Fim da CPMF e a quebra do sigilo bancário

O inciso XII, do art. 5º da Constituição Federal dispõe que “é inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

Como se vê, a Constituição estabeleceu sigilo absoluto em relação ao sigilo da correspondência, da comunicação telegráfica e dos dados. Em relação às comunicações telefônicas, o próprio texto constitucional relativiza o sigilo. A quebra do sigilo telefônico está regulada pela Lei nº 9.296/96.

O sigilo da comunicação de dados é espécie do gênero sigilo profissional ou segredo profissional, abarcando o chamado sigilo bancário (operações financeiras do cliente do banco, seus extratos, o uso de cartões de crédito, o cadastro de bens etc.).

O STF, entretanto, não reconhece o sigilo bancário em termos absolutos, nem a existência de reserva de jurisdição, conforme decidido em apertada votação (MS nº 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 12-5-2000, p. 20). A reserva  de jurisdição só existiria para resguardar outras espécies de garantias, como a busca domiciliar (art. 5º, XI da CF), a interceptação telefônica (art. 5º, XII da CF) e a decretação de prisão, salvo nos casos de flagrância (art. 5º, LXI da CF).

A jurisprudência da Corte Suprema, conciliando o interesse público com o interesse privado, entendeu que a garantia do sigilo de dados constitui matéria que “resolve-se com observância de normas infraconstitucionais, com respeito ao princípio da razoabilidade e que estabeleceriam o procedimento ou o devido processo legal para a quebra do sigilo bancário” RE nº 219.970, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 10-9-99, p. 23).

Assim, a autoridade administrativa competente pode romper o sigilo bancário, desde que respaldado na lei.

As disposições dos §§ 5º e 6º do art. 38 da lei bancária, que permitem aos agentes do fisco o exame de dados bancários nunca puderam ser aplicadas, em face do contido no parágrafo único do art. 197 do CTN (lei complementar do ponto-de-vista material), que veda a comunicação de fatos de que o informante deva, legalmente, guardar segredo profissional.

Para remover esse obstáculo criado pelo Código Tributário Nacional foi editada a Lei Complementar nº 105, de 10-1-2001, permitindo a quebra do sigilo bancário pelo fisco. Contudo, o art. 6º dessa lei complementar condiciona a quebra do sigilo à existência prévia de processo administrativo instaurado, ou procedimento fiscal em curso e a indispensabilidade do exame de dados a juízo da autoridade competente.

Na duas únicas hipóteses passíveis de quebra do sigilo, a lei impôs o requisito da indispensabilidade do exame de dados à discrição da autoridade competente. Isso significa que se houver outros meios de concluir o processo administrativo tributário, ou de dar seqüência ao procedimento fiscal não poderá haver quebra do sigilo bancário.

Outrossim, o seu art. 5º prevê a regulamentação dos critérios para que as instituições financeiras informem o fisco quanto às operações realizadas por seus clientes, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor. Essa regulamentação foi feita pelo Decreto nº  4.489, de 28-11-2002, exigindo, dentre outras obrigações, informações a serem prestadas pelas instituições financeiras ou a elas equiparadas acerca das movimentações bancárias superiores a R$5.000,00 mensais em se tratando de pessoas físicas, e a R$10.000,00 em relação às pessoas jurídicas.

Não há, por ora, qualquer disposição legal, em sentido estrito, prevendo o procedimento para a quebra do sigilo bancário nas duas hipóteses autorizadas pelo art. 6º da LC nº 105/2001. O que existe em seu lugar é o Decreto nº 3.724/2001, baixado na mesma data da lei. O legislador palaciano confundiu regulamentação de texto legal, para sua fiel execução, com a regulamentação de matéria reservada à lei em sentido estrito. Só a lei pode estabelecer o devido processo legal para a quebra do sigilo bancário. É uma imposição que resulta do princípio constitucional expresso e da jurisprudência da Corte Suprema.

Conseqüentemente, esse Decreto 3.724/2001, apesar de regulamentar a expedição do Mandado de Procedimento Fiscal (MPF) para casos de flagrante constatação de contrabando, descaminho ou qualquer outra prática de infração à legislação tributária e excluir ao máximo a dose de subjetividade da autoridade administrativa competente na avaliação da absoluta necessidade de se examinar os dados,  é nulo de pleno direito por invasão de esfera de competência do Poder Legislativo. Padece ele do incurável  vício de natureza formal.

O  Decreto nº 4.489/2002 é bem pior. Além do vício formal incorre em vício de fundo regulando matéria reservada à lei. O que é pior vai muito além dos limites fixados pela complementar nº 105/2001. O Decreto não pode ser fonte de obrigações, pois ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme proclamado na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso II protegido por cláusula pétrea.

Ora, a Lei Complementar nº 105/2001, como vimos, somente instituiu as duas hipóteses de quebra do sigilo bancário e apenas em casos de absoluta necessidade de exame de dados bancários, para conclusão do processo administrativo tributário, ou para dar andamento ao procedimento fiscal. Foi absolutamente silente quanto ao procedimento para a quebra do sigilo bancário.

Tendo em vista a inoperância da Lei nº 10.174/2001, que autorizou  ao fisco a  utilização de dados da CPMF, em razão de sua extinção, a partir de 1º-12008, a Receita Federal do Brasil baixou a Instrução Normativa RFB nº 802, de 27 de dezembro de 2007, obrigando as instituições financeiras a prestar informações semestrais em relação a cada modalidade de operações financeiras de que trata o art. 3º do Decreto nº 4.489/2002, sempre que o montante global movimentado em cada semestre seja superior a R$5.000,00 para as pessoas físicas, e R$10.000,00 para as pessoas jurídicas. As modalidades de operações financeiras a que alude o citado art. 3º abarcam, entre outras, os depósitos bancários, os pagamentos em moeda corrente ou cheque, as emissões de ordens de crédito, os resgates em conta de depósito à vista e a prazo, os contratos de mútuo, as operações de desconto de títulos em geral, a aquisição e venda de títulos de renda fixa ou variável, as operações o mercado à vista, as operações com cartões de crédito etc. Fácil de imaginar o enorme custo operacional que isso irá acarretar para as instituições financeiras. Ao tempo da CPMF,  as instituições financeiras compensavam o custo das informações com a permanência dos valores do tributo retido, para ulterior recolhimento aos cofres da Receita Federal do Brasil.

Essa Instrução Normativa da RFB é absolutamente nula e írrita por pretender dar execução a um Decreto, o Decreto nº 4.489/2002, editado pelo Executivo com usurpação de competência do Legislativo a quem cabe regular o procedimento para a quebra do sigilo bancário, nos exatos termos da Lei Complementar nº 105/2001. Mesmo que houvesse expressa delegação na LC nº 105/2001, e não há, o Decreto e a IN só poderiam dispor sobre procedimento da quebra do sigilo bancário naquelas duas hipóteses previstas no seu art. 6º. Como é possível um instrumento normativo de menor hierarquia alargar as hipóteses de rompimento do sigilo? Decreto e IN sob análise permitem, ou melhor, obrigam as instituições financeiras a quebrarem o sigilo bancário de todos os seus clientes, indistintamente, independentemente, de existir sobre eles o competente processo administrativo tributário instaurado, ou pender algum procedimento fiscal. Isso, nem a lei ordinária poderia fazer, em obediência à matéria sob reserva de lei complementar.

Se é verdade que não há reserva de jurisdição nessa matéria, é verdade também que, por ora, não existe qualquer preceito legal regulando a quebra do sigilo bancário, nos termos autorizados pela LC nº 105/2001.

É preciso que as instituições financeiras reajam contra essas arbitrariedades, ao invés de, comodamente, dar cumprimento às determinações ilegais e inconstitucionais, debitando o custo dessas informações ilegais nas contas de seus clientes, pois podem seus responsáveis serem punidos na forma do art. 154 do Código Penal.

É necessário, também, que as instituições legitimadas ingressem imediatamente com a Adin contra as disposições do Decreto nº  4.489/2002 e da IN da RFB nº 802/2007, para fazer cessar o império da ilegalidade eficaz e restabelecer o primado do princípio da legalidade.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Kiyoshi Harada

 

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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