Estudo da discricionariedade administrativa: limites ao seu exercício e controle judicial

Resumo: Este artigo traz uma abordagem geral sobre atos administrativos apresentando seus elementos e suas características principais, ingressando no estudo sobre o mérito e a discricionariedade do ato administrativo. Diante da possibilidade de cometimento de abusos, o presente estudo analisa a possibilidade de controle do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário, dando importante destaque para as teorias que fundamentam esse controle, tratando da teoria dos motivos determinante, teoria do desvio de poder e teorias dos princípios.

Palavras-Chaves: Ato Administrativo. Elementos. Mérito. Discricionariedade. Controle.

Abstract: This paper presents a general approach on administrative acts presenting its elements and its main characteristics, entering the study on the merits and the discretion of the administrative act. Facing the possibility of committing abuses, this study examines the possibility of control of discretionary administrative act by the judiciary, giving important emphasis on the theories underlying this control. Theory of determining motives, theory of misuse of powers principles and theories.

Keyword: Administrative Act. Elements. Merit. Discretion. Control

Sumário: Introdução. 1. Atos Administrativos. 1.1. Fatos Administrativos e Atos Administrativos. 1.2. Atos Administrativos e Atos da Administração. 1.3. Conceito. 1.4. Elementos. 1.5. Mérito Administrativo. 1.6. Imprecisões Terminológicas. 1.7. Noções Iniciais Sobre a Discricionariedade: Fundamentos.  Conceitos Jurídicos Indeterminados. 2. Surgimento da Discricionariedade: conceitos. Limites a Discricionariedade. 2.1. Controle Judicial da Discricionariedade. Considerações Finais. Referências

INTRODUÇÃO

A sucessão de governantes e regimes de governos autoritários, durante a longa história da humanidade, nos mostra que a tendência natural do homem que detém o “Poder” é desbordar os limites deste, por meio de abusos e excessos.

Daí se gera a necessidade de que sejam vários os sujeitos do “Poder”, de forma a permitir um controle recíproco que viabiliza a existência do Estado de Direito, no afã de impedir o desgarre dos objetivos da Administração Pública, seja na fuga às balizas legais ou na ofensa ao interesses públicos ou particulares, foram concebidos diversos meios de controle da sua atividade.

Como ensina o professor Marcelo Alexandrino:

“O Controle da Administração Pública se mostra como o conjunto de instrumentos que o ordenamento jurídico estabelece a fim de que o Judiciário, o Legislativo e a própria Administração, e ainda o povo, diretamente ou por meio de órgãos especializados, possam exercer poder de fiscalização, orientação e revisão da atuação administrativa de todos os órgãos, entidades e agentes públicos, em todas as esferas do poder" (ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado, 17ª Edição, Revista, Atualizada e Ampliada. Pg: 740/741).

Ademais, Hely Lopes Meirelles aduz que:

“Tanto nos atos vinculados como nos que resultam da  faculdade discricionária do Poder Público, o administrador terá de decidir sobre a conveniência de sua prática, escolhendo a melhor oportunidade e atendendo a todas as circunstâncias que conduzam a atividade administrativa ao seu verdadeiro e único objetivo – o bem comum. Poderá, assim, a Administração Pública atuar com liberdade, embora  reduzida, nos claros termos da lei ou do regulamento” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 170.)

A atribuição original de poderes ao Estado advém da sociedade, portanto suas prerrogativas nascem com uma função precípua: atender aos interesses deste povo que o instituiu. Por isso, antes de adentrar em qualquer ramo do Direito Público, em especial o Direito Administrativo deve-se ter em mente que o interesse público delimitado pelo legislador constitui a pedra de toque do estudo.

Neste contexto, a atuação administrativa, e aqui se englobam os Poderes Judiciário e Legislativo, no exercício de atividade eminentemente administrativa, é centrada na lei. Contudo, por conta do caráter multifacetário do caso concreto, o legislador preferiu, ao delimitar as formas de atendimento aos interesses público, conceder certa parcela de “liberdade” ao gestor público para lidar com estas nuances. Trata-se de resíduos de legitimidade conferidos ao administrador.

Essa “liberdade” é mais conhecida como discricionariedade. A partir dessa idéia se desenvolve o trabalho a seguir. Busca-se enquadrar o campo de atuação do administrador público em certos limites a serem verificados pelo Poder Judiciário quando este for provocado a agir em prol dos administrados. Analisa-se a figura da discricionariedade a partir dos pressupostos que geram o seu surgimento e cria-se todo um arcabouço teórico que fundamentará o seu controle jurisdicional, evitando arbítrios da Administração Pública mascarados por um falso exercício do “poder discricionário”.

Este estudo tem como foco o Controle Jurisdicional da discricionariedade dos Atos Administrativos, sendo o mesmo essencial para fazer a Administração cumprir os objetivos a que é destinada sua atuação, principalmente no atendimento ao interesse público.

A sujeição das atividades administrativas do Poder Público ao mais amplo controle possível é um corolário dos Estados de Direito, nos quais vigoram o principio da legalidade que dispõe o dever da atividade da administração pública pautar somente sobre a lei, tendo por fim imediato o atendimento do interesse público.

Nesse ínterim, mostra-se extremamente relevante o estudo, tendo em vista que hoje os princípios do direito, que são alicerces fundamentais do nosso ordenamento jurídico, buscam a garantia dos direitos e a satisfação do interesse da coletividade, e assim o controle da administração, principalmente o jurisdicional, visa a atuação da Administração Pública conforme os princípios garantidos em nossa Constituição Federal.

Assim, o efetivo exercício desse controle garante a legitimidade dos atos administrativos, a adequada conduta funcional de seus agentes e a defesa dos direitos dos administrados.

1. ATOS ADMINISTRATIVOS

Antes de adentrar na análise da discricionariedade são importantes alguns apontamentos acerca da disciplina dos atos administrativos por se tratarem de veículos de atuação da Administração Pública e, portanto sujeitos ao alcance da competência discricionária em algumas hipóteses.

1.1. Fatos Administrativos e Atos Administrativos

O interesse na diferenciação entre atos administrativos e fatos administrativos reside no fato de que a Administração não só produz os primeiros, como também produz fatos administrativos.

A noção de fato administrativo, como leciona o professora Di Pietro, não é consensual na doutrina, mas em uma acepção tradicional são descritos como a materialização da função administrativa; consubstanciam o exercício material da atividade administrativa, não tendo por fim a produção de efeitos jurídicos.

José dos Santos Carvalho Filho vai mais além afirmando que os fatos administrativos tem o sentido de atividade material no exercício da função administrativa, podendo ser voluntários e naturais. Os primeiros se materializam por atos administrativos que formalizam a providência desejada pelo administrador ou por condutas administrativas que refletem os comportamentos e ações administrativas.

Já os atos administrativos enquadram-se no conceito de atos jurídicos, tendo por particularidade o fato de serem manifestações de vontade unilateral da administração pública ou particulares investidos de função pública, com fim imediato de produzir efeitos jurídicos determinados, conforme interesse público e sujeitos ao regime de direito público.

Nessa mesma linha o mestre Celso Antonio Bandeira assevera que o ato administrativo é a declaração do Estado (ou de quem lhe faça às vezes) no exercício de prerrogativas públicas, manifestadas mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.

Esse discrímen precisa ser feito porque além desta diferenciação conceitual, atos administrativos podem ser anulados e revogados, dentro dos limites legais, já os fatos administrativos não podem ser nem anuláveis nem revogáveis; os atos administrativos gozam da presunção de legitimidade e os fatos administrativos não; e por fim a atuação discricionária está presente nos atos administrativos somente, em casos em que o agente desfruta de certa liberdade.

1.2. Atos da Administração e Atos Administrativos

Essa é outra relevante diferenciação para estudo, uma complementação do tópico anterior, delimitando ainda mais o conceito de atos administrativos sobre os quais recai o objeto central do nosso estudo que é a discricionariedade e o controle judicial dos atos.

Nesse ponto não há também um consenso na doutrina, alguns autores, como José dos Santos Carvalho Filho, afirmam que atos da administração são aqueles que não se enquadram propriamente como atos administrativos, bem como os fatos administrativos.  Outros autores, como Marcelo Alexandrino, adotam uma posição mais genérica na alusão de que qualquer ato praticado pela administração será um ato da administração. Sendo assim, nessa conceituação se insere os atos administrativos propriamente dito, que são os abordados no tópico anterior; os atos da administração regidos pelo direito privado e os chamados atos materiais (fatos administrativos).

No entanto, independente de adotarmos uma posição mais genérica ou não, é importante destacar que não se inclui entre os atos da administração aqueles praticados por particulares no exercício de prerrogativas públicas, como no caso de delegação. Portanto errônea é afirmar que os atos administrativos são uma espécie de atos da administração, tendo em vista atos administrativos que são praticados por particulares.

1.3. Conceitos

Por se tratar de uma definição não expressa em lei, o conceito de ato administrativo varia de acordo com o enfoque e os critérios utilizados por cada doutrinador, não sendo correto afirmar que este conceito é mais adequado que àquele. Portanto, citam-se importantes doutrinadores para ilustrar esta variedade conceitual. De acordo com Carvalho Filho (2008, p. 96):

“[…] podemos, então conceituar ato administrativo como sendo a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público”.

Invoca-se, outrossim, conceito de clareza solar exposto por Mello (2009, p. 380):

“[…] declaração do Estado (ou de quem lhe faça vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.

Por fim, transcrevem-se as palavras de Alexandrino e Paulo:

“[…] propomos a seguinte definição de ato administrativo: manifestação ou declaração da administração pública, nesta qualidade, ou de particulares no exercício de prerrogativas públicas, que tenha por fim imediato a produção de efeitos jurídicos determinados, em conformidade com o interesse público e sob regime predominante de direito público”.

Após a leitura destes conceitos é importante observar que são unânimes quanto à existência de um regime de direito público regendo estes atos. Observa-se também que são complementares à lei e, portanto, devem obedecer a seus limites, além de estarem sujeitos ao controle do Judiciário. E em se tratando de Direito Administrativo, vale ressaltar importante escopo inafastável destes atos: atender ao interesse público. Assim, todo ato administrativo não pode contrariar a lei, fugir dos seus limites ou desatender os interesses públicos previstos no ordenamento jurídico.

1.4. Elementos

Passa-se então aos elementos do ato administrativo. Alguns autores contudo, adotam a terminologia “requisitos de validade” para nomeá-los, gerando grande controvérsia. Na realidade, independentemente da denominação adotada, “o que se quer consignar é que tais elementos constituem os pressupostos necessários para a validade dos atos administrativos” (CARVALHO FILHO, 2008, p. 101). Em melhores termos, implica dizer que se não forem respeitados quaisquer desses requisitos, o ato administrativo estará sujeito à anulação já que viciado de ilegalidade.

Além da controvérsia quanto à terminologia, há divergências em relação aos elementos em si, de acordo com o critério a ser adotado por cada doutrinador. Neste trabalho segue-se parcela da doutrina que adota os elementos mencionados na lei de Ação Popular (Lei nº 4.717/65) como provocadores, quando ausentes, da invalidação do ato. Transcreve-se o citado dispositivo legal (BRASIL, 1965, não paginado) para melhor demonstrar a posição adotada:

Art.2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:

a. Incompetência;

b. Vício de forma;

c. Ilegalidade do objeto;

d. Inexistência dos motivos;

e. Desvio de finalidade. (grifo nosso)

Pois bem, sem mais delongas, passa-se a uma rápida explanação sobre cada um dos elementos:

a) Competência: é a delimitação legal da legitimidade conferida ao agente para a prática do ato visando à satisfação de interesse público específico.  Di Pietro (2008, p. 191) considera ser mais adequada a menção ao sujeito, “já que a competência é apenas um dos atributos a que ele deve ter para validade do ato; além de competente, deve ser capaz, nos termos do Código Civil”;

b) Finalidade: é o resultado que a Administração busca com a prática do ato. Segundo Meirelles (2007, p. 153):

A finalidade do ato administrativo é aquela a que a lei indica explícita ou implicitamente. Não cabe ao administrador escolher outra, ou substituir a indicada na norma administrativa, ainda que ambas colimem fins públicos. Neste particular, nada resta ao administrador, que fica vinculado integralmente à vontade legislativa.

Carvalho Filho (2008, p. 115) afirma que a “finalidade é o elemento pelo qual todo ato administrativo deve estar dirigido ao interesse público”. Interessante citar que parte da doutrina elenca dois sentidos para o elemento finalidade a exemplo de Di Pietro (2008, p. 198-199):

Pode-se falar em fim ou finalidade em dois sentidos diferentes:

Em sentido amplo, a finalidade sempre corresponde à consecução de um resultado de interesse público; nesse sentido, se diz que o ato administrativo tem que ter sempre finalidade pública;

Em sentido estrito, finalidade é o resultado específico que cada ato deve produzir, conforme definido na lei; nesse sentido, se diz que a finalidade do ato administrativo é sempre a que decorre explícita ou implicitamente da lei (grifo nosso).

Assim, analisando estes conceitos, chega-se facilmente à conclusão que todo e qualquer ato não pode contrariar o interesse público específico delimitado pela norma jurídica para cada caso concreto. Portanto, haverá desvio de finalidade, tanto ao agir-se por interesse alheio ao da coletividade quanto no atendimento de fim público distinto daquele delimitado pela norma em situação específica. Para tornar mais claro, usa-se o seguinte exemplo: A norma “A” visa ao atendimento de interesse “X” e a norma “B” regula o fim “Y”. Haverá desvio de finalidade, no exemplo, quando o administrador age por interesse particular e quando, competente para agir nos termos da norma “A” satisfaz o interesse “Y”, estranho àquele caso estipulado pela norma “A”. 

c) Forma: trata-se do meio de exteriorização do ato administrativo. Assim, não há ato sem forma já que não há como o Direito regular as intenções do administrador, é imprescindível a exteriorização ou revelação do ato por alguma forma. Valem citar os ensinamentos valiosos de Di Pietro (2008, p. 196):

Encontram-se na doutrina duas concepções da forma como elemento do ato administrativo:

Na concepção restrita, que considera forma como a exteriorização do ato, ou seja, o modo pelo qual a declaração se exterioriza; nesse sentido, fala-se que o ato pode ter a forma escrita ou verbal, de decreto, portaria, resolução etc.;

Na concepção ampla, que inclui no conceito de forma, não só a exteriorização do ato, mas também todas as formalidades que devem ser observadas durante o processo de formação da vontade da Administração, e até os requisitos concernentes à publicidade do ato. (grifo nosso)

“Não se deve confundir forma, na acepção enunciada, com formalização, que é um modo específico de apresentação da forma, ou seja, uma dada solenização requerida para o ato” (MELLO, 2009, p. 389).

d) Motivo: é o pressuposto de fato e de direito que fundamenta o ato administrativo. Mello (2009, p. 392) considera motivo como somente pressuposto de fato, distinguindo-o do motivo legal:

Cumpre distinguir motivo do ato de motivo legal. Enquanto este último é a previsão abstrata de uma situação fática, empírica, o motivo do ato é a própria situação material, empírica, que efetivamente serviu de suporte real e objetivo para a prática do ato. É evidente que o ato será viciado toda vez que o motivo de fato for descoincidente com o motivo legal.

Além disso, é importante não confundir-se motivo e motivação. “Motivação é a exposição dos motivos, ou seja, é a demonstração, por escrito, de que os pressupostos de fato realmente existiram” (DI PIETRO, 2008, p.199).

e) Objeto: é o conteúdo do ato administrativo. Trata-se da “alteração no mundo jurídico que o ato administrativo se propõe a processar” (CARVALHO FILHO, 2008, p.105).

1.5. Mérito do Ato Administrativo

Após estas rápidas pinceladas nos elementos do ato segue-se com algumas salutares observações quanto ao mérito do ato administrativo já que se trata de um dos pontos fundamentais da análise da interferência do Judiciário no controle da discricionariedade. De início vale esclarecer que não se trata de elemento do ato apesar de sua estreita relação com o motivo e o objeto, estando presente apenas nos chamados “atos discricionários”.

Do exposto, conceitua-se o mérito como “a avaliação da conveniência e da oportunidade relativas ao motivo e ao objeto, inspiradoras da prática do ato discricionário” (CARVALHO FILHO, 2008, p. 119). Vale citar também, por sua completude, o conceito de Mello (2007, p. 38):

Mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista, o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada.

Reside, portanto, nesta figura, o papel político do administrador, e chega-se inafastável conclusão de que não cabe ao Judiciário substituir o administrador no trato do mérito. Aqui se situa o cerne deste trabalho, a saber: a delimitação dos limites da discricionariedade administrativa. Não se veda, contudo, vale enfatizar com veemência, a análise, por parte do magistrado, do respeito ao ordenamento jurídico nesta avaliação de conveniência e oportunidade. Paulo e Alexandrino (2009, p. 447) esclarecem este assunto:

Quando se diz que o mérito administrativo não está sujeito ao controle judicial – e tal asserção está correta –, deve-se bem entender essa afirmação: controle de mérito é sempre controle de oportunidade e conveniência; portanto, controle de mérito resulta na revogação ou não do ato, nunca em sua anulação; o Poder Judiciário, no exercício de função jurisdicional, não revoga atos administrativos, somente os anula se houve ilegalidade ou ilegitimidade.

1.6. Imprecisões Terminológicas

Antes de adentrar-se no tema do trabalho, importante esclarecer algumas imprecisões terminológicas, mas de uso corrente na doutrina. Além disso, estas elucidações favorecerão o melhor entendimento do “fenômeno” discricionariedade. Pois bem, nota-se nas classificações de atos administrativos, a distinção entre atos vinculados, como sendo aqueles em que o gestor possui certa margem de liberdade ao apreciar o mérito e atos discricionários denotando aqueles em que o administrador estaria preso, em todos os elementos componentes do ato, aos ditames legais.

Na verdade, não é o ato que é discricionário, mas sim a competência garantida ao administrador para apreciar alguns elementos deste ato. Mello (2007, p. 18), nunca assaz citado, enfrenta o problema:

Aliás, cabe aqui observar que embora seja comum falar-se em ‘ato discricionário’, a expressão deve ser recebida apenas como uma maneira elíptica de dizer ‘ato praticado no exercício de apreciação discricionária em relação a algum ou alguns dos aspectos que o condicionam ou que o compõem’’. Com efeito, o que é discricionária é a competência do agente quando ao aspecto ou aspectos tais ou quais, conforme se viu. O ato será apenas o produto do exercício dela. Então, a discrição não está no ato, não é qualidade dele; logo, não é ele que é discricionário, embora seja nele (ou em sua omissão) que ela haverá de se revelar. (grifo nosso)

Ataca-se agora a famosa expressão poder discricionário. O administrador é verdadeiro gestor dos interesses públicos e suas prerrogativas, inclusive a discricionariedade, não podem ser afastadas da ideia de função. O vocábulo “poder” é mais adequado para caracterizar a propriedade sobre algo, o que traria a inaceitável conclusão de que o exercício das funções do administrador ficaria ao seu alvedrio.

A Administração Pública tem o dever de agir e os chamados “poderes” seriam instrumentos direcionados à satisfação do interesse público. São importantes, assim, essas ressalvas quanto ao uso da expressão poder.. Representaria na realidade um dever-poder.

Portanto, não só a abordagem do presente trabalho, mas também o Direito Público, o que inclui a seara administrativa, devem ter seus institutos entendidos à luz de dever, de finalidade a ser cumprida, de uma função. Mello (2007, p. 15) mais uma vez confirma o exposto:

Tomando-se consciência deste fato, deste caráter funcional da atividade administrativa, desta necessária submissão da administração à lei, percebe-se que o chamado poder discricionário tem que ser simplesmente o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal. Só assim poderá ser corretamente entendido e dimensionado, compreendendo-se, então, que o que há é um dever discricionário, antes que um ‘poder’ discricionário.

1.7. Noções Iniciais sobre a Discricionariedade

Após o clarear destas questões iniciais mergulha-se no estudo da discricionariedade administrativa propriamente dita. Para nortear a discussão do tema cita-se passagem lapidar de Pereira apud Mello (2009, p. 952): “O poder discricionário não resulta da ausência de regulamentação legal de certa matéria, mas sim de uma forma possível da sua regulamentação”.

a. Fundamentos

A doutrina tem apontado diferentes fundamentos para a existência, no ordenamento jurídico, da figura da discricionariedade. Segundo Mello (2009, p. 955-958) o “deliberado intento legal de conferir à Administração certa liberdade para se decidir no caso concreto” (MELLO, 2009, p. 955). O administrador está mais próximo do caso concreto que o legislador, logo possuiria melhores condições, segundo alguns acreditam, de avaliar as várias nuances existentes em cada caso particular, o que garantiria o melhor atendimento das finalidades legais.

Pela própria limitação da mente humana, haveria impossibilidade material de o legislador regular todas as situações possíveis para cada caso. Haveria, portanto, que se adotarem fórmulas abrangentes a serem complementadas com o exercício da competência discricionária pelo administrador. O próprio Mello (2009, p. 954) enfatiza esta situação:

Em suma, está-se aqui a dizer que a discricionariedade é pura e simplesmente o fruto da finitude , isto é, da limitação da mente humana. Á inteligência dos homens falece o poder de identificar sempre, em toda e qualquer situação, de maneira segura, objetiva e inobjetável, a medida idônea para preencher de modo ótimo o escopo legal.

Acreditam outros que a figura em apreço teria como fundamento a inviabilidade jurídica, já que negar parcela de “liberdade” ao administrador em suas funções seria ir contra a lógica da Separação dos Poderes, e em última análise ao Estado de Direito. Se não bastassem estes argumentos, estaria sendo deixada de lado importante peculiaridade da lei: a abstração. Invoca-se a pena de Queiró apud Mello (2009, p. 955):

Encarece o Prof. Queiró a inviabilidade jurídica, em regime de Poder tripartido, da supressão da discricionariedade, pois para evitá-la, o legislador teria que se despedir da abstração própria da leis, invadindo o campo da individualização, que lhe é defeso, por ser área administrativa.

E por último, afirmar-se que importante fundamento para a discricionariedade seria a impossibilidade lógica de sua inexistência. Na lei utilizam-se conceitos mais rígidos baseados nas ciências e outros mais flexíveis fundados no mundo prático e na cultura. Estes são plurissignificativos, ao contrário daqueles. Dessa forma, como a lei não poderia esquivar-se do uso destas duas categorias, sempre existiriam conceitos fluidos ou imprecisos. Seriam os chamados conceitos jurídicos indeterminados (a serem tratados em tópico específico deste trabalho). Assim, sempre haveria necessidade de a Administração delimitar estes conceitos por meio da discricionariedade.

b) Conceitos jurídicos indeterminados

“A teoria dos conceitos jurídicos indeterminados surgiu na Alemanha, por ocasião da publicação das monografias de Bernatzik, em 1886, e Tezner, em 1888” (CHAIB, 2008, p. 38).

O estudo deste tema centra-se na questão da linguagem e mais precisamente na imprecisão natural de algumas palavras, gerando dúvidas quanto à aplicação destas. Esta incerteza exposta gera a proximidade do presente tema com a discricionariedade, havendo polêmica quanto à inclusão ou não do desvendamento destes conceitos na esfera de discricionariedade do administrador. Convém transcrever trecho em que Di Pietro (2008, p. 204) sintetiza essa problemática:

No que diz respeito aos conceitos jurídicos indeterminados, ainda há muita polêmica, podendo-se falar de duas grandes correntes: a dos que entendem que eles não conferem discricionariedade à Administração, porque, diante deles, a Administração tem que fazer um trabalho de interpretação que leve à única solução válida possível; e a dos que entendem que eles podem conferir discricionariedade à Administração, desde que se trate de conceitos de valor, que impliquem a possibilidade de apreciação do interesse público, em cada caso concreto, afastada a discricionariedade diante de certos conceitos de experiência ou de conceitos técnicos, que não admitem soluções alternativas.

Haja vista a importância do tema passa-se a análise mais detalhada destas duas correntes citadas pela sábia autora. Antes de iniciar a explanação, ressalta-se que o cerne da discussão acerca da teoria está na separação entre o que é exercício da discricionariedade e o que é atividade interpretativa. Segue-se o estudo das correntes teóricas.

“No berço originário desses estudos – Alemanha – o primeiro entendimento caminhou no sentido de identificar conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade” (CHAIB, 2008, p. 47). Foi, entretanto, no Direito Espanhol, segundo Chaib (2008, p.100), mais precisamente com as lições de Enterria, que houve a separação entre discricionariedade e indeterminação conceitual.

Para Garcia de Enterria, a aplicação dos conceitos indeterminados não é um processo volitivo de discricionariedade, mas de aplicação e interpretação da lei. Eles não admitem mais de uma solução: o conceito se dá ou não se dá; ou há boa-fé ou não há boa-fé. Tertium non datur, podendo o Judiciário averiguar da exata aplicação dos conceitos pela Administração.

Para esta teoria, a análise dos conceitos indeterminados (imprecisos ou fluidos) seria uma mera atividade administrativa interpretativa do alcance das disposições legais e então por se tratar de intelecção da mens legis (e, portanto, questão de legalidade) poderia ser livremente apreciada pelo Poder Judiciário.

Queiró apud Chaib (2008, p. 49) posicionou-se de forma distinta. Para ele, na lei há uma enumeração de condições fáticas nas quais a Administração baseia suas ações. “Os fatos, entretanto, que serão qualificados pela norma e cuja existência deve ser tomada pelo órgão, podem pertencer ao mundo da natureza ou da cultura”. No primeiro caso estar-se-ia diante dos conceitos teoréticos que seriam unissignificativos e objetivos dando margem a apenas uma formatação. Já aqueles fatos relacionados à cultura, de cunho eminentemente axiológico, por serem plurissignificativos abririam margem à discricionariedade, constituindo os chamados conceitos não teoréticos.

No Direito Brasileiro, cumpre analisar a posição intermediária entre as anteriores (e considerada a posição moderna) do prof. Mello (2007). O autor trata de rebater , em sua teoria, os argumentos de Enterria quanto à separação entre o caráter intelectivo dos conceitos fluidos e o caráter volitivo da discricionariedade.

Para o brasileiro “não é aceitável a tese de que o tema dos conceitos legais fluidos é estranho ao tema da discricionariedade” (2007, p.23). Pouco importaria denominar a operação mental de volitiva ou intelectiva, afirma o prof., se ao fim os efeitos jurídicos seriam os mesmos, já que ambos (indeterminação de conceitos e discricionariedade) estariam, até certos limites, na esfera de “liberdade” desfrutada pela Administração. Daí se nota impossibilidade de uma total separação dos temas. Pelo contrário; a discricionariedade poderia estar presente na própria delimitação do conceito.

Ora, se tal ‘liberdade administrativa’ e conseqüentes ‘limites’ à correção judicial, tanto como ‘ausência de direito de terceiros’ ante a Administração, resultam quer do uso legal de conceitos vagos, quer da possibilidade de opções de mérito ensejadas pela lei, quer da concorrência destes fatores, está-se a ver que a ressonância jurídica de ambos (conceitos indeterminados e opções de mérito legalmente previstas) é perfeitamente igual na esfera do Direito.

Contudo, mesmo com a aproximação exposta, para o administrativista brasileiro, nem sempre a existência de conceitos imprecisos resultaria no uso da competência discricionária. Haveria as zonas de certeza e incerteza na aplicação dos conceitos indeterminados. O próprio Mello (2007, p. 29) analisa o tema:

Deveras, a palavra é um signo, e um signo supõe um significado. Se não houvesse significado algum recognoscível, não haveria palavra, haveria um ruído. Logo, tem-se que aceitar, por irrefragável imposição lógica, que, mesmo que vagos fluidos ou imprecisos, os conceitos utilizados no pressuposto da norma (na situação fática por ela descrita, isto é, no ‘motivo legal’) ou na finalidade, têm algum conteúdo mínimo indiscutível. De qualquer deles se pode dizer que compreendem uma zona de certeza positiva, dentro da qual ninguém duvidaria do cabimento da aplicação da palavra que os designa e uma zona de certeza negativa em que seria certo que por ela não estaria abrangida. As dúvidas só têm cabida no intervalo entre ambas. (grifo do autor)

Assim, somente na zona de incerteza ou penumbra, caberia o exercício da competência discricionária. Nos casos de certeza positiva ou negativa não haveria opção de escolha ao administrador, já que, no caso concreto, saltaria aos olhos, por exemplo, discutir o “notável saber jurídico” de um indivíduo com currículo e experiência profissional semelhantes aos do Ministro Gilmar Mendes ou então, seria até hilário, debater acerca da “urgência” de aquisição de copos de cafezinho a uma repartição pública.

Segue-se neste trabalho, por sua postura mais voltada às verdadeiras finalidades da discricionariedade, a moderna posição adotada por Mello. Não se deve, por fim, olvidar que os conceitos indeterminados “antes de serem originadores, são limitadores da discricionariedade, por possuírem campo de significação (CHAIB, 2008, p.59)”.

2. Surgimento da discricionariedade

Depois de elucidados os fundamentos, analisa-se quando o administrador poderia valer-se da competência discricionária. Paulo e Alexandrino (2009, p. 413-414) bem delimitam o assunto de acordo com a visão da doutrina dominante, entendendo que quando a lei expressamente dá à administração liberdade para atuar dentro de limites bem definidos; são hipóteses em que a própria norma legal explicita, por exemplo, que a administração ‘poderá’ prorrogar determinado prazo por até ‘quinze dias’, ou que é facultado à administração, ‘a seu critério’, conceder ou não uma determinada autorização […] e assim por diante;

Quando a lei emprega conceitos jurídicos indeterminados na descrição do motivo determinante da prática de um ato administrativo e, no caso concreto, administração se depara com uma situação em que não existe possibilidade de afirmar, com certeza, se o fato está ou não abrangido pelo conteúdo da norma.

Pela leitura do trecho acima, observa-se que a discricionariedade pode surgir quando a norma faculta ao administrador decidir sobre alguns aspectos do ato. Essa faculdade pode englobar a possibilidade de agir ou não, o momento da prática do ato, a escolha das formas de exteriorização do mesmo, além da eleição, entre as opções dadas pela norma, daquela mais adequada ao caso concreto.

A discricionariedade também pode surgir, numa análise mais específica em relação ao que foi exposto pelos doutrinadores acima, quando “a legislação é clara ao determinar que o conteúdo do ato a ser praticado será definido em função do juízo de conveniência do administrador” (FURTADO, 2007,p. 638). Um exemplo deste último caso seria o art. 37, II, no qual é prevista a livre nomeação e exoneração de ocupantes de cargos em comissão.

No que tange aos conceitos jurídicos indeterminados, não há praticamente nada mais relevante a ser enfatizado já que o assunto foi bastante debatido em tópico anterior. Basta relembrar a questão das zonas de certeza e incerteza: nas primeiras haveria vinculação e na segunda (a zona de penumbra) existiria a possibilidade do exercício da competência discricionária.

Após elencados os momentos em que surge a possibilidade do exercício da discricionariedade, parte-se para uma questão importante: a distinção entre discrição na norma e discrição no caso concreto. Pois bem, em muitas situações, pode ocorrer o chamado “afunilamento” da discricionariedade, ou em termos mais claros, a “liberdade” conferida pela norma legal ao administrador pode ser reduzida ou esvair-se pela análise do caso concreto “vinculando” a prática do ato. Mello (2009, p.  978) expõe um exemplo que elimina qualquer dúvida acerca do tema:

Veja-se: a lei, admitir, no caso de infrações a regras de trânsito, aplicação de sanções tais como advertência, multa, suspensão do exercício da atividade, e cancelamento da licença para dirigir, sem especificar com exata precisão quais delas aplicar-se-ão a tais ou quais comportamentos infracionais, à toda evidência o administrador não poderia aplicar esta última, a mais grave delas, a um motorista que, permanecendo na direção do veículo, houvesse estacionado em local proibido. E, se estivesse apenas tentando manobrar para efetuar dito estacionamento, é óbvio que mais não caberia senão uma simples advertência. Finalmente, se o ato de estacionar houvesse se efetuado para recolher pessoa que acabara de se acidentar no local e que demandava cuidados para seu transporte, nenhuma sanção poderia ser aplicada.

O que se vem de dizer deixa claro que, no primeiro exemplo, o administrador não teria discricionariedade para aplicar a sanção nele cogitada; de que, no segundo, estaria “vinculado” a fazer uma simples advertência e, no terceiro, “vinculado” a abster-se de produzir qualquer ato sancionatório (MELLO, 2009, p. 978-979).

Dessa forma, o magistrado deve estar atento quando analisar os chamados (impropriamente) atos discricionários, já que muitas vezes a norma que faculta o exercício desta competência pode ter sua aplicação profundamente alterada pelo caso concreto. Nessa seara, a motivação do ato se mostra como fator primordial ao devido exame da situação submetida à análise pelo Judiciário.

Portanto, vale enfatizar mais uma vez, a “admissão de discricionariedade no plano da norma é condição necessária, mas não suficiente para que ocorra in concreto” (MELLO, 2007, p. 37). Raciocínio semelhante, é bom lembrar, foi utilizado na análise dos conceitos fluidos; estes tinham seu âmbito de aplicação limitado quando o caso concreto estivesse incluso nas zonas de certeza da expressão imprecisa.

A) Conceito

Invoca-se o conceito de Mello (2007, p. 48), no sentido de que discricionariedade, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante o caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.

Destaca-se a menção à finalidade legal, limitadora do exercício dessa “liberdade”. A discricionariedade surge pela lei e para otimizar sua aplicação e o atendimento dos interesses públicos nela previstos;

Também destaca-se a importância da análise do caso concreto, evitando-se aberrações mascaradas por uma liberdade que só existe no plano normativo. Em alguns casos, como já foi elucidado, há um verdadeiro “afunilamento” da discrição da norma em sua aplicação in concreto;

A inclusão dos conceitos jurídicos indeterminados, afastando a corrente doutrinária que negava seu elo com a discricionariedade, mas sem descuidar, novamente, da análise do caso concreto;

Por fim, há menção à razoabilidade, como critério a ser observado em toda essa análise e que será o centro do próximo tópico do presente artigo. A razoabilidade é um critério delimitador da discricionariedade. Tal princípio também serve como norte ao controle, pelo Judiciário, dos atos administrativos praticados no exercício da competência discricionária. Contudo, importantes estudiosos do tema utilizam outros princípios e teorias com a mesma função e eficácia, o que torna imprescindível uma análise mais detida acerca destes.

B) Limites à discricionariedade

Serão analisadas algumas teorias já consagradas na doutrina, mas que não perdem seu importante papel no controle aos limites da discricionariedade. Soma-se a elas a abordagem de alguns princípios fundamentais neste papel de barrar o arbítrio do administrador. Importante ressaltar que os mecanismos de controle do Judiciário não se esgotam nestes expostos no presente trabalho e os mesmos devem ser usados em conjunto para fortalecer o ataque às possíveis lesões à coletividade advindas do uso inadequado da competência legal discricionária.

Teoria do desvio de poder

Como o exercício da discricionariedade consiste numa competência concedida ao administrador, nada mais natural que iniciar o debate acerca dos limites deste instituto por esta consagrada teoria. Por se referir a qualquer modalidade de ato administrativo, o tema é totalmente aplicável aos atos discricionários.

Segundo sua conceituação clássica, desvio do poder é o manejo de uma competência em descompasso com a finalidade em vista da qual foi instituída (MELLO, 2009, p. 970).

Pelo uso desta teoria, cuja construção se deve bastante à ação do Conselho de Estado Francês, o Judiciário é capaz de controlar a legitimidade conferida ao administrador. De acordo com Mello (2009, p. 401) o desvio poderia surgir em duas hipóteses.

Primeiro quando o agente busca uma finalidade alheia ao interesse público. Isto sucede ao pretender usar de seus poderes para prejudicar um inimigo ou para beneficiar a si próprio ou amigo;

Segundo quando o agente busca uma finalidade – ainda que de interesse público – alheia à categoria do ato que utilizou.

À vista do que foi citado percebe-se que o vício ensejador da aplicação desta teoria é de cunho objetivo, ou seja, apesar de a intenção do administrador ser capaz de revelar o vício, basta a simples desatenção à finalidade legal para configurar agressão ao interesse público, mesmo que o sujeito não tenha pretendido dele se afastar. Destarte, “o que faz com que o ato seja juridicamente inidôneo é a circunstância de se encontrar em desacordo com o exigido pela regra que o presidia” (MELLO, 2009, p. 970). A intenção do administrador, vale repisar, é irrelevante, já que se busca apenas a “boa administração”, consistindo, a análise do vício, um julgamento objetivo.

Exemplo clássico de desvio de poder é o caso de remoção de servidor público com finalidade punitiva. Por mais grave que seja a conduta daquele que exerce cargo público, este nunca poderá ser removido como forma de penalidade, haja vista tal ato não se constituir medida de punição na forma da lei.

Meirelles (2007, p. 113), analisando a teoria em questão, observa que o ato praticado com desvio de poder, muitas vezes “ou é consumado às escondidas ou se apresenta disfarçado sob o capuz da ilegalidade e do interesse público”, o que leva a necessidade de seguir como “elementos indiciários do desvio […], a falta de motivo ou a discordância dos motivos com o ato praticado”.

Caberia, portanto, ao Judiciário  anular atos viciados por desvio de poder, já que é notória a ilegalidade destas hipóteses.

Teoria dos motivos determinantes

Esta importante teoria, com bases assentadas no Direito francês, aplicada aos atos administrativos em geral, mas de maior relevância na análise dos atos discricionários, “baseia-se no princípio de que o motivo do ato deve sempre guardar compatibilidade com a situação de fato que gerou a manifestação da vontade”. (CARVALHO FILHO, 2008, p. 113).

O estudo desta teoria centra-se na figura da motivação como “elemento vinculante da Administração aos motivos declarados como determinantes do ato (MEIRELLES, 2007, p. 199)”. A motivação, princípio expresso na lei federal no 9.784/99, é inseparável da essência do Estado de Direito já que funciona como ferramenta indispensável ao controle dos atos administrativos pelo Judiciário.

Passando mais especificamente aos atos praticados no exercício da competência discricionária aplica-se a teoria em questão: quando o administrador se vale desta prerrogativa concedida pela lei, mesmo que não seja obrigatória a motivação, caso esta seja expressa, possuirá caráter vinculante. Destarte, se o gestor público afasta-se dos motivos expressos que fundaram a prática do ato, incorre em ilegalidade de acordo com esta teoria. Cita-se exemplo esclarecedor do prof. Carvalho Filho (2007, p.113) para finalizar o entendimento do assunto:

“[…] se um servidor requer suas férias para determinado mês, pode o chefe da repartição indeferi-las sem deixar expresso no ato o motivo; se, todavia, indefere o pedido sob a alegação de que há falta de pessoal na repartição, e o interessado prova que, ao contrário, há excesso, o ato estará viciado no motivo. Vale dizer: terá havido incompatibilidade entre o motivo expresso no ato e a realidade fática; esta não se coaduna com o motivo determinante.” CARVALHO FILHO, José dos Santos (2007, p.113).

Abordagem à luz dos princípios

No Estado Constitucional moderno os princípios deixam de ser simples instrumentos de integração de lacunas do ordenamento jurídico, a exemplo do que prevê o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, para ocuparem lugar de vigas mestras de todo o sistema, orientando a elaboração, interpretação e aplicação da legislação.

Para a melhor doutrina, os princípios e as regras são espécies do gênero norma. Mais próximos da ideia de Direito, os princípios possuem uma abrangência maior que as regras, além de serem orientadores da elaboração destas (função normogenética dos princípios). Apesar de um maior grau de abstração, atualmente é indiscutível a força normativa e aplicação imediata dos princípios. Se não bastasse isso, “com o pós-positivismo, dominante no constitucionalismo deste final de século XX, reconhece-se além da normatividade dos princípios, a hegemonia normativa dos princípios em relação às regras (MORAES, 1999, p.20)”. Essa evolução na idéia de superioridade e normatividade dos princípios deve-se muito às teorias de Dworkin e Alexy.

Encerra-se este intróito com o sempre citado conceito de princípio à luz da doutrina de Mello que põe fim a qualquer dúvida acerca da superioridade e importância desta espécie normativa:

Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentindo harmônico. Eis porque: violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. (grifo nosso)

Princípio da legalidade

Firmadas as bases da importância dos princípios, adentra-se no estudo de um dos alicerces do Direito Administrativo: a legalidade. A história deste mandamento de otimização confunde-se com o próprio surgimento do Direito Administrativo. O império da lei, como reação ao poder desmedido dos monarcas absolutistas, teve em Rousseau e Montesquieu a sustentação teórica necessária ao seu fortalecimento. Rousseau baseou-se na idéia de contrato social legitimando o poder dos governantes que se sujeitavam às leis por eles elaboradas.

Já Montesquieu fundava sua teoria na liberdade política traduzida no direito de fazer o que a lei permitia. Teve também relevante contribuição na delimitação e controle mútuo dos três poderes do Estado; deste postulado é que se extraiu a essência do controle judicial da Administração Pública. Pela clareza e poder de síntese transcreve-se passagem da obra de Moraes (1999, p. 23) que traça a evolução do princípio em discussão:

O princípio da legalidade, não obstante seu papel fundamental de contentor do absolutismo monárquico, não se mostrou por si só suficiente para deter ou prevenir os abusos da Administração no Estado Social, nem se revelou apto, como de fato não o poderia, concebido que foi com o fim de fortificar os Parlamentos, para conter os excessos dos legisladores.[…]. Ao ordenar ou regular os desempenhos funcionais do Poder Legislativo, assume o princípio da legalidade […], a conotação de legalidade constitucional, com a superação pelo princípio da constitucionalidade. Ao ordenar ou regular a atuação administrativa, a legalidade não mais guarda total identidade com Direito, pois este passa a abranger, além das leis – das regras jurídicas, os princípios gerais de Direito, de modo que a atuação do Poder Executivo deve conformidade não mais apenas à lei, mas ao Direito, decomposto em regras e princípios jurídicos, com a superação do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade. (grifo nossos)

A citada doutrinadora, seguindo a tradicional divisão das normas em regras e princípios, faz a separação entre juridicidade como respeito aos princípios e a legalidade significando a sujeição às regras. Apesar da divisão, é bom atentar, ambas as concepções devem ser orientadoras da atuação do administrador.

Dando uma conotação mais ampla ao princípio da legalidade, Carvalho (2008, p. 53), após fazer um apanhado da evolução do princípio da legalidade, ao invés de diferenciá-lo da juridicidade, acaba englobando-o nesta última. Nas palavras da própria autora:

Destarte, atualmente quando se fala que, segundo o princípio da legalidade, o administrador público somente pode agir se a lei expressamente o autoriza, entenda-se lei como toda norma jurídica, princípios constitucionais explícitos ou implícitos, princípios gerais de direito, regras legais, normas administrativas (decretos, portarias, instruções normativas, etc.) (grifo nosso)

Desta feita, o administrador e o exercício da discricionariedade estão limitados a todo este bloco de legalidade devendo respeito aos princípios e às leis em sentido estrito. Em melhores termos, a Administração Pública no exercício de suas funções de atendimento ao bem comum deve obediência a todo o ordenamento jurídico.

Princípio da proporcionalidade

Apesar de a juridicidade abarcar o respeito a todos os princípios é relevante uma abordagem específica sobre estes próximos mecanismos de controle da discricionariedade por sua consagração a nível doutrinário. Além do mais, nunca será excessiva qualquer fundamentação que moderada e sabiamente sirvam para garantir o bom cumprimento das finalidades públicas.

Inicia-se com o princípio da proporcionalidade. Cumpre observar antes de tudo que “a idéia de proporção confunde-se com o próprio Direito, representada pelo símbolo da balança de Thémis que invoca o equilíbrio” (CHAIB, 2008, p. 60). Contudo, como princípio tem sua origem na busca da harmonia entre as prerrogativas governamentais e os direitos dos cidadãos, daí o fato de inicialmente, no Direito Administrativo, ter sido bastante aplicado na esfera da discricionariedade das medidas de polícia. Posteriormente, graças à contribuição do Direito Alemão e sua aplicação na solução de colisões entre direitos fundamentais, evoluiu ao patamar de princípio geral de Direito.

Sem mais elucubrações adentra-se no âmbito de sua aplicação no contexto da discricionariedade. Sabe-se que o administrador não pode desvincular-se dos motivos, meio e fins na prática de qualquer ato administrativo. Pois é justamente nesta relação que irá aflorar a aplicabilidade da proporcionalidade.

Quando se falou do motivo do ato administrativo viu-se que corresponde aos pressupostos fáticos e legais a serem ponderados pelo gestor público quando da prática de todo ato. A partir destes pressupostos, então, o administrador irá elencar os meios indispensáveis ao alcance dos fins legais. Eis aqui a relação entre motivo, meio e fim. Esta relação deve ser regida pelos três subprincípios da proporcionalidade a seguir analisados e que devem ser aplicados sucessivamente:

Subprincípio da adequação: aqui se averigua a aptidão dos meios disponibilizados pela lei para alcançar determinada finalidade pública;

Subprincípio da necessidade ou exigibilidade: verificados quais meios são capazes de satisfazer o fim pretendido, busca-se aqueles que menos invadam a esfera jurídica do cidadão. Para facilitar a aplicação prática do que aqui se expõe, Canotilho (2003, p. 270) faz uma divisão útil:

Dada a natural relatividade do princípio, a doutrina tenta acrescentar outros elementos conducentes a uma maior operacionalidade prática: a) a exigibilidade material, pois o meio deve ser o mais poupado possível quanto à limitação dos direitos fundamentais; b) a exigibilidade espacial aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção; c) a exigibilidade temporal pressupõe a rigorosa delimitação no tempo da medida coativa do poder público; d) a exigibilidade pessoal significa que a medida se deve limitar à pessoa ou pessoas cujos interesses devem ser sacrificados.

Subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito: “trata-se, pois, de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim (CANOTILHO, 2003, p.270)”. Verifica-se, assim, após a verificação da adequação e da necessidade, se o benefício do fim perseguido compensa o sacrifício imposto pelos meios utilizados.

Dá-se agora um foco maior ao tópico da proporcionalidade em sentido estrito onde se mensuram benefícios e sacrifícios de determinados bens jurídicos. Aqui haverá a chamada colisão de princípios a ser solucionada pela técnica da ponderação estabelecida por Alexy. Chaib traz à baila um método, dividido em três fases, proposto por Santiago, para facilitar o uso da ponderação:

“[…] a primeira trataria de identificar os princípios, bens ou interesses em conflito; a segunda residiria em atribuir o correspondente peso ou importância a cada um deles, de acordo com as circunstâncias do caso concreto; e por fim, a decisão sobre a prevalência de um sobre o outro, fundamentada nos seguintes termos: quanto maior seja o grau de prejuízo do princípio que retrocede, maior deve ser a importância daquele que prevalece no caso determinado”. (CHAIB, 2008, p.103) (grifo nosso)

Após tudo que foi exposto, faz-se uma síntese do percurso da análise à luz da proporcionalidade, a ser feita pelo magistrado, buscando a verificação do respeito ao ordenamento jurídico e às finalidades públicas do ato avaliado pelo Judiciário. Deve existir o motivo: situação fática aliada à sua previsão legal (lembrar da discricionariedade na norma e seu afunilamento no caso concreto). Em seguida, comprovados os pressupostos que ensejam à prática do ato, elege-se o meio adequado e necessário. E por fim, aplica-se a ponderação em suas três etapas: identificação dos interesses em jogo, delimitando-se a importância de cada um para então escolher aquele que deve prevalecer.

Para encerrar, vale observar que, no controle judiciário da discricionariedade, o princípio da proporcionalidade revela-se útil principalmente no âmbito da aplicação dos conceitos indeterminados que passam a ser mais bem definidos no caso concreto. Chaib (2008, p. 94) elenca algumas situações que não seriam bem solucionadas com critérios tradicionais de busca dos vícios nos atos administrativos:

Situações como interdições de estabelecimentos, quando bastaria uma medida menos restritiva e o interesse público restaria resguardado; desnecessidade de expropriação, quando fosse prestante a servidão administrativa; a ultrapassagem da velocidade limite, quando se encontra no interior do veículo uma passageira grávida.

Princípios da realidade e razoabilidade

Finaliza-se esta abordagem principiológica com rápidos apontamentos acerca de interessante método de controle da discricionariedade proposto por Moreira Neto. O doutrinador, a partir de elementos do ato administrativo (motivo e objeto), reafirma a importância do respeito, por parte do mérito, em suas dimensões de conveniência e oportunidade, aos limites da lei. Com o controle judiciário dos atos administrativos discricionários não se objetivaria, segundo ele, demonstrar qual a opção ideal ao administrador, pois caso assim fosse, estaria havendo usurpação de funções pelo juiz. Estar-se-ia buscando, apenas identificar aqueles atos que extravasassem as rédeas legais, anulando-os.

Invoca para esta missão de auxiliar o magistrado no controle da discricionariedade, os princípios técnicos da realidade e razoabilidade que serviriam de limites, “tanto de oportunidade, relativos à valoração administrativa do motivo, quanto de conveniência, relativos à escolha do objeto (MORAES, 1999, p. 52)”.

No que tange ao princípio da realidade, Moreira Neto (1998, p. 53) traz claras lições:

O entendimento do princípio da realidade parte de consideração bem simples: o direito volta-se à disciplina da convivência real entre os homens e todos os seus atos partem do pressuposto de que os fatos que sustentam suas normas e demarcam seus objetivos são verdadeiros.

Nota-se, portanto, à luz do princípio da realidade, que a inveracidade e a impossibilidade são limites à discricionariedade, na medida em que não se podem acatar atos fundados em fatos inexistentes, imprecisos ou de realização inalcançável. Aqui se poderia imaginar uma junção com a teoria dos motivos determinantes e com a discricionariedade no caso concreto, exposta por Mello a fim de anular atos com motivo viciado. Os pressupostos fáticos devem ser realmente fiéis aos pressupostos legais e não uma mera ficção, pois o cumprimento da finalidade legal exige respeito ao que realmente ocorreu no caso concreto.

Pondo fim aos mecanismos de controle elaborados pelo citado estudioso, analisa-se o princípio da razoabilidade que no Direito tem sua origem na jurisprudência sociológica da Suprema Corte Americana e na jurisprudência dos interesses alemã. Na aplicação desse princípio observa-se não a existência do ato ou sua possibilidade, mas sim seu respeito à sua finalidade precípua, a saber, satisfação dos interesses públicos.

A razoabilidade, agindo como um limite à discrição na avaliação dos motivos exige que sejam eles adequados, compatíveis e proporcionais, de modo a que o ato atenda a sua finalidade pública específica; agindo também como um limite à discrição na escolha do objeto, exige que ele se conforme fielmente à finalidade e contribua eficientemente para que ela seja atingida. (MOREIRA NETO, 1998, p. 57)

2.1. CONTROLE JUDICIAL DA DISCRICIONARIEDADE

Analisadas todas estas valiosas teorias, seguem-se alguns comentários específicos quanto ao uso, pelo Poder Judiciário, destes mecanismos de controle da discricionariedade. Antes de tudo, “não se pode confundir a evolução do controle judicial com a possibilidade de o Judiciário, substituindo o administrador, reavaliar o mérito do ato administrativo” (CARVALHO, 2008, p. 565). “Tampouco cabe-lhe redefinir, a pretexto do exercício do controle, o interesse público, pois essa definição é privativa do Legislativo e, residualmente, da própria Administração”. (MOREIRA NETO,1998, p. 86). Nesta seara fala-se de um controle negativo da discricionariedade, cabendo ao juiz anular aqueles atos que exorbitem dos limites da “liberdade decisória” concedida ao administrador. O mérito do ato administrativo representa a porção da atuação política do administrador e uma interferência direta do magistrado neste “resíduo de legitimidade” desrespeitaria diretamente o princípio da Separação dos Poderes, verdadeiro corolário do Estado de Direito.

Entretanto, deve-se recordar o que foi exposto acerca de algumas situações em que no caso concreto haveria o afunilamento da discricionariedade: aqui se configura verdadeira vinculação, podendo o Judiciário impor aquela única solução possível ao administrador.

Se o órgão judicial chega à conclusão de que a decisão adotada pelo executivo não é ponderada deve declarar sua invalidez. Neste caso, se no processo se puder chegar à conclusão de que só há uma decisão conforme as exigências de ponderação, em princípio, o juiz pode impor essa única solução ponderada. Se existem várias possíveis soluções conforme a exigência de ponderação, não deve poder o juiz substituir, com sua decisão, a favor de uma delas, a decisão do órgão executivo.

Vale repisar, que em hipóteses como a supracitada, ocorre controle de legalidade e não de mérito, como pensam alguns. Apesar de constituir posição moderna, encabeçada na doutrina brasileira por Mello e ainda usada timidamente e com cautelas pelos Tribunais brasileiros, parece ser a mais adequada ao contexto do Estado Constitucional.

Além disso, nenhuma das teorias citadas vislumbra a possibilidade de o magistrado escolher, dentre duas ou mais opções lícitas, aquela que considere mais adequada aos fins públicos. Apenas afirma-se que havendo, diante do caso concreto, somente uma opção, não há que se falar em discricionariedade ou “liberdade do administrador”, mas em vinculação. Quando se configura verdadeiramente a possibilidade do exercício da discricionariedade e ao agir o administrador excede os limites da juridicidade só há uma saída ao Judiciário: anular o ato e devolver prática do ato à Administração para que seja tomada a decisão mais condizente com os fins públicos.

Considerações Finais

A abordagem realizada, antes de tudo, não visa esgotar o tema, mas trazer mais alternativas a essa difícil e polêmica tarefa de controle dos atos praticados no exercício da competência discricionária. O magistrado, como se percebeu, terá árdua tarefa na análise de todas as nuances do caso concreto e na delimitação da extensão da discricionariedade. Além do mais, o assunto deve ser entendido com toda cautela, haja vista que uma salutar evolução nos mecanismos do controle pode converter-se no temido “governo dos juízes”. Contudo, não deve o Poder Judiciário ter tantos receios de uma postura mais ativista, já que é sua missão resguardar os cidadãos do arbítrio da Administração Pública; importante que se busque um ponto de equilíbrio em que a interferência dos magistrados não venha a invadir o campo, limitado pela juridicidade, da discricionariedade do administrador.

A discricionariedade, como avaliado durante todo o trabalho, é imprescindível à satisfação dos interesses públicos num contexto de mutação social constante como o observado atualmente. É impossível o legislador prever todas as particularidades do caso concreto e acompanhar todas as mudanças ocorridas no dia-a-dia; tarefa esta a cargo do administrador público. A questão, portanto, não é eliminar esta “liberdade” do gestor público, mas sim, como se defendeu em cada palavra de todas essas páginas, moralizar o seu exercício e mantê-la fiel a toda a estrutura do ordenamento jurídico.

 

Referências
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ANGHER, Anne Joyce (Org). Vade Mecum Acadêmico de Direito. 8 ed. São Paulo: Rideel, 2009.
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
BRASIL. Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965. Regula a ação popular. Brasília, DF, 1965.
BRASIL. Lei n° 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial da União. Brasília, 01 fev. 1999
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Direito Constitucional Passa; O Direito Administrativo Passa também. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares. Studia Iuridica. No. 61. Coimbra, 2001
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.
DOS SANTOS CARVALHO FILHO, José. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2003
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

Informações Sobre o Autor

Caio Coelho Batista Cavalcante Nogueira

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí UFPI. Pós-graduado em Direito Administrativo. Aprovado no concurso de Procurador Federal AGU.


Equipe Âmbito Jurídico

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