Resumo:O ensaio aqui apresentado busca investigar acerca das repercussões jurídicas e econômicas provenientes do Direito do Trabalho frente ao exercício da atividade empresária, com ênfase na atuação do Estado como vetor de parâmetros socais. Para tanto foi realizado um estudo constitucional, legal e doutrinário referente ao assunto, com ênfase nas obras de Alain Supiot e Zygmunt Bauman, de forma a oferecer ao leitor um panorama acerca das questões laborais que permeiam a atividade econômica no Brasil.
Palavras-chave: Direito do trabalho. Direito societário. Intervenção. Relações econômicas.
1 Introdução
Realizar o presente estudo representou um desafio; que também motivou a escolha do tema, qual seja, a real função do Direito do Trabalho frente aos objetivos e às obrigações estatais, desde a formação do discurso, passando pela sua interpretação, aspectos práticos da lei laboral frente à empresa e a conformação política do Estado liberal até o Estado de bem estar.
Duas frentes foram trabalhadas. Primeiro a formação do discurso de defesa da introdução das normas trabalhistas frente o Estado liberal, especialmente a ausência de questionamento acerca da real função do Direito do Trabalho frente às questões socioeconômicas enfrentadas pelo Estado.
Em seguida, sem pretensões conclusivas, incabíveis em um ensaio desse porte, abordou-se a transferência coercitiva de parcela do ônus estatal de manutenção de patamares mínimos de existência, com vistas a reduzir uma considerável massa de consumidores falhos, para a empresa, na qualidade de empregadora.
A finalização induziu à necessidade de pensar os fundamentos do Direito do Trabalho como disciplina autônoma e as causas do intervencionismo estatal em relações de natureza estritamente privada.
2 Formação do discurso e atividade estatal
A vontade de verdade auspicia a oposição entre o verdadeiro e o falso, fruto de embates históricos e caracterizada por Foucault (1999) como uma negativa dos seus supostos caracteres de arbitrariedade, modificabilidade, institucionalidade e violência. Nesse viés, as grandes mutações científicas podem ser consideradas inovações propriamente ditas ou simplesmente uma nova forma da vontade de verdade.
Outro aspecto a ser considerado é o autor, não o autor pessoa física que escreveu os declamou o discurso, mas como princípio de agrupamento que confere significado e coerência. É certo que nas ciências humanas a indicação de um autor é praxe e remete confiabilidade ao discurso, mas essa função vem decrescendo desde o século XVII, em especial na formação de ideias.
A adequação do discurso considera o autor e a inserção que obtêm no meio onde se propaga. A disciplina exerce o controle na produção do discurso na medida em que estabelece regras e parâmetros em forma de reatualização permanente.
As sociedades de discurso, por seu turno, exercem outra função de controle. Sua função consiste não em produzir o discurso, mas fazer com que ele circule em um espaço restrito. Protege-se aqui não só o produto, mas igualmente o método, que é mantido em sigilo e fora do alcance de outros grupos. Tal prática arcaica foi relegada ao esquecimento e hoje se encontra extinta. Situação bem distinta da apropriação social do discurso, materializada através da educação e que proporciona dosagens de conhecimento controlado a determinados grupos sociais.
Foucault (1999) afirma que três decisões precisam ser tomadas se quisermos analisar o discurso em suas condições: a) questionar nossa vontade de verdade; b) restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; e c) suspender a soberania do significante. Esses trabalhos trazem consigo uma exigência de método, de onde se extraem quatro princípios norteadores.
O pensar o conteúdo sem pensar o discurso conduz à perda de compreensão de motivos e intenções. Um simples replicar destituído de sentido epistemológico e embasado em premissas que corriqueiramente conduzem a conclusões desvinculadas da realidade fenomenológica, pois que parametrizadas no irrealismo veiculado como certeza.
Refletindo acerca do introito do presente trabalho não se pode deixar de lado o debate acerca das questões que envolvem o simples ato de pensar. É o começo de todo trabalho humano; pensar envolve, dentre ouras ações, planejar, detalhar, prever e mensurar riscos. Toda ação, profissional ou não, concretiza-se através do pensar, que externa a própria razão. Não é possível deixar de imaginar como essas constatações afetam a vida do ser humano. Que ações são realmente pensadas ou refletem mera repetição de outras já testadas, sem qualquer atividade crítica? Raciocinar dá trabalho. Envolve, inúmeras vezes, atividade criativa na qual o agente sente-se desconfortável. Vê-se obrigado a mensurar questões, hipóteses e argumentos verdadeiramente fora de sua álea de ações automatizadas, que irão demandar esforço fora do contexto comum.
Em fato, a natureza humana é predominantemente e em algum aspecto estúpida, aqui entendida a estupidez em seu sentido técnico-comportamental, que deixa o indivíduo ao largo do processo criativo, demente e inconsciente de sua incapacidade de criticar e contribuir para o avanço do conhecimento, praticando, muita vez, ações impensadas que representam decréscimo para o status social e técnico. Pitkin referiu que:[1]
“Pode-se fàcilmente provar que a estupidez é o supremo Mal Social. Três fatores se combinam para estabelece-la como tal. Primeiro, e antes de qualquer coisa, os indivíduos estúpidos são legião. Em segundo lugar, a maior parte do poder, no comércio nas finanças, na diplomacia e na política, está nas mãos de indivíduos mais ou menos estúpidos. Finalmente, altas habilidades frequentemente estão ligadas a séria estupidez, de tal modo que as habilidades brilham ante o mundo, enquanto os traços de estupidez se escondem em sombras profundas, só discernidas pelos íntimos ou pelo olhar escrutador dos ‘reporters’ ”.
A obra do filósofo e psicólogo estadunidense, traduzida para quinze idiomas, faz chamar a atenção para um fato simples da vida cotidiana: o ser humano pensa quando é absolutamente necessário e mesmo aqueles dotados de habilidades fora do comum guardam em seu interior algum nível de estupidez que os coloca na vala comum do não pensar e os faz deixar de interagir com o senso crítico, voltando o foco para ações automáticas e pouco ou nada planejadas.
Todavia, o pensar é pressuposto à atividade do aplicador da lei, especialmente quando a subsunção da hipótese legal ao caso concreto implica em esforço hermenêutico além do que se considera trivial. Questões diversas são postas de forma a impingir um elucubrar complexo e repleto de possibilidades distintas que levam a caminhos diversos e consequências sequer supostas pelos criadores do texto legal aplicável.
Aqui surge a necessidade de vigilância estatal na condução (não apenas na formação) do discurso. A evolução social está repleta de exemplos de direcionamento de ideias já formadas, de acordo com o que é delineado como interesse público primário, não obstante uma investigação mais amiúde revele tratar-se de interesse secundário transpondo os limites de sua importância na ordem das coisas.
3 A função civilizatória do Direito do Trabalho
Supiot destaca que o Direito do Trabalho teve e tem a função de civilizar o poder econômico da classe empresarial, atribuindo um marco jurídico norteador das decisões da empresa. Portanto, a “civilização” da empresa não significa que seja possível limitar a aplicação do direito societário para fazer respeitar princípios de liberdade e igualdade, mas a introdução de processos originais que permitam induzir esses princípios em uma empresa organizada segundo a hierarquia e a subordinação.[2]
Percebe-se a preocupação com o direcionamento da atividade empresária de forma a propiciar o “respeito” a princípios consagrados no ordenamento como garantidores de justiça social. Assim, o Direito do Trabalho propõe-se a criar meios para a consecução de objetivos sociais através da empresa? Ou a empresa deve observar o cumprimento de uma função social imposta em razão do exercício da sua atividade?
A questão torna-se ainda mais interessante quando confronta-se a atribuição de direitos sociais, dentre eles os trabalhistas, a uma das características do vínculo empregatício, qual seja, a subordinação. Os denominados lugares de autonomia coletiva dos trabalhadores erigem-se como afloramento do princípio da liberdade na empresa, todavia, o local de trabalho segue sendo o espaço onde o trabalhador perde algumas de suas liberdades, como o direito de expressão e o direito de ir e vir[3].
O direito de greve é exemplo clássico de mitigação das obrigações do empregado perante a empresa, na medida em que propicia a ocupação de espaços de trabalho e paralização do serviços, subvertendo a hierarquia e a subordinação. A busca da melhoria das condições gerais de labor é o principal sustentáculo dos defensores da maioria dos direitos vinculados à liberdade de expressão dentro do local de trabalho.
Nesse viés, a empresa tornou-se o centro das atenções estatais como mantenedora da atividade econômica, mas também como verdadeira fornecedora de sustentáculo à políticas sociais das mais diversas naturezas. Tal ação tem gerado reflexos defensivos, conforme assevera Supiot[4]:
“El denominado movimiento de desregulación, o de flexibilización, que ha afectado a la mayor parte de los países occidentales em los años ochenta, se ha modificado en Francia con una volontad de ruptura con el intervencionismo estatal. Al tender a diminuir el peso de las leyes y de los reglamentos, en beneficio de las reglas que los operadores económicos fijan por sí mismos, la flexibilización se identifica con un desplazamiento del derecho del trabajo, de la heteronimía hacia la autonomia”.
Nessa ótica, há de se verificar a dupla colocação da empresa em relação à norma jurídica, ora como fonte de direito, ora como objeto de direito. O movimento de desregulação estatal passa pela escala de maior autonomia da empresa para a edição de normas e liberdade de estabelecimento de critérios e formas de contratação de serviços. A motivação desse relaxamento traz à tona a matéria do tópico seguinte, onde será objeto de abordagem o pano de fundo da regulamentação das relações laborais do Estado liberal para o Estado social.
4 Estado, sociedade e políticas públicas
A questão de fundo que se busca definir reside na própria gênese do Direito do Trabalho como instrumento de execução de políticas públicas. Incide na transferência coercitiva do ônus estatal de manutenção da vida e da dignidade humanas para um ente privado explorador de atividade econômica. Aqui resvala a importância da formação do discurso de sua interpretação pelos destinatários do mesmo, sejam tão somente cidadãos ou aplicadores da norma.
O liberalismo econômico transpôs regimes feudais e escravistas para sistemas baseados no trabalho assalariado e na não intervenção do Estado na atividade econômica. O capital passou a comandar o cenário produtivo e o Estado deparou-se com a necessidade de operar mudanças em um modelo que passou a ser alcunhado de predatório, na medida em que retirava a força de trabalho da “classe operária” sem garantir-lhe o mínimo para a subsistência.
Surgiram novos discursos formados, difundidos e alavancados por grupos distintos de pressão; uns com viés “operário” e esteira na luta de classes (Marx) outros com ênfase na atuação estatal (Bismarck e George). A profusão de ideias, especialmente na banda ocidental da Europa e Escandinávia, alinhou o discurso na manutenção de padrões aceitáveis de condições de sobrevivência.
Bauman refere essa remodelação do sistema:[5]
“Falo do Estado social no sentido empregado por Jürgen Habermas, retrospectivamente: a ‘remercantilização’ do capital e do trabalho (tornar o capital apto e disposto a comprar trabalho, e o trabalho, atraente o bastante para ser comprado) – a atividade crucial do Estado, sem a qual o capitalismo não poderia sobreviver a longo prazo”.
O Estado, sustentado pelo capitalismo, havia de buscar meios para a sua manutenção com base no sistema produtivo instalado. O Estado social surgiu para garantir a manutenção de indivíduos aptos para o trabalho e a guerra, possibilitando que tivessem condições dignas e gozasse de boa saúde.
A “classe operária” evoluiu para a “classe consumidora” e o Estado social para o Estado de bem estar, aqui não mais para manter os indivíduos vivos, mas (como constataria Foucault) para manter o inaptos separados e em constante vigilância. Bauman verte uma percuciente análise e assim constata:[6]
“O que hoje se chama de ‘Estado de bem-estar’ é apenas uma geringonça para combater o resíduo de indivíduos sem capacidade de garantir sua própria sobrevivência por falta de recursos adequados. Trata-se de agências para registrar, separar e excluir essas pessoas – e mantê-las excluídas e isoladas da parte ‘normal’ da sociedade. Essa agências administram algo como um gueto sem paredes, um campo de prisioneiros sem arame farpado (embora densamente contido por torres de vigia!)”.
Qual seria, portanto, a posição do Direito do Trabalho nesse arcabouço senão auxiliar o Estado na propagação de objetivos que vão desde a garantia de condições mínimas de sobrevivência para a manutenção do indivíduo apto ao trabalho (Estado social) à diminuição da massa de consumidores falha, sujeitos à exclusão em razão de sua imprestabilidade.
5 Conclusão
O singelo ensaio ora discorrido decorre de reflexões do autor acerca da real função do Direito do Trabalho na ordem de obrigações estatais. No entendimento esboçado acerca da formação do discurso e da sua interpretação afigura-se a crítica sobre a atuação do Estado na formação do Direito do Trabalho como disciplina autônoma do Direito Privado e a intervenção do Estado nas relações provenientes do vínculo empregatício.
A análise de Supiot pretende demonstrar a função civilizatória do Direito do Trabalho, sem, no entanto, perquirir acerca dos motivos ensejadores da intervenção estatal nas relações de ordem privada. Aborda questões de ordem estritamente prática, como o direito de greve e o gerenciamento do local de trabalho, abstraindo da análise questionamentos que poderiam engendrar conclusões acerca do objetivo de conformação do Direito laboral como encontra-se inserido no ordenamento.
Essas questões são demonstradas, muito mais com um intuito investigativo do que conclusivo, na vertente trazida por Bauman acerca do Estado de bem estar e sua real função de exclusão de “imprestáveis”. A transferência de responsabilidades do Estado para a empresa visa justamente abrandar a massa de consumidores falhos, reduzindo custos estatais e aumentando receita com a arrecadação de impostos provenientes da renda e do consumo.
Doutorado em Direito em curso na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (início 2013), possui mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (2001) e graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1995). É Advogado da União, lotado na Consultoria Jurídica do Ministério de Minas e Energia. Tem ênfase em Direito Comercial e Administrativo, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Falimentar, Direito Marítimo, Direito Societário, Direito Internacional Privado, Direito de Energia Elétrica, Direito de Petróleo e Gás e Direito Minerário. Lecionou na Universidade Federal do Ceará – UFC, na Universidade de Fortaleza – Unifor, no Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, dentre outros. Atuou na construção dos marcos regulatórios do pré-sal e da mineração. Autor da obra A Licitação na Sociedade Economia Mista, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003
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