INTRODUÇÃO
Muito já se investigou, no Brasil, acerca do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de “direito privado” e de “direito público”. Contudo, são praticamente inexistentes as reflexões acerca da “justiça contratual” como conditio sine qua non de validade comum, trazendo a lume – e em cotejo – os contratos privados e os ditos administrativos. Melhor dizendo, ou bem se estuda o Código Civil (Lei nº 10.520/2002) ou a Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/93), tão-só.
O presente ensaio tem, pois, o escopo específico e quase novidadeiro de demonstrar, ainda que perfunctoriamente e sem qualquer pretensão de definitividade, que o equilíbrio entre os direitos e as obrigações como assumidos pelas partes contratantes (privadas, ou privada e pública), quando da formação de vontades, é imperativo de Direito; antes, durante e mesmo depois de executado o objeto.
Melhor dizendo, este artigo pretende revelar que as disposições contidas no estatuto das licitações são, contemporaneamente e em relação ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, bastante similares às previstas no novel Código Civil, quiçá porque impregnado pelas idéias de “justiça contratual” e de “função social” (do contrato). Em suma, porque a Constituição Federal de 1988 assim o exigia, desde sempre.
CONSIDERAÇÕES INAUGURAIS
É de senso comum que, sob a égide do Estado Liberal, os particulares podiam contratar livremente, portanto sem qualquer interferência pública no acertamento dos direitos e das obrigações reciprocamente assumidos por conta do ajuste ou mesmo do seu impacto na seara econômica ou social. Nesse contexto, os contratos privados, e os limites de sua estipulação então indiferentes à lei, por primeiro serviram de instrumento para o locupletamento sem causa dos mais abastados em detrimento dos menos favorecidos, por falta de um bilateral e equilibrado “poder de barganha”. Quem precisava, enfim, se submetia; quem podia, exigia.
Deveras, no século XIX imperava de forma absoluta o postulado pacta sunt servanda, consoante o qual o contrato fazia lei entre as partes, devendo ser cumprido sem ressalvas. Todavia, no curso da sua execução muitas vezes o cenário fático-econômico se alterava, gerando “situações injustas”,[1] pois mesmo surgindo evidentes dificuldades para o cumprimento do seu objeto, ainda assim elas não afastavam e nem mesmo diminuíam o dever contratual de ordinário adimplemento pelas partes, inclusive a prejudicada. “Esta visão estreita, que rendia homenagem idólatra às aparências em detrimento da substância real do pactuado, não resistiu, entretanto, ao peso das razões que se lhe antepunham e ao advento de novas realidades sociais e econômicas.”[2]
Por conta disto se instalou um novo standard jurídico, que não mais se compadecia com a vetusta imutabilidade das cláusulas contratuais (supostamente alicerçada na “bastante em si” autonomia das vontades), mas que revelava uma superação do modelo anterior; tudo ao requisitar a revisibilidade dos contratos por conta da ocorrência de mudanças inesperadas do status quo, notadamente a partir da I Guerra Mundial.[3]
Enfim, não mais se admitia, no cenário jurídico, a sorte contratual de alguns e o azar de outros, consagrando-se como plenamente invocável a cláusula rebus sic stantibus, “que entrava progressivamente na consciência jurídica universal como corretivo necessário das iniqüidades geradas pelas circunstâncias”.[4]
Vinha à tona, pois, a assaz denominada teoria da imprevisão, abrindo espaço para a revisão (judicial) das obrigações assumidas quando sobreviesse fato superveniente substancialmente lesivo para o equilíbrio contratual causador de lesão, por um lado, e de enriquecimento sem causa, de outro.
Mas ainda assim o problema da (falsa) autonomia de vontades, e dos efeitos dela decorrentes, não estava resolvido, porque persistia subjacente a equivocada idéia de que, pelas partes estarem em igualdade (sic) de condições estaria dispensada qualquer outra ingerência emanada do poder público, preventiva ou corretiva, sob pena de injustificável contaminação do ajuste.
Foi preciso superar, ademais, a atuação estatal meramente garantista dos direitos atinentes à liberdade e à propriedade, abrindo-se o front de batalha para uma intervenção equiparadora: “cuida-se mesmo de o Estado invadir a autonomia da vontade para, em primeiro lugar por meio da lei, garantir uma desigualdade que faça o papel de equilibrar a desigualdade inversa que a situação das partes intrinsicamente envolve.”[5]
Nessa senda, em face das gritantes necessidades sociais, não se mostrava mais aceitável a rigidez contratual e a indiferença do Direito e do Estado às diferenças substanciais entre as partes. Mudanças acabaram por ocorrer na seara da autonomia da vontade, que passou a ser interpretada de forma relativa e não mais absoluta, conferindo-se maior importância à boa-fé, à equidade e ainda à função social do contrato.
Assim, o Estado, que no modelo liberal buscava não interferir nas relações contratuais celebradas, diante da total autonomia da vontade das partes, assumiu nova feição, social, na qual acumulou mudanças importantes, sobretudo na compreensão de que deveria garantir um mínimo de condições de vida digna a todos os cidadãos. Para tanto, tomou por pressuposto a igualdade necessária, que haveria de ser concretizada materialmente pela via da intervenção, quando necessário.
Tal ingerência foi, por igual, encampada no que diz com as relações contratuais, consoante bem se revela o escólio de Cláudia Lima Marques que, muito embora tratando de contratos de consumo, é, na passagem, plenamente aplicável:
“a nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância”.[6]
Enfim, é a complexidade das relações sociais e comerciais que faz com que os princípios outrora aplicáveis aos contratos não mais respondam adequadamente, forçando a agregação de outros que possam satisfazer às provocações e efeitos dos fenômenos atuais. Dentre eles, os princípios da boa-fé objetiva, da função social (do contrato), e da equivalência (equilíbrio econômico e financeiro) (dos deveres e das obrigações).
Nesse contexto, o Estado passa a ser demandado a intervir na seara econômica e social, com reflexos diretos nas relações contratuais, dantes consideradas eminentemente privadas e, pois, fugidias às ingerências de quem passou ao largo da formação de vontades e diretamente nada teria com o negócio em si.
Discussões em torno da justiça contratual e da função social dos contratos passaram a ser recorrentes e o ordenamento jurídico não pode se manter inerte diante de “injustiças sociais”, o que fez com que o contrato “adequado à nova realidade” jurídico-social ganhasse todo o relevo que lhe é devido.
Nesta nova perspectiva do direito dos contratos ambientando ao Estado Social – fundado na realização da justiça e no equilíbrio entre as prestações contratadas –, eleva-se equilíbrio econômico-financeiro dos contratos ao patamar de princípio, com o intuito de proteger os contratantes contra lesões ou onerosidades excessivas que impossibilitam o cumprimento do ajustado. Ou seja, procura-se, destarte, preservar a equivalência material das obrigações e como condição de validade dos contratos, privados e públicos, como mais adiante e destacadamente se verá.
O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATOS COMO DESDOBRAMENTO DO PRINCÍPIO DA JUSTIÇA CONTRATUAL
Em que pese o contrato ainda possa ser visto, numa concepção estritamente privada, como um instrumento de estreito alcance dos fins colimados pelas partes, por sua relevância social não mais se tolera, no plano jurídico, a intangibilidade da autonomia das vontades. Abre-se espaço para a relação contratual se ver legitimada apenas quando baseada na boa-fé, equidade e justiça contratual.
Em lembrança, a Carta Magna, em seu artigo 3º, inciso I, estabelece como objetivo fundamental da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, donde se pode cogitar, por extensão, que o equilíbrio das relações contratuais, decorrente do solidarismo[7] almejado, também se constitui numa das vigas para alcance dos fins almejados pela Constituição.
Para garantir a efetividade de tais postulados é que se vem admitindo, de forma crescente e progressiva, a intervenção do Estado nas relações contratuais privadas e a flexibilização da força obrigatória das suas disposições. Enquanto instrumento de circulação de riquezas e verdadeiros vetores a movimentar a economia, os contratos, além de se nortear pelos anseios dos contratantes, devem respeitar o papel social que deles se exige seio da coletividade, promovendo a redução de desigualdades e (assim) respeitando a justiça contratual, sob pena de revisão.
O princípio do equilíbrio econômico e financeiro visa, pois, garantir a manutenção da equação inicialmente contratada, ou seja, manter a proporção entre os encargos imprescindíveis à execução da avença e a contraprestação ou remuneração pactuada, de forma que uma parte não se locuplete mediante empobrecimento da outra.
Desta feita, o princípio do equilíbrio contratual se apresenta como um “limitador” da cláusula pacta sunt servanda, porém sempre condicionado à ocorrência de um fato superveniente, imprevisível, causador de onerosidade excessiva a uma das partes (teoria da imprevisão), hábil a destruir a relação inicialmente entabulada: de (uma suposta) equivalência entre as prestações (teoria da quebra da base do contrato). Ou seja, ele não elide a responsabilidade daquele que, desidiosamente, firma o ajuste sem ponderar acerca das obrigações dele decorrentes e, afinal, vê-se sem condições de suportá-las senão assumindo o “prejuízo” da própria desídia.
Nada obstante, o princípio do equilíbrio contratual atua como um dever de renegociação que é imposto aos contratantes, quaisquer que sejam, objetivando o restabelecimento da equação econômica do contrato, nas referidas situações, balizado pelo princípio da boa-fé e pelos deveres de lealdade e cooperação, a fim de atingir o fim econômico e social do contrato.
Nesta senda a aplicação do princípio do equilíbrio econômico-financeiro, normativamente previsto,[8] é imprescindível e (também) para concretizar outro, de observância igualmente compulsória sob o manto da teoria contratual moderna, qual seja o princípio da justiça contratual.
A despeito de não se encontrar expressamente previsto em nosso ordenamento jurídico, dito primado é muito invocado pela doutrina, ora mais se coadunando com as normas constitucionais, ora com outras normas infraconstitucionais, porém sempre com o intuito de coibir situações injustas.[9] Ele se alicerça nos ditames constitucionais que tratam da ordem econômica, bem como nos deveres de cooperação e de boa-fé que devem manter os contratantes entre si. Para Cláudia Lima Marques, aliás, nem se cogita da existência autônoma de um princípio da “justiça social”, porque o da boa-fé objetiva, sozinho, exige referido equilíbrio.[10]
A aplicação do princípio da justiça contratual incide, pois e sobremaneira, sobre o equilíbrio das prestações, que se reflete em toda a relação contratual, atuando na manutenção da harmonia da avença, como bem destaca Laura Carodani Franz:
“Em virtude da justiça contratual, o contrato em sua formação e execução deverá respeitar o equilíbrio entre as prestações e um equilíbrio global entre os direitos e as obrigações que cabem a cada uma das partes, atuando como limite à autonomia da vontade. Cada parte, além de receber o equivalente ao que deu, não pode estar submetida a obrigações desproporcionais, dentro da economia global do contrato, buscando-se não o equilíbrio ideal, mas o mínimo que restaure a proporcionalidade inicialmente existente”.[11]
Nesse sentido, ainda e em enriquecedor complemento, são os ensinamentos de Ruzyk:
“A justiça contratual, assim, passa a incorporar um conteúdo qualitativamente diverso: fala-se em justiça comutativa, de modo que o dirigismo contratual atuará para buscar o equilíbrio da relação contratual. Admite-se, pois a revisão do pactuado quando houver desequilíbrio da equação econômico-financeira do contrato no curso de sua execução. Se no contrato clássico o princípio da pacta sunt servanda era quase absoluto, na nova ordem principiológica ele é relativizado, abrindo espaço para a cláusula rebus sic standibus, reputada como ínsita a todos os contratos. Deslegitima-se, por conseguinte, a idéia de Fouillée, de matriz Kantiana, de que “quem diz contratual diz justo”. A justiça contratual não se dá pela simples convergência de vontades dos indivíduos, mas, em verdade, liga-se à idéia de equilíbrio contratual, imperando a justiça comutativa – que traz uma idéia de equivalência econômica das prestações”.[12]
Portanto, uma vez instaurada situação superveniente capaz de causar desequilíbrio entre as obrigações econômicas contratadas, impõe-se o dever de renegociação, sob pena de revisão judicial,[13] com lastro nos princípios da justiça contratual, da boa-fé objetiva e da própria função social do contrato.
CONTRATOS PRIVADOS E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
Frise-se, ademais, que o princípio da justiça contratual não é assim reconhecido apenas pela doutrina brasileira; menos ainda limitado a contratos ditos de direito privado. Não por acaso, na Argentina, Roberto Dromi assim afirma, categoricamente:
“La ecuación se define desde la preparación del procedimiento contractual y de la celebración del contrato, precisando el equilibrio de la prestación del contratista, manifestado em las inversiones que debe realizar y otras cargas que debe soportar, y la contraprestación del Estado concedente o comitente, que se manifesta a través de diversas obligaciones y garantías, que tienen por objeto permitir al contratista la obtención de una adecuada rentabilidad. Esta composición esencial del contrato, com sustento en el pliego (la ley del contrato) y en el mismo contrato (la ley de las partes) es el resultado de la lógica aplicada al derecho contractual, y a la justicia contractual como presupuesto esencial de la seguridad jurídica en el régimen de contrataciones públicas y en las privatizaciones, fundada en el sinalagma contractual”.[14]
Importa destacar, de conseguinte, que tanto os contratos privados como os contratos basicamente regidos pelo direito administrativo[15] devem observar o princípio da justiça contratual como condição de validade, o que pode reclamar, para melhor compreensão, uma brevíssima reflexão acerca das diferenças existentes entre ambos. Naqueles a igualdade é pressuposta, de sorte que há de haver uma perfeita harmonia entre os deveres de um em relação aos do outro, o mesmo se dizendo em relação aos direitos; nestes, há um aparente desequilíbrio, “tolerado” com fundamento no interesse público.
Melhor dizendo, uma das mais marcantes diferenças reside no fato de os contratos administrativos, em sua essência, admitirem a presença das chamadas cláusulas exorbitantes (do direito privado). Não como forma de capricho, não por desatino do gestor; se e somente se, quando e nas condições que, em cada caso concreto, a circunstância reclamar para fins de adequada tutela do interesse público.
Justamente por isso Celso Antônio Bandeira de Mello assume posição peculiar, e sustenta que os contratos administrativos se constituem somente nas cláusulas econômico-financeiras, porquanto em relação às demais não haveria qualquer acordo de vontades.[16] Melhor dizendo, pela posição diferençada da Administração (curadora do interesse da coletividade)[17] em relação ao particular, a ele o próprio regime jurídico dos contratos administrativos impõe certos condicionamentos: e.g., de submissão à alteração e rescisão unilateral do contrato e à aplicação de sanções sem a intervenção judicial, em especial.
Contudo, como anota Romeu Felipe Bacellar Filho, invocando a função social do contrato:
“O contrato administrativo não se liberta, porém, de algumas características próprias a qualquer avença, insista-se, da categoria contrato. Como consectário de uma obrigação, o contrato resulta de um acordo de vontades. A autonomia, temperada pela função social do contrato, constituiu elemento imprescindível a ser observado em qualquer avença. Do mesmo modo, os princípios Lex inter partem e pacta sunt servanda fazem certo que o contrato é a lei entre as partes e que estas, devidamente ajustadas, devem observar o que foi pactuado. Neste passo mostra-se evidente que o instrumento do contrato há de sujeitar-se aos ditames da lei, companheira inseparável do administrador contratante, sempre em prospectiva coletiva e que as obrigações contratadas também haverão de postar-se submissas ao conjunto normativo. Afinal, ao administrador não se lhe confere nenhuma liberdade, antes, um espaço de atuação dentro da lei”.[18]
Por conta disto que o estatuto das licitações e contratações públicas pretendeu conferir ao contratado privado maiores e mais bem detalhadas garantias de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro e como contrapartida à suportação das cláusulas exorbitantes, já declinadas na própria lei como válidas no âmbito das contratações públicas.
“Na teoria do contrato administrativo, a mantença do equilíbrio econômico-financeiro – não sem razão – é aceita como verdadeiro “artigo de fé”. Doutrina e jurisprudência brasileiras, em sintonia com o pensamento alienígena, assentaram-se pacificamente em que, neste tipo de avença, o contratado goza de sólida proteção e garantia no que concerne ao ângulo patrimonial do vínculo, até mesmo como contrapartida das prerrogativas reconhecíveis ao contratante governamental”.[19]
Ditas garantias, contudo, pouco ou quase nenhum efeito jurídico adicional irradiam, porque a aplicação dos princípios da justiça contratual, da boa-fé (objetiva), da eqüidade e do equilíbrio econômico-financeiro reclamam o mesmo resultado, qualquer que seja a índole do negócio, privado ou administrativo.[20]
O que se exige, evidentemente, é uma melhor compreensão da igualdade substancial (equidade) e da própria justiça contratual e suas nuanças num e noutro regime.
No de direito privado, a equidade e a justiça contratual exigem que os contratantes (particulares) sejam protegidos indistintamente, porém um em face do outro. Requer-se a igualdade substancial entre as partes, ainda que para tanto seja necessária a intervenção estatal, e, ainda, o sopesamento dinâmico dos direitos e das obrigações, mesmo por conta de fatos supervenientes, para que, afinal, um não se locuplete às custas do empobrecimento do outro, gerando “injustiças”. Não se tolera, contudo, o descumprimento do pactuado por conta da unilateral “alteração da vontade” do outro[21] e nem mesmo a manutenção das vontades privadas quando o interesse coletivo não mais as tolerar, abrindo-se espaço para a “função social dos contratos (privados)”[22] irromper seus peculiares efeitos.
No regime jurídico-administrativo, entretanto, a situação não é exatamente a mesma. O desnivelamento entre o particular e a Administração Pública é reflexo do próprio interesse público, porém apenas se, quando e como o interesse da coletividade assim realmente exigir.
Dito de outro modo, a despeito de um contrato ser, de fato e de direito, subsumível à categoria de contrato administrativo, pode ser que, in concreto e ao longo de sua execução, jamais se exorbite das condicionantes usuais de validade dos contratos de direito privado. Nessas condições, o contrato sempre terá sido administrativo, mas a execução de seu objeto e a contrapartida de tanto (pagamento) não se fará sentir, em nada, como especial.
De modo diverso, o objeto até poderá ser alterado ao longo da execução do contrato administrativo e unilateralmente, mas tal não significará, em princípio, qualquer desrespeito ao primado da justiça contratual, porque “temperado” e por força de lei. Porém, é esse mesmo princípio que obriga a Administração Pública a observar certos limites, como o de não desnaturar o objeto em sua essência, porque nenhum particular estaria obrigado a fazer ou entregar senão aquilo que exatamente provou poder fazer ou entregar, em regra mediante comprovação dos requisitos de habilitação.
Contudo, um rápido cotejo entre as disposições da Lei Geral de Licitações e Contratações Públicas e do Código Civil em vigor será suficiente para demonstrar que os contratos administrativos e os de direito privado gozam de similar proteção jurídica, mormente no que diz com o equilíbrio econômico-financeiro. Ou seja, ainda que diferentes sejam os textos de lei, é a “função social” de cada um (do contrato administrativo e do contrato de direito privado) e de ambos (dos contratos, públicos ou privados) que assim o revela.
No entanto, uma coisa é certa, a despeito de pouco lembrada: os contratos (administrativos) de que trata a Lei nº 8.666/93 “regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”, consoante se extrai do Art. 54 do próprio estatuto. Logo, tudo quanto se disse, até o momento, é verdade “por força de lei”, nem que ao menos supletivamente (sic).
O EQUILIBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATOS, ADMINISTRATIVO E DE DIREITO PRIVADO
Quando o particular celebra um contrato com a Administração Pública, desde o início é sabedor de que terá de suportar os riscos que certamente advirão do pacto, tanto ordinários quanto extraordinários. Nesse sentido, o que busca a ordem jurídica é garantir a não-solução de continuidade da execução do contrato, porque eventual descumprimento das obrigações assumidas provavelmente teria reflexos negativos em sujeitos outros que não apenas o órgão ou a entidade contratante. E tais sujeitos, evidentemente, estariam a representar toda a coletividade, de sorte a assim se justificar os gravames literalmente explicitados na lei de licitações em aparente desfavor dos contratados e que, em princípio, jamais seriam de se admitir em contratos de direito privado.[23]/[24]/[25]
A álea ordinária se revela pelo usual aumento dos custos dos insumos e não-fruição do serviço por certa parcela de usuários (num contrato de concessão), fatores esses previsíveis, dentre outros, mas, por evidente, dentro dos limites da previsibilidade; a álea extraordinária, por sua vez, se traduz nos chamados “fato do príncipe”, “caso fortuito” e “força maior”, em especial.
Genericamente, contudo, a Constituição Federal visou garantir especial segurança aos particulares, ao silenciosamente encampar a “teoria da imprevisão” no inciso XXI do seu Art. 37. Por sua vez, o legislador foi mais a fundo e já em 1993 inseriu várias disposições protetivas do particular contratado, no que diz com a equação econômico-financeira, e como uma forma de “compensar” as cláusulas exorbitantes.[26]
Destaque-se que no bojo do regime jurídico de direito público, a revisão do contrato para reequilibrar a equação econômica e financeira se apresenta como um dever-poder para a Administração Pública e não como uma faculdade. E isso não apenas para atender à determinação constitucional, porém pelo fato de que é o interesse público primário que está a reclamar a não-solução de continuidade da execução do objeto contratado porque de seu interesse, direto ou indireto.[27]
Observe-se, contudo, que o equilíbrio econômico-financeiro pode revelar uma relação estabelecida entre as partes antes mesmo da firmação do contrato. Na seara privada pode se perfazer no oferecimento da proposta, enquanto que no contexto da Administração ela ocorre por ocasião da apresentação das propostas,[28] intestinamente ao certame licitatório. Ou seja, a boa-fé objetiva, particularmente no que diz com a cláusula econômico-financeira, há de se revelar na fase pré-contratual, dando a conhecer os encargos que caberão a cada uma das partes, bem como a fixação da contrapartida remuneratória. Nesse sentido, dita relação precisa ser mantida durante todo o trâmite do contrato para que não venha a redundar numa indevida redução do (justo) lucro do particular contratado,[29] ou, por via transversa, ao seu enriquecimento indevido, na hipótese de minoração de encargos,[30] por exemplo.
Destarte, somente se pode cogitar de rompimento do equilíbrio econômico financeiro do contrato em virtude da ocorrência de fato imprevisível e superveniente à apresentação da proposta ou, quando previsível, de conseqüências incalculáveis. Portanto, capaz de repercutir negativamente na equação econômica e financeira do contrato a ponto de colocar em risco a própria execução do seu objeto, mediante elevação desproporcional entre os encargos do particular e a remuneração devida pela Administração.
Três, pois, são os fatores que caracterizam a obrigatoriedade de revisão do contrato administrativo para a preservação do seu equilíbrio econômico-financeiro, a saber: a) ocorrência de evento imprevisível ou previsível de conseqüências incalculáveis (teoria da imprevisão: não era possível prever antecipadamente a ocorrência do fato ou, pelo menos, suas conseqüências); b) superveniência do evento (à apresentação da proposta pelo particular); e c) há de haver desproporcional alteração no encargo assumido pelo particular (causador de impossibilidade econômica de cumprimento do contrato, ou, ao menos, de relevantes dificuldades na sua execução).
Preenchidos tais requisitos, o reequilíbrio há de ser recomposto, bastando uma provocação, administrativa (a pedido ou ex officio) ou judicial, que redunde na juntada de provas suficientes de tanto. E, relembre-se, para restaurar a justiça contratual, bem como para evitar potencial ou mesmo efetiva propiciação de danos decorrentes da solução de continuidade, apta a afetar, em princípio e per se, o próprio interesse coletivo.
O mesmo se diga em relação aos contratos de direito privado, na exata medida em que o novel Código Civil, de 2002, soube bem cuidar do assunto.
Por conta dele, a teoria da imprevisão também é suscetível de aplicação no regime jurídico de direito privado para fundamentar a revisão do contrato pela quebra do equilíbrio econômico e financeiro. Tanto é assim que seu artigo 317[31] expressamente prevê esta possibilidade quando ocorrer superveniente desigualdade entre as prestações contratadas. Da mesma forma o seu artigo 478,[32] que complementa a normatização ao preceituar que a onerosidade excessiva imposta a uma das partes, por circunstâncias imprevisíveis que acarrete conseqüente enriquecimento ilícito à outra, autoriza até mesmo a resolução do contrato.
Contudo, é o artigo 479[33] que traz maior interesse, porquanto revelador do princípio da conservação dos negócios jurídicos, ao prever a possibilidade de revisão ou alteração do contrato, a juízo da parte em posição de privilégio por conta de fato superveniente, a fim de se readequar a equação rompida.
Nesse sentido interessante anotar, ademais, o Enunciado no. 176 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na II Jornada de Direito Civil, trazido à colação, pela importância, por Maria Helena Diniz:
“Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”.[34]
Em suma, a força vinculante dos contratos somente poderá ser relativizada após minuciosa análise pelo Poder Judiciário, em situações excepcionais que justifiquem sua intervenção, sobretudo por conta da onerosidade excessiva imposta a uma parte em contraponto ao enriquecimento ilícito da outra. Tudo isso a fim de restaurar o equilíbrio econômico e financeiro do contrato, repristinando a própria justiça contratual.
Segundo Fernando Rodrigues Martins:
“A onerosidade excessiva caracteriza-se como um evento inesperado no curso da execução de um contrato de longa duração e que afeta drasticamente sua base negocial, tornando a entabulação prejudicial a uma das partes, já que a equivalência entre a prestação e contraprestação, em virtude de fato superveniente, é quase que totalmente rompida. Por isso que o sistema jurídico admite dois remédios excepcionais para essa patologia: a revisão (modificação) do contrato, para o retorno da normalidade, ou sua resolução”.[35]
A imprevisibilidade como prevista na Lei nº 8.666/93 mostra-se desimportante, bastando o rompimento das bases objetivas do negócio, por destruição da equivalência das obrigações ou o pelo desaparecimento do fim essencial do contrato, para fins de ensejar a revisão.
Observa-se, assim, que duas são as situações que autorizam a utilização da teoria da quebra da base do negócio: quando um fato superveniente acarretar desequilíbrio econômico e financeiro a uma das partes, tornando a obrigação impraticável, sendo impossível, de boa-fé, exigir-lhe o cumprimento; ou, então, quando fato superveniente vier a romper drasticamente o liame contratual, de modo a fazer desaparecer o fim que moveu a contratação inicial. Em qualquer dos casos é importante que o fato seja completamente alheio à vontade das partes e não decorra de sua ação ou omissão. Ou, dito de outro modo, que configure álea extracontratual, nos mesmos moldes do discurso ambientado nas contratações públicas.
O que importa, por derradeiro, é notar que a tentativa de não-solução de continuidade dos contratos administrativos se manifesta, de modo similar, no entorno dos contratos de direito privado. Privilegia-se, assim e também, a revisão do contrato privado ao invés da sua resolução, pois as conseqüências de tanto não se limitam à esfera dos contratantes, mas se refletem em toda a coletividade.
É, sem sombras de dúvida, a função social do contrato (administrativo ou privado) que determina a melhor forma de restauração do status quo: (i) satisfazendo os interesses imediatos das partes contratantes, revigorando a justiça contratual pela recomposição do equilíbrio econômico-financeiro; (ii) redefinindo a boa-fé objetiva, demonstrada por ocasião da firmação do ajuste; e, ademais, (iii) garantindo que o contrato sobreviva como instrumento efetivo de satisfação de outros interesses, aqueles dos não diretamente contratantes, mas por igual integrantes da mesma sociedade, que se pretende livre, justa e solidária.
CONCLUSÕES
Tanto no contrato administrativo como no contrato de direito privado, o equilíbrio econômico-financeiro entre os direitos e obrigações das partes contratantes importa em condição de validade, que expressa a própria justiça contratual e denota a boa-fé objetiva externa por ocasião do acertamento de vontades.
Uma vez verificado o desequilíbrio econômico-financeiro na relação contratual, por conta de fatores fugidios ao controle e vontade dos contratantes, sua revisão se impõe não apenas para restauração do estado de legalidade, mas para preservação da utilidade coletiva que deles se extrai (função social).
A recomposição da equação econômico-financeira dos contratos administrativos pode e deve, sempre que possível, ser implementada por meio de um processo interno, instaurado ex officio ou a pedido. Do mesmo modo, nada obsta que os contratos de direito privado sejam revistos, a pedido de uma ou de ambas as partes, para restauração da justiça contratual. Aliás, hipótese como essa apenas confirmaria a boa-fé objetiva recíproca, ainda quando presente desequilíbrio na relação contratual.
De qualquer sorte, ao Poder Judiciário é dado conhecer e decidir os contratos administrativos e os de direito privado por conta da superveniência de fatos alteradores do equilíbrio contratual. Tal não significa dizer, entretanto, que a vontade/pretensão de uma ou de outra parte, pública ou privada, prevalecerá, havendo espaço legítimo para decisões judiciais intermediárias pautadas pela justiça contratual.
Como a utilidade coletiva é pressuposta, tanto nos contratos de direito privado como nos administrativos, sempre que possível a solução intermediária, de recomposição (do equilíbrio econômico-financeiro), há de ser privilegiada. A eventual resolução do contrato, como medida de prestação jurisdicional, pode apenas servir para amainar os ânimos egoísticos das partes contratantes, o que não necessariamente reflete o interesse coletivo que dele (do contrato) se pode extrair.
Doutor e Mestre em Direito do Estado (Direito Administrativo) pela PUC/SP e Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Curitiba, bem como Professor (do Corpo Docente Permanente) e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito do UNICURITIBA. É, ainda, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA), Membro Efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e Membro Eleito do Conselho de Pesquisadores (e Efetivo) do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE), além de Advogado Militante e Parecerista em Curitiba
Advogada na área empresarial e eleitoral, graduada em direito pela Faculdade de Direito de Curitiba em 1994, mestranda do programa de pós-graduação stricto sensu, no Centro Universitário Curitiba- UNICURITIBA, em Direito Empresarial e Cidadania, Integrante dos Grupos de Pesquisa: Tutela dos Direitos de Personalidade na Atividade Empresarial: Os Efeitos Limitadores na Constituição da Prova Judiciária, sob a coordenação do Professor Doutor Luiz Eduardo Gunther, e Atividade Empresarial e Administração Pública, sob a coordenação do Professor orientador Doutor Daniel Ferreira, ambos da UNICURITIBA.
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