Fracionamento do contrato de trabalho e split salary: Novas figuras contratuais surgidas em decorrência da globalização

1 INTRODUÇÃO


A globalização impactou consideravelmente os mais diversos aspectos das relações sociais. Não obstante ela consista, em sua origem, em fenômeno econômico, não há como não reconhecer seus reflexos nos mais diversos aspectos da convivência humana, em particular nas relações de trabalho. A globalização econômica permitiu às empresas escolher com relativa facilidade os países em que pretendem produzir e aumentou a mobilidade de trabalhadores entre Estados soberanos, particularmente após a criação dos “blocos econômicos”, como o NAFTA, a União Européia e o Mercosul.


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O crescimento das relações internacionais de trabalho, como salienta Amauri Mascaro Nascimento, “apresenta problemas específicos decorrentes da mobilidade da força de trabalho entre as fronteiras à procura de novo emprego ou em sequencia do mesmo emprego, pondo-se o trabalhador, em outro País, na situação de estrangeiro submetido, até mesmo e conforme o caso, a três ordenamentos jurídicos, o do País em que está prestando o serviço, o de seu País de origem e o ordenamento internacional, em alguns casos comunitário. A mobilidade do capital tem atuado no sentido de provocar a ampliação desses ordenamentos e a necessidade de estabelecer regras que serão aplicáveis”[1].


Ganhou importância neste ínterim o Direito Internacional Privado, cuja função precípua consiste em resolver o conflito de leis no espaço pela determinação da Lex fori (lei do foro) quando for possível a incidência de duas ou mais ordens jurídicas.  Em outras palavras, a disciplina referida cuida justamente de apontar e definir a lei aplicável a determinada relação internacional. Tarefa que não é tão simples quanto se poderia imaginar a partir de uma análise sumária, vez que não há um único método se solução de conflitos de leis no espaço.


O chamado sistema europeu tradicional é bilateral. Utiliza-se do chamado elemento de conexão como fator de vinculação, de ligação a determinado sistema jurídico, apontando de maneira objetiva, o direito aplicável a determinada relação jurídica, sem se preocupar com o resultado concreto da operação. Foi o sistema adotado na Convenção de Roma de 1980 e na Convenção da Cidade do México de 1994. A este sistema, opõe-se o método americano, considerado unilateral, que não pretende indicar de maneira objetiva a lei aplicável, mas os mecanismos para encontrar a melhor norma material para solucionar o litígio. Nesse último, a solução deve ser vista a partir de seu resultado e definida de acordo com o conteúdo do problema em questão.


O Brasil adota o método europeu clássico segundo o qual a partir de um elemento de conexão define-se qual a norma aplicável ao caso concreto. A Lei de introdução ao Código Civil (LICC) estatui, em seu artigo 9º que “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. O elemento de conexão neste caso é a lex loci contractus.


Firmou-se, contudo, o entendimento de que a norma em questão seria aplicável aos diversos negócios jurídicos celebrados no Brasil, mas não aos contratos de trabalho. Segundo Sérgio Pinto Martins “a atual Lei de Introdução ao Código Civil não teria revogado o art. 198 do Código Bustamante, pois a lei geral não revoga a especial (§2º, do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil). Assim, prevalece a regra contida no art. 198 do Código Bustamante para efeito de solução de conflitos de leis no espaço, aplicando-se a lei do local da prestação de serviços”[2]. O Tribunal Superior do Trabalho consagrou este entendimento ao editar a Súmula 207 com o seguinte teor:


“Conflitos de leis trabalhistas no espaço. Princípio da Lex loci executionis. A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aqueles do local da contratação.”


A diretriz indicada, contudo, constitui apenas a regra geral, estando sujeita a diversas exceções[3]. A primeira digna de menção é a hipótese de prestação de serviços apenas em caráter esporádico no exterior. Neste caso não faria sentido algum aplicar a lei do local da execução do contrato para reger os curtos intervalos de tempo nos quais o serviço foi prestado no exterior. Segundo diretriz esculpida na Convenção de Roma, neste caso deverá prevalecer a lei da sede da empresa[4]. No mesmo sentido foi o entendimento consagrado no II Congresso Internacional de Direito do Trabalho, realizado em Genebra, no ano de 1957. Nele restou consignado que a submissão do contrato de trabalho à lei da sede da empresa na hipótese de prestação de serviços apenas “ocasionais ou temporários em outro país ou, interinamente, nos dois territórios”[5].


Outra exceção de grande relevo é a hipótese de contratação de trabalhador domiciliado no país por empresa nacional, para prestação de serviço no exterior. Nesse caso, devem ser observadas, durante a vigência do contrato, também as garantias mínimas decorrentes da lei do país das partes contratantes, sem prejuízo da aplicação das condições de trabalho mais favoráveis do país de prestação de serviço. Essa solução restou acolhida no direito brasileiro, por força da Lei n. 7.064/82, cujos preceitos eram dirigidos originariamente aos empregados de empresas prestadoras de serviços de engenharia, mas que em junho de 2009 foram estendidos aos empregados de todas as empresas que contratem ou transfiram trabalhadores para prestar serviço no exterior pela Lei n. 11.962/2009.


Em conseqüência, sujeitam-se às condições mínimas impostas pela citada lei os contratos de empregados que, domiciliados no Brasil, sejam transferidos para o exterior ou lá contratados, por empresas brasileiras, para prestar serviço fora do país[6]. Vale registrar, de todo modo, que o mencionado texto legal não se aplica apenas aos empregados contratados no Brasil e posteriormente transferidos para o exterior. Regula também a situação dos empregados contratados no exterior, “por empresa sediada no Brasil para trabalhar a seu serviço no exterior”[7].


A globalização fez surgir também novas figuras contratuais destinadas a contraprestacionar pecuniariamente as relações internacionais de emprego e a disciplinar as suas conseqüências particulares. Como salienta Carlos Roberto Husek “O trânsito internacional em todas as áreas já nomeadas, haja vista a pujança da indústria e do comércio, em especial, o trânsito de capitais numa economia globalizada, o nascimento de uma forma complexa de empresas multinacionais ou transnacionais, as empresas globalizadas, as conseqüências, por vezes nefastas, que essa realidade engendra para os diversos países e suas economias, principalmente para aqueles em desenvolvimento – grande maioria – que até hoje viveram na periferia das economias dominadoras, importa em criação de novas figuras jurídicas e na implementação de velhas figuras jurídicas com novas roupagens”[8]


O presente estudo dedica-se a análise de duas novas figuras que se tornaram comuns nos tempos da proclamada “aldeia global”, o fracionamento do contrato internacional de trabalho, também chamado pela expressão francesa dépeçage, e a repartição do salário, conhecido como split salary.


2 FRACIONAMENTO OU SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO DO TRABALHADOR EXPATRIADO


A relação de emprego, nas clássicas lições de Mário De La Cueva, consiste em contrato realidade. Ele se verificará sempre que houver prestação pessoal de serviços por pessoa física de forma não eventual e com onerosidade, subordinação e alteridade. O que importa para a sua caracterização não é a existência de um ajuste escrito estipulando obrigações e direitos para ambas as partes, mas a presença dos elementos da relação de trabalho. Tanto assim que a legislação brasileira admite expressamente que o contrato de trabalho seja ajustado de forma tácita (art. 442 da CLT).


Não haverá, por conseguinte, contrato de trabalho sem que haja prestação de serviços. Não é correto concluir que a transferência do empregado para o Brasil permitiria a subsistência de um contrato no exterior, como formalmente registram determinadas empresas. Ainda que a empregadora pague parte do salário em um país e parte em outro, ambas parcelas visam contraprestacionar o mesmo serviço, não autorizando conclusão acerca da existência de dois contratos de trabalho.


A circunstância de o empregado, enviado para gerir projetos e negócios em outros países, trabalhar tanto em favor do estabelecimento do qual fora transferido para aquele para onde fora enviado tampouco gera, por si só, dualidade de contratos de trabalho. Haverá apenas um contrato de trabalho do qual se beneficiarão dois estabelecimentos sediados em países distintos.


Não é correto afirmar que o contrato de trabalho ficaria suspenso no país da contratação para que outro fosse executado no país para onde fora transferido. Esta conclusão violaria o princípio da continuidade da relação de emprego, segundo o qual havendo continuidade na prestação de serviços para um mesmo empregador, ainda que em estabelecimento diverso ou em outra empresa do mesmo grupo econômico, que para todos os efeitos vem sendo considerado empregador único, estar-se-á diante do mesmo contrato de trabalho. Não se pode suspender contrato de trabalho em determinado país para que novo pacto, com o mesmo objeto e com as mesmas partes, seja celebrado em outro.


Ademais, a suspensão do contrato de trabalho somente se verifica quando houver a paralisação temporária da obrigação do empregado de prestar serviços e da obrigação do empregador de remunerá-lo pelos serviços prestados. Se subsistir qualquer forma de pagamento no país de origem, não se estará diante de uma suspensão do contrato de trabalho.


Diante destas premissas, há que se concluir que o trabalhador expatriado não mantém seu contrato de trabalho no país de origem e assina um novo no local de destino. O pacto laboral é o mesmo. Não há dualidade. Eventual obrigação que o empregado mantenha junto aos estabelecimentos onde anteriormente trabalhara (como reportes e relatórios) será decorrente do mesmo contrato de trabalho executado no novo local de trabalho


Há que se refletir, todavia, sobre a possibilidade de fracionamento do contrato de trabalho, conhecida pela expressão francesa dépeçage. Segundo Antonio Galvão Peres “os contratos internacionais, inclusive os de trabalho, podem ser, em tese, fracionados para efeitos de determinação da lei de regência. Pode uma determinada parte do contrato submeter-se à legislação de um país e outra à lei de um segundo Estado” [9]. O dépeçage está consagrado em dois dos mais modernos diplomas sobre contratos internacionais, a Convenção de Roma de 1980 (art. 3.1) e a Convenção do México de 1994 (artigo 7) que assim dipõe:


Artigo 3


Liberdade de escolha


1. O contrato de trabalho rege-se pela lei escolhida pelas Partes. Esta escolha deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa. Mediante esta escolha, as Partes podem designar a lei aplicável à totalidade ou apenas a uma parte do contrato (…).


Artigo 7


O contrato rege-se pelo direito escolhido pelas partes. O acordo das partes sobre esta escolha deve ser expresso ou, em caso de inexistência de acordo expresso, depreender-se de forma evidente da conduta das partes e das cláusulas contratuais, consideradas em seu conjunto. Essa escolha poderá referir-se à totalidade ou a uma parte do mesmo.


A eleição de determinado foro pelas partes não implica necessariamente a escolha do direito aplicável.”


O Brasil, contudo, não ratificou nenhuma das referidas normas internacionais. E não poderia vez que elas não se lhe são destinadas. As regras lá esculpidas, por conseguinte, nos são úteis para fins de análise e estudo, mas não para solução de casos concretos. Não se há de concordar neste ponto com o entendimento de Antonio Galvão Peres, segundo quem em se admitindo a autonomia da vontade poder-se-ia adotar no Brasil o depeçage, ainda que sem amparo legal, a exemplo do que ocorria na Espanha antes da vigência da Convenção de Roma[10].


Ainda que assim não fosse, mesmo nos países que adotam o dépeçage,uma coisa é certa, ele não se opera em relação às normas de ordem pública. Como salienta Galvão Peres, “é difícil imaginar razão para, por exemplo, submeter a duração do trabalho a uma determinada lei e o regime jurídico do salário a outra”[11]. Outrossim, não há falar em fracionamento do contrato de trabalho para fins de incidência da legislação no tocante à incidência de encargos sociais. Quanto a estes aplicar-se-á integralmente a norma do país onde houver a prestação de serviços. Admitir o contrário implicaria em possibilitar fraudes e redução de impostos e contribuições sociais.


Não há óbice à opção pelo dépeçage “para resguardar obrigações secundárias que adiram ao contrato individual de trabalho, mas que mantenham sua unidade, como, por exemplo, as relativas a stock option plans, cláusulas de não concorrência e cláusulas de permanência mínima”[12]. A falta de lei expressa admitindo esta possibilidade, não constitui obstáculo à adoção desta prática no Brasil. Em se tratando de cláusulas não referentes à questões de ordem pública, é plenamente possível a fixação desta regra apenas por norma contratual.


3 REPARTIÇÃO DO SALÁRIO (SPLIT SALARY)


Uma importante decorrência da repartição do salário é o chamado Split salary. Segundo Carlos Henrique Oliveira Zangrando, o estrangeirismo em questão denota uma prática empresarial que consiste em dividir a remuneração do empregado transferido para laborar em outro país de forma que parte de sua contraprestação seja paga no país de destino e parte no país de origem[13]. Referido autor destaca ainda que esta maneira de remunerar fora viabilizada e incentivada a partir de alguns tratados destinados a evitar bi-tributação entre países da comunidade européia onde restou determinado que o salário seja tributável no país onde a atividade está sendo exercida. Referidos pactos internacionais, dos quais são exemplos o formalizado entre Bélgica e Holanda e o subscrito entre França e Alemanha, possibilitam a divisão do trabalho em porções separadas, cada uma tributável em um país separado, não apenas no caso de trabalho presencial de expatriado como também no caso de trabalhador que trabalha em sua própria residência prestando serviços para empresa situada em outro país[14].


O Brasil não dispõe de acordos deste gênero, o que impossibilita a utilização desta prática para reduzir o impacto tributário. Antonio Galvão Peres, após destacar que a repartição, no mais das vezes, favorece o empregado por permitir o sustento da família e o adimplemento de obrigações que ainda mantenha no exterior, assevera que a repartição do salário não pode ser vedada no ordenamento jurídico pátrio. Destaca, todavia, que o salário paga no estrangeiro “pode, contudo, compor a base salarial para o cálculo de obrigações como férias remuneradas, décimo terceiro salário etc.” [15].


Regina Duarte, por sua vez, destaca que a contratação do expatriado no Brasil pode gerar maiores riscos do que a do empregado local em razão de muitos tribunais considerarem que a remuneração paga no exterior deve ser somada à remuneração paga no Brasil para fins de incidência de diversos encargos. Em outras palavras, se a pedido do empregado 80% da remuneração é paga no exterior, junto à empregadora originária, a jurisprudência obriga a considerar toda a remuneração para efeito de incidências, o que permitiria concluir que a rescisão do contrato no Brasil pode levar a encargos mais elevados do que os devidos na contratação do empregado local[16].


Em sentido oposto Carlos Henrique de Oliveira Zangrando entende que a aplicação da regra da divisão do salário em porções separadas, cada uma tributável num país separado, pode ser aplicável no caso dos estrangeiros que venham a laborar no Brasil. Destaca, porém, que esta prática pode acabar gerando mais custos que benefícios na medida em que esse pagamento demanda maior atividade administrativa [17].


Analisando minuciosamente a questão, não há como não admitir a possibilidade de repartição do salário com pagamento de parte dele no Brasil e parte no exterior. Não há vedação para que isto ocorra. É preciso, contudo, ressaltar que o pagamento efetuado no exterior deverá efetivamente ser somado ao pago no Brasil para fins de incidência dos diversos encargos sociais, inclusive o FGTS, tema objeto do próximo item.


4 CONTRIBUIÇÃO FUNDIÁRIA EM CASO DE REPARTIÇÃO DO SALÁRIO


O Artigo 15 da Lei 8.036 obriga todos os empregadores a depositar, até o dia 7 (sete) de cada mês, em conta bancária vinculada, a importância correspondente a 8% (oito por cento) da remuneração paga ou devida, no mês anterior, a cada trabalhador, sem ressalvar se a contraprestação foi formalizada no Brasil ou no exterior. Amauri Mascaro Nascimento é enfático ao afirmar que “todas as parcelas componentes da remuneração devem ser consideradas para efeito de cálculo”[18]. Ele destaca ainda que nem a CLT, em seu artigo 457, nem a Lei do FGTS são taxativas, havendo outros componentes da remuneração, não mencionados expressamente, sobre os quais deve o empregador efetuar os recolhimentos[19].


Ora, se a prestação de serviços é efetuada no Brasil, o contrato de trabalho está sendo cumprido aqui e se sujeita, por conseguinte, as regras da nossa legislação nacional. Embora parte do pagamento esteja sendo efetuado no exterior, certo é que ele contraprestaciona uma relação que se desenvolve no Brasil. A remuneração paga ou devida no exterior remunera a prestação de serviços realizada aqui. Logo, incide sobre ela a contribuição fundiária.


Este entendimento restou consagrado pela edição da Orientação Jurisprudencial n. 232 do Tribunal Superior do Trabalho com os seguintes dizeres: “FGTS. INCIDÊNCIA. EMPREGADO TRANSFERIDO PARA O EXTERIOR. REMUNERAÇÃO. O FGTS incide sobre todas as parcelas de natureza salarial pagas ao empregado em virtude de prestação de serviços no exterior”. Raymundo Antonio Carneiro Pinto e Cláudio Mascarenhas Brandão ressaltam o acerto deste entendimento ao asseverar que “A Lei n. 8.036, de 11.5.90, que atualmente regula o FGTS, dispõe no art. 15 que ‘todos’ os empregados ficam obrigados a depositar, até o dia 7 de cada mês, em conta vinculada, a quantia equivalente a 8% da remuneração paga ou devida, no mês anterior, a cada trabalhador. Note-se que não acrescentou nenhuma exceção. Em princípio, portanto, razão assiste ao TST quando entende que o percentual em favor do FGTS também incide sobre as importâncias recebidas pelo empregado, de natureza salarial, que remunerem serviços prestados no exterior”[20].       


Ora, a mesma razão que justifica a incidência da contribuição fundiária sobre as parcelas salariais pagas por trabalho efetuado no exterior, justifica com muito mais veemência a incidência desta sobre a parcela salarial paga no exterior por trabalho efetuado no Brasil. Afinal ao trabalho efetuado no Brasil se aplica, como já visto, a legislação brasileira no tocante aos seus direitos, obrigações e encargos sociais. Desta feita há que se reconhecer o acerto do entendimento adotado na nota técnica 02/CGIg/GM/MTE da Coordenação Geral de Imigração do MTE quanto ao recolhimento da contribuição para o FGTS incidente sobre a parcela paga no exterior por empresa do mesmo grupo econômico para expatriados que prestam serviços no Brasil a partir de uma interpretação extensiva do art. 15. da Lei 8036/90, que prevê que a base de incidência do FGTS é a remuneração paga ou devida, sem fazer qualquer referência se o valor é pago no Brasil ou no exterior; e da aplicação da lei trabalhista brasileira, visto que a prestação de serviços ocorre no Brasil. O Tribunal Superior do Trabalho há muito adota o entendimento de que o FGTS incide mesmo sobre parcelas pagas no exterior, como se depreende do seguinte julgado:


I – FGTS. EMPREGADO TRANSFERIDO PARA O EXTERIOR. A jurisprudência desta egrégia Corte tem-se orientado no sentido de ser devido o recolhimento do FGTS sobre a totalidade da remuneração do empregado, inclusive sobre a parcela percebida no exterior. II – FGTS. NATUREZA. ARTIGO 467 DA CLT. Não há dúvida que o FGTS possui natureza salarial, entretanto para efeitos da aplicação do artigo 467 da CLT, apenas as parcelas salariais estrito senso são consideradas, o que não é caso do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. III – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. “Na Justiça do Trabalho, a condenação em honorários advocatícios, nunca superiores a 15%, não decorre pura e simplesmente da sucumbência, devendo a parte estar assistida por sindicato da categoria profissional e comprovar a percepção de salário inferior ao dobro do mínimo legal, ou encontrar-se em situação econômica que não lhe permita demandar sem prejuízo do próprio sustento ou da respectiva família”. Incidência do Enunciado nº 219 do TST. Revista conhecida e parcialmente provida. (TST, 5ª Turma. RR n. 369220/97.   DECISÃO proferida em 22 11 2000 e publicada no DJ em 07-12-2000, pg 841. Relator:JUIZ CONVOCADO GUEDES DE AMORIM) (Destaques inseridos).


O TST também vem adotando o entendimento de que as contribuições fundiárias incidem sobre a remuneração efetivamente percebida pelo obreiro, independentemente de o pagamento ser efetuado no Brasil ou no exterior. É o que denota o seguinte acórdão:


“(…) DIFERENÇAS DE FGTS. EMPREGADO TRANSFERIDO PARA O EXTERIOR. Consoante se extrai das Leis nºs 5107/66 e 8036/90, é devida a incidência do FGTS sobre a remuneração efetivamente percebida pelo obreiro, na qual se incluem as parcelas discriminadas nos arts. 457 e 458 da CLT. Assim, no caso de transferência do empregado, o FGTS tem repercussão em todas as parcelas devidas em virtude da prestação de serviços no exterior. Recurso de revista a que se conhece e nega provimento.” (TST, 1ª turma, RR 549050/1999. DECISÃO proferida em 20 06 2001 e publicada no DJ em 24/08/2001, pg. 779. Relator JUIZ CONVOCADO VIEIRA DE MELLO FILHO)


A tributação de rendimentos de natureza salarial recebidos de fontes situadas no exterior, por pessoa física residente no Brasil pela Receita Federal reforça a conclusão da nota técnica antes referida na medida que restou consagrado o entendimento de que o FGTS possui natureza de contribuição. Como salienta Sérgio Pinto Martins “Com a determinação do art. 217 do CTN, evidencia-se que o FGTS é uma contribuição, pois o Código apenas determinou o nome correto ao instituto em estudo”. O princípio da universalidade receita tributa quaisquer vencimentos[21]. Embora o princípio da universalidade de rendimentos não seja próprio do Direito do Trabalho, ele deve ser aplicado no tocante aos recolhimentos fundiários, com as devidas adaptações, haja vista a natureza tributária destes.


Embora a Nota Técnica não tenha força de lei, não podendo, por conseguinte, impor obrigação não prevista em norma imperativa estatal, ela consagra uma interpretação que tende a ser observada de forma coercitiva por todos os funcionários do respectivo órgão estatal.  Pode-se afirmar que a incidência do depósito fundiário não decorre da Nota Técnica, mas da própria lei por ela interpretada.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS


A globalização tem impactado, de forma bastante substancial, as relações de emprego.  A proliferação dos contratos internacionais de trabalho tem evidenciado a insuficiência da legislação brasileira para tratar de todas as questões inerentes a elas e a importância do desenvolvimento do chamado Direito Internacional Privado do Trabalho. Tem ainda ocasionado o surgimento de novas figuras contratuais como o fracionamento do contrato de trabalho e a repartição do salário. Não se pode, sob o pretexto de querer interpretar literalmente a legislação vigente, negar validade a estas cláusulas. É preciso, contudo, buscar meio de aplicá-las sem dar vazão á proliferação de fraudes e de sonegação de encargos sociais.


Sob este prisma, é forçoso concluir pela impossibilidade de fracionamento do contrato de trabalho para fins de escolha da legislação no tocante à incidência de encargos sociais. Eles serão regidos sempre pela norma do país onde houver a prestação de serviços. No tocante, as chamadas obrigações secundárias que adiram ao contrato individual de trabalho, mas que mantenham sua unidade, como, por exemplo, as relativas a stock option plans, cláusulas de não concorrência e cláusulas de permanência mínima, a solução é diferente. A dépeçage mostra-se possível neste caso, podendo as partes do contrato de trabalho optar pela aplicação da lei do país de origem e não a do local da prestação de sérvios.


A repartição do salário com pagamento de parte dele no Brasil e parte no exterior, é perfeitamente possível. É preciso, contudo, ressaltar que os encargos sociais, em especial o FGTS, incidem sobre a soma do valor pago no Brasil  e do valor pago no exterior.


 


Notas:

[1] NASCIMENTO, Amauri. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 14.

[2] MARTINS, Sérgio Pinto. Conflitos de leis trabalhistas no espaço e a circulação de trabalhadores. Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, v. 94, pp. pp. 184-185).

[3]MALLET, Estêvão. Temas de Direito do Trabalho. São Paulo, LTr. 1998, p. 44.

[4]Apud MAGANO, Octávio Bueno.  Conflito de leis trabalhistas no espaço, Revista LTr, 51-8/917.

[5]Apud SUSSEKIND, Arnaldo. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho e à legislação complementar, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1960, vol. I, p. 46/47.

[6]No mesmo sentido era a antiga Lei de Introdução ao Código Civil, revogada em 1942, que preceituava, em seu art. 13, parágrafo único: “…sempre se regerão pela lei brasileira: … II – as obrigações contraídas entre brasileiros, em país estrangeiro”. Essa regra foi censurada por se entender que a imposição da lei nacional, sem espaço para a adoção da lex loci contractus, não “se harmoniza com a pureza da doutrina do direito internacional…em matéria de contratos” (Clovis Bevilaqua, Código Civil, São Paulo, Francisco Alves, 1944, vol. I, p. 145; no mesmo sentido crítico, cf. J. M. de Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1937, vol. I, p. 165). Diante da limitação a liberdade contratual em matéria trabalhista, no entanto, perde a crítica seu valor, revitalizando-se a antiga regra da Lei de Introdução.

[7]Art. 2o, inciso III.

[8] HUSEK, Carlos Roberto. Curso básico de direito internacional público e privado do trabalho. São Paulo: LTr, 2009, p. 151.

[9] PERES, Antonio Galvão. Contrato Internacional de Trabalho. São Paulo, LTr, 2004, p. 140

[10] Idem.

[11] Idem, p. 142.

[12] Idem.

[13] ZANGRANDO, Carlos Henrique Oliveira. Curso de Direito do Trabalho, V. II Direito Individual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2008, p. 682.

[14] Idem.

[15] Op cit. p. 146.

[16]DUARTE, Regina. Contratação de expatriados exige regime específico. Disponível em : <http://www.conjur.com.br/2004-fev-26/contratacao_expatriados_gerar_encargos_maiores>, acesso em 20 de novembro de 2009.

[17] Op cit. p. 683.

[18] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Comentários às leis trabalhistas. Vol. I. 2ª edição. São Paulo: LTr, 1992, p.368.

[19] Idem, p. 369.

[20] PINTO, Raymundo Antonio Carneiro e BRANDÃO, Cláudio Mascarenhas, Orientações jurisprudenciais do TST: comentadas. São Paulo: LTr, p.124.

[21] MARTINS, Sérgio Pinto. Manual do FGTS. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2000, pp. 67/68.

Informações Sobre o Autor

Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre e doutor pela Universidade de São Paulo – USP. Professor de direito nos cursos de graduação da USJT e da EAESP FGV/SP e em diversos cursos de pós-graduação. Membro Pesquisador do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior. Advogado.


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Equipe Âmbito Jurídico

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