Resumo: O presente artigo busca compreender a legislação vigente, bem como o texto projetado do Código de Processo Civil, através de uma interpretação histórica e do conhecimento do contexto social brasileiro em que se desenvolveu a sistemática da execução contra a Fazenda Pública como uma prerrogativa processual. Para tanto realiza-se um estudo do direito comparado, em especial de Portugal, país o qual herdamos influências sociais e até a mesma fonte normativa quando compartilhávamos do mesmo ordenamento jurídico dos tempos do Brasil colônia. Assim, analisa-se à luz da Constituição Federal, a validade (ou não) das propostas de modificação do Código de Processo Civil quanto à execução contra a Fazenda Pública. Por fim, verifica-se a eventual conveniência e utilidade em realizar tais transformações diante das reformas pontuais já realizadas no ordenamento jurídico processual, sem que se perca de vista a necessária manutenção da coerência do sistema processual-constitucional.
Palavras chaves: Execução. Fazenda. Precatório. Projeto. Processo.
Sumário: Introdução. 1. Contexto Histórico Brasileiro. 2. A Disciplina no Direito Comparado. 2.1. Os diferentes sistemas de jurisdição: a unicidade e a duplicidade. 2.2. A execução contra Fazenda Pública em países de origem do sistema common law. 2.3. A execução contra Fazenda Pública no ordenamento alemão. 2.4. A execução contra Fazenda Pública em Portugal. 3. Controvérsias Atuais na Execução contra Fazenda Pública. 3.1. A disciplina constitucional. 3.2. Normas infraconstitucionais que regulamentam a matéria. 3.3. A natureza jurídica do procedimento de requisição de precatório. 4. Código Projetado. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O regime diferenciado de execução para pagamento de quantia certa contra a Fazenda Pública destaca-se como uma das principais prerrogativas processuais inerentes aos entes de direito público.
Observa-se que tal prerrogativa possui status constitucional, conforme depreende-se da leitura dos art. 100 e seguintes da CRFB/88, diferentemente das demais prerrogativas, como o prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer que encontra previsão em norma infraconstitucional (art. 188 do Código de Processo Civil), demonstrando-se, assim, a importância do regime de execução contra a Fazenda Pública.
Este tratamento jurídico distinto, em que pese tratar-se de aparente lesão ao princípio da igualdade, possui sucedâneo no princípio da razoabilidade e na supremacia do interesse público.
A supremacia do interesse público sobre o particular constitui um dos alicerces do direito público e resulta da necessidade de irredutibilidade do bem comum à soma dos bens individuais[1]. Ao Estado cabe o dever soberano de indicar o conteúdo do termo interesse público, que em lições de Leonardo Carneiro representa
“Interesse público constitui um conceito jurídico vago ou indeterminado, merecendo análise no caso concreto para, diante do princípio da proporcionalidade, ser verificada a sua presença. Constatada a presença do interesse público, este deve prevalecer sobre o particular. Não é esse o entendimento de Raquel Cavalcanti Ramos Machado, para quem somente é possível referir-se à supremacia do interesse público sobre o particular, “quando se tratar de conflito entre interesse público primário e interesse particular não protegido por norma de direito fundamental. E ainda nesse caso, a Administração terá de agir proporcionalmente, ou seja, sempre visando ao atendimento do interesse público primário, restringindo o interesse particular do cidadão somente na medida do estritamente necessário”.[2]
Assim, a finalidade dos atos administrativos deve ser formada pelo interesse público, o qual não significa o conceito simplista de soma dos interesses particulares, sendo certo que a Administração é competente para definir o interesse público[3] naquilo que não constitui domínio reservado ao Legislador.
A necessidade de conferir prerrogativas processuais à Fazenda Pública decorre justamente da atividade de tutelar o interesse público, exigindo-se, assim, condição diferenciada das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito privado quando atuam em juízo, pois
“(…) quando a Fazenda Pública está em juízo, ela está defendendo o erário. Na realidade, aquele conjunto de receitas públicas que pode fazer face às despesas não é de responsabilidade, na sua formação, do governante do momento. É toda a sociedade que contribui para isso. (…) Ora, no momento em que a Fazenda pública é condenada, sofre um revés, contesta uma ação ou recorre de uma decisão, o que se estará protegendo, em última análise, é o erário. É exatamente essa massa de recurso que foi arrecadada e que evidentemente supera, aí sim, o interesse particular. Na realidade, a autoridade pública é mera administradora”[4].
Desta forma, as prerrogativas processuais da Fazenda Pública atendem ao sentido aristotélico de igualdade, de tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida de sua desigualdade, uma vez que a Administração Pública mantém uma burocracia inerente à sua atividade, tendo dificuldade de ter acesso aos fatos, elementos e dados da causa. O volume de trabalho que cerca os advogados públicos impede, de igual modo, o desempenho de suas atividades nos prazos fixados para os particulares.
Ademais, enquanto um advogado particular pode recusar determinadas causas, selecionando as que lhe são convenientes e tenha possibilidade de êxito, o advogado público não pode declinar de sua função[5], devendo proceder a defesa da Fazenda Pública em toda e qualquer causa que lhe seja designada a atuação.
Observa-se que, em ordenamentos jurídicos estrangeiros de tradição republicana e democrática, a jurisdição exercida nas causas da Fazenda Pública é diferenciada. O contencioso desloca-se do Poder Judiciário e é exercido no âmbito da própria Administração Pública, chamando de “Contencioso Administrativo” como ocorre do direito francês, italiano e português. No direito português a jurisdição administrativa decorre de determinação constitucional, criando uma categoria diferenciada de tribunais administrativos e fiscais.
Por conseguinte, justifica-se a manutenção das prerrogativas processuais, dentre as quais o regime de execução diferenciado, equivocadamente interpretadas como privilégios, em favor da Fazenda Pública, por ser sua função principal, a promoção do interesse público, o qual deve ser preservado prevalecendo sobre os interesses particulares.
E não por outra razão que o projeto de novo Código de Processo Civil manteve tais prerrogativas, contudo, trazendo alterações as quais serão objeto do presente estudo. Assim, pretende-se verificar, à luz de uma leitura constitucional, se as alterações propostas pelo código projetado se encontram em consonância com a preservação do interesse público ou se haveria inconstitucionalidade em determinadas modificações que pretendem dispensar tratamento paritário entre a Fazenda Pública e o particular, quando em verdade não o são.
1. CONTEXTO HISTÓRICO BRASILEIRO
Desde os tempos do Brasil Colônia a Fazenda estava submetida ao mesmo regime de execução que o particular, ou seja, a expropriação por meio de penhora independente da natureza do bem, para satisfação da obrigação.
O sistema embrionário da cláusula de inalienabilidade e por consequência a de impenhorabilidade foi instituído por uma Lei de 1582, que dispunha da impenhorabilidade de bens de propriedade de Fidalgos, Cavalheiros e Desembargadores, ou seja, tratava-se de um privilégio dos nobres, não havia relação com a afetação do bem a finalidade pública, ou ainda a sua natureza de bem público.
A Constituição do Império, de 1824 previa ainda de forma tímida certa prerrogativa da Fazenda, de forma que seus bens apenas poderiam ser alienados com autorização do Legislativo, afastando parcialmente a Fazenda da forma de execução destinada ao particular.
A primeira regulamentação sobre a impenhorabilidade no ordenamento jurídico brasileiro foi introduzida por uma norma infraconstitucional (Instrução Normativa de 1851 do Diretório do Juízo Fiscal e Contencioso dos Feitos a Fazenda), decorrente da interpretação do texto da Constituição de 1824. O texto constitucional dispunha que para a alienação de bens públicos era necessária a autorização do Poder Legislativo por meio de decreto, portanto, os bens públicos seriam inalienáveis, até que fosse editada a autorização legislativa para tanto.
A Constituição de 1934 foi a primeira a conferir status constitucional ao regime de precatório, apenas para a Fazenda Federal, omitindo-se quanto à esfera estadual e municipal. A Constituição de 1937 trouxe confusão quanto ao gênero da palavra, denominando o regime de “precatória”.
A Constituição de 1946 estendeu o regime de precatório a todos os demais entes da Federação. A Constituição de 1967 apresentou um avanço significativo por determinar a inclusão no orçamento das entidades de direito público da verba necessária para cobrir os precatórios, na tentativa de implementar certa responsabilidade fiscal para pagamento de débitos.
Tratava-se de uma técnica processual para obter a execução da sentença, sendo elevada esta regulamentação a status constitucional, pois acarreta um confronto potencial entre os Poderes, exigindo um tratamento próprio no texto da Constituição de 1967, uma vez que o Presidente do Tribunal atua em uma função atípica: administrativa para inserir no orçamento a previsão de despesas para a Administração Pública.
Em breve estudo sobre direito comparado, o qual se fará a seguir, buscando institutos análogos em ordenamentos jurídicos de outros países, não se encontra nenhuma referência a regime de pagamento similar ao precatório, tratando-se de uma criação jurídica e eminentemente brasileira, decorrente das diferentes influências externas em nosso ordenamento.
Até mesmo na Constituição de Portugal, país o qual nos deixou um grande legado jurídico em razão da colonização, há previsão expressa em seu art. 210 quanto à responsabilidade objetiva aos administrados quando do não cumprimento de decisões judiciais.
O pagamento por meio do regime de precatório busca coibir abusos, favorecimentos, preterições, e, principalmente, a corrupção, materializada na prática da advocacia administrativa. O regime de precatório tem o escopo de estabelecer uma ordem de preferência para o pagamento dos débitos da Fazenda Pública decorrentes de condenação judicial, à luz do princípio da impessoalidade, que deve permear toda a atuação administrativa, expresso no art. 37, caput, da Constituição Federal
2. A DISCIPLINA NO DIREITO COMPARADO
2.1. Os diferentes sistemas de jurisdição: a unicidade e a duplicidade.
Antes de abordar o estudo sobre o direito comparado, para fins de identificar a disciplina da execução contra a Fazenda Pública em ordenamentos estrangeiros, é indispensável verificar as espécies de sistemas jurídicos em que tais ordenamentos se desenvolvem.
Observa-se que há distintas formas de relacionamentos entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em que pode haver uma unidade ou duplicidade de jurisdição. Os sistemas jurídicos também podem ser de duas principais diferentes espécies, (i) Romano-Germânico e (ii) common law.
No sistema Romano-Germânico a lei é superior a qualquer outra fonte do direito, diante da necessidade de observância das regras devido a complexidade das relações sociais que obriga a conferir prioridade a normas pré-estabelecidas, entre os elementos de uma solução justa, diferentemente do Common Law que a lei apenas desempenha, na história do direito inglês, uma função secundária limitando-se a preencher lacunas ou complementos á obra da jurisprudência.
A jurisprudência no sistema Romano-Germânica apenas possui importância como fonte de interpretação da lei. Verificando-se a propensão atual dos juristas na procura de um apoio em um texto legal, no sistema jurídico do Common Law a jurisprudência é a principal fonte do direito, tendo como princípios a organização judiciária e a regra do precedente. Para este sistema a principal fonte do direito é a jurisprudência seguida da lei, o costume, a doutrina e a razão.
A doutrina durante muito tempo foi fonte fundamental do direito no sistema Romano-Germânica, pois era nas universidades que os princípios da doutrina foram postos em evidência, mas no sec. XIII ao XIX, substituiu-se a doutrina pela lei, com o triunfo dos ideais democráticos e a codificação. No Common Law a doutrina foi subestimada na Inglaterra onde o direito deve menos aos professores e mais aos juízes, que por intermédio da jurisprudência faz valer o direito.
Outra característica do sistema Romano-Germânico, adotado pelo sistema jurídico brasileiro, é o fato de ter sido elaborado, por razões históricas, para reger as relações privadas entre os cidadãos, como bem observado pelo professor português Marcelo Rebelo de Souza
“(…) no domínio do Direito Privado, por reconhecer à lei um lugar de relevo entre os modos de criação do Direito (embora como alguma hipocrisia de permeio), por minimizar o papel do costume, por conceber a subordinação estrita da jurisprudência à lei e por revelar uma técnica apurada no tratamento abstracto do material dedutivo, abstracto e genérico, em detrimento do raciocínio indutivo, concreto e pontual. A interpretação, a integração de lacunas e a aplicação revestem-se de carácter essencialmente normativo. O Estado e a Administração Pública ancestralmente dominam a sociedade civil”.[6]
O sistema do Common Law está ligado ao exercício do poder real, portanto, na sua formação e desenvolvimento há uma relação maior com o direito público. Este sistema se caracteriza pelo direito consuetudinário, jurisprudencial e baseado em precedentes julgados pelas Cortes de Justiça, com força vinculante.
Cotejando os dois sistemas, observa-se que os juristas do continente europeu, ligados ao sistema do direito Romano-Germânico, voltam-se para regras substanciais de cada direito (substantive law), relegando o processo a segundo plano, assim como tudo o que diz respeito às provas ou à execução de decisões da justiça (adjetive law), numa hierarquização que remonta aos romanos, os quais faziam distinção entre os jurisconsultos e os advogados.
O sistema do Common Law, não se caracteriza por um direito acadêmico ou de princípios, mas um direito de processualistas e de práticos, afirmando-se que o grande jurista da Inglaterra é o juiz. Em lições de Francisco Wildo a distinção entre os sistemas está intrinsecamente relacionada à importância do direito processual para alcançar o deslinde da demanda:
“Na Inglaterra, a maioria dos litígios que tenham por base a chamada administrative law ou o direito criminal é resolvida pelos tribunais ditos “inferiores”, por comissões do contencioso administrativo e por árbitros privados, à semelhança da, entre nós, introduzida (à época da 1ª edição desta obra, naturalmente) Lei 9.307/1996, limitando-se os Tribunais Superiores a exercerem um controle sobre a maneira como interpretam e aplicam o direito e, em muitos casos, sobretudo a respeito das comissões e do contencioso administrativo, limitando-se a apreciar o modo como foi conduzido o processo.
A distinção é bem significativa. Para o jurista inglês, seguir um processo bem regulado, em que se observe a lealdade, forçosamente conduzirá a uma solução justa. Para o jurista francês – que aqui representa o sistema romano-germânico, a que pertencemos – ao contrário é necessário que a lei diga ao juiz qual a solução de justiça e, se o juiz já conhece essa solução, não se deve impedi-lo de chegar a ela, regulamentando com excessiva minúcia o processo e as provas”[7].
Desta forma, observa-se que para o sistema Romano-Germânico haveria uma hostilidade concernente à intervenção dos Tribunais Judiciais nos litígios em que a atividade administrativa integrasse a lide, à luz de uma interpretação extremada do princípio da separação de poderes, dando origem, assim, ao sistema de dupla jurisdição, admitindo-se a justiça administrativa. Assim, depreende-se que a unicidade de jurisdição não é inerente a todo estado democrático de direito.
Na Itália e na França observa-se a duplicidade de jurisdição, ou seja, a Administração Pública não estaria submetida ao poder da jurisdição comum, destinada as relações jurídicas entre particulares. Justifica-se a não submissão da Administração ao Judiciário, uma vez que os atos administrativos são dotados de auto-executoridade, portanto, dispensa-se a coerção do particular por meio do Judiciário, uma vez que a própria administração pode exercê-lo.
No sistema dúplice de jurisdição, a “justiça administrativa” tem lugar quando o demandante é o particular sob o fundamento de alegada lesão à direito por ato da Administração Pública.
A duplicidade de jurisdição remonta dos tempos da Revolução Francesa, imbuída dos princípios da separação dos poderes, em contraposição ao absolutismo monárquico, em que a figura do Rei concentrava o exercício dos três poderes de forma despótica. Assim, a Lei revolucionária francesa n. 16 de agosto de 1970, dispôs sobre a organização judiciária, estabelecendo a total impossibilidade de qualquer controle por parte do Judiciário de atos da Administração. A mesma organização judiciária foi observada também na Itália onde
“… os tribunais civis italianos não só não estão impedidos de exercer algum poder cautelar de suspensão do ato administrativo, impugnado por lesão de direitos subjetivos, como nem mesmo podem anular ao administrativo, mesmo se declarado lesivo a um direito fundamental, devendo limitar-se à condenação dos ressarcimentos dos danos.”[8]
Contudo, o sistema construído após a Revolução Francesa nos países de tradição Romano-germânica levou a extremada e paradoxal separação de poderes, em que não se permitia sequer o salutar controle entre os poderes. Criava-se, assim uma espécie de “Tribunal de Exceção” as avessas, em que a Administração Pública, e, por conseguinte os atos administrativos, gozavam de imunidade à apreciação de lesão a direito dos particulares pelo Judiciário.
Por outro lado, o sistema da unicidade da jurisdição, o qual permite o controle jurisdicional sobre a Administração Pública constituiu-se como um princípio da common law, possibilitando a responsabilização da Administração Pública por seus atos.
No que tange a evolução histórica do controle da Administração Pública pelo Poder Judiciário no Brasil, em que pese o modelo de sistema jurisdicional observar o modelo Romano-Germânico, a jurisdição dúplice não foi adotada por nosso ordenamento jurídico atual.
A experiência brasileira de exercício da jurisdição iniciou no período colonial, quando não havia meios específicos de proteção dos particulares contra atos ilegais ou eivados de abuso de poder da Administração Pública. Contudo, era admitida a inauguração de contencioso em face da Fazenda pelos meios processuais ordinários de resolução de conflitos.
Em demandas com consequências financeiras institui-se em legislação datada de 1761 a entidade do “Tesouro Geral e Real do Erário”, e criou-se o Conselho da Fazenda, para fins de julgar causas que afetassem as rendas e bens da Coroa. Assim, o Conselho da Fazenda tinha a competência não de anular ou suspender atos administrativos, proferindo assim uma sentença constitutiva, mas apenas o poder de proferir sentença condenatória, seja para ressarcimento, dos prejuízos ou para adimplemento específico devido pela Fazenda.
No período imperial, com a independência em 1822 e a Constituição outorgada em 1824, o ordenamento jurídico brasileiro passou a conceber o quarto poder: o Moderador. Havia a jurisdição contenciosa comum, quando envolvesse a Fazenda em questões civis, a competência seria do Juízo Privativo dos feitos da Fazenda determinada pela Lei 242 de 29/11/1941, e a jurisdição administrativa ficava a cargo do Conselho de Estado, criado pelo Decreto 222 de 09/09/1842. Neste breve período havia uma duplicidade de jurisdições e para fins de dirimir conflitos de competência recorrentes o Imperador aprovou o parecer jurídico elaborado por dois importantes juristas da época em que se afirmava que
“O contencioso administrativo, que é excepcional, só se compõe das questões que, ou por atenção à sua natureza ou por conveniência do serviço, são destacadas expressamente por lei do domínio do foro ordinário para a competência dos tribunais administrativos, como limitação especial daquela norma ou princípio geral”.[9]
Com a proclamação da República em 1889, adotou-se a unicidade da jurisdição, abolindo-se o contencioso administrativo. Portanto, em que pese nossa tradição Romano-germânica de codificação do ordenamento jurídico, nosso sistema de jurisdição segue características de países que adotaram o commom law, como os Estados Unidos e a Inglaterra em que há unicidade de jurisdição.
Por conseguinte, o Brasil construiu um sistema híbrido de controle dos atos da Administração pelo Poder Judiciário, diverso dos demais sistemas acima descritos, com amplo controle judicial da Fazenda, criando, inclusive, instrumentos como o mandado de segurança, para impugnar judicialmente atos administrativos eivados de ilegalidade ou abuso de poder.
O ordenamento jurídico brasileiro, desde então estabeleceu uma justiça de tratamento isonômico, aplicando a lei processual a qualquer das partes, indistintamente, não excluindo do judiciário nenhuma lesão a direito, independente da natureza da relação jurídica ser de direito público ou privado, salvo no tocante a execução das dívidas fazendárias, a qual deu origem ao regime de pagamento denominado precatório.
2.2. A execução contra Fazenda Pública em países de origem do sistema common law
Como o ordenamento brasileiro se inspirou no modelo de unicidade de jurisdição tradicionalmente verificado nos países que adotaram o regime do common law, em que os atos administrativos estão submetidos ao controle judicial, deste sistema decorreu a criação do regime de requisição de pagamento por meio do regime de precatório, de status constitucional.
Contudo, observa-se que nos Estados Unidos da América, regido pelo sistema da common law, o processo executivo, independente das partes, não possui natureza jurisdicional. A atividade jurisdicional se encerra com o provimento da decisão de mérito para o deslinde da ação, enquanto a fase executiva da decisão é regida por legislação estadual, tratando-se de atividade meramente administrativa:
“A execução de uma decisão local é meramente administrativa. O vencedor apresentará uma cópia da sentença ao sheriff que expedirá um mandado de execução (writ of execution).
Esse mandado conterá uma determinação para que qualquer pessoa ou empresa que controle a propriedade do devedor a entregue à autoridade, a fim de satisfazer o crédito.”[10]
Nos Estados Unidos da América o cumprimento de decisões judiciais não admite desatendimento ou resistência, e para obter a efetivação da determinação judicial criou-se o instituto da contempt of Court, definido como o poder atribuído a órgãos governamentais de punir a conduta desdenhosa em respeito as decisões judiciais, sendo considerado um comportamento de desobediência[11] a uma ordem ou qualquer conduta intencional de desacato aos processos de uma Corte.
Ocorre que, a unicidade do sistema de jurisdição norte americano não representa o amplo controle dos atos da Administração Pública pelo poder Judiciário. De acordo com a doutrina sovereign immunity ou governamental immunity em tradução livre denominando-se “imunidade governamental”, ou seja, o ente público não pode ser processado nem julgado salvo nas hipóteses legais.
Assim, para o governo federal americano, bem como em muitos estados, há leis de renuncia a esta imunidade, permitindo a instauração ações em face da Fazenda nas hipóteses que especifica. O primeiro diploma legal que disciplina as possíveis ações judiciais contra a Administração Pública refere-se aos litígios decorrentes de contratos de natureza pública, em que o particular alega inadimplemento da Administração Pública.
Admite-se ainda, conforme o The Tort Claims Act, a propositura demandas que dizem respeito a questões tributárias, demandas superiores a dez mil dólares, ou ainda com fundamento na Constituição Americana, em ato do Congresso ou em regulamento de órgão do Poder Executivo. Incluem-se, ainda, as questões decorrentes de contrato explícito ou implícito com os Estados Unidos, ou reparações líquidas ou ilíquidas não baseadas no direito civil[12].
A execução de sentenças proferidas contra a Fazenda Pública são classificadas pelo valor, (i) em condenações de importância superior a cem mil dólares o Tribunal de Justiça deve encaminhar os autos ao Congresso para que este confira se os cálculos e o valor apontado como devido está correto, após, é transmitido ao Ministério da Fazenda um certificado para que este emita um cheque em favor do credor para pagamento, (ii) as condenações em valor inferior a cem mil dólares não há análise prévia do Congresso, os documentos necessário são encaminhados diretamente ao Gabinete-Geral da Contabilidade que após a verificação emite um cheque que é enviado pelo correio ao autor.
A partir de 1956 o Congresso editou uma norma que criou um fundo específico para pagamento de indenizações, para as quais não havia provisão específica. Verifica-se que os EUA também realizam previsão orçamentária para pagamento de indenização decorrentes de condenações judiciais, contudo o fazem de forma preventiva, como provisão de despesas indeterminadas e não como realizado no Brasil em que se insere no orçamento despesas já líquidas e certas, com decisão transitada em julgado.
Acrescenta-se, ainda, que se admite a compensação com débitos do autor, contudo, se tratar de uma faculdade, diferentemente da forma como ocorre no Brasil em que a propositura da compensação é uma prerrogativa da Fazenda, prevista no art. 100, §10[13] da Constituição da República, que em caso de entender conveniente exercê-la, o credor não pode manifestar-se contrariamente. Em hipótese de o credor pretender obter a compensação, este não possui direito subjetivo para requerê-la, pois a compensação entre precatório e débitos tributários no direito brasileiro depende da conveniência e oportunidade da Fazenda.
2.3. A execução contra Fazenda Pública no ordenamento alemão
A doutrina tradicional alemã, Otto Mayer considerava inadmissível a execução forçada contra a Fazenda Pública, pois em um Estado de Direito não seria necessário exigir que o Estado pudesse ser coagido para que respeitasse e satisfizesse seu próprio Direito[14].
Contudo, após a edição da Lei Fundamental Bonn a possibilidade de execução forçada contra o Estado tornou-se um imperativo deduzido da garantia à tutela dos direitos subjetivos (Rechtsschutzgarantie), afastando os argumentos decisivos contra a permissão da execução forçada contra a Fazenda Pública como a separação de Poderes e o Estado Democrático de Direito.
Observa-se ainda que a jurisdição alemã possui vários ramos: há a jurisdição ordinária (civil e penal), a jurisdição administrativa geral (ações de anulação, de suspensão de ato administrativo, ações de obrigação de fazer), a jurisdição social (que se assemelha a previdência social), e a jurisdição de finanças (identificada como atuação fiscal).
A estrutura do Poder Judiciário alemão se assemelha a organização judiciária brasileira. Em ambos os sistemas, devido a estrutura federativa a jurisdição comum é exercida pelos Tribunais Estaduais, sendo a competência residual. Os Tribunais Federais apenas atuam em hipóteses previstas na Constituição, no caso brasileiro, tal previsão se encontra no art. 109 da CRFB/88.
Na Alemanha a execução contra a Fazenda pode ter origem na jurisdição ordinária (civil) ou administrativa. A execução de sentença originária de jurisdição civil inicia-se apenas após quatro semanas do exequente manifestar sua pretensão em juízo. Quando a execução promovida perante um Tribunal corresponder a penhora no patrimônio administrado por outro ente federativo que não o do próprio Tribunal, deverá ser dada a ciência ao Ministro das Finanças, e seguir as regras do Código de Processo Civil (ZPO), que possui normas específicas para a execução contra pessoas jurídicas de direito público.
Contudo, na jurisdição ordinária o órgão competente para executar não é o mesmo que atuou no processo de conhecimento. Antes de iniciar a execução e emitir a ordem de penhora, o juízo comunica à autoridade pública a existência da execução, para que adote as providências cabíveis para a satisfação da condenação no prazo nunca superior a um mês. Decorrido o prazo sem atendimento, o juiz determina as medidas executivas que entender cabíveis, não estando vinculado a pedido do exequente. As medidas de execução, tais como constrições de bens, ainda que natureza pública, observam as disposições do Código de Processo Civil alemão, que não faz qualquer exceção quanto à impenhorabilidade de bens públicos.
Contudo, o Código de Processo Civil alemão não permite a execução sobre bens que estejam afetos a prestação de serviços públicos, bem como fundos que sirvam para créditos indispensáveis à realização de serviços públicos, não podendo haver a dissolução e nem suspensão da massa patrimonial. Observa-se que o ente público não possui muitas prerrogativas na regulamentação do processo de execução, estando submetido às mesmas formas de satisfação da obrigação através da constrição do patrimônio, contudo, há limites para esta expropriação, sendo umas das poucas prerrogativas, além da não penhora de bens afetos ao serviço público, a expressa previsão para manutenção das finanças públicas sadias, não se admitindo processo de insolvência contra os entes públicos. Portanto o processo de execução não pode levar o ente público ao estado falimentar por expressa proibição legal.
A distinção principal entre a execução na jurisdição ordinária e na jurisdição administrativa é que nesta última as instâncias de conhecimento e execução não se encontram separadas, mas o órgão que atua em primeira instância é simultaneamente competente para a execução.
2.4. A execução contra Fazenda Pública em Portugal
Devido à influência das raízes germânicas e cristãs, havia em Portugal um sistema de justiça única no período do Absolutismo Monárquico, que certamente determinou a adoção da unicidade de jurisdição pelo Brasil como herança do período colonial. O sistema patrimonial no período imperial da Administração Púbica se revelava como a administração do patrimônio do rei, razão pela qual, havia certa confusão entre bens do monarca e bens públicos afetos ao serviço público. Desta forma, considerando que os juízes eram funcionários que exerciam função delegada do rei, a jurisdição una favorecia o controle do monarca quanto à gestão, administrativa e judicial de seus bens.
Contudo, em Portugal adotou-se o sistema de contencioso administrativo com jurisdição reservada, desde 1845, até que em 1930 modificou-se para jurisdição delegada, com a criação do Supremo Tribunal Administrativo em 1933[15], como órgão independente do Poder Judiciário e sem vinculação com a Administração Pública, composta por magistrados originários do Poder Judiciário em exercício de cargo em comissão, ou outros servidores e profissionais do Direito para o exercício da função de magistrado da Corte Administrativa.
No sistema da jurisdição delegada com a criação do Supremo Tribunal Administrativo o contencioso administrativo passou a ter uma completa separação e autonomia das funções da Administração Pública, ocasião em que começou a se alinhar uma justiça administrativa independente e imparcial, cuja a transformação permitiria integrá-la posteriormente ao poder Judiciário.
Em que pese este afastamento de Portugal do sistema originário da jurisdição única devido a influência da França, ainda assim, o contencioso-administrativo português, quanto à execução das sentenças administrativas muito se assemelha ao sistema brasileiro, que permaneceu com o sistema da jurisdição uma.
O procedimento de execução das decisões dos Tribunais Administrativos foi estabelecido pelo Decreto-lei 256-A de 17 de junho de 1977. O referido diploma legal determina que as sentenças proferidas por estes tribunais em favor de particulares sejam efetivadas voluntariamente pela Administração Pública, uma vez que a execução forçada, que se dá através de sub-rogação, não teria utilidade, pois o emprego da constrição no patrimônio da Administração para satisfazer condenação designada pela mesma, acarretaria a confusão entre a figura do executado e do juízo, sendo mais coerente que a satisfação da obrigação fosse estabelecida por procedimentos interna corporis [16].
Desta forma, a execução forçado no sistema português de execução contra a Fazenda Pública, ainda que não seja direta, por meio de sub-rogação, se dá de forma indireta, por meio de coação. Portanto, adequado não seria dizer execução, pois esta não ocorre de forma forçada, mas de “eficácia do contencioso” [17], pois conforme previsto no art. 9º do Decreto-lei 256-A/1977, o Tribunal julgará quanto a ocorrência ou não da causa legítima de inexecução, e se decidir negativamente, ouvirá a Administração e o interessado, que deverão responder no prazo de oito dias sobre os atos que a efetivação deverá consistir e o prazo necessário para sua prática.
Portanto, observa-se na regulamentação do ordenamento jurídico português que há cinco fases na execução ocorrida no âmbito do contencioso-administrativo: (i) a propositura da execução após o prazo de 30 dias para o cumprimento voluntário da condenação; (ii) eventual incidente de causa legítima de inexecução; (iii) decisão do incidente fixando a indenização e apurando a responsabilidade civil e funcional da Administração e seus agentes; (iv) execução propriamente dita com a especificação dos atos necessários para alcançar a eficácia da sentença; e por fim, (v) o pagamento da quantia certa, fase análogo ao do precatório brasileiro.
Acrescenta-se, por oportuno, que as causas legítimas de inexecução estão previstas em numerus clausus, e são apenas duas (i) a impossibilidade, e (ii) grave prejuízo para o interesse público no cumprimento da sentença.
A fase de pagamento muito se assemelha com a técnica do regime de precatório criado pelo Brasil, pois a criação do regime de precatório teve origem nas antigas Ordenações Portuguesas utilizadas pelo Brasil colônia, quando Portugal possuía um sistema de justiça única, mas dispensava certos bens da penhora, entre eles os dos nobres e alguns bens públicos. Posteriormente estendeu-se esta prerrogativa a todos os bens públicos, tornando-se impossível admitir a execução contra a Fazenda Pública nos moldes da execução contra o particular, sendo necessária a criação do regime de precatório como forma de cumprimento das condenações judiciais.
Contudo, na execução de sentença administrativa importada do modelo francês de justiça administrativa, em nome da separação de poderes não se poderia tolerar que o Poder Judiciário julgasse a Administração sob pena de imiscuir-se na função administrativa. Assim, por ter adotado o sistema de jurisdição dúplice, Portugal criou um procedimento de execução em que se admite a penhora de determinados bens públicos quando não estejam afetos aos serviços públicos.
O sistema de execução da sentença administrativa em Portugal fundamenta-se na condição de que os administrados são titulares apenas de interesses legítimos[18] e não de interesses subjetivos contra a Fazenda, desta forma, as partes não são tratadas com isonomia processual, tal como no ordenamento brasileiro.
O prazo para execução das sentenças administrativas é de sessenta dias a contar da apresentação do requerimento, contudo, o prazo para pagamento do precatório no Brasil é de até um ano e meio após a sua expedição. Em ambos os ordenamentos não há previsão de sanção para a autoridade que não promover o pagamento da condenação no prazo determinado, pois a obrigação legal refere-se apenas a inscrição de dotação orçamentária para as despesas com condenações.
Portanto, observa-se a profunda semelhança entre os regimes de execução contra a Fazenda Pública do ordenamento jurídico brasileiro e português, uma vez que originam de uma norma comum: as Ordenações Portuguesas, sendo que em ambos os regimes, a satisfação da execução se dá por meio de outorga de prazo para que seja atendida a obrigação, contudo, não havendo a possibilidade de constrição judicial sobre os bens públicos para a expropriação e pagamento da condenação.
3. CONTROVÉRSIAS ATUAIS NA EXECUÇÃO CONTRA FAZENDA PÚBLICA
A base do sistema diferenciado de execução contra a Fazenda Pública, e, por conseguinte o regime de pagamento por precatório fundamenta-se no princípio de que os bens públicos são inalienáveis e, em consequência, são impenhoráveis para fins de satisfazer o crédito do exequente.
Este seria o limite para a salutar independência entre os Poderes, alçado a status de princípio constitucional pelo art. 2º da Constituição da República de 1988, uma vez que, ao admitir que o Judiciário exerça a execução forçada sob os bens públicos estaria se imiscuindo no mérito dos atos administrativos adotados pelo poder Executivo em sua organização financeira e orçamentária. Ocorre que o poder Judiciário não possui atribuição constitucional para eleger as providências mais adequadas para o interesse público, tratando-se de atividade inerente a Administração Pública.
3.1. A disciplina constitucional
Os dispositivos que tratam do regime de precatório, embora integrem o texto constitucional, em verdade possuem caráter processual e, portanto são normas formalmente constitucionais, não materialmente constitucionais como os direitos e garantias individuais.
A preocupação do constituinte em inserir no texto constitucional o regime de precatório fundamenta-se na cautela em delimitar a atuação administrativa do Judiciário em inserir no orçamento despesas a serem cumpridas pelo Executivo. Portanto, o Judiciário no decorrer do processamento do precatório está no exercício de uma função atípica, prezando pela Separação de Poderes, como um dos instrumentos para check and balances.
A Constituição Federal de 1988 em seu texto original dispõe do regime de precatório em seu art. 100, e inovou ao distinguir créditos de natureza alimentar e não alimentar.
A Emenda Constitucional n. 20 de 1998, inseriu o parágrafo 3º no art. 100 da Constituição, exigindo o trânsito em julgado das condenações para a expedição do precatório.
A Emenda Constitucional n. 30 de 2000 incluiu o dever de inclusão no orçamento de verbas necessárias ao pagamento de débitos decorrente de precatório, definiu o conceito de precatório alimentar, e inseriu o parcelamento decenal do art. 78 do ADCT.
Por sua vez, a Emenda Constitucional n. 37 de 2002, inseriu o parágrafo 4º no art. 100 da Constituição Federal, para fins de proibir expressamente o fracionamento de precatório e inseriu o art. 87 no Ato das Disposições Transitórias, definindo a obrigação de pequeno valor em valor não inferior a 40 salários mínimos para os Estados e Distrito Federal e 30 salários mínimos para os Municípios.
A Emenda Constitucional n. 62 de 2009 alterou as regras até então estabelecidas para o pagamento de requisitórios judiciais, acrescentando ao ADCT o artigo 97, o qual instituiu o Regime Especial de pagamento para os Estados, Distrito Federal e Municípios e respectivos entes da Administração Indireta, que então se encontrassem em mora quando do advento do novo regime.
Assim, inovou o legislador constituinte derivado ao prever (i) a vinculação judicial de parte da receita pública aos entes que adotassem o regime especial para pagamento, como forma de obter o adimplemento forçado do estoque de precatórios, (ii) encontro de contas entre débitos e créditos do poder público, (iii) leilões eletrônicos para o pagamento mais célere diante do deságio oferecido pelo credor, (iv) pagamento, por ordem crescente de valor e não apenas por ordem cronológica, (v) preferência às pessoas com mais de 60 anos ou portadoras de doenças graves, assim determinadas na Resolução 150 do CNJ, como as descritas na lei de isenção do imposto de renda, e (vi) outorgou ao Tribunal de Justiça a responsabilidade para ordenar, administrar e pagar a fila dos precatórios expedidos por este, cabendo o ente devedor apenas transferir o valor orçamentário devido para a conta vinculada junto ao Tribunal de Justiça para este fim.
Porém, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, julgou parcialmente procedente as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4357 e 4425 para declarar a inconstitucionalidade de parte da Emenda Constitucional n. 62 de 2009, que instituiu o novo regime especial de pagamento de precatórios. Com a decisão, foram declarados inconstitucionais dispositivos do artigo 100 da Constituição Federal, que institui regras gerais para precatórios, e integralmente inconstitucional o artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que cria o regime especial de pagamento[19].
Assim, em julgamento ocorrido em 14/03/2013[20] a maioria dos ministros acompanhou o relator, ministro Ayres Britto (aposentado), e considerou o artigo 97 do ADCT inconstitucional por afrontar cláusulas pétreas, como a de garantia de acesso à Justiça, a independência entre os Poderes e a proteção à coisa julgada.
Assim, aguarda-se a realização da modulação dos efeitos da decisão acima mencionada sobre os pagamentos e demais atos realizados sob a égide da emenda, para fins de identificar como ficará o regime de precatório após o julgamento pela inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 62 de 2009.
3.2. Normas infraconstitucionais que regulamentam a matéria
A doutrina[21] defende não haver, propriamente, uma execução contra a Fazenda Pública, pois a sentença condenatória contra ela proferida é despida de força executiva, justamente por não serem penhoráveis os bens públicos. A execução contra a Fazenda Pública segue o procedimento previsto no art. 730 do CPC, seguindo-se a oposição dos embargos pela Fazenda para ao final ser, então expedido o precatório, em atendimento à regra prescrita no art. 100 da Constituição Federal.
Em que pese as alterações trazidas pela Lei 11.232/2005, ao instituir a sistemática do processo sincrético, relegando o processo de execução a mera fase do processo através do cumprimento de sentença, a execução contra a Fazenda Pública permanece como exceção a esta regra, como processo autônomo, no qual a Fazenda deve ser citada e não intimada.
Observa-se que a citação da Fazenda Pública, na forma do art. 222, alínea c, e art. 224 do CPC, deve se dar através de oficial de justiça, na pessoa do representante legal da entidade. A necessidade[22] de citação pessoal da Fazenda Pública e demais entes de direito público justifica-se pela engrenagem burocrática que envolve a organização interna da Administração Pública, sendo inerente à atividade pública a formalidade dos atos administrativos, revestindo, assim, os atos de comunicação processual de maior cautela quanto ao controle de recebimento da citação.
Após a citação válida, o prazo é de 30 dias (Lei n. 9.494/97, art. 1º-B, na redação da MP n. 2.180-35/2001[23]), não para pagar como ocorre na previsão do art. 475-J do CPC, mas para opor embargos a execução, os quais apenas poderão versar sobre as matérias previstas no art. 741 do CPC. Observa-se que os embargos são sempre recebidos no efeito suspensivo, obstando o seguimento da execução, uma vez que a Fazenda Pública não depende de penhora, depósito ou caução, não estando submetida às exigências do art. 739-A do CPC, não precisando, portanto, garantir o juízo para obter o efeito suspensivo.
Julgados os embargos opostos pela fazenda Pública, a sentença não está sujeita a reexame necessário, uma vez que o reexame já foi procedido em relação à sentença anterior em caso de execução de título judicial, além de o art. 475, II do CPC aludir, apenas, a embargos opostos à execução fiscal, excluindo-se aqueles opostos à execução não fiscal[24].
Segundo a previsão do art. 520, V do CPC, a apelação interposta contra a sentença que julgue improcedente ou rejeite os embargos à execução não teria efeito suspensivo legal. Só que a expedição do precatório ou de requisição de pequeno valor depende do prévio trânsito em julgado, portanto, a apelação contra a sentença que rejeita os embargos à execução contra a Fazenda Pública, por uma interpretação constitucional, deve ser recebida no duplo efeito.
O recebimento da apelação apenas no efeito devolutivo, no caso de execução contra a Fazenda Pública não possui utilidade, tampouco eficácia, uma vez que, enquanto não confirmado ou estabelecido definitivamente os valores a serem inscritos em precatório ou requisitados por obrigação de pequeno valor, a execução não pode prosseguir[25].
Assim, o art. 520, V, do CPC não possui aplicabilidade às execuções contra a Fazenda Pública, ficando restrito à hipótese de embargos à execução fundada em título extrajudicial entre particulares.
Após o trânsito em julgado do julgamento dos embargos, o juiz determina a expedição de ofício requisitório dirigido ao Presidente do Tribunal de Justiça, para que seja consignada a ordem e natureza do crédito no orçamento para pagamento no exercício financeiro seguinte.
A expedição do precatório ou requisição de pequeno valor, por exigência constitucional, depende do prévio trânsito em julgado. Desta forma, questiona-se se (i) admite-se liquidação provisória contra Fazenda, (ii) admite-se a execução provisória contra Fazenda, e se (iii) este trânsito em julgado refere-se apenas ao processo de conhecimento ou inclui-se também a fase de execução.
Conforme assinala Cassio Scarpinella Bueno “o trânsito em julgado que autoriza a execução contra a Fazenda Pública só pode ser o dos embargos à execução, superados, pois os processo de conhecimento e o de eventual liquidação”[26].
Por esta razão os embargos devem ser recebidos no efeito suspensivo, pois sem o trânsito em julgado da decisão[27], não se admite a expedição do precatório ou requisição de pequeno valor.
Assim, o trânsito em julgado a que se refere o §5º do art. 100 da Constituição Federal é o da sentença que julgar os embargos à execução, pois o valor a ser incluído no orçamento deve ser definitivo, não se admitindo que alteração superveniente do julgado venha a modificar a inscrição no orçamento, à luz do princípio da responsabilidade fiscal.
3.3. A natureza jurídica do procedimento de requisição de precatório
Em execução proposta contra a Fazenda, a atividade judicial extingue-se com a expedição do ofício requisitório pelo juízo de origem à Presidência do Tribunal de Justiça a que está vinculado.
A atividade de processamento do precatório possui natureza administrativa, conforme já se manifestou o Supremo Tribunal de Justiça pelo enunciado de súmula 311 (Os atos do presidente do tribunal que disponham sobre processamento e pagamento de precatório não têm caráter jurisdicional.). Dentre as consequências desta natureza administrativa, observa-se que das decisões do Presidente do Tribunal, quando na organização e regularização do precatório, não se admite recursos aos Tribunais Superiores, uma vez que se trata de ato administrativo (Súmula 733 do STF: Não cabe recurso extraordinário contra decisão proferida no processamento de precatórios.)
Desta forma, havendo erro quanto aos valores ou impugnação de juros ou acréscimos indevidos, tais questões incidentais devem ser dirimidas pelo juízo da execução, para que após decidir a impugnação expeça novo ofício requisitório retificando o ofício anterior.
Contudo, em se tratando de erro material, passível de correção a qualquer tempo, o erro de natureza aritmética, manifesto, que pode ser constatado prima facie, não se tratando de rediscussão dos critérios de cálculo fixados no processo de conhecimento, mas sim da adequação dos cálculos de atualização a jurisprudência predominante, pode ser conhecido pelo Presidente do Tribunal no bojo do processo administrativo referente ao precatório.
Em obediência ao que prescreve o art. 463, I, do Código de Processo Civil, é possível a correção de erro material, quando, na liquidação da sentença, ocorrem situações de evidentes equívocos nas contas apresentadas pelo credor. Por oportuno, transcrevem-se, os julgados do STJ corroborando o pacífico entendimento sobre a ausência de coisa julgada diante da verificação de manifesto erro material:
“PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. (…) EXCLUSÃO DOS JUROS. COMPETÊNCIA DA PRESIDÊNCIA DO TRIBUNAL. NATUREZA ADMINISTRATIVA DESTA FUNÇÃO. SÚMULA 311/STJ. LEGALIDADE DO ATO PRATICADO. (…) INFRAÇÃO À COISA JULGADA. PRECEDENTES.
(…) O ERRO DE CÁLCULO NÃO FAZ COISA JULGADA, PODENDO SER CORRIGIDO ATÉ MESMO DE OFÍCIO, CONFORME O DISPOSTO NO ART. 463, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Precedentes: RMS 28.366/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 3.3.2009, DJe 2.4.2009; RMS 28.586/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 20.4.2009; RMS 28.611/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, DJe 30.3.2009; RMS 28.141/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, DJe 11.2.2009; AgRg no RMS 27.122/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJe 13.10.2008.
A adequação dos valores pela Presidência do Tribunal, no caso concreto, referida aos juros, não ultrapassou, portanto, o limite da sua função administrativa, tal como insculpido na Constituição Federal; a ação foi apenas no sentido de aplicar as disposições constitucionais e legais vigentes.(…) Agravos regimentais improvidos”. (AgRg no AgRg no RMS 28.287/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/10/2010, DJe 09/11/2010)
Vale destacar ainda que, nos termos do artigo 1º-E da Lei 9.494/97, com a redação dada pela Medida Provisória 2180-35/01, “são passíveis de revisão pelo Presidente do Tribunal, de ofício ou a requerimento das partes, as contas elaboradas para aferir o valor dos precatórios antes de seu pagamento”, conforme se depreende da leitura da ementa a seguir transcrita:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. PRECATÓRIO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL NO PROCESSAMENTO DE PRECATÓRIOS. POSSIBILIDADE. SEQUESTRO DE RECURSOS FINANCEIROS. INCIDÊNCIA DE JUROS MORATÓRIOS. PAGAMENTO QUE NÃO DESRESPEITOU O PRAZO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO. NÃO CARACTERIZAÇÃO DA MORA. 1. O Presidente do Tribunal local é competente para corrigir erro de cálculo, nos termos do disposto no art. 1º- E da Lei 9.494/97, incluído pela Medida Provisória 2.180-35/2001, em que se lhe permite, de ofício ou a requerimento das partes, proceder à revisão das contas elaboradas para aferir o valor dos precatórios antes de seu pagamento ao credor. (…) 3. Recurso ordinário parcialmente provido.” (RMS 23.987/MS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/02/2011, DJe 16/02/2011)
Outra consequência da natureza administrativa do processo de expedição de precatório é que para fins de impugnar eventuais os atos em desacordo com a lei ou abusivo do Presidente do Tribunal, deve se utilizar o Mandado de Segurança dirigido ao Órgão Especial, competente para julgar os atos do Presidente, uma vez que não admite recurso aos Tribunais Superiores.
Seguindo a natureza administrativa do processamento de precatório, inclusive a determinação de sequestro de verba pública uma vez verificada a preterição na ordem cronológica de pagamento de precatório também se enquadra como função administrativa do Presidente do Tribunal de Justiça, razão pela qual o controle de legalidade do ato também será realizado através de Mandado de Segurança. Neste sentido já se manifestaram os Tribunais Superiores:
“Ao contrário do que afirma a agravante, o julgamento do pedido de seqüestro formulado perante o Tribunal de Justiça possui natureza administrativa, pois se refere a processamento de precatórios, do qual não cabe eventual recurso extraordinário, conforme assinalado pelo Plenário desta Corte no julgamento da ADI 1098/SP, precedente aludido na decisão agravada” (STF, AGRG no RE 281.208-1-SP, D.J. de 26.04.02, Relatora Ministra ELLEN GRACIE).
“PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. PRECATÓRIO. HOMOLOGAÇÃO. ATIVIDADE DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MERAMENTE ADMINISTRATIVA. RECURSO ESPECIAL. INCABÍVEL. 1. No processamento de precatórios, o Presidente do Tribunal de Justiça exerce atividades administrativas, não revestidas de conteúdo jurisdicional, e por isso, insuscetíveis de impugnação na via extraordinária. 2. Agravo Regimental desprovido” (grifos da recorrida)” (STJ – 6ª Turma, AGA 288.539/SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 6.6.2000, DJ 16.6.2000, p. 222).
4. CÓDIGO PROJETADO
Observa-se que o projeto original trouxe alterações consistentes ao sistema da execução contra a Fazenda Pública, implementando, inclusive, disposições contrárias a Constituição, através de norma infraconstitucional, conforme analisaremos a seguir. Cabe esclarecer que a análise levará em consideração para fins de cotejamento (i) o texto do Código de Processo Civil vigente, (ii) a redação original do Código Projetado, (iii) a redação alterada pela Câmara e também (iv) as modificações introduzidas pelo Senado.
Primeiramente, observa-se que o art. 501 da redação original afasta a necessidade de citação da Fazenda para opor embargos à execução, de forma que a Fazenda será meramente intimada, tal como ocorre com os demais atos processuais, através da publicação oficial, alterando, desta forma, a natureza de processo autônomo de execução para um processo sincrético, em que a execução passa a ser uma fase processual desenvolvida nos próprios autos. Tal dispositivo não sofreu alterações pelo trâmite no Senado Federal.
Ocorre que, conforme já explicitado acima, para os entraves da Administração Pública, há uma grande alteração em prejuízo da Fazenda ao se excluir a necessidade de citação da Fazenda para apresentar sua defesa em sede de execução, pois a intimação se dá por meio da imprensa oficial, muitas vezes falha em razão da excessiva quantidade de demandas em relação à quantidade de procuradores que patrocinam a defesa, podendo ocorrer a intimação de procurador que não atua mais no caso, dentro outros incidentes que acarretaram a revelia da Fazenda, em prejuízo do interesse público.
Ademais, a pacífica jurisprudência dos Tribunais Superiores já havia determinado a necessidade de nova citação:
“Complementação de Precatório: Citação da Fazenda e Erro Material
Em conclusão de julgamento, a Turma acolheu segundos embargos de declaração opostos, com efeitos modificativos, contra acórdão que mantivera decisão monocrática do Min. Carlos Britto que, em recurso extraordinário do qual relator, interposto pelo Estado de São Paulo, determinara a expedição de novo precatório e de nova citação da Fazenda estadual — v. Informativo 461. Ante as premissas do acórdão do STJ, considerou-se que o recurso extraordinário não possuía condições de ter seguimento, já que aquela Corte assentara certa moldura fática a revelar que teria havido a anterior citação da Fazenda Pública. Ademais, aduziu-se que, de qualquer modo, não houvera emissão de entendimento sequer à luz do § 4º do art. 100 da CF e que, se violência ocorresse à Constituição, seria intermediada pelo descumprimento do art. 730 do CPC, reputada inocorrente, no caso. O Min. Carlos Britto reajustou seu voto. RE 402636 ED-ED/SP, rel. Min. Carlos Britto, 24.6.2008”. (RE-402636)
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. ERRO MATERIAL. OCORRÊNCIA. EFEITOS INFRINGENTES. POSSIBILIDADE. CITAÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA. NECESSIDADE. 1. O erro material não decorre de juízo de valor ou de aplicação de uma norma jurídica sobre os fatos do processo, sendo possível sua correção a qualquer tempo, de ofício ou a requerimento das partes, haja vista que não transita em julgado. Precedentes. 2. Na espécie, não se trata de precatório complementar, mas do primeiro precatório. 3. A Fazenda Pública, nos termos do art. 730 do CPC, deve ser citada para opor embargos na execução por quantia certa. 4. Da simples leitura do acórdão local, verifica-se que não houve delimitação, com a clareza necessária, quanto ao cumprimento ou não da exigência trazida no artigo 730 do CPC, o que implica em deficiência de fundamentação, por violação aos artigos 165 e 458 do CPC. 4. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes, para dar provimento ao recurso especial, anulando o acórdão estadual, por deficiência de fundamentação, para que a matéria seja novamente submetida à apreciação do Tribunal de origem”. (EDcl no AgRg no REsp 325.109/PI, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 26/02/2013, DJe 12/03/2013)
Diante da necessidade de manter a prerrogativa da citação da Fazenda Pública para apresentar defesa, a fim de que o ato de comunicação processual fosse realizado de forma pessoal, o art. 550 do projeto, após as emendas propostas pela Câmara dos Deputados, introduziu a necessidade de a intimação se dar na pessoa do representante legal, através de carga dos autos ou por meio eletrônico.
Observa-se que, em que pese a Câmara dos Deputados ter atentado para a necessidade de comunicação pessoal dos atos processuais que envolvam a Fazenda, diante da extinção da execução autônoma, a citação da Fazenda não seria mais o ato processual adequado, e adequando-se o processo sincrético a prerrogativa do ente público, estabeleceu-se a intimação pessoal para a defesa.
Ainda a luz do processo uno, em que a execução seria mera fase processual, o projeto alterou a designação do instrumento processual de defesa da Fazenda, antes designado de embargos, agora a Fazenda apresentará impugnação aos cálculos trazidos pelo exequente. A impugnação concentra todas as matérias de defesa da Fazenda, inclusive as matérias de exceção de incompetência do juízo, bem como a de suspeição ou de impedimento do juiz, devendo ser alegadas como preliminares na peça de defesa. Esta alteração processual compreende não apenas a execução contra a Fazenda Pública, mas inclusive o procedimento ordinário, unificando os meios de resposta do réu em uma única peça processual.
O art. 100, §5º da Constituição Federal prevê expressamente a necessidade de trânsito em julgado da decisão para expedição do precatório, o projeto original do Código de Processo Civil, a fim de ratificar esta exigência passou a incluir na redação original no art. 501 a necessidade de trânsito em julgado da fase de conhecimento, para fins de afastar qualquer dúvida quanto à possibilidade de execução provisória contra a Fazenda. Contudo, o renumerado art. 549 do projeto alterado pelo Senado passou a excluir esta previsão do dispositivo original, porém, esta omissão não representa afronta a norma constitucional, mas o legislador perdeu a oportunidade de atuar de forma cautelosa, para fins de evitar interpretações dúbias sobre o dispositivo.
No que tange ao prazo para defesa, este na redação vigente do Código de Processo Civil prescrevia dez dias, sendo alterado posteriormente para 30 dias pela Medida Cautelar 2.180-35/2001, a qual no bojo da ADC 11 foi julgada constitucional. Diante da possibilidade de reforma processual, o legislador a fim de dirimir a questão, tratou de especificar o prazo de um mês, contudo, diante da indeterminação do conceito algébrico da quantidade de dias do mês, a Câmara dos Deputados, em alteração mantida pelo Senado, modificou o prazo para 30 dias, a fim de sanar qualquer dúvida.
Observa-se que o projeto faz distinção de procedimento quanto à execução por título judicial (art. 501) e extrajudicial, distinção esta não verificada na legislação processual vigente a qual dispensa a ambos os títulos executivos o procedimento do art. 730 do CPC. Porém, conforme a projeto de Código, quando tratar-se de execução de título extrajudicial, permanece a determinação de citação da Fazenda para oferecer embargos a execução, no prazo de 30 dias, não havendo limitação de matéria a ser arguida em defesa (art. 834 do Projeto de CPC, renumerado após as alterações da Câmara dos Deputados para Art. 866, a após as emendas do Senado para art. 935).
O projeto passou a atribuir expressamente o dever do exequente em apresentar os valores atualizados, especificando os índices e parâmetros para atualização utilizados individualizados por credor, em hipóteses de litisconsórcio, de forma a permitir a defesa da Fazenda, bem como, com o escopo de auxiliar quando da expedição do requisitório a identificação dos credores e os valores correspondente a cada um, em benefício do próprio credor para fins de verificação posterior da ocorrência de crédito preferencial em razão da idade ou de doença grave.
Quando houver a alegação da Fazenda em sede de defesa por meio de impugnação da ocorrência de excesso de execução, há expressa previsão quanto à necessidade de apontar o valor que entende devido, não sendo suficiente a mera alegação, ratificando jurisprudência já consolidada sobre o tema:
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO OPOSTOS PELA FAZENDA PÚBLICA. EXCESSO DE EXECUÇÃO. DEMONSTRATIVO DA MEMÓRIA DE CÁLCULOS. NECESSIDADE. APLICAÇÃO DO ART. 739-A, §5° DO CPC .
1. A ratio do novel disposto no art. 739, §5°, do CPC é aplicável aos embargos à execução opostos pela Fazenda Pública quando fundar-se em excesso de execução, haja vista ser dever legal, que atinge todos os executados, a apresentação de memória discriminada de cálculos, sob pena de rejeição liminar dos mesmos. Precedentes: (AgRg no REsp 1095610/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe 16/09/2009; REsp 1085948/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 01/07/2009; REsp 1099897/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 20/04/2009; REsp 1103965/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe 14/04/2009) 2. A doutrina estabelece ao tratar dos embargos à execução com fundamento em excesso de execução que: "Coibindo a prática vetusta de o executado impugnar genericamente o crédito exeqüendo, a lei o obriga a apontar as 'gorduras' do débito apontado pelo credor. Assim é que, 'quando o excesso de execução for fundamento dos embargos, o embargante deverá declarar na petição inicial o valor que entende correto, apresentando memória do cálculo, sob pena de rejeição liminar dos embargos ou de não conhecimento deste fundamento'. A regra decorre não só da experiência prática, mas também do fato de que a execução pode prosseguir somente pela parte remanescente incontroversa (art. 739-A, parágrafo 3°)" (in Fux, Luiz. O novo processo de execução (cumprimento da sentença e a execução extrajudicial). Rio de Janeiro: Forense, 2008. pg. 416) (…) 5. Recurso especial a que se nega provimento.” (REsp 1115217/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/02/2010, DJe 19/02/2010)
O ponto central das alterações trazidas pelo projeto de Código de Processo Civil é quanto à previsão de hipótese de sequestro de verba pública, além das hipóteses previstas no texto constitucional. Conforme art. 100, §6º da Constituição Federal, o único fato constitutivo do direito ao sequestro consubstancia-se tão somente na quitação de um precatório mais novo, em prejuízo de outro precatório supostamente melhor posicionado na ordem cronológica de apresentação.
Além disso, o sequestro de rendas pública é uma medida grave, que pressupõe não só a certeza da sua causa de pedir – qual seja, a preterição de pagamento, mas também a inequívoca demonstração da certeza, da liquidez e da exigibilidade do montante a ser sequestrado, de tal modo que o seu deferimento só pode ocorrer se presentes os requisitos constitucionais que o autorizam, não compadecendo o instituto com qualquer interpretação extensiva.
Ocorre que, o art. 501, §4º na redação do projeto original insere e modalidade de sequestro de verba pública em razão do não pagamento do precatório, além da hipótese de quebra da ordem cronológica. Cumpre ressaltar que a modalidade de pagamento através de precatório para fins de inclusão orçamentária decorre de previsão constitucional (art. 100), e possui a natureza de prerrogativa da Fazenda, uma vez que não está submetida o regime de execução por expropriação em razão da prevalência do interesse público e da continuidade do serviço público.
Portanto as exceções ao regime de pagamento através de expedição de precatório devem ser contempladas no texto da constituição, não podendo legislação ordinária dispor de forma diversa, sob pena de ser declarada inconstitucional.
Cumpre observar que o prazo para pagamento do precatório seria de durante todo o ano de sua previsão orçamentária para pagamento, ex: precatórios expedidos até 30/06/2012, serão cadastrados em ordem cronológica para pagamento no ano de 2013, precatórios expedidos a partir de 01/07/2012, serão pagos na ordem cronológica do ano de 2014. Portanto a Fazenda possui o prazo de um ano e meio a dois anos e meio para pagamento do precatório.
Desta forma, o projeto do CPC criou modalidade de sequestro de verba pública fora das hipóteses constitucionais permitidas. A Emenda Constitucional n. 62 de 2009 instituiu o regime especial para pagamento de precatórios, em que o ente devedor deve depositar em conta administrada pelo Tribunal de Justiça 1,5% da renda líquida, para fins de pagamento de precatório a ser realizada pelo tribunal. Nesta sistemática admite-se o sequestro de verba pública apenas na hipótese de não depósito do valor correspondente a 1,5% na conta do Tribunal de Justiça. O inadimplemento específico de determinado precatório não legitima pedido de sequestro, uma vez que deve ser seguia a ordem cronológica para pagamento, observando a limitação de recursos, ou seja, a reserva do possível.
Considerando não haver disponibilidade de recursos suficientes para atender a todas as condenações judiciais bem como as demais despesas para funcionamento do serviço público, não há possibilidade de realização de sequestro, sob a alegação de mero inadimplemento, devendo ser aguarda que a ordem cronológica seja alcançada para pagamento.
Observa-se que este dispositivo não foi reproduzido no texto após as alterações introduzidas pela Câmara e pelo Senado, uma vez ser notória a impossibilidade de regulamentação em norma infraconstitucional de matéria de status constitucional.
Outra proposta do projeto do Código de Processo Civil que aparenta certo conflito com a norma constitucional é a alteração proposta pelo Senado Federal para permitir em seu art. 520, §3º, o fracionamento de precatório. Ocorre que a Constituição proíbe expressamente no art. 100, §8º, a expedição de precatório complementar ou suplementar e ainda fracionamento de precatório, ou seja, havendo parte incontroversa na execução, não se admite expedição de precatório por valor parcial de execução, para fins de prosseguir a impugnação pela parcela controversa.
O fracionamento de precatório permite que o credor faça jus a recebimento de parte do valor devido por requisição de pequeno valor, caso o valor incontroverso seja inferior a 40 salários mínimos, e o restante seria recebido através de precatório.
Ocorre que para receber o valor em requisição de pequeno valor o credor deveria renunciar ao valor que exceder ao limite de 40 salários mínimos, portanto, a Fazenda disponibilizaria em 60 dias o pagamento de parte da condenação que deveria observar a ordem cronológica do precatório e não da requisição de pequeno valor, de forma que o credor conseguiria, ao menos em parte, burlar a ordem cronológica de pagamento para perceber o valor incontroverso adiantado.
O tema de fracionamento de precatório inclusive já possui a repercussão geral[28] reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, em razão da importância e ingerência do tema no orçamento das entidades públicas:
O projeto, contudo traz uma modificação benéfica para o Estado, uma vez que em seu art. 519, nas alterações propostas pelo Senado, impõe o ônus ao credor de individualizar o crédito para quando do momento do pagamento não haver dificuldades para sua realização, uma vez que a falta de individualização dos valores devidos e identificação de litisconsortes por vezes impossibilita a imputação do pagamento para quem de direito.
O projeto também afasta expressamente a multa coercitiva de 10% em razão da mora para pagamento voluntário do atual art. 475-J do CPC vigente, uma vez que há incompatibilidade da aplicação da multa com o regime para pagamento através de precatório e requisição de pequeno valor, pois são de prerrogativas da Fazenda para cumprimento de suas obrigações, que obervam rito processual específico. Mas o tema já era pacífico no Superior Tribunal de Justiça[29].
CONCLUSÃO
O regime diferenciado de execução para pagamento de quantia certa contra a Fazenda Pública destaca-se como uma das principais prerrogativas processuais inerentes aos entes de direito público. Por conseguinte, observa-se que o projeto de Código de Processo Civil buscou implementar mudanças na execução contra a Fazenda Pública, com o fim de aproximar a sistemática atual de um processo sincrético, uno, sem dissolução de continuidade da relação processual. Ocorre que a premissa utilizada para a criação do processo sincrético, qual seja, furtar-se o réu do processo de execução não se aplica a Fazenda Pública ré, a qual não irá se ocultar da citação com o fim de frustrar o processo de execução.
Em verdade o processo autônomo de execução contra a Fazenda Pública é uma prerrogativa ao ente público para fins de favorecer a ampla defesa e contraditório de determinação judicial a qual irá afetar o orçamento público. Sob a perspectiva extraprocessual representa a gestão dos bens públicos em prol da realização do interesse público uma vez que o direcionamento de verba pública para pagamento de condenações judiciais se dá em detrimento da destinação para o desenvolvimento de alguma política publica em benefício da coletividade.
Assim, observa-se que o projeto possui iniciativas louváveis como a exigência de apresentação de cálculos discriminados pelo exequente, permitindo-se a ampla defesa da Fazenda. Contudo, a extinção da citação da Fazenda para defesa admitindo-se mera intimação, pode prejudicar o exercício adequado da defesa do ente público, o qual, na qualidade de constante litigante em demandas judiciais possui recursos humanos e materiais escassos para conseguir realizar a correta defesa em todos os casos em que é demandado.
Portanto, descabe a tentativa do legislador em dispensar tratamento isonômico entre partes que estão na defesa de interesses diversos, uma vez que o interesse do particular de satisfação da obrigação individual se contrapõe ao interesse público em defesa do cumprimento da obrigação da forma menos onerosa ao orçamento público.
O legislador, no projeto do Código de Processo Civil, deve sim perquirir a efetividade e celeridade processual, sem, contudo, afastar as prerrogativas processuais da Fazenda Pública que assim existem não para favorecer o ente público, mas para prezar pela gestão do interesse público.
Procuradora do Estado de São Paulo. Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006) e especialização em Direito Público Privado – convênio UNESA pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (2009). Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado (2013) – ESPGE. Mestranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP em Direito Processual Civil
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