Resumo: Este artigo traça a evolução do trabalho da criança e adolescente a nível mundial, abordando desde a antiguidade até os tempos modernos, demonstrando a fragilidade e necessidade de especial proteção a eles conferida, em razão de sua fragilidade, inocência e inexperiência. Bem assim, abordamos de forma superficial a evolução de relações de trabalho e emprego, mas basicamente como complementação à análise do trabalho pelas crianças desenvolvido ao longo da evolução da humanidade.
Palavras chave: Trabalho. Criança. Adolescente. Evolução.
Resumen: En este artículo se describe la evolución del trabajo de los niños, niñas y adolescentes en todo el mundo, acercándose desde la antigüedad hasta los tiempos modernos, lo que demuestra la fragilidad y la necesidad de una protección especial que se otorga a ellos, debido a su fragilidad, la inocencia e inexperiencia. Pues bien, hemos abordado superficialmente evolución de las relaciones laborales y el empleo, pero sobre todo como complemento al análisis de los trabajos realizados por los niños de todo la evolución de la humanidad.
Palabras-chave: Trabajo. Niños. Niñas. Adolescentes. Evolución.
Sumário: Introdução. 1. O trabalho na antiguidade. 2. Feudalismo e Corporações de Ofício. 3. Revolução Industrial. 4. Encíclica Rerum Novarum e o surgimento do Direito do Trabalho. Conclusão. Referências.
Introdução
Em função da condição especial de pessoa em desenvolvimento, os direitos de criança e do adolescentes são indisponíveis, justificando-se, assim, a proteção integral a eles devida.
Mas não tem sido sempre desta maneira, a criança e o adolescente têm sido tratados como mercadoria barata desde os tempos da Revolução Industrial, ou mesmo antes, com jornadas de trabalho extenuantes, com dezesseis horas ou mais, havendo relatos desta época de crianças contando com apenas três anos de idade, realizando trabalhos em fábricas, sem qualquer tipo de preocupação com sua formação moral ou intelectual, ou com sua segurança ou desenvolvimentos físicos.
Este artigo tem por escopo analisar o trabalho da criança, sua evolução, exploração, abusos , formas de combate e regulamentação.
Assim, no primeiro tópico traçamos um breve histórico do trabalho e Direito do Trabalho; aquele surgiu junto com a humanidade, espontaneamente, na luta por sobrevivência, este surge contemporaneamente à Revolução Industrial, com a necessidade de proteção do trabalhador, que era vítima de exploração desumana, com valorização do capital em detrimento da pessoa, do trabalho seguro e digno.
Esperamos demonstrar que não há muito tempo o homem era coisa, peça descartável, sem grande valor; não havia preocupações com princípios, direitos humanos e garantias fundamentais. A história deve ser contada e relembrada, para que não se repitam os mesmos erros do passado.
1. O Trabalho na Antiguidade
O termo trabalho, consoante Antônio Geraldo Cunha[1], deriva do latim vulgar tripaliare, que significa “martirizar com o tripalium”, sendo este um instrumento de tortura composto de três paus.
Não há que se confundir o surgimento do trabalho com o surgimento do Direito do Trabalho. Podemos afirmar que o trabalho surge contemporaneamente ao surgimento da raça humana que, para sua própria sobrevivência, necessitava de trabalhar.
Quando nômade, o homem sobrevivia se alimentando da caça e da busca por vegetais e, a partir do momento em que se ligou à terra, as tarefas foram divididas entre homens, mulheres e crianças.
Por uma questão de instinto de preservação da espécie, pela proteção e fragilidade própria das crianças, a lógica nos diz que os homens caçavam e cuidavam da proteção da tribo, enquanto que mulheres e crianças plantavam, colhiam e cuidavam da limpeza e organização do lugar.
Durante grande parte da história da humanidade as crianças sempre trabalharam junto às suas famílias ou às tribos às quais pertenciam, sem relevante distinção entre elas e os adultos com quem conviviam.
A consciência da infância como período inadequado para o trabalho, da criança como ser em formação, é muito recente. Não havia preocupação em se delimitar uma idade mínima para ingresso no mercado de trabalho.
Não há referências históricas expressas acerca do labor de crianças nas fases arqueológicas, mas, possivelmente, a exemplo das mulheres, as crianças ficavam com a tarefa de colher frutos da natureza ou cuidar de trabalhos menores do cotidiano, enquanto os homens se ocupavam de atividades com maior risco, como a caça, por exemplo.
O Código de Hamurabi, datado de mais de 2.000 anos a.C., traz alusão ao ensinamento de ofício a meninos, tornando patente a existência de trabalho infantil, mas não há menção a nenhum tipo de proteção a estes. Porém, assegurava, em seu artigo 117, limitação máxima de tempo de serviço a quem fosse escravizado em razão de dívidas e, bem assim, a possibilidade de um escravo esposar a filha de um homem livre, sendo os filhos advindos dessa união igualmente livres, conforme dispõe o artigo 175. Pode-se enxergar, aqui, proteção da criança contra a escravidão.
No Egito, sob as dinastias XII a XX, sendo todos os cidadãos obrigados a trabalhar, sem distinção de nascimento ou fortuna, as crianças e os adolescentes estavam submetidos ao regime geral e, da mesma maneira que as demais pessoas, trabalhavam desde que tivessem relativo desenvolvimento físico.[2]
No mundo greco-romano, antiguidade clássica, o trabalhador era reduzido a coisa, tendo um sentido material, justificando, assim, a escravidão. Ao escravo era confiado o trabalho manual, considerado vil, enquanto os homens livres dedicavam-se ao pensamento e à contemplação, para os quais os escravos eram considerados incapazes[3].
Duas teorias sobre o trabalho dominavam o mundo grego: uma o considera vil, opressor da inteligência, e outra o exalta como essência do ser humano. Tais teorias resultam de concepções de vida com origens diferentes, ou seja, os pensadores que enaltecem o trabalho têm origem humilde e os que o consideram vil pertencem às classes mais favorecidas.
Durante longos anos, o trabalho foi sendo visto ora como desprezível, ora como atividade penosa. Com o Renascimento, que louva o homem na atuação livre e racional, o trabalho é tido como a verdadeira essência humana.
Na Antiguidade, o escravo era considerado como objeto, coisa que pertencia a seu dono. A partir do momento que entrava em seu domínio, era destituído do direito à vida e a tratamento digno, mas, embora estivesse sujeito a castigos, se seu dono o matasse sem causa, estava sujeito a sanções penais.
Nessas circunstâncias, o escravo enquadrava-se como objeto do direito de propriedade, não como sujeito de direito, razão pela qual se torna inviável falar-se de um Direito do Trabalho enquanto predominava o trabalho escravo.[4]
O contrato de trabalho pressupõe a existência de empregado e empregador; ausente um deles, a relação jurídica não se forma. Ainda assim, em dias destinados ao repouso só se permitia o trabalho leve e doméstico, comprovando a existência de normas heterônomas aplicáveis também aos escravos.
Na Grécia e em Roma, os filhos dos escravos eram igualmente propriedade dos seus senhores e obrigados a trabalhar, diretamente ou a soldo de terceiros, em benefício de seus donos.
Paralelamente ao trabalho escravo, havia aqueles que exerciam atividade autônoma, em regime de liberdade, e.g., os artesãos. Organizadas as corporações romanas, inicialmente restritas a trabalhadores livres, seus filhos trabalhavam como aprendizes para, posteriormente, ingressar no mesmo ofício paterno.
Por volta dos séculos VI e VII a.C., em razão do aumento da população e da complexidade das relações sociais e humanas, surge no mundo romano o locatio conductio, espécie de contrato no qual senhores de escravos se utilizavam de mão-de-obra escrava de outros senhores, mediante arrendamento destes serviços. Paulatinamente, homens livres de baixo poder aquisitivo passaram a arrendar, igualmente, sua própria força de trabalho.
Tal contrato era denominado genericamente locatio conductio pelo fato de as condições iniciais deste contrato de homens livres, idênticas às dos escravos, serem regidas pela locação de coisas.
Impende ressaltar que, durante a Antiguidade Clássica, a locação de obra e de serviços era escassa, se comparada com a escravidão. A razão, conforme acentua Alice Monteiro de Barros, reside na circunstância de que, para os romanos, ela somente seria possível no tocante a fatos materiais, concretos, não se estendendo aos serviços intelectuais. Isso confirma a dificuldade enfrentada pelos romanos para conceber uma relação abstrata de trabalho distinta do homem que a executa.[5]
A coexistência de normas autônomas e normas heterônomas na sociedade romana da Antiguidade, apesar do predomínio das primeiras, permitiram o exercício de certa liberdade contratual, mas que não chegou a assumir a projeção encontrada no liberalismo.
2. Feudalismo e Corporações de Ofício
Durante o período feudal, século V a século XI, de economia predominantemente agrária, o trabalho era confiado ao servo da gleba, que era reconhecido como pessoa, e não como coisa, a exemplo dos escravos. Inobstante essa diferenciação, o servo tinha situação muito semelhante à dos escravos.
Consoante anota Alice Monteiro de Barros:
“Os servos eram escravos alforriados ou homens livres que, diante da invasão de suas terras pelo Estado e, posteriormente, pelos bárbaros, tiveram que recorrer aos senhores feudais em busca de proteção. Em contrapartida, os servos estavam obrigados a pesadas cargas de trabalho e poderiam ser maltratados ou encarcerados pelo senhor, que desfrutava até mesmo do chamado jus primae noctis, ou seja, direito à noite de núpcias com a serva da gleba que se casasse”.[6]
A sociedade feudal consistia de três classes: sacerdotes, guerreiros e trabalhadores. O homem que trabalhava produzia para as outras duas classes, ou seja, a eclesiástica e a militar.
De acordo com Huberman, os camponeses eram mais ou menos dependentes. Os senhores feudais acreditavam que estes existiam para servi-los. Jamais se pensou em termos de igualdade entre senhor e servo. E no que se relacionava ao senhor, este pouca diferença via entre o servo e qualquer cabeça de gado de sua propriedade. Na verdade, no século XI um camponês francês era avaliado em 38 soldos, enquanto um cavalo valia 100 soldos.[7]
A partir do século X, os habitantes dos feudos passaram a adquirir mercadorias produzidas em feiras e mercados sediados fora dos limites destas áreas, em locais propícios ao intercâmbio de produtos manufaturados ou naturais, inclusive com os próprios feudos, formando comunas, que acabaram evoluindo para as corporações de ofício, constituídas por mestres que, em princípio, obtinham o cargo por suas aptidões profissionais ou por terem executado uma obra prima. Essas exigências foram aos poucos desaparecendo, quando se instalou no seio das corporações uma oligarquia.
A preocupação dominante nas corporações, sobretudo na França, era assegurar a lealdade da fabricação e a excelência das mercadorias vendidas. O mestre não podia recrutar operários de outras corporações, nem tampouco lançá-las ao descrédito.
O ajuste contratual deixa de ser norma reguladora e passa a ser substituído pelas regras das corporações de ofício, aplicáveis a todos os seus membros, que eram os aprendizes, os operários e os mestres.
Os aprendizes celebravam contrato de aprendizagem com os mestres, com duração de dois a doze anos, a depender da complexidade do ofício. Durante este período, o metre possuía direito de custódia, fornecendo alojamento e alimentação aos aprendizes, além do dever de ensinar-lhes o ofício.
Com o fim do aprendizado, os aprendizes tornavam-se companheiros e exerciam suas atividades em local público. Porém, o companheiro conseguia melhorar sua atuação na categoria profissional somente se possuísse dinheiro para comprar a carta de maestria ou caso se casasse com a filha ou a viúva do mestre.
Os estatutos das corporações previam também algumas regras para os companheiros, que trabalhavam por dia ou por unidade de obra, com a obrigação de produzir um produto de qualidade. Os estatutos fixavam a retribuição não em função da necessidade do trabalhador, mas com o objetivo de evitar a livre concorrência, que poderia surgir se os salários fossem fixados a critério dos mestres. Estes deveriam respeitar as regras da fábrica, o emprego de produtos e técnicas.
Na época medieval, a regulamentação das condições de trabalho nas corporações era estabelecida por normas alheias à vontade dos trabalhadores, que sequer participavam ou opinavam em suas elaborações. Entretanto, na hipótese de invalidez ou morte do artesão, as corporações os amparavam, ou às suas famílias. As corporações de ofício atingiram seu apogeu no século XIII e decaíram a partir do século XV.[8]
Os abusos praticados pelos mestres nas corporações de ofício acabaram gerando greves e revoltas dos companheiros, principalmente causadas pela tendência oligárquica de transformar o ofício em bem de família, associada à incapacidade de adaptação do trabalho ali desenvolvido às novas exigências socioeconômicas, dada a tendência monopolizadora e o apego às formas já superadas de produção. Estes motivos formam suficientes para incrementar a transição da sociedade artesanal para o capitalismo mercantil.
Apesar da relativa organização das corporações, é inegável que, para manter privilégios e regalias dos mestres, os companheiros e os aprendizes eram oprimidos; o nepotismo também era constante. A aprendizagem muito demorada, a extrema dificuldade de acesso à condição de mestre, o despotismo e outros problemas fizeram com que o corporativismo entrasse em declínio.
Assim, em 1776 foi promulgado o Edito de Turgot, extinguindo as corporações. Algumas, dada a pressão exercida pelos mestres, foram mantidas, ainda que com limitações. Finalmente, em 1791, a Lei Chapelier extinguiu-as definitivamente, como se infere de seu artigo 7º, in verbis:
… a partir de 1º de abril, todo homem é livre para dedicar-se ao trabalho, profissão, arte ou ofício que achar conveniente, porém estará obrigado a prover-se de uma licença, a pagar os impostos de acordo com as tarifas seguintes e a conformar-se com os regulamentos da polícia que existam ou que se expeçam no futuro.[9]
Foi conquistada a liberdade de trabalho, porém, com o inconveniente do impedimento da possibilidade de existência de qualquer órgão entre indivíduo e Estado, pois as associações foram vedadas.
3. Revolução Industrial
Com a descoberta do vapor e da eletricidade, surgem as máquinas industriais, acarretando radical modificação na organização e produção de diversos produtos que, nas pequenas oficinas, era feito artesanalmente, Assim, surgem as grandes fábricas, equipadas com maquinismos e reunindo milhares de empregados, desvinculando o trabalhador e o produto, pois o homem não mais se reconhecia no resultado de seu esforço, no produto final, já pronto e acabado.
Deu-se assim a Revolução Industrial, a partir do século XVIII. Relata Paul Mantoux a respeito:
Os manufatureiros da indústria têxtil encontraram uma outra solução para o problema que os estorvava. Consistia ela na contratação maciça de mulheres e, principalmente, crianças. O trabalho nas fiações era fácil de aprender, exigia muito pouca força muscular. Para algumas operações, o pequeno porte das crianças e a finura de seus dedos faziam delas os melhores auxiliares das máquinas. Eram preferidas, ainda, por outras razões mais decisivas. Sua fraqueza era a garantia de sua docilidade: podiam ser reduzidas, sem muitos esforços, a um estado de obediência passiva, ao qual os homens feitos não se deixavam facilmente dobrar. Elas custavam muito pouco: ora recebiam salários mínimos, que variavam entre um terço e um sexto do que ganhavam os operários adultos; ora recebiam alojamento e alimentação como pagamento.[10]
O fenômeno acelerador da crise do regime artesanal foi a Revolução Industrial, com sua inovação tecnológica, que substituiu a ferramenta manual pela máquina.
A Revolução Francesa exaltou a liberdade individual, consagrada no preâmbulo da Constituição francesa de 1791. O novo regime consagrou a liberdade para o exercício das profissões, artes ou ofícios, e consequentemente, para as livres contratações. Encontrava-se baseado na doutrina de Rousseau, nas doutrinas econômicas dos fisiocratas e dos clássicos ingleses, como também na Escola do Direito Natural e das Gentes.
Essa nova estrutura social fundava-se no individualismo, que se refletia nos aspectos econômicos, políticos e jurídicos. “Laissez-faire, laissez-passer” é a fórmula do liberalismo econômico, atribuída a Vicent Gournay.
Os indivíduos adquiriam com sua vontade o poder supremo para realizar toda classe de atos jurídicos, os quais passavam a ter força de lei entre as partes, pois eram aceitos voluntariamente.
O Código de Napoleão, de 1804, de cunho puramente individualista, revela a vontade contratual como norma suprema das relações jurídicas, tanto que o artigo 1.134 dispõe: “as convenções têm força de lei para os que as celebraram”. Igualmente, o artigo 1.115 do mesmo diploma legal condiciona a revogação das convenções ao consentimento mútuo das partes ou às causas que a lei autorize.
Neste Código encontram-se as diretrizes da organização do trabalho nos quadros do Direito Civil. Instituiu o contrato a prazo, proibindo o trabalho por toda a vida, com o objetivo de evitar o reaparecimento da escravidão, de maneira totalmente coerente com as tendências individualistas da época, já que a obrigação de trabalhar por toda a vida para alguém implica a alienação da liberdade, um dos direitos naturais do homem.
Por outro lado, a valorização da palavra do empregador, no que se refere a pagamento de salário, evidenciava a parcialidade do legislador em favor dos interesses daquele, contribuindo sobremaneira para o desequilíbrio das forças.
O direito civil da época ordenava as relações de trabalho por meio de normas de locação de serviços, conflitando com as ideias modernas de liberdade humana e independência do trabalhador, deslocando-se a relação jurídica de trabalho do campo do direito civil apenas com o surgimento do Direito do Trabalho, cujos princípios visaram à harmonia entre as classes sociais.
A Revolução Industrial acarretou mudanças no setor produtivo e deu origem à classe operária, transformando as relações sociais. As relações de trabalho geridas por critérios heterônomos das corporações de ofício foram substituídas por uma regulamentação essencialmente autônoma, surgindo, desta maneira, uma liberdade econômica sem limites, com forte opressão dos mais fracos, acabando por gerar uma nova forma de escravidão. É o que se deduz do pensamento de Lacordaire: “Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta”.
O emprego generalizado de mulheres e menores suplantou o trabalho dos homens, pois a máquina reduziu o esforço físico e tornou possível a utilização das “meias-forças dóceis”, não preparadas para reivindicar. Suportavam salários ínfimos, jornadas desumanas e condições de higiene degradantes, com graves riscos de acidentes. Mulheres e crianças eram a força de trabalho mais explorada no final do século XVIII.
Ainda, os orfanatos tratavam os órfãos como mercadoria, negociando-os com os proprietários das fábricas. Em razão da jornada de trabalho abusiva, especialmente ao final do dia, abatidas pelo cansaço, as crianças eram vítimas frequentes de acidentes de trabalho. Não era incomum as crianças dormirem na própria fábrica.
Caso produzissem aquém do esperado, ou se adormecessem, normalmente em razão do extremo cansaço, eram submetidas a castigos físicos. O ambiente nas fábricas era insalubre e a promiscuidade nos dormitórios, incentivada pelos patrões, corrompia moralmente as crianças.
Ressalta Mantoux que:
“[os aprendizes – crianças e adolescentes] saíam da fábrica ignorantes e corrompidos. Não somente não haviam recebido qualquer tipo de instrução durante sua lamentável escravidão, como sequer haviam aprendido, apesar das cláusulas formais do contrato de aprendizagem, o saber profissional necessário para ganhar a vida; nada sabiam além do trabalho maquinal ao qual haviam estado acorrentadas durante longos e crueis anos. Por isso estavam condenados a continuar para sempre como braçais, vinculados à fábrica como o servo à gleba”.[11]
A preocupação com a utilização abusiva de crianças no trabalho inspirou o general do exército Von Horn que, em 1828, em informe oficial que encaminhou ao rei da Prússia, prenunciava: “A utilização das crianças esgota prematuramente o material humano e não está longe o dia em que a atual classe trabalhadora não tenha mais substitutivo do que uma massa fisicamente degenerada”.
No século XVIII, antes da Era Vitoriana, as crianças eram recrutadas pelos limpadores de chaminés, para subir até o topo afunilado e desobstruir a saída da fumaça das chaminés das casas dos ricos. O único medo que superava o da escuridão e da altura era o medo do capataz que esperava embaixo se não cumprisse bem a tarefa.
Em 1767, começaram a surgir os primeiros protestos por reformadores que procuravam mudar a situação das crianças com a edição de novas leis que protegessem as crianças de abusos no trabalho. As publicações divulgavam as ideias dos reformadores com libelos, denúncias e panfletos, surgiam escritos como “esses pequenos garotos pretos, não têm nenhuma proteção e são tratados pior do que um ser humano trata seu cão”; ou “cada criança é objeto de proteção do Estado como o adulto”.
Em 1788 saiu a primeira tentativa para regular a situação e um Ato especificou que a idade mínima dos pequenos trepadores era de oito anos; mandava lavar essas crianças uma vez por semana, mandar para a igreja no sábado e que não deveriam ser forçados a subir na chaminé que estivesse com “fogo aceso atual”.
Somente em 1834, cinquenta anos depois, na Era Vitoriana que mandava as crianças trabalharem “duro na terra”, um novo Ato dos limpadores de chaminé elevou a idade mínima para 10 anos de idade, como aprendizes. Seis anos depois um novo Ato proibiu recrutar menores de 16 anos para aprendiz, e limpador de chaminé somente com 21 anos.
Porém, os garotos eram recrutados para carregar os sacos de fuligem, mas quando entravam nas casas, subiam pela chaminé. Todos sabiam, mas ninguém ia para a cadeia por isso. Somente em 1875, quando o limpador de chaminés precisava licença para trabalhar é que o abuso começou a diminuir; mas na verdade, somente no início do século XX, quase 200 anos depois, quando já havia maior educação pública a respeito e com o surgimento da tecnologia de limpar com escovas giratórias é que o abuso das crianças limpadoras de chaminés terminou.
Observa Grunspun Haim que, acompanhando somente legislação como cura de doenças sociais, esta pode demorar 200 anos. Examinando a história nas tentativas de regular o trabalho infantil, podemos verificar e confirmar como o padrão foi semelhante ao dos limpadores de chaminés.[12]
Com o surgimento do lampião a gás e, posteriormente, da luz elétrica, a luz solar não demarcava mais o início e término da jornada de trabalho, pois as limites desapareceram.
O célebre relatório do médico Villermé, alusivo aos trabalhadores franceses do século XIX revela que só 27 dos filhos dos operários empregados chegavam a completar 10 anos de idade e os outros morriam entre sete e dez anos. Eles trabalhavam durante 16 ou 17 horas diárias.
Em seu relatório, ele anotou que:
“Isso não é trabalho que se impõe a crianças de seis a oito anos, mal alimentadas, obrigadas a percorrer, desde as cinco horas da manhã, grandes distâncias que as separavam das fábricas. Em 1871, a autoridade médica inglesa informou ter encontrado uma criança de três anos em uma fábrica de fósforo de Berthnal Green”. [13]
4. Encíclica Rerum Novarum e o surgimento do Direito do Trabalho
A lei de bronze, em vigor à época, considerava o trabalho uma mercadoria, cujo preço era determinado pela concorrência, que tendia a fixá-lo no custo da produção e estabilizá-lo a um nível próximo ao mínimo de subsistência. As organizações de trabalhadores, partidárias da violência, pressionaram o Poder Público exigindo uma solução para a questão social, com a qual se preocupou também a doutrina social da igreja católica, com a edição da Encíclica Rerum Novarum, em 1891, de Leão XIII, passando pela Quadragesimo Anno, em 1931, e pela Divini Redemptores, também de 1931, ambas do Papa Pio XII.
A Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, trazida a lume em Roma, em São Pedro, aos 15 de maio de 1891, após minuciosa exposição sobre as “gravíssimas dificuldades que complicam a questão operária”, proclamou a necessidade de conciliação entre a classe rica e classe pobre, tornando célebre a frase “não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital”.
Leão XIII também fez menção específica sobre as crianças e as mulheres, declarando vergonhosa e desumana a utilização de homens como vis instrumentos de lucros, que não eram estimados “senão na proporção de seus braços”. Mais adiante, de forma categórica: “Enfim, o que pode fazer um homem válido e na flor da idade, não será equitativo exigi-lo duma mulher ou uma criança. Especialmente a infância – e isto deve ser estritamente observado – não deve entrar na oficina senão depois que a idade tenha desenvolvido nela as forças físicas, intelectuais e morais; do contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á murchar com um trabalho demasiado, precoce, a dar-se-á cabo de sua educação”.
Observa Alice Monteiro de Barros:
“A doutrina social da igreja pregava que o Estado deve intervir nas relações de trabalho para assegurar o bem comum; a propriedade não é um direito absoluto, e ao dono corresponde, na realidade, a função de administrador, devendo submeter-se às limitações necessárias, dada sua função social; o trabalho é título de honra, que toca a dignidade da pessoa humana; o salário deve ser justo e suficiente para manter o trabalhador e sua família de forma decorosa; o descanso deverá permitir-lhe a reposição de forças e o cumprimento de deveres religiosos; não devem ser exploradas as mulheres e crianças; trabalhadores e empregadores não devem enfrentar luta de classes; a sociedade deve organizar-se corporativamente e as organizações profissionais deverão regular as relações de trabalho; e o Estado deve intervir para regular e fixar condições em favor de quem não conta com outra sorte de proteção”.[14]
A Encíclica Rerum Novarum, ao defender abertamente a intervenção do Estado nas relações de trabalho, iniciou uma linha do catolicismo que impressionou governantes e vigora até nossos dias, com a Laborem Exercens, do Papa João Paulo II, de 14 de setembro de 1981, que também tratou do tema.
Ainda assim, o Estado omitiu-se, transformando-se em instrumento de opressão contra os menos favorecidos, colaborando para a dissociação entre capital e trabalho. Ao mesmo tempo a indústria reuniu os operários, que se sentiam parte de um grupo profissional.
Interessante notar que a intenção do empregador ao reunir os operários era justamente controlar qualquer movimento que se opusesse ao bom funcionamento da empresa, que atrapalhasse o capitalismo que se instalava. Mas ocorreu justamente o oposto, os empregados acabaram se reunindo em torno de uma aspiração comum, a defesa de seus direitos, de melhores salários e condições de trabalho, que acabou por fazer nascer o movimento sindical, proibido à época.
Começa então um conflito entre o coletivo e o individual, ameaçando a estrutura da sociedade e sua estabilidade, tornando-se imperiosa a confecção de um ordenamento jurídico com um sentido justo de equilíbrio.
Todos os ramos do Direito foram se insurgindo contra os princípios liberais e reclamando modificação em seus institutos, e, igualmente, melhorias nas relações de trabalho. Assim também, determinadas ideologias foram se manifestando, opondo-se aos abusos da propriedade privada.
As causas originárias do intervencionismo estatal encontram-se no aparecimento das massas, no surgimento de uma consciência coletiva e de um sentimento de solidariedade. A princípio, este intervencionismo teve um caráter jusnaturalista, humanitário, de proteção ao oprimido, com bases ligadas mais à filosofia que à teleologia.
O cunho humanitário da intervenção estatal refletiu-se no aparecimento do Direito do Trabalho em praticamente todos os Estados, ou seja, quem provocou grande parte da legislação laboral, de caráter mais humanitário que jurídico, foram os aprendizes, as crianças, as mulheres e os acidentados.
Com o surgimento da força operária, apoiada pelas organizações profissionais, em meados do século XIX, bem como em função do caráter internacional dos movimentos laborais, o intervencionismo estatal entra em sua etapa política.
Impende acrescentar que, mesmo no império da doutrina individualista clássica, havia limites à autonomia da vontade: a lei, a ordem pública e os bons costumes.
Ensina Alice Monteiro de Barros:
“A criação do Direito, incluindo-se aí o Direito do Trabalho, advém de dois processos: o heterônomo e o autônomo, que, por sinal, correspondem, respectivamente, a dois segmentos diversos, o do chamado Direito necessário, e o do Direito voluntário. Aquele estabelece um conjunto de preceitos obrigatórios, impostos pela vontade do Estado, independentemente de qualquer emissão volitiva dos contratantes, e se aplica indistintamente a todos os que se encontrarem no suposto de fato previsto pela lei. Já as normas que pertencem ao Direito voluntário se situam numa esfera de liberdade à qual os que querem obrigar-se com reciprocidade podem fazê-lo livremente”.[15]
Somente no século XIX, na Europa, em um mundo profundamente marcado pela desigualdade econômica e social, surge o Direito do Trabalho, uma legislação predominantemente imperativa, de força cogente, irrenunciável pelas partes. Paralelamente aos condicionamentos impostos pelo legislador, o rol de normas dispositivas existentes é reduzido, limitando a autonomia da vontade.
Os autores espanhóis Granizo e Tothvoss dividiram a história do Direito do Trabalho em quatro períodos: formação, intensificação, consolidação e autonomia.[16]
No período da Formação, de 1802 a 1848, surge, na Inglaterra, a primeira lei verdadeiramente tutelar, dentro do espírito do Direito do Trabalho, intitulada Moral and Health Act (1802), ou seja, Ato da Moral e da Saúde. Essa lei proíbe o trabalho de crianças e adolescentes no período noturno e por duração superior a 12 horas diárias. Nesse período, Napoleão restabeleceu na França, em 1806, os conseils de prud’hommes, órgãos destinados a dirimir as controvérsias entre fabricantes e operários, considerados por alguns como precursores da Justiça do Trabalho.
Em 1831 proibiu-se na França o trabalho de crianças em minas; em 1839, na Alemanha, teve início a edição de normas sobre o trabalho da mulher e da criança. Em 1824 a coalizão deixa de ser crime na Inglaterra.
No segundo período, da Intensificação, de 1848 a 1890, os acontecimentos mais importantes foram o Manifesto Comunista de Marx e Engels e a implantação da primeira forma de seguro social na Alemanha, no governo de Bismarck, em 1883.
O terceiro período, da Consolidação, de 1890 a 1919, é caracterizado pela publicação da Encíclica papal Rerum Novarum, de Leão XIII, preconizando o salário justo. Ainda neste período realizou-se em Berlim, em 1890, importante conferência a respeito do Direito do Trabalho.
O quarto e último período, da Autonomia, de 1919 até nossos dias, caracteriza-se pela criação da OIT – Organização Internacional do Trabalho, em 1919. A ação internacional desenvolve importantíssimo trabalho de universalização do Direito do Trabalho.
O Tratado de Versailles, de 1919, em seu artigo 427, não admite que o trabalho seja mercadoria, assegura jornada semanal máxima de 8 horas, igualdade de salário para trabalho de igual valor, repouso semanal, inspeção do trabalho, salário mínimo, dispensa tratamento especial ao trabalho do adolescente e da mulher, além de dispor sobre direito sindical. Neste mesmo ano começa na Europa a constitucionalização do Direito do Trabalho, com a Constituição alemã de Weimar.
No Brasil, Evaristo de Moraes Filho, aponta como principais causas do aparecimento do Direito do Trabalho no contexto mundial:
“… os vícios e as consequências da liberdade econômica e do liberalismo político; o maquinismo; a concentração de massas humanas e de capital; as lutas de classes, com as consequentes rebeliões sociais, com destaque para os ludistas ou cartistas na Inglaterra; as revoluções de 1848 e 1871, na França, e de 1848, na Alemanha; acordos livres entre grupos econômicos e profissionais regulando as relações entre patrões e operários, mais tarde reconhecidos como lei pelo Estado; a Encíclica Rerum Novarum; a primeira guerra, de 1914 a 1918, cujo fim conferiu ao Direito do Trabalho posição definitiva nos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais”.[17]
Havia de fato a necessidade do Estado intervir na relação entre empregado e empregador, em virtude dos abusos praticados pelo primeiro. Ressalte-se que havia, ainda, o risco de grandes revoltas populares causadas pelo profundo descontentamento com a exploração desumana e os salários ínfimos.
Os empregadores não tinham preocupação em relação às pessoas que estavam por trás das máquinas, a mão-de-obra era farta e barata, o custo da máquina era elevado, e esta precisava ser utilizada no máximo de sua operosidade, o objetivo era produzir o máximo possível, ainda que culminasse com o enfraquecimento da saúde, ou mesmo custasse a vida do trabalhador.
Consoante ensina Godinho Delgado:
“O Direito do Trabalho é produto cultural do século XIX e das transformações econômico-sociais e políticas ali vivenciadas. Transformações todas que colocam a relação de trabalho subordinado como núcleo motor do processo produtivo característico daquela sociedade. Em fins do século XVIII e durante o curso do século XIX é que se maturaram, na Europa e Estados Unidos, todas as condições fundamentais de formação do trabalho livre, mas subordinado, e de concentração proletária, que propiciaram a emergência do Direito do Trabalho”.[18]
As primeiras Constituições que trouxeram institutos do Direito do Trabalho foram a Constituição Mexicana de 1917, e a Constituição Alemã de Weimar, de 1919.[19]
As seguir, algumas medidas (Factory Acts) relativas ao trabalho de crianças e adolescentes nas fábricas, durante o século XVIII[20]:
1819 – proibia o emprego e crianças menores de nove anos de idade em fábricas de fiação e tecelagem, assim como o trabalho noturno para menores de dezesseis anos. As jornadas de trabalho eram de doze horas, não se levando em conta os horários de refeições e intervalos.
1825 – regulamentação da jornada de trabalho, tendo em vista a duração dos intervalos. O horário de almoço não poderia exceder 1 hora e 30 minutos, e a jornada de trabalho, 13 horas e 30 minutos.
1831 – vedação do trabalho no período das 19h:30m às 5h:30m, em fábricas de tecelagem, lã e algodão a menores de vinte e um anos; e jornada máxima de treze horas para menores de dezoito anos.
1834 – proibição do trabalho a menores de nove anos. Crianças entre nove e treze anos podiam trabalhar 48 horas por semana ou 9 horas por dia; de quatorze a dezoito anos trabalhariam 69 horas por semana ou 12 horas por dia. Proibição total do trabalho noturno para menores de dezoito anos.
1844 – crianças de nove a treze anos poderiam trabalhar 6 horas e 30 minutos por dia.
1847 – crianças de treze a dezoito anos poderiam trabalhar 10 horas diárias.
1850 – fim do sistema de turnos pois, até aqui, a lei não previa uma jornada de trabalho contínua. Regulamentação do início e fim da jornada de trabalho igual a 60 horas semanais, 7h:30m aos sábados e 10h:30m nos demais dias.
1867 – todas essas concessões passaram a ser atribuídas igualmente aos pequenos estabelecimentos artesanais.
1889 – Início da jornada de trabalho de 8 horas diárias.
Importante ressaltar que nem todas estas leis foram observadas. Na maioria dos casos o Estado não se preocupava com o efetivo cumprimento da legislação, bastando a aparência de sua observância. Os direitos dos trabalhadores foram conquistados e respeitados com muita luta e ao longo de muitas décadas.
Conclusão
Em que pese a evolução legislativa e jusrisprudencial, o pensamento social pouco se alterou. Temos pessoas com aparência e estilo de vida modernos, porém com preconceitos e certezas que datam do século XVIII.
Ainda há na sociedade grande quantidade de pessoas que acreditam que a criança e adolescente precisa se submeter a jornada de trabalho semelhante à do adulto para que se mantenha longe de crimes e drogas.
Não se credita o crescimento moral, físico e psicológico da criança ao apoio da trilogia Estado, sociedade e família; em se tratando de adolescentes de parcos recursos financeiros, estes são vistos como infratores em potencial, como se bastasse apenas o surgimento da oportunidade para o criminoso aflorar.
A criança precisa de proteção, orientação e boas escolas, assim teremos pessoas com capacidade de autodeterminação, com aptidão para o trabalho, mas no momento certo, ou seja, ao iniciar sua vida adulta.
Não é justo exigir de uma criança, pessoa ainda em formação, a mesma responsabilidade de um adulto, sob risco de aniquilação da infância, importante etapa de crescimento e aprendizagem infantil.
A legislação pode obrigar à mudança social, mas é importante que se tenha boa vontade política de seguir o mandamento constitucional de proteção à criança e adolescente; é necessário que o Estado comece a agir com responsabilidade, orientando e formando jovens preparados para o trabalho, para a vida saudável.
A criança tem direito à felicidade, a desfrutar de sua infância, a ser adulta no momento certo.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlndia. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Advogada do Município de Uberlândia
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, advogada
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