art. 5°, inciso LXXVIII, e art. 37, caput, da CR/88).
O reexame necessário, contrariamente, ao impingir um novo julgamento, independentemente da manifestação da insatisfação das partes, prolonga indevidamente a lide, retira da decisão proferida toda a carga de eficácia e prejudica a eficiência e efetividade dos processos, em primeiro grau de jurisdição, o que se contrapõe ao princípio constitucional da celeridade procedimental.
O instituto processual, nesses termos, não atende ao requisito da adequação.
Sob a ótica da necessidade, também é desproporcional o reexame necessário em relação aos fins colimados.
As deficiências decorrentes do desaparelhamento estatal para bem efetuar a sua defesa em Juízo já são suficientemente supridas pelas demais prerrogativas processuais existentes no iter procedimental, até a prolação da sentença ou mesmo após.
De fato, ao se estabelecê-las, garante-se a devida paridade de armas e condições de atuação das partes, o que lhes permite, efetiva e concretamente, influenciar na convicção do Juiz e participar da formação das decisões judiciais. Assim, uma vez observadas as demais prerrogativas durante todo o procedimento, eventual injustiça do julgamento não pode ser presumida tão-somente por ser contrário aos interesses defendidos pelo Estado.
Tampouco se pode presumir que, em toda e qualquer situação, a Fazenda Pública é hipossuficiente em relação ao particular, a merecer tutela especial em Juízo.
Na verdade, para a sua defesa, o Poder Público conta com quadro profissional altamente qualificado, selecionado mediante concurso público de provas ou provas e títulos (art. 37, inciso II, da CRF/88) e a não interposição de recurso voluntário, por sua parte, nem sempre se deve às dificuldades para se defender e sim à sua conformação com a justiça e acerto do julgado.
Por outro lado, no caso de vícios graves, o ordenamento jurídico prevê o cabimento de ação rescisória e até mesmo de ações declaratórias de nulidade ou anulatórias (arts. 485 e 486, do CPC), para a impugnação das decisões acobertadas pela coisa julgada contrárias à Fazenda Pública.
Dessarte, nada obstante se possa eventualmente admitir, no estágio atual, a razoabilidade de algumas das prerrogativas processuais existentes como forma de promover a igualdade entre as partes, compensando as deficiências do Estado em Juízo, não se justifica a existência do duplo grau obrigatório como meio necessário a tanto.
Sob a ótica da proporcionalidade propriamente dita (ou proibição de excessos), não se chega a outra conclusão, pois as demais prerrogativas existentes já se prestam a compensar, mais do que suficientemente, eventual hipossuficiência do Estado na defesa judicial dos seus interesses.
Além disso, há sacrifício demasiado aos princípios da igualdade, celeridade do procedimento e efetividade do processo.
Deve-se considerar, ainda, que o reexame necessário enseja insegurança aos jurisdicionados e conduz ao descrédito do Poder Judiciário, na medida em que gera a presunção de que toda decisão proferida contra a Fazenda Pública não é confiável.
Bueno (2008) comenta que as prerrogativas processuais, em geral, estão sendo utilizadas mais como “[…] subterfúgios para o não-acatamento de decisões judiciais do que necessidades inerentes, decorrentes, razoáveis ou, quando menos, toleráveis à atuação da Administração Pública”[84].
Dessa forma, à toda evidência que a existência da remessa necessária revela-se inadequada, desnecessária e excessiva à proteção do interesse público.
Em hipóteses como essa, de acordo com o princípio da proporcionalidade, revela-se inconstitucional a previsão legal do duplo grau obrigatório. Não foi outra a conclusão a que chegou Guerra Filho (1996):
“Nesse prolongamento necessário e indiscriminado do curso do processo até a instância recursal, facilmente se percebe o gravame ao direito fundamental da parte em juízo à celeridade do feito, para assim ter efetivo acesso ao que lhe é devido. Não havendo um outro interesse, público ou de relevância social, que justifique a desatenção ao interesse individual ou coletivo, de que prevaleça uma decisão de primeiro grau, da qual não há fundadas razões para se recorrer, então o indivíduo de sujeito torna-se mero objeto de um processo, por despropositado, com desrespeito à sua dignidade e da “proibição de excesso” (proporcionalidade em sentido estrito)”[85].
Também Lucon (1999) é contundente, já que, “além de desacreditar a Administração e o Judiciário, esse privilégio denota verdadeiro desprezo ao tratamento paritário das partes no processo”[86].
Poder-se-ia, eventualmente, considerar a necessidade de mera releitura da Súmula n.º 45 do STJ, de forma tal que, numa interpretação conforme a CR/88, se admitisse que o duplo grau obrigatório pudesse ensejar a revisão do julgado também a favor do particular em litígio, a fim de não haver a quebra da isonomia.
Contudo, uma interpretação nesse sentido, esbarraria, ainda, nos princípios da eficiência do processo e da celeridade no procedimento, salvo se se admitisse o cumprimento provisório do julgado contra a Fazenda Pública, de forma a não postergar indevidamente a satisfação da parte que tem razão.
Resta, assim, reconhecer a absoluta inconstitucionalidade do reexame necessário, por ofensa ao princípio da igualdade à luz do princípio da proporcionalidade.
7. CONCLUSÕES
O neoconstitucionalismo, ou pós-positivismo, parte da premissa de que os princípios inseridos em uma Constituição têm força normativa, o que reforça, no Direito Processual Civil, o seu caráter de instrumento para implementação e efetivação dos direitos e garantias fundamentais, razão pela qual não se pode interpretar qualquer instituto processual dissociado do conteúdo axiológico-normativo dos princípios constitucionais que regem a sua aplicação.
Com esse referencial teórico, o presente estudo propôs a investigar, à luz do princípio da proporcionalidade, se a prerrogativa processual do duplo grau obrigatório seria adequada, necessária e suficiente à realização do fim de proteção do interesse público colimado pelo legislador, considerado o fator concreto de desigualdade estabelecido como questão de discrímen, qual seja, a hipossuficiência do Estado para a defesa judicial dos seus interesses.
Do ponto de vista processual, o princípio da isonomia implica a concessão de idênticas condições de atuação e a paridade de armas entre os litigantes. Diversamente, a remessa necessária foi estabelecida com o intuito exclusivo de tutelar os interesses do Estado em Juízo, desequilibrando a sua relação com o particular.
Por outro lado, o referido instituto processual não se revela adequado, necessário e suficiente para a defesa dos interesses públicos.
Primeiramente, nem todo interesse que o Estado defende reveste-se da natureza de interesse público primário, ou seja, da coletividade. Tampouco se pode olvidar que o conceito de interesse público engloba todos os valores consagrados constitucionalmente, dentre os quais a igualdade das partes, a celeridade procedimental e a eficácia do processo e dos provimentos jurisdicionais, seriamente comprometidos pela existência do reexame em questão.
Com efeito, o duplo grau de jurisdição obrigatório prolonga indevidamente a lide, contrapondo-se ao princípio constitucional da celeridade do procedimento (art. 5º, inciso LXXVIII, da CR/88), pois retira da decisão desfavorável ao Estado toda a carga de eficácia, prejudicando a eficiência e efetividade dos provimentos judiciais de primeiro grau e conduzindo a igual desprestígio o próprio Poder Judiciário.
Lado outro, as deficiências técnicas, materiais e humanas que dificultam a defesa da Fazenda Pública são suficientemente supridas, ou compensadas, pelas demais prerrogativas processuais existentes. Ademais, a não interposição de recurso voluntário pelo ente público nem sempre se deve às dificuldades para se defender e sim à sua conformação com a justiça e acerto do julgado.
Considere-se, outrossim, que, nas hipóteses de vícios graves, o sistema admite a impugnação das decisões transitadas em julgado por meio de ação rescisória, de querella nullitatis insanabilis, de ações declaratórias de nulidade e anulatórias de decisões não sujeitas à sentença ou quando ela é meramente homologatória, nos termos dos arts. 485 e 486, do CPC.
Conclui-se, dessa forma, que a existência legal da remessa necessária revela-se um meio desproporcional para proteção dos fins colimados pelo legislador, em evidente ofensa ao princípio constitucional da igualdade.
Pós-doutor em Direito Público e Educação pela Universidade Nova de Lisboa-Portugal. Pós-doutor em Direito Civil e Processual Civil, Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual, pela Universidad de Deusto-Espanha. Mestre em Educação pela PUC Minas. Professor Adjunto da PUC Minas. Coordenador do NADIP da Faculdade Padre Arnaldo Janssen. Advogado Sócio do Escritório Raffaele & Federici Advocacia Associada
Servidora Pública Federal. Especialista em Direito Processual Civil, pela PUC Minas
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