Em época de eleição muito se discute a respeito do desenvolvimento do País e das suas formas de financiamento pelo Governo Central, Estadual e Municipal, apoiando uma reforma tributária urgente e eficaz.
Tais assuntos estão ligados, entre outras questões, ao Sistema Político do Federalismo, que separa o país em três esferas administrativas, em tese, independentes ou autônomas: União, Estados e Municípios, além do Distrito Federal.
Essa autonomia pode ser entendida como um movimento de descentralização, realocando competências legislativas e administrativas de forma a fortalecer os Estados e Municípios para a realização da tarefa do desenvolvimento regional.
Contudo, essa autonomia político-administrativa somente atinge sua eficácia quando os entes são também financeiramente independentes, ou seja, têm auto-suficiência financeira para executar suas tarefas, sem necessitar submeter-se ao aval ou crivo de outras entidades interessadas. Essa autonomia financeira se dá pelo que chamamos de Federalismo Fiscal.
“Toda Federação pressupõe a necessidade de preservar e fortalecer a autonomia dos entes federados, que deve se compatibilizar com algum grau de centralidade normativa, exigida para assegurar a indispensável harmonia entre eles. O difícil ajuste entre autonomia financeira dos Estados e Municípios e a hipertrofia do poder de legislar da União, que limitam o exercício da competência tributária dos demais entes federados, ao mesmo tempo em que cada vez mais descentralizam-se as atribuições, onerando-lhes sem necessariamente receberem a necessária contrapartida financeira, produz uma das mais intrigantes questões do federalismo fiscal”.[1]
Tendo em vista a importância da manutenção do Federalismo Fiscal como um dos pilares do Sistema Federalista pregado na Constituição Federal, que nasceu da necessidade de desenvolvimento regional como forma de desenvolvimento integral do País, torna-se imprescindível a discussão das formas como, atualmente, no Brasil este sistema aparece e é deturpado conforme interesses políticos vinculados à União e sua tendência centralizadora do poder.
Nesse sentido, vale mencionar Juliano di Pietro que afirma que “No Estado Federado, de outra sorte, não há que falar em autonomia política ou administrativa, sem autonomia financeira, cuja inexistência elide totalmente o conceito”[2]. Ou seja, como é possível transferir deveres administrativos, sistemas de políticas públicas ou a execução de serviços públicos aos entes periféricos (Estados e Municípios) sem que estes tenham como financiar essas atividades?
Assim, mostrando-se evidente a necessidade da autonomia financeira dos entes federados para manutenção do próprio sistema federalista, salta-nos aos olhos a grande questão do por quê existem cada vez mais diferenças entre as regiões, guerra fiscal e principalmente um enorme volume de Municípios sem qualquer autonomia financeira, dependentes de repasses de receita e sem qualquer perspectiva de desenvolvimento.
O Federalismo trouxe a idéia de que a regionalização, ou a separação do País em micro-regiões, transferindo a ação macro da União aos Estado e Município, que, em tese, estão mais próximos dos seus problemas e podem dedicar mais atenção a eles, traria mais desenvolvimento.
Em outras palavras, se um determinado Município tem alto índice de mortalidade infantil, mas sem analfabetos, e seu Município vizinho tem altos índices de analfabetismo, mas não tenha problemas de mortalidade infantil, numa situação centralizada e uniforme, o primeiro Município teria recursos em excesso para a educação e insuficientes para a saúde e ocorreria situação inversa no segundo.
Talvez, verificando esse tipo de problema, tenha surgido a primeira idéia do Federalismo Fiscal, que, em princípio, delegaria a cada ente federativo, dentro de sua capacidade financeira, a competência para alocar as receitas recebidas onde entende ser mais adequado, o que facilitaria o desenvolvimento eficiente dos pontos deficitários de cada região.
Para financiar esta estratégia desenvolvimentista, optou-se pela distribuição de rendas horizontal (competência tributária específica de cada ente) complementada pela distribuição de rendas vertical (redistribuição das rendas arrecadas por outro ente que não aquele que será o real beneficiário).
É por esse motivo que a Constituição Federal concede poderes à União, aos Estados e Municípios (e ao Distrito Federal) de instituírem seus próprios impostos e determina a distribuição de parte do produto da arrecadação de alguns entes para outros, considerados mais necessitados.
Nesse aspecto, vale mencionar Rogério Leite Lobo:
“a partir da inescapável constatação de que nem todos os Estado-membros e Municípios – os quais se pretendia tornar autônomos – são capazes de produzir em suas lindes riqueza suficiente para dela extrair, sem auxílio externo, matéria tributável em montante compatível às atribuições constitucionais que lhes tenham sido conferidas, dentro de sua rigidez a Carta de 1988 pretendeu otimizar a ‘distribuição vertical de rendas’, (…) estipulando uma complexa rede de vascularização financeira, dinamizada por transferências de parcelas do produto da arrecadação de alguns impostos” (pg. 82).
No entanto essa “distribuição de rendas” está prevista na Constituição de forma rígida, imutável, o que gera algumas discrepâncias. Ocorre que, imaginemos, por exemplo, um Município onde a pecuária é a grande fonte de riqueza, no entanto, este mesmo Município só pode instituir impostos sobre a propriedade imóvel e sobre a prestação de serviços, tendo uma arrecadação baixíssima e, além disso, recebe do Estado parte do ICMS (o qual teve grande participação na arrecadação) exatamente igual aos outros Municípios do Estado. E, assim, esse Município pode estar impedido de desenvolver-se por problemas financeiros de correntes da má distribuição de recursos tributários.
Esta é uma das maiores dificuldades do chamado Federalismo Fiscal, reduzir os equívocos cometidos pela generalização, a partir de uma Constituição Federal que não deixa espaço para adequações infraconstitucionais às realidades econômicas (mutáveis e transitórias) de cada micro-região.
Rogério Leite Lobo, ao discorrer sobre o assunto, considera:
“Por isso que, nessa primeira vertente, a manutenção da autonomia financeira dos entes federativos seria resultado de uma constante revitalização da competência tributária outorgada na Carta Magna, não lha alterando pontualmente, mas sim como diuturno efeito da conjugação de uma legislação infraconstitucional lavrada em tipos abertos o suficiente para acompanhar as variações da realidade econômica sobre a qual é exercida a pressão tributária, ainda que tal realidade transite subjacente à descrição jurídica dos fatos, extraindo-a aí mediante o uso ponderado da chamada interpretação econômica ou teleológica” (pg. 149).
Por outro lado, embora seja interessante a idéia de uma Constituição Federal mais flexível e adequada para possibilitar a mutação constante da legislação infraconstitucional conforme a realidade econômica, estaríamos nesse ponto, talvez, abrindo mão da chamada segurança jurídica, ou seja, da certeza legal para realizarmos as atividades sabendo exatamente quais os efeitos tributários sobre elas e ainda, em relação ao ente federado, este sabendo exatamente quanto pode receber ou arrecadar e tendo deveres constitucionais rígidos para cumprir (como investimentos em saúde e educação).
Aliás, a partir da concessão de mais liberdade para dispor a respeito das receitas tributárias, maior seria o risco de falta de transparência, corrupção e controle dos entes federados.
Este, infelizmente, não é o único problema que devemos atentar-nos na aplicação do Federalismo Fiscal. Torna-se importante frisar que, atualmente, apesar da existência de uma Constituição Federal rígida, o Governo Central utiliza-se de outras formas de tributação para evitar o repasse de receitas, como foi o caso da CPMF ou das contribuições sociais, reduzindo, cada vez mais a arrecadação de impostos, cujo valor deve ser em parte repassado aos Estado e Municípios (e ao Distrito Federal).
Outra dificuldade para solucionar o impasse da autonomia financeira dos entes federados é o artigo 160 e seu parágrafo único, da Constituição Federal que abaixo destacamos:
“Art. 160. É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a impostos.
Parágrafo único. A vedação prevista neste artigo não impede a União e os Estados de condicionarem a entrega de recursos:
I – ao pagamento de seus créditos, inclusive de suas autarquias;
II – ao cumprimento do disposto no art. 198, § 2º, II e III” (negritamos).
Relativamente ao caput do referido artigo, antes da inclusão do malfadado parágrafo único, que se deu pela EC nº 3/93, Ives Gandra Martins afirma que “no novo modelo federativo, as pessoas de direito público têm assegurado o direito a perceber receitas tributárias diretas ou indiretas, sem receio de ver, por débitos anteriores, reduzido seu nível de autocompensação”[3].
Contudo, logo após, vem o parágrafo único que derruba essa garantia, uma vez que coloca sob condição as receitas pertencentes aos entes federativos decorrentes da chamada distribuição vertical de rendas, que é fundamental ao federalismo, gerando a submissão dos entes recebedores de repasses por causa de operações intergovernamentais específicas e alheias ao objetivo do sistema federalista.
Com apenas um parágrafo essa disposição constitucional coloca em risco a isonomia dos entes federados (pela possível falta de capacidade financeira), subjuga os entes federativos até às autarquias, se credoras, e retira do Poder Judiciário a possibilidade de decidir sobre as pendengas patrimoniais intergovernamentais.
Assim, para o bom funcionamento do federalismo fiscal fá-se urgente e necessária a revogação do parágrafo único do artigo 160, da Constituição federal, para que seja efetivada a garantia da autonomia financeira dos entes federados e, em última instância, o cumprimento de suas metas e o desenvolvimento regional.
Diante de todo o exposto, acredito que seja importante repensarmos a função final do sistema federalista e procurarmos meios inteligentes, transparentes e honestos para mantermos sua efetividade e validade, como forma de desenvolvimento regional, evitando a cada vez maior centralização de rendas e de tarefas na União.
Advogada formada pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (2000); cursou o programa de especialização em Direito Empresarial (2004); Possui vasta experiência na área do contencioso e consultivo tributário; É sócia do escritório Ramalho Cagnone & Ragazzi de Aguirre Advogados.
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