Resumo: O Estado brasileiro, motivado por políticas de expansão cultural, criou programas de proteção ao índio que tinham ação dúplice, pois visavam ao mesmo tempo, defender os interesses estatais de preencher espaços no território nacional, e de maneira mascarada proteger os indígenas do massacre que ele mesmo promovia. Dentre os programas criados, estão o SPI – Sistema de proteção ao índio e a FUNAI- Fundação nacional do índio, elaborados em duas épocas distintas da história política do país. Com a promulgação da Constituição de 1988, os sistemas que regiam as relações indigenistas legais, passaram a não ser mais aplicáveis, diante das modificações trazidas pela Lei maior sobre o tratamento jurídico no que se refere ao indígena.
Palavras chaves: Índígenas: protecionismo: integracionismo.
Resume: The Brazilian government, motivated by cultural expansion policies, created Indian’s protection programs that had dual action as aimed at the same time, defending the state interests to fill spaces in the country, and masked way to protect the massacre of the indigenous people he even promoted. Among the programs created, the SPI are – protection system to the Indian and FUNAI- National Indian Foundation, established in two different periods of political history. With the promulgation of the 1988 Constitution, the systems governing the legal indigenous relations, now no longer applicable, given the changes brought about by the greater law on the legal treatment in relation to the indigenous.
Key words: indigenous: protectionism: integrationism.
Sumário: Introdução. 1. Modelos de produção ao indígena. 1.1. Modelo protecionista e o sistema de proteção ao índio ( SPI).1.2. Modelo integracionista, Estatuto do índio e a Fundação Nacional do índio 2. Constituição Federal de 1988 e as inovações para o Direito indigenista 2.1. Meios de aferição da culpabilidade do réu indígena. 2.2. As demandas em terras indígenas. 3. Os direitos universais fundamentais dos povos indígenas. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Esse trabalho analisa a evolução do Direito Indigenista no Brasil; as transformações econômicas e políticas que o país atravessou e tanto influenciaram a criação e evolução da legislação indigenista até os dias atuais.
A princípio aborda-se o primeiro modelo de proteção ao índio criado no Brasil, o SPI- Sistema de Proteção ao índio, elaborado em meados de 1910, momento em que o país passava por uma grande necessidade de expansão territorial. Com esse modelo, o Estado investiu em sua política expansionista e pregou a proteção ao indígena, com o intuito de alcançar seus objetivos de crescimento econômico. No entanto, a proteção visada pelo Estado era concorrente com o seu interesse de ocupação territorial, o que configura dubiedade na motivação estatal, pois o Estado que invadia o território era o mesmo que concedia a proteção aos índios.
O segundo modelo de proteção ao índio criado no Brasil, veio com o governo dos militares, em meados de 1963. Criada a FUNAI- Fundação nacional do índio, o SPI ficou pra trás. O intuito desse novo modelo, não é mais proteger, porém integrar o índio à sociedade, a fim de tornar mais eficaz essa motivação, foi elaborado o Estatuto do índio em 1973, que ainda vigora nos dias atuais.
A constituição de 1988 trouxe inovações que romperam com o modelo integracionista, pois trouxe condições do indígena ser respeitado em sua cultura, com a criação de meios para permitir seu ingresso em instituições de ensino na língua materna, e assegurou maior participação nas decisões que toquem às terras por eles ocupadas; no entanto, não há previsão de outro modelo que venha a reger as relações entre o Estado e o indígena, pois o Estatuto do índio (1973) não foi revogado, portanto há uma lacuna no Direito Indigenista no Brasil.
Os meios de aferição da culpabilidade do réu indígena, são tratados na Constituição de 1988, porém, com a falta de um modelo que regulamente especificamente o tratamento jurídico concedido ao indígena, acontece que alguns requisitos básicos, como o laudo antropológico para a aferição da culpabilidade do indígena, é deixado de lado por alguns magistrados, o que acaba por produzir injustiça.
Outro problema ocasionado pela lacuna na legislação indigenista, são as questões que versam sobre a competência para julgar as demandas em terras indígenas, pois apesar da previsão constitucional, há incoerências por não haver a legislação específica.
Ainda é tratado neste trabalho, os direitos fundamentais universais dos povos indígenas segundo a visão do Direito Internacional, pois muito foi influenciada a Constituição de 1988 acerca desse assunto, ao ponto de não mais vigorar o modelo que propõe integrar o índio à civilidade, contudo, preservar, respeitar e conceder aos indígenas condições de seu pleno desenvolvimento.
O que se pretende através de um Novo Estatuto do Índio, que se baseie na Carta Magna e nos direitos fundamentais universais desses povos, é oferecer as condições necessárias para que os indígenas sejam cidadãos que conheçam suas origens e as preserve, sem deixar de lado o progresso que a modernidade oferece, conciliando o que são, onde estão e o que precisam deixar para o povo brasileiro como legado da história da nação.
1. MODELOS DE PROTEÇÃO AO INDÍGENA NO BRASIL
1.1. MODELO PROTECIONISTA E O SISTEMA DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO (SPI).
Com o propósito de prestar assistência a todos os povos do país, e também, impedir conflitos entre povos diferentes, foi criado o SPI (Sistema de proteção aos índios) em 1910, pelo decreto lei nº 8.072.
No entanto, o SPI foi um sistema que se dividia entre, prestar aos indígenas proteção real, e ao mesmo tempo servir como instrumento do Estado para a promoção das políticas de expansão territorial.
O SPI foi pode ser descrito como o sistema que levava pacificação aos índios, porém, arrancava em troca parte de seu território, em consequência da liberação de áreas tradicionais à ação dos agricultores e criadores de gado.
Havia à época o interesse da igreja de evangelizar os povos indígenas, portanto o SPI servia à missão de impedir essa dominação teológico- católica, pois era necessário destacar a divisão entre Estado e Igreja.
O sistema visava, sobretudo meios de integração do índio à civilidade, através de estimulação de mudanças no manuseio da terra, o implemento de ferramentas agrícolas e ensino da pecuária. De igual modo foram implantados postos indígenas com enfoque nas regiões de São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Mato Grosso, onde se negociava com as autoridades estatais na tentativa de assegurar uma reserva de terras, para garantir a sobrevivência física do índio, em tese.
A definição legal do índio, só veio a existir com a promulgação do Código Civil de 1916 e do Decreto nº 5.484 de 1928. Tratado como absolutamente incapaz, o índio é totalmente tutelado pelo Estado em suas relações. Sua terra, cultura, cidadania não pertence ao individuo, porém ao Estado, que tem no SPI, segundo Filho (2006, p. 279) a solução para evitar a dissolução indígena, frente as políticas de expansão territorial, quanto ao tema:
“A ação do SPI foi marcada por contradições identificadas como "paradoxos indigenistas", pois tinha por objetivo respeitar as terras e a cultura indígena, mas agia transferindo índios e liberando territórios indígenas para colonização, impondo uma pedagogia que alterava todo o sistema produtivo indígena.”
As táticas de atração e pacificação do SPI foram formuladas por Rocha (1996, p. 105), no âmbito das Comissões de Linhas Telegráficas, desde o final do século XIX. Contudo, nem todas as intenções protecionistas foram bem sucedidas:
“Além de seguir as normas rondonianas de pacificação, os inspetores do SPI adotavam iniciativas arriscadas para os índios. Era o caso de duas técnicas empregadas pelo sertanista Francisco Meirelles: a invasão de aldeias ou de acampamentos indígenas e o deslocamento dos índios para longe de suas terras no pós-contato. A invasão intimidava os índios, tendo sido utilizada entre os Pakaa Nova e subgrupos Kayapó. O deslocamento causava mortandade, porque, em geral, não havia assistência sanitária nem comida na nova área indígena. Rondon também transferiu índios Arití (MT) de suas terras, acreditando beneficiá-los.”
O modelo protecionista pregava que as populações indígenas, deveriam ser protegidas pelo Estado contra as frentes de expansão civilizadas. Elaborado por Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon foi institucionalizado pelo Sistema de proteção ao índio.
Dotado de positivismo, o modelo recebeu um impulso com a criação do Parque Nacional do Xingu, pelo Decreto nº 50.455/61.Os irmãos Villas Bôas, conseguiram desenvolver medidas protecionistas, baseadas no pós- contato, sem prejudicar tão drasticamente a cultura desses povos. Baseado nessa observação do modo como os índios se relacionavam com a terra, foi elaborado o projeto de criação do parque nacional do Xingu, conforme Filho (2006, p. 279).
“A legislação indigenista interna ao SPI garantia direitos que só começaram a ser formalizados na Constituição de 1934. Os Estados sempre dificultaram a cessão de terras devolutas para o domínio da União. Tratavam as terras dos índios como devolutas, mesmo após a Constituição de 1934, que, pela 1ª vez, estabeleceu o respeito à "posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las" (Brasil, 1993, p. 17). Foi um conflito de competências que atravessou a história do SPI e só foi encerrado, em 1973, com o Estatuto do Índio.”
Quando o Parque Nacional do Xingu foi criado, o país passava por intensas transformações, tendo uma grande necessidade de apropriar-se cada vez mais de espaço, portanto apelou-se para as políticas de ocupação territorial.
1.2. MODELO INTEGRACIONISTA, ESTATUTO DO ÍNDIO E A FUNDANÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO.
O modelo integracionista foi o modelo criado à época que os militares chegaram ao poder (1963). As necessidades da nação eram mão de obra e espaço, portanto a conversão do índio à civilidade se fazia uma ótima opção para as necessidades do país, sendo portanto a meta desse modelo. Pois a terra que era destinada aos índios, serviria aos interesses de desenvolvimento do Estado, e aqueles que se civilizassem, serviriam como mão de obra e produtores de mercadorias.
Com o advento do regime militar, o modelo integracionista passou a reger a política indigenista oficial, é possível notar sua atuação na Operação Amazonas (1966), que junto com o Plano de Integração Nacional (PIN – 1970), consistiu em um dos maiores planos para vencer o subdesenvolvimento do país, com a expansão territorial, rumo às regiões mais atrasadas.
A extinção do SPI e a criação da FUNAI em 1967, teve intensa participação da política internacional, onde o Brasil assumiu uma postura positiva quanto aos aparelhos do Estado, fruto da importância do financiamento externo e das transformações que queria implementar, devendo então, ser entendido tal movimento, como uma "redefinição da burocracia". Ou seja, a extinção do SPI é um reflexo de um quadro maior de reordenamento dos aparelhos estatais.
Nesse período, foi elaborado o Estatuto do Índio (1973), que legalizou os interesses políticos acima do Direito. A lei nº 6001/73 revela uma notável intenção de integrar os índios à sociedade brasileira, de maneira que não atrapalhassem o desenvolvimento do país e a exploração mineral de seu interior .
Segundo Manuela Carneiro da Cunha (1987, p. 176), os direitos territoriais dos índios, já estavam expressos na legislação colonial portuguesa desde o início do século XVII, nas Cartas Régias de 30 de julho de 1609 e 10 de setembro de 1611, no Alvará de 1º de abril de 1680, que confirmado pela lei pombalina de 6 de junho de 1755, criava segundo José Afonso da Silva o instituto do indigenato, o que refere-se aos direitos dos índios sobre as suas terras.
O objetivo da política integracionista é totalmente questionável, desde que, buscava fazer os índios integrados à sociedade, assim os destituindo do direito às suas terras.
Ou seja, se determinada comunidade indígena se integra à sociedade, não mais se distingue da civilidade, o que equivale a dizer que não necessita de direitos sobre as terras que ocupam.
Além do direito à terra que era perdido com a integração visionada pelo modelo integracionista, eram também os indígenas despojados de seu direito à tutela, tirando do Estado a obrigação que lhe incumbia de assistência à esses povos.
2. CONSTITUIÇÃO DE 1988 E AS INOVAÇÕES PARA O DIREITO INDIGENISTA
As constituições de 1824 e 1891 se omitiram quanto aos direitos dos índios referentes às terras que ocupavam. Sendo o instituto do indigenato acolhido pela constituição de 1934, em seu art. 129, reconheceu a obrigatoriedade de respeito "à posse da terra por indígenas que nelas se achem permanentemente localizada”.
Pode-se dizer que, as constituições de 1937 ( art. 154), 1946 (art. 216), 1967 ( art. 186), 1969 (art.198) e 1988 (art. 231), garantiram o direito à posse das terras permanentemente pelos índios ocupadas. Com merecido destaque, à constituição de 1967 que assegurou o usufruto exclusivo dos "recursos naturais e utilidades existentes em suas terras", o que posteriormente foi mantido na constituição de 1988, art. 231. § 2º.
Acerca do impacto que os interesses econômicos e políticos tiveram sobre as comunidades indígenas, os índios podem ser considerados as verdadeiras vítimas do crescimento econômico vivenciado pelo país, tendo em vista que tudo o que prega sua devida proteção foi contaminado por interesses que visavam esse crescimento.
No entanto, a constituição de 1988 não se atentou a integralização dos povos indígenas, mas criou meios para garantir a educação nas próprias línguas maternas, e processos próprios de aprendizagem ( art. 210, § 2º), bem como proteção às suas manifestações culturais ( art. 215, § 1º), a própria legitimação das comunidades e organizações para ingressarem em juízo para a defesa de seus direitos e interesses, estabelecida pelo art. 232; o que revela a nítida ruptura com o sistema integracionista anterior.
Quanto à exploração mineral, a CRFB/88 não proíbe, contudo condiciona à aprovação prévia do Congresso Nacional e à consulta às comunidades afetadas.
O problema encontrado entre a passagem do Sistema integracionista para a Constituição Federal de 1988, está no fato de o Estatuto do Índio ainda vigorar, mesmo que incompatível com a postura adotada na Magna Carta.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) veio substituir a Convenção 107, que adotava nitidamente o modelo integracionista como norte. Portanto a Convenção 169 da OIT tem como primórdio abolir o integracionismo, buscando o respeito ao pluralismo étnico-cultural, a fim de que os indígenas sejam reconhecidos como iguais aos demais integrantes da sociedade, em meio as suas diferenças. Ou seja, o mesmo pensamento adotado pela Constituição de 1988.
Nesse sentido traz Silveira ( 2010, p. 52):
“Essa versão multicultural de direitos humanos, na exata conclusão de Boaventura de Souza Santos, pressupõe que o princípio da igualdade seja utiizado de par com o princípio do reconhecimento da diferença, em que temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e, de outro tanto, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.”
A igualdade que se busca estabelecer depois da Constituição de 1988 precisa com urgência ser transformada em legislação específica, tendo em vista que o Estatuto do índio que foi criado sob a égide do modelo integracionista ainda vigora nos dias atuais.
2.1. MEIOS DE AFERIÇÃO DA CULPABILIDADE DO RÉU INDÍGENA
Com o advento do Estatuto do índio, o indígena passou a ser classificado em “isolado”, “em vias de integração” e “integrado”. Tal como dispõe o artigo 4º do referido diploma legal.
“ Art 4º Os índios são considerados:
I – Isolados – Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;
II – Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;
III – Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.”
Tal disposição institui o indígena isolado como inimputável; aquele que se encontra em vias de integração teria sua responsabilidade penal aferida por meio de exame pericial, que apuraria a existência de comportamento revelador de sua integração à sociedade; e por último, os integrados tidos como imputáveis.
No entanto, a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas em seu artigo 231, caput, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, possibilitando um tratamento jurídico distinto do que oferece o Estatuto do Índio.
Do mesmo modo que a Constituição de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em vigor desde 2004, confere aos índios o direito de preservar os seus próprios costumes e instituições, como dispõe o artigo 5º, “a” e “b”:
“Art. 5.º Ao se aplicar as disposições da presente Convenção: a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e [1]dever-se- á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente; b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos.”
Vale destacar que o art. 8.1 da Convenção 169 da OIT[2] dispõe que: “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”.
O problema notado aqui, é que na ausência de laudo antropológico em processo criminal, a punição de um índio, que tenha cometido um ato, em situação que ele desconhecia tratar-se de conduta tipificada pelo Código Penal, seria portanto, uma penalização indevida, pois segundo a Constituição de 1988 e OIT, ninguém pode ser obrigado a agir de acordo com uma cultura, se não faz parte dela.
O laudo antropológico é o documento elaborado pelo antropólogo com o propósito de responder os quesitos sobre o objeto em análise.
A Constituição Federal e da Convenção 169 da OIT estabeleceram um sistema de direitos e garantias dos povos indígenas, onde o magistrado deve atentar- se ao laudo antropológico, para saber se o indígena infrator compreendia a norma penal que desrespeitou.
Contudo, segundo Piovesan (2012, p. 181) tem se que:
“Na maioria das vezes, os magistrados fundamentam as suas decisões apenas no Estatuto do Índio, visto que estão habituados a aplicá-lo desde 1973 e, por conseguinte, a visão integracionista está deveras arraigada entre os profissionais do direito. Apenas em casos excepcionais, os magistrados têm solicitado a produção de laudo antropológico, com fundamento nas disposições da Convenção 169 da OIT, justamente pra averiguar como aquele ato é visto dentro da cultura do indígena que cometeu o crime, e a partir dessa constatação aferir-se o índio pode ser punido pela norma penal ou não.”
O fato é que o ordenamento jurídico brasileiro, adota o Princípio do livre convencimento motivado do juiz, o qual confere ao magistrado o livre-arbítrio para julgar, desde que com fundamentação para sua decisão, conforme dispõe o artigo 155 do Código de Processo Penal. Quanto ao laudo antropológico, o Código de Processo Penal em seu artigo 182, assenta que “o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte”, consagrando assim o sistema liberatório, que fornece a possibilidade de o magistrado rejeitar o laudo parcial ou de acolhe-lo no todo ou em parte, desde que fundamentada a decisão.
Segundo o processualista Junior (2006, p. 98): “a fundamentação das decisões, a partir dos fatos provados refutáveis e de argumentos jurídicos válidos é um limitador (ainda que não imunizador) dos juízos morais.”
A fim de os magistrados seguirem uma regra pré-definida, o deputado Aloízio Mercadante – PT, propôs o PL 2057/1991 referente ao novo Estatuto das Sociedades Indígenas, que tramita no Congresso Nacional há mais de 20 anos, o qual possui regra inovadora que prevê a realização de laudo antropológico, o qual responderia até que medida o réu índio entendeu que a conduta praticada era criminosa e ainda diria se o ato praticado estava ou não de acordo com valores do seu povo e cultura.
O laudo antropológico pode contribuir nos processos judiciais nos quais os índios forem réus, conforme pensamento da antropóloga Elaine Amorim (2004, p. 253):
“Dar voz aos índios e veicular sua perspectiva, com o intuito de evitar ao máximo que as decisões relativas às suas vidas se deem baseadas em uma visão etnocêntrica, ou seja, numa perspectiva que toma as próprias categorias ocidentais de compreensão do mundo como parâmetro de julgamento para todos os demais contextos sociais e culturais.”
E ainda o laudo antropológico daria efetividade ao preceito do artigo 12 da Convenção 169 da OIT, que determina que “ deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais”.
Caso prossiga o PL 2057/1991 o réu índio que tiver cumprido punição em sua comunidade, será isento de pena, assim como aquele que praticar ato que esteja em consonância com os costumes de seu povo.
Antes da Constituição de 1988, o entendimento que se seguia era o do Estatuto do Índio, que o os índios isolados (art.4.º, I, do Estatuto do Índio) poderiam ser enquadrados no art. 26 do Código Penal, como se fossem esses inimputáveis. Os adeptos desse pensamento com Aníbal Bruno e Nelson Hungria, “ o índio é uma pessoa que tem, em regra, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, por não ter compreensão das condutas punidas pelo Código Penal brasileiro”. Nas palavras de Guilherme Madi Rezende (2009, p. 102):
“(…) está implícita na conceituação de que o índio tem desenvolvimento mental incompleto, a ideia assimilacionista de que a tendência do índio é a de se integrar à sociedade não índia, assimilando seus valores, sua cultura, seu modo de compreender o mundo etc. Ou seja: à medida que o índio vai se integrando à sociedade não índia, vai completando o seu desenvolvimento mental.”
O fato é que este entendimento viola o art. 231, caput da Constituição Federal que e na Convenção 169 da OIT, pois somente por não serem integrados não significa que possuem desenvolvimento mental incompleto, e não podem ser tratados como tais. Razão pela qual o Direito não pode ensejar a decretação da inimputabilidade.
O critério da potencial consciência da ilicitude rompe com o modelo integracionista, ao considerar que o indígena para ser culpado deverá ter consciência do caráter ilícito do fato, mas ainda é insuficiente pois ele pode ter a consciência, no entanto não possuir a compreensão do ilícito.
Já o critério da inexigibilidade da conduta diversa é a melhor alternativa para a aferição da culpabilidade do réu indígena, pois trabalha com a hipótese do agente ter a consciência da ilicitude, porém ter arraigado em si os valores culturais de outra sociedade que não adote o Código Penal, o que faz que seja inexigível outra conduta deste.
Da análise jurisprudencial nota-se que a ampla maioria dos Tribunais brasileiros, ao julgar processos com réu indígena ainda o fazem sob a ótica integracionista, apurando o critério da imputabilidade, deixando de lado a disposição da Constituição Federal em seu artigo 231 e ainda, o que consta da Convenção 169 da OIT.
2.2. AS DEMANDAS EM TERRAS INDÍGENAS
A Constituição Federal de 1988 determina em seus artigos 20, XI e 22 XIV que a competência para julgar as demandas em terras indígenas , bem como sua propriedade pertencem à União.
Para aferir-se a ocupação de terras por indígenas, existem as seguintes fases: identificação e delimitação; declaração; demarcação; homologação; registro e retirada de não índio do local.
Para identificar e delimitar as terras, o processo inicia-se com um estudo técnico, feito por engenheiros agrônomos e outros profissionais que tenham capacidade técnica para medir a área exata de ocupação tradicional dos índios.Nessa mesma fase, faz-se a identificação e cadastramento dos não índios da área delimitada.
Concluída essa fase, é elaborado um relatório técnico que é enviado a FUNAI (Fundação nacional do índio), o qual é submetido à aprovação do Presidente da FUNAI, devendo ser publicado no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do Estado onde se encontra a área em estudo e também nos municípios que se situam as terras. Após a publicação, aqueles que tiverem interesse em apresentar requerimentos, a fim de pleitear indenização ou mesmo apontar vícios no procedimento administrativo, tem o prazo de 90 (noventa) dias para o fazer.
Concluídos os 90 (noventa) dias, passa a fluir o prazo de 60 (sessenta) dias para o envio do procedimento ao Ministro da Justiça. Após o recebimento pelo Ministro da Justiça, surgem três hipóteses.
A primeira, é a determinação para a realização de diligências no período máximo de 90 (noventa) dias.
Pode ele determinar o retorno do procedimento à FUNAI, pelo estudo não ter atendido aos artigo 231 da Constituição Federal, ou não atender qualquer outro motivo que ele fundamente.
E por fim, se o procedimento feito estiver correto, através de portaria, são reconhecidos os limites das terras indígenas e determinada sua demarcação; a qual é homologada pelo Presidente da República; e registrada como bem da União nos Cartórios de Registro de Imóveis e na Secretaria de Patrimônio da União, o que é feito com a devida apresentação do Decreto Homologatório.
São pagas as benfeitorias para aqueles que de boa-fé as fizeram nas terras em questão.
Finalizadas todas as etapas apresentadas, o direito à posse é restabelecido aos índios, o que consiste na outorga do direito de usufruto exclusivo.
A posse que a Constituição Federal concede aos índios, é diferente da posse compreendida do Código Civil, pois esta baseia-se em corpus animus, ou seja, o uso da terra como se proprietário fosse; já aquela, alicerça-se em conceitos antropológicos, onde se buscará saber os costumes da etnia, ou mesmo se a área era ou não considerada pelos próprios indígenas como de seu domínio; portanto não convém usar a posse definida pelo Código Civil como parâmetro para julgar as ações possessórias de terras ocupadas pelos indígenas.
Esse entendimento ampara-se no que ensina o constitucionalista Silva (2000, p. 831) que sobre o tema diz:
“O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de com eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições.[3]”
João Mendes (2000, p. 57) vai mais além que José Afonso da Silva:
“É que conforme ele mostra, o indigenato não se confunde com ocupação, mas com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigentato é legítimo por si, “não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem.[4]”
As demandas em terras indígenas devem portanto serem pautadas não no conceito civilista, mas em próprio critério, que levem em conta a cultura da comunidade abordada.
A competência para julgar as demandas em terras indígenas foi definida pela Constituição de 1988, que estabeleceu em seu art. 109, XI, que “compete aos juízes federais processar e julgar as demandas em terras indígenas”.
A Fundação Nacional do índio (FUNAI) tem sua participação nos litígios que envolvem as questões indígenas, sempre que envolvida uma comunidade, como litisconsorte passivo ou ativo. É um litisconsorte necessário.
É nula qualquer decisão prolatada sem as condições da competência para julgar as demandas em terras indígenas.
3. OS DIREITOS UNIVERSAIS FUNDAMENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS
A partir das primeiras décadas do século passado com o descrédito da comunidade internacional em relação ao colonialismo das potências europeias e consequente opressão dos povos nativos naqueles territórios possessos, inicia-se uma preocupação quanto ao bem estar das sociedades dominadas por povos estrangeiros.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o aparecimento da Organização das Nações Unidas (ONU), nos anos 1950, a inserção da questão dos direitos humanos na Carta da ONU impulsionou a necessidade de formulação formal de legislações e regulamentações específicas para o caso dos povos nativos como notar-se nas Resoluções 1514 e 1541 da ONU.
A Convenção número 107 da ONU oferece um escopo inicial na elaboração de legislações específicas e proteções governamentais nos estados membros da ONU, que viriam a surgir à posteriori, em relação aos povos nativos, conforme-se se observa abaixo, conforme Anaya ( 1996, p. 45)
“Article 2: 1. Governments shall have the primary responsability for developing co-ordinated and systematic action for the protection of the population concerned and their progressive integration into the life of their respective countries. …
3. The primary objective of all such action shall be fostering of individual dignitiy, and the advancement of individaul usefulness and initiative.
Article 3: 1. So long as the social, economic and cultural conditions of the populations concerned prevent them from enjoying the benefits of the general laws of the country to which they belong, special measures shall be adopted for the protection of the instituions, persons, property and labour of these populations.”
Podemos observar que a recomendação das ONU aos países é de que se ofereça proteção legal e institucional, bem como integração dos povos indígenas ao restante da social. Adverte-se que o estado nacional se apresente e posicione-se como um provedor e tutor na responsabilidade da preservação da individualidade e dignidade da condição existencial das sociedades nativas.
No caso brasileiro a elaboração de uma legislação eficiente quanto aos direitos indigenistas no Brasil é uma necessidade que alcança todo o povo brasileiro. Os índios são mais que um povo que carece uma lei específica para reger suas relações intra e extra culturais, são o povo brasileiro em sua mais pura essência que precisa ter sua cultura, tradições e principalmente dignidade respeitadas e reconhecidas legalmente, para então serem assegurados perante o judiciário aquilo que lhes for justo.
Em 1992 foram apresentados três projetos à Câmara dos deputados, com o intuito de refazer o Estatuto do Índio. O primeiro oriundo do Executivo e outros dois originados de grupos de trabalho de entidades não governamentais, o Conselho Indigenista Missionário e Núcleo de Direitos Indígenas. No entanto, apesar da formação de uma Comissão Especial para análise dos referidos projetos, o “Estatuto das Sociedades Indígenas”, o projeto ainda não foi aprovado e continua até a presente data para análise na Câmara.
CONCLUSÃO
Com base no que aqui fora exposto e nos argumentos apresentados, conclui-se que a legislação indigenista brasileira desde o Sistema protecionista foi elaborada com o intuito de promover os interesses econômicos e políticos.
O Sistema integracionista com o fim de integrar os índios e assim obter vantagens para o Estado com o território e a mão de obra que essa integração poderia favorecer ao Estado, apresenta nitidamente os interesses estatais antes dos direitos indígenas.
A Constituição de 1988 muito fez ao trazer aos índios previsões legais de melhores condições de poderem usufruir de suas terras e direitos como cidadãos, reconhecendo as diferenças culturais e temporais que os separam da sociedade em geral, para equipará-los legalmente sem violar sua condição de índio e proporcionar à sociedade brasileira a chance de preservação desse legado histórico- cultural.
No entanto, necessita-se romper de vez com o modelo integracionista, pois o Estatuto do Índio em vigor foi elaborado sob a vigência desse modelo, o que se mostrou na decorrência deste trabalho, ser um modelo que não visa em primeiro lugar o índio, porém interesses estatais de crescimento econômico.
Ainda que a Constituição de 1988 expresse que o Modelo integracionista não é utilizado para reger as relações entre Estado e índios, é preciso que seja promulgado um novo Estatuto do Índio, a fim de regulamentar as relações indígenas “vagas”, que devido à lacuna legislativa no ordenamento jurídico pátrio existem.
O Direito Internacional oferece através de suas convenções a base para que o novo Estatuto do Índio seja construído, respeitando as diferenças entre as comunidades indígenas e lhes proporcionando a chance de preservarem sua cultura sem abster-se dos avanços que a modernidade oferece.
Por fim, é lamentável reconhecer a lacuna que há em nosso ordenamento jurídico quanto aqueles que são primordialmente o Brasil. Contudo, através desse reconhecimento, é esperado que venha a incitação para a luta, para que os Direitos desses povos sejam reconhecidos e regulamentados, e assim o Direito chegue cada vez mais perto do que verdadeiramente é justo.
Referências
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Notas
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade (PPGAS) pela Universidade Estadual de Goiás (UEG/Morrinhos).Graduada em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira,UNIVERSO. Participante do projeto de extensão do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos da UFG. Advogada
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