Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Fato jurídico stricto sensu e fato jurídico lato sensu. 2.1. Do suporte fático. 2.2. Fato, suporte fático e fato jurídico. 3. Da eficácia dos fatos jurídicos. 3.1. Eficácia da lei e eficácia do fato jurídico. 3.2. Do direito subjetivo. 4. Da incidência da norma jurídica. 4.1. Características da incidência: incondicionalidade e inesgotabilidade. 5. Dos atos jurídicos. 6. Conclusões.

1. Considerações iniciais

Para atender ao desiderato de ordenar a conduta humana, o Direito valora os fatos e, por meio das normas jurídicas, erige à categoria de fato jurídico aqueles que têm relevância para as relações intersubjetivas humanas. Em outras palavras, para que um fato seja considerado um fato jurídico é mister que haja uma norma pertencente a um determinado sistema jurídico que atribua um efeito jurídico a esse fato.

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É de se ressaltar que não são todos os fatos que têm relevância para o mundo jurídico. Enquanto alguns eventos possuem grande importância para as relações intersubjetivas humanas, outros nada representam, inclusive algumas condutas. Em contraposição, quando o fato repercute, direta ou indiretamente, no relacionamento inter-humano, afetando, de algum modo, o equilíbrio relativo de que deve revestir-se tal relacionamento, faz-se sentir a necessidade de uma norma que regule esse fato, imputando-lhe efeitos que repercutem no plano da convivência social.

Assim, a norma jurídica, ao atuar sobre os fatos que compõem o mundo, atribui-lhes conseqüências específicas, denominadas efeitos jurídicos, em relação aos homens (pela causalidade normativa)[1]. Esses efeitos constituem um plus quanto à natureza do fato em si. A adjetivação do fato pela norma jurídica confere-lhe uma característica que o distingue dos demais fatos: o ser fato jurídico.

Diante do exposto, pode-se constatar a distinção entre o universo fático, que é o mundo em geral, e o mundo jurídico, composto apenas pelos fatos jurídicos. Conseqüentemente, é possível inferir-se que as situações jurídicas, desde as mais simples às de conteúdo mais complexo, que se desdobram em múltiplos direitos/deveres, pretensões/obrigações, ações e exceções são, apenas, imputações feitas pelos homens a certos fatos, por meio da norma jurídica.

A distinção entre o que pertence e o que não pertence ao mundo jurídico reveste-se de fundamental importância ao trato do Direito como ciência. Nesse passo, evidencia-se a precisão da lição de Pontes de Miranda, que ora trago à colação: “Quando se fala de fatos alude-se a algo que ocorreu, ou ocorre, ou vai ocorrer. O mundo mesmo, em que vemos acontecerem os fatos, é a soma de todos os fatos que ocorreram e o campo em que os fatos futuros se vão dar. Por isso mesmo, só se vê o fato como novum no mundo. Temos, porém, no trato do direito, de discernir o mundo jurídico e o que , no mundo, não é mundo jurídico. Por falta de atenção aos dois mundos muitos erros se cometem e, o que é mais grave, se priva a inteligência humana de entender, intuir e dominar o direito”.[2]

Em síntese, pode-se afirmar que o mundo jurídico seleciona fatos da vida, que passam a integrá-lo, a constituí-lo, em virtude da incidência da norma jurídica sobre esses fatos, juridicizando-os. A juridicização é o processo peculiar ao Direito, em que esse adjetiva os fatos para que sejam jurídicos, ou seja, para que entrem no mundo jurídico. É nesse fio de raciocínio que Lourival Vilanova pondera: “O direito é um processo dinâmico de juridicização e desjuridicização de fatos, consoante as valorações que o sistema imponha, ou recolha, como dado social (as valorações efetivas da comunidade que o legislador acolhe e as objetiva como normas impositivas).”[3]

Alguns fatos do mundo entram duas ou mais vezes no mundo jurídico, ou seja, há fatos do mundo que correspondem a dois ou mais fatos jurídicos. A explicação disso está em que o fato do mundo continua a integrar esse conjunto (conjunto dos fatos que compõem o mundo) e é determinado no espaço e no tempo, em que pese haver adentrado uma ou mais vezes no mundo jurídico: “a morte de A abre a sucessão de A, dissolve a comunhão de bens entre A e B, dissolve a sociedade A & Companhia, exclui A da lista de sócios do Jockey Club e de professor do Instituto de Biologia ou de membro do corpo diplomático.”[4]

2. Fato jurídico stricto sensu e fato jurídico lato sensu

A expressão fato jurídico pode ser empregada em dois sentidos, lato e estricto. Em sentido lato, é todo acontecimento, dependente, ou não, da vontade humana, a que o Direito atribua eficácia (atribua efeitos jurídicos).

A seu turno, a manifestação de vontade, que provoca efeitos jurídicos, é denominada de ato jurídico, nomeadamente negócio jurídico.

Usualmente, a expressão fato jurídico é empregada no sentido restrito, motivo pelo qual a expressão é reservada para designar todo evento (fato independente da vontade humana) que suscita efeitos jurídicos. São exemplos de fatos jurídicos: o nascimento, a maioridade, a morte, o decurso de tempo, entre outros. A morte é fato jurídico porque o ordenamento jurídico lhe atribui, entre outros, o efeito de determinar a transmissão do patrimônio do de cujus aos sucessores.

Como no mundo jurídico os efeitos decorrem invariavelmente da norma, sem que essa empreste significação ao intento do agente, a ação humana permanece como fato jurídico lato sensu.

Entre as diversas classificações possíveis, pode-se “classificar os fatos em: a) evento, que inclui os fatos da natureza e do animal, ou seja, todos aqueles que independem de conduta para existirem; b) conduta, que define o ato humano.”[5]

2.1. Do suporte fático

O suporte fático é elemento essencial no estudo da juridicidade, considerando que é a previsão, pela norma jurídica, da hipótese fática condicionante da existência do fato jurídico. Assim, o suporte fático é um fato, seja evento ou conduta, que poderá ocorrer no mundo e que, por ter sido considerado relevante, tornou-se objeto da normatividade jurídica.

Do exposto, torna-se evidente que suporte fático é um conceito do mundo dos fatos e não do mundo jurídico, uma vez que somente depois da concretização dos seus elementos (ocorrência no mundo dos fatos) é que , pela incidência da norma, surgirá o fato jurídico, a partir de quando será possível falar-se em conceitos jurídicos.

Importante ressaltar que há duas conotações a serem consideradas quando se fala em suporte fático:

a) enquanto considerado apenas como enunciado lógico da norma jurídica, dá-se o nome de suporte fático hipotético ou abstrato, uma vez que existe, somente, como hipótese prevista pela norma sobre a qual, se ocorrer, dar-se-á a sua incidência;

b) quando já materializado, isto é, quando o fato previsto como hipótese concretiza-se no mundo fático, denomina-se suporte fático concreto.

O conceito de suporte fático é aplicável a qualquer ramo do Direito. Prova disso é que, nos diversos campos jurídicos, tal conceito é aplicado, na maioria das vezes, por meio de outras denominações, como pressuposto de incidência, tipificação legal, tipo legal ou hipótese de incidência.

Em sede de Direito Tributário, a expressão fato gerador requer cuidado por parte do operador do Direito, posto que pode induzi-lo à equivocada conclusão de que o fato gerador da obrigação tributária é o suporte fático, quando, na verdade, é o suporte fático juridicizado, isto é, após a incidência da norma jurídica, e não o suporte fático apenas.

Quanto à expressão fato gerador, merece destaque a crítica de Paulo de Barros Carvalho quando assevera: “Por motivo de forte ambigüidade, vimos rejeitando a expressão ‘fato gerador’, tão corrente na doutrina brasileira. A locução, com efeito, é utilizada para mencionar a hipótese da norma geral e abstrata (regra-matriz) e, simultaneamente, o fato jurídico (antecedente da norma individual e concreta). Assim, no sistema do nosso direito positivo e nas elaborações da doutrina vemos reiteradamente empregada a locução ‘fato gerador’, quer para mencionar a previsão legal do fato, elaboração tipicamente genérica e abstrata, quer quanto ao fato mesmo, como enunciado protocolar, denotativo, rigorosamente determinado no antecedente de norma individual e concreta.”[6]

Quanto às demais expressões utilizadas para nomear o fato jurídico tributário, destaca o insigne tributarista, que o problema nominativo não é o mais importante, “o que abre a possibilidade a que empreguemos, para designar o antecedente normativo, tanto ‘hipótese’ como ‘suposto’, ‘antessuposto’, ‘pressuposto’, ‘prótase’, ou ‘descritor da norma’.”[7]

2.2. Fato, suporte fático e fato jurídico

As palavras fato (real), suporte fático e fato jurídico representam diferentes conceitos. Como elemento diferenciador, entre o fato em si mesmo considerado e o suporte fático, há o elemento valorativo. Nesse sentido, merece ser trazida à colação a lição de Marcos Bernardes, consubstanciada no seguinte exemplo: “A morte, por exemplo, somente compõe suporte fático quando conhecida, porque a sua prova constitui elemento que se integra ao fato real para constituí-lo em suporte fático. Só a morte conhecida interessa à comunidade e a juridicidade só existe em razão da intersubjetividade. Se alguém desaparece de seu domicílio e dele não se tem notícia, é considerado ausente, abrindo-se a sucessão provisória de seus bens, decorrido um certo tempo. Pode ocorrer que, de fato, aquela pessoa esteja morta. Mas, se da morte não se tem conhecimento, ela é considerada apenas ausente, para os fins do direito – e não morta -. Até que se faça a prova de sua morte ou seja considerada presuntivamente morta. Tudo se passa em sua esfera jurídica como se viva estivesse. Assim, a morte é fato e a morte conhecida é suporte fático.”[8]

3. Da eficácia dos fatos jurídicos

Como visto, o fato jurídico em sentido estrito é o evento que sucede no mundo exterior, sem que, para sua formação, concorra a vontade do homem amparada pela ordem jurídica.

Quanto ao ato jurídico, contudo, a vontade humana carece de se delinear, vontade essa reconhecida pela ordem jurídica.

O ato, para ser jurídico, necessita produzir efeitos. Esses efeitos, contudo, não significam mera alteração da realidade fática. Eles vão além, modificando a realidade fática e a realidade jurídica. Para alterar a primeira, basta a mera vontade humana. Mas, para alterar a ordem jurídica, faz-se necessário que o ordenamento admita o fato, valore-o, confira-lhe efeitos, repute-o, em suma, eficaz.

A ordem jurídica, portanto, é o elemento dinâmico, ou melhor, o elemento que confere dinamicidade ao fato que ocorre no mundo. É ela e que diz o que é o fato jurídico e o ato jurídico. É ela, igualmente, que confere eficácia à vontade do homem, que a reconhece capaz de produzir efeitos no mundo jurídico.

Os efeitos jurídicos ligam-se aos fatos como uma conseqüência deles, por determinação do ordenamento jurídico.

É a ordem jurídica que diz quais os efeitos a serem conferidos aos fatos. E, neste sentido, pode-se falar de eficácia dos fatos. Em outras palavras, constata-se, na realidade fática, que se um certo e determinado fato ocorrido no mundo real é capaz de produzir dados efeitos que interessam à esfera jurídica, tal fato é dotado de eficácia. Ou seja, existe aí a eficácia do fato. Assim, pode-se afirmar que o fato é jurídico quando contém em si razão suficiente para ser eficaz.

Por outro lado, como uma recíproca indissolúvel, só o fato passível de ser conotado eficaz acarreta efeitos jurídicos. E tais efeitos apresentam-se como sendo certos direitos, certos poderes. São direitos de receber uma coisa, objeto de um contrato de compra e venda; são poderes de estabelecer certos atos, de instituir determinadas relações, entre outros.

A eficácia jurídica é o que se produz no mundo do Direito como decorrência dos fatos jurídicos. Porém, é de se observar que não é ao suporte fático que corresponde a eficácia. “Os elementos do suporte fático são pressupostos do fato jurídico; o fato jurídico é o que entra, do suporte fático, no mundo jurídico, mediante a incidência da regra jurídica sobre o suporte.”[9]

A relação que se estabelece entre o fato e o efeito é imediata, instantânea. Ocorrido o fato no mundo real, o efeito de pronto se configura.

Todavia, não se pode olvidar que há inúmeros exemplos em que o fato ocorre e o efeito esperado não lhe é imediato. É o caso daquelas hipóteses em que um dos elementos necessários à constituição do ato não se verificou, não se fez presente. Quando isso ocorre, diz-se que o fato está incompleto. Por outro lado, casos há em que certo requisito de eficácia não se produziu. Em tais casos, os fatos podem ser denominados de imperfeitos.

Em ambas as hipóteses, adrede citadas, os efeitos não se produzem.

A distinção entre um fato incompleto e um fato imperfeito é por demais sutil. Ambos se acham inacabados por lhes faltar ora um elemento indispensável à formação mesma do fato, quer quanto a não se haver realizado um dado requisito de eficácia que, por sua importância, faz gerar o efeito jurídico desejado.

A partir da análise levada a efeito, pode-se afirmar que um direito só surge quando, em sua constituição, todos os requisitos tenham-se realizado. Nesse passo, a falta de um desses elementos indispensáveis impede o surgimento do Direito, não obstante a ordem jurídica, amiúde, permitir que se operem certos efeitos quando da ausência dos mencionados requisitos.

São exemplos de tais hipóteses: os direitos em estado de pendência, a situação que antecede ao efeito retroativo, as expectativas e outros.

É de se observar que isso não se sucede, apenas, no que concerne ao nascimento de direito. Igualmente ocorre com a modificação e a extinção de direitos.

Quando um fato depende de outro para se perfazer, e aquele não se realiza, é possível o surgimento de efeitos provisórios. Realizado o fato complementar, pode-se cogitar a produção de efeitos retroativos. Então, os efeitos do ato jurídico põem-se de tal forma, como se aquele fato, que só posteriormente veio a realizar-se, houvesse ocorrido no tempo previsto.

Do exposto, pode-se inferir a possibilidade da existência de fato jurídico sem que nenhuma eficácia dele decorra. Assim, o testamento realizado por alguém que logo em seguida o revogou é exemplo de um fato jurídico que não carreou eficácia ao Direito.

Contudo, seguindo a ordem normal das coisas, o fato jurídico visa a desenvolver eficácia.

Apesar de distintos os conceitos de fato e eficácia, ambos possuem pontos de semelhança.

A partir da observação da realidade fáctica, observa-se que inexiste conduta de natureza jurídica que não tenha sido ditada em face de uma certa circunstância, de uma ocorrência do mundo exterior. Dito de outra forma, o mundo do ser indica-nos que não há Direito sem uma subjacente realidade fática cuja existência é verificada no dia a dia.

Como corolário, pode-se afirmar que, mesmo os denominados direitos absolutos, ou seja, os direitos relativos à personalidade humana, o direito à vida, ao nome, à nacionalidade, entre outros, mesmo esses, não têm existência dissociada dos fatos. Ou seja, ainda em tais hipóteses, o fato condiciona o Direito.

Os direitos absolutos existem porque a realidade social, fáctica, valorou-os como indispensáveis à vida da coletividade. Eles não são fruto, pura e simplesmente, de idéias. Eles existem e são reputados vitais, porque a sociedade sentiu, no cotidiano, a necessidade de valorá-los.

Na relação jurídica que atribui direito absoluto ao sujeito ativo, esse (o sujeito ativo) é uma determinada pessoa (ou um determinado grupo de pessoas); ao passo que, no pólo negativo da relação jurídica, o dever é atribuído a sujeito passivo total: todas as demais pessoas não incluídas no pólo positivo; por isso é costume dizer que se trata de direito erga omnes.

Conhece-se o sujeito passivo total por exclusão, isto é, todas as pessoas que não forem sujeito ativo, na relação jurídica atribuidora de direito absoluto, estão no pólo negativo.

3.1. Eficácia da lei e eficácia do fato jurídico

A incidência da norma (regra) jurídica é a sua eficácia; enquanto a eficácia do fato jurídico é a juridicização das suas conseqüências em virtude da incidência.

Milita em equívoco aquele que afirma ser a regra jurídica que produz a eficácia jurídica; a eficácia jurídica é uma conseqüência da incidência da norma sobre os fatos, tornando-os jurídicos e habilitando-os a produzir efeitos jurídicos.

3.2. Do direito subjetivo

Como visto alhures, por meio da incidência da norma jurídica sobre o suporte fático é que ocorre a juridicização do fato, habilitando-o a produzir efeitos jurídicos, a ter eficácia.

Os direitos subjetivos e todos os demais efeitos dos fatos jurídicos constituem a sua eficácia. Não obstante, “o direito objetivo não é logicamente anterior ao direito subjetivo; é outra coisa: direito, na expressão ‘direito objetivo’, e direito, na expressão ‘direto subjetivo’, são duas acepções do vocábulo ‘direito’, dois fatos diferentes.”[10]

Enquanto a expressão “direito objetivo” representa o conjunto de normas jurídicas, o direito subjetivo corresponde aos efeitos do fato jurídico, a sua eficácia. É eficácia, ressalte-se, dos fatos jurídicos e não da norma jurídica, posto que a eficácia da norma jurídica é a sua incidência.

Deve-se sempre ter presente que, antes do direito subjetivo, já existe a regra jurídica. Só após a incidência da regra jurídica sobre o suporte fático, juridicizando-o, é que se dará a eficácia jurídica, ou seja, a relação jurídica, com o seu pólo positivo (o sujeito ativo) e o pólo negativo (sujeito passivo) e com o seu conteúdo jurídico. Esse conteúdo jurídico (da relação jurídica) tem uma parte localizada no pólo positivo: o direito (o direito subjetivo), pretensão e coação; a outra parte localiza-se no pólo negativo: o dever, a obrigação, a sujeição.

Como se verifica, não pode existir direito subjetivo (direito e seu correlativo dever) sem que antes exista relação jurídica; e esta não pode existir sem que antes tenha ocorrido a incidência da regra jurídica sobre o suporte fático.

4. Da incidência da norma jurídica

A incidência é o efeito da norma jurídica de transformar em fato jurídico a parte do seu suporte fático que o Direito considerou relevante para ingressar no mundo jurídico. Só após o surgimento do fato jurídico, em decorrência da incidência, é que se poderá falar de situações jurídicas e de todas as demais espécies de efeitos jurídicos.

Como visto anteriormente, a eficácia da norma jurídica (denominada eficácia legal), de que resulta o fato jurídico, e a eficácia jurídica, que decorre do fato jurídico já existente, não se confundem.

A eficácia jurídica (relação jurídica, direitos, deveres e demais categorias eficaciais) só surge após verificada a eficácia legal ou incidência.

Esquematicamente, a incidência da norma sobre o fato pode ser representada da seguinte forma:

norma jurídica

+          = fato jurídico + eficácia jurídica

suporte fático

Diante do exposto, é possível chegar-se à seguinte conclusão: nem à norma jurídica sozinha, nem ao fato sem a incidência, pode-se atribuir qualquer efeito jurídico. Assim, o fato, enquanto apenas fato, e a norma jurídica, enquanto não se realizarem seus pressupostos de incidência (suporte fático), não têm qualquer efeito vinculante relativamente aos homens. Sobre tal aspecto, é oportuno destacar-se a lição de Emílio Betti quanto ao significado da parêmia latina ex facto oritur ius ( o direito nasce do fato):

“Quer dizer-se com ela que a lei, só por si, não dá nunca vida a novas situações jurídicas, se não se verificarem alguns fatos por ela previstos: não porque o fato se transforme em direito, mas porque é uma situação jurídica preexistente que se converte, com o sobrevir de um dado facto, numa situação jurídica nova…A nova situação jurídica estabelecida pela norma não se produz enquanto não se verificar, inteiramente, a hipótese de facto, a fattispecie, que é o seu pressuposto.”[11]

4.1. Características da incidência: incondicionalidade e inesgotabilidade

A incidência é um traço característico da norma jurídica distinguindo-a dos demais processos de adaptação social, das normas da etiqueta, da moral e da religião, posto que as torna de observância compulsória, sem que seja considerado qualquer aspecto volitivo, ou seja, independentemente “da adesão daqueles a que a incidência da regra possa interessar”[12]. Assim, pode-se afirmar que, quando se trata de norma jurídica, há obrigatoriedade em acatá-la e esse comportamento imposto pela norma não se condiciona à concordância ou aceitação da comunidade ou do indivíduo. Como corolário, ocorridos os fatos que constituem o seu suporte fático, a norma jurídica incide, incondicionalmente, isto é, independentemente do querer das pessoas.

Em razão de a incidência não estar condicionada à adesão das pessoas, é que se justifica o princípio da inalegabilidade da ignorantia iuris como excludente da ilicitude; a ninguém é dado alegar que descumpriu a lei por desconhecê-la (error iuris is non excusat). Porém, é possível aduzir-se que o princípio da eqüidade é idôneo para mitigar o rigor desse axioma.

A norma pode ser infringida. Isso, porém, não implica ser afastada a incidência, nem afetada a sua incondicionalidade. A observância ou não da lei é ato de aplicação, de execução, portanto, posterius em relação à incidência e, naturalmente, dela dependente. É de se observar que a incidência e a aplicação nem sempre coincidem, em outros símbolos, nem sempre a aplicação da norma atende à sua incidência, em virtude da falibilidade da conduta humana. Assim, em virtude da inafastabilidade da incidência pela conduta humana, salvo quando expressamente permitida pela norma, consideram-se contra legem as atitudes que tornem incoincidentes a aplicação e a incidência.

Em que pese a incondicionalidade da incidência ser da essência das normas jurídicas, em algumas espécies, porém, permite-se à vontade individual o poder de afastá-la, dispondo de modo diverso da norma, sem infringi-la. Nesse passo, chega-se a conclusão de que há normas cuja incidência é inafastável pela vontade das pessoas, enquanto, em outras, a incidência fica condicionada ao arbítrio humano. Considerando o exposto, as normas podem ser classificadas como cogentes e não-cogentes, de acordo com a sua inafastabilidade pela vontade humana.

As normas cogentes são aquelas que dispõem imperativamente, impondo ou proibindo determinada conduta, sendo denominadas de normas impositivas ou imperativas e normas proibitivas.

Diferentemente, as normas não-cogentes destinam-se a suprir a falta de manifestação de vontade negocial nas searas em que é livre a estruturação de relações jurídicas, sendo permitido às pessoas pactuarem a regulamentação que melhor atenda a seus interesses, e ainda, têm por finalidade definir o sentido em que devem ser tomadas as manifestações de vontade, quando duvidoso, ambíguo o seu conteúdo.

Quanto ao aspecto da inesgotabilidade, é de se observar que a incidência não se esgota por haver ocorrido uma vez. Noutro passo, toda vez que o suporte fático se compuser, a norma incidirá. Porém, essa regra comporta exceção quanto às normas cuja eficácia se esgota em uma única incidência. São exemplos de tais normas aquelas que se destinam a regular determinado caso, ou seja, um caso isolado e único. Pode-se incluir nesse conjunto o artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988.

Em que pese a norma jurídica, de ordinário, ser formulada em caráter genérico, abstrato, para atender ou prover, situações gerais e diversas, a generalidade não constitui elemento essencial à sua configuração.

A norma jurídica que somente se refira a uma única situação, uma vez ocorrida tal situação, perderá a possibilidade de continuar eficaz.

A norma perderá a sua vigência, não em função de revogação, mas em virtude de ser norma de vigência temporária que, por sua natureza, não necessita de revogação posterior, uma vez que sua vigência é limitada ao atendimento do fim específico a que se destina, conforme estabelece o artigo 2 da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, que giza: “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”.

5. Dos atos jurídicos

A manifestação da vontade humana pode ser positiva ou negativa (omissão), ainda que por negligência.

Se alguma norma jurídica incidir sobre os atos humanos, essa incidência torna-los-á atos jurídicos. Só assim passam a ter eficácia jurídica. Nesse passo, pode-se afirmar que o ato humano cuja importância restrinja-se às relações de cortesia, ou que só é objeto de apreciação moral, não é ato jurídico.

No entanto, merece ressalva o seguinte aspecto: é mister que a norma jurídica incida sobre o ato humano e não sobre a conseqüência de tal ato. Nesse sentido, destaca-se a lição de Pontes de Miranda: “Se destruo o objeto, não pratico ato jurídico, de que resulte o perecimento do objeto: sou causa de fato, que é o perecimento, e o perecimento é que é fato jurídico, acontecimento, e não ato jurídico.”[13]

Assim, por ato jurídico entenda-se o fato jurídico cujo suporte fático tenha como cerne uma exteriorização consciente da vontade, dirigida a obter um resultado juridicamente protegido ou não proibido e possível. A partir desse conceito, é possível destacar os seguintes elementos que o integram: a) o ato humano volitivo, correspondendo a uma conduta que representa uma exteriorização da vontade, mediante declaração ou manifestação, conforme a espécie, que constitua uma conduta juridicamente relevante e, por isso, prevista como suporte fático da norma jurídica; b) a necessidade de que essa exteriorização seja consciente, ou seja, que o sujeito que manifesta ou declara a vontade o faça com o intuito de realizar aquela conduta juridicamente relevante; c) que esse ato tenha por finalidade a obtenção de um resultado possível e protegido , ou pelo menos não proibido (permitido) pelo Direito.

Do exposto, resulta evidente que, para o Direito, apenas a vontade exteriorizada é considerada hábil para compor o suporte fático do ato jurídico. A vontade não externada, que permanece como reserva mental, não comporá o suporte fático do ato jurídico. Porém, há situações, como no dolo, na ignorância, no erro, em que os elementos volitivos internos constituem elementos do suporte fático de norma jurídica (não de ato jurídico).

Quanto ao aspecto formal da exteriorização da vontade, em outras palavras, no que pertine à forma como a vontade é exteriorizada, distinguem-se manifestação de vontade e declaração de vontade. Nesse diapasão, a manifestação de vontade revela-se por meio do mero comportamento do indivíduo, em que pese esse comportamento ser concludente. Já as declarações de vontade são manifestações explícitas da vontade. Para ilustrar essa distinção, pode-se lançar mão do seguinte exemplo:

Se alguém lança ao lixo determinado objeto, manifesta sua vontade de abandoná-lo; se, de forma diversa, comunica às pessoas de seu convívio que vai lançar o objeto no lixo, declarou a sua vontade de abandoná-lo, não somente manifestou sua vontade.

A distinção entre manifestação de vontade e declaração de vontade é utilizada de forma equivocada por parcela da doutrina quando a considera como o elemento diferenciador entre o negócio e o ato jurídico stricto sensu. Assim, havendo declaração de vontade, há negócio jurídico, enquanto as manifestações de vontade caracterizariam os atos jurídicos strico sensu. Todo aquele que perfilha tal entendimento incorre em equívoco por não considerar o fato de que há negócios jurídicos que são constituídos por meio de simples manifestações de vontade, enquanto há atos jurídicos stricto sensu que exigem declaração de vontade.

Relativamente à exigência de consciência da vontade, tal não significa que o sujeito, ao exteriorizar sua vontade, precise manifestá-la com a ciência e a intenção de que está praticando um ato jurídico. Se essa cunjunção ocorre, tanto melhor. A consciência deve ser da manifestação em si, não do específico conteúdo jurídico dessa manifestação, ou das conseqüências jurídicas da conduta.

O ato jurídico tem por objeto uma atribuição de cunho prático que a ordem jurídica alberga e protege. Essa atribuição constitui o objeto do ato jurídico e se caracteriza pela eficácia que as normas jurídicas lhe imputam. Por outros símbolos, o ato jurídico é aquele do qual decorra, ou haja a possibilidade de decorrer, uma atribuição jurídica caracterizada pela possibilidade de alteração da esfera jurídica daqueles que figuram no ato jurídico. Ou seja, o ato jurídico, via de regra, é eficaz. No entanto, caso o ato jurídico dependa de uma condição suspensiva, ele só será eficaz, isto é, só produzirá efeitos se a condição vier a se concretizar.

6. Conclusão

Como conseqüência dos tópicos abordados, conclui-se que a compreensão do fenômeno da incidência da norma jurídica é de fundamental importância para todo aquele que se proponha a estudar e a entender o Direito. O trato do Direito como ciência não prescinde da distinção entre o que integra e o que não integra o mundo jurídico.

Diante do exposto, um estudo monográfico sobre o fato jurídico contribui para um trato não confessional do Direito, posto contribuir para o entendimento do Direito enquanto ciência.

Referências bibliográficas

BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Trad. Fernando Miranda. Coimbra: Coimbra Ed., 1998.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998.
MELLO, Marcos Bernades de. Teoria do fato jurídico: plano de existência. Saraiva, 1999.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1946, tomo I.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999, tomo I.
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. São Paulo: Saraiva, 1995.

Notas:

[1] VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. São Paulo: Saraiva, 1995, p.90.
[2] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999, tomo I, p.52.
[3] VILANOVA, Lourival. Op. cit., p.90.
[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Op. cit., p. 52.
[5] MELLO, Marcos Bernades de. Teoria do fato jurídico: plano de existência. Saraiva, 1999. p.8.
[6] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 112.
[7] CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p.110.
[8] MELLO, Marcos Bernades de. Op. cit., p. 50.
[9] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Op. cit., p. 50.
[10] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante: Op. cit., p. 51.
[11] BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Trad. Fernando Miranda. Coimbra: Coimbra Ed., 1998, p.23.
[12] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1946, tomo I, p.27.
[13] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999, tomo I, p. 128.

 


 

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João Hélio de Farias Moraes Coutinho

 

 


 

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