Sob o aspecto epistemológico (de episteme e logos, ciência e conhecimento – teoria da ciência) a Vitimologia pode ser enfocada com abordagem analítica e crítica.
No sentido denotativo do termo, Vítima deriva de vincere – vencer, ou de vincire – corda que amarra os animais que são sacrificados aos deuses. De todo modo, penalmente, vítima é aquele que sofre a ação ou omissão do autor do delito, (sujeito ativo, agente) e é sinônimo de ofendido, lesado ou sujeito passivo.
Evidentemente que sempre existiu a vítima, mas não era considerada foco central de atenção.
A vítima era encarada como apêndice do binômio crime-criminoso, preocupação maior dos estudos criminológicos tradicionais, clássicos e positivistas. A posição crítica, social e globalizante surgiu bem mais tarde, e a vítima então apareceu como outro pólo ativo desse binômio. O termo Vitimologia, que etimologicamente deriva da palavra latina vítima e da raiz grega logos, foi pela primeira vez empregado por Benjamin Mendelsohn, professor e advogado de Jerusalém, em The origins of the Doctrine of Victimology, obra pioneira da sua autoria; porém o precursor do estudo dessa matéria é Hans Von Hentig (citado pelo próprio Mendelsohn em sua obra Vitimologia) que em 1948 publica pela Universidade de Yale The Criminal and His Victim. Outros se seguiram nesses estudos, como Henry Ellenberger, também citado por Mendelsohn, que contribuiu com Relações Psicológicas entre o Criminoso e sua Vítima, fazendo interessante classificação das vítimas.
Mendelsohn, em “Um Horizonte Novo na Ciência Biopsicossocial: a Vitimologia”, 1947, conferência em Bucareste, chama Vitimologia ao que Von Hentig denominou “Vitimogênese”, como a origem da “vitimidade”. Jiménez de Asúa em La llamada Victimologia, em 1961, também se ocupa com esta temática e intitula um ensaio com pequena variante na denominação: Victimiologia.
Alguns autores contestam à Vitimologia o status de ciência autônoma, mas eis que já se realizaram vários simpósios internacionais. No primeiro, de 2 a 6 de setembro de 1973, em Jerusalém, presidido por Israel Drapkin, onde o Prof. Fernando Witaker, o Dr. Laércio Pellegrino e o nosso Prof. Dr. Heber Vargas, tiveram destacada atuação, foi fixado o sentido de vitimização; normas de prevenção; tratamento e pesquisa e indenização à vítima (também responsabilidade civil).
Depois, a Reunião Internacional em Bellagio-Itália, 1975. Seguiu-se o II Simpósio em Boston, 1976, onde o Prof. Marwin Wolfgang relatou as conclusões, e o Dr. Laércio Pellegrino também tomou parte destacada; o III Simpósio foi em Münster-Alemanha, em 1979 e o IV, em Tóquio-Japão, em 1982; O I Congresso Brasileiro de Vitimologia, em Londrina-Estado do Paraná, outubro de 1984, além de outros conclaves internacionais.
Assim, o estudo da vítima é relativamente recente, mas existem publicações de teses de 1906, 1911 e 1928, que tratam da vítima e são precursoras da nova ciência.
A primeira visão da vítima é a antropológica, como sacrifício humano aos deuses, para aplacar a sua ira ou pedir as suas benesses através da oferenda da vida humana, depois substituída pela de animais, para expiação dos pecados do grupo.
A visão bíblica, cena do quase sacrifício de Isac, quando Deus testa a lealdade de Abrahão, pedindo-lhe a vida do filho em holocausto, é bastante vívida para todos.
A propósito deste relato da Bíblia, fez interessante estudo o Prof. Schlomo Schoham (que já esteve em Londrina no curso de Alto Nível em Criminologia) denominado o “Complexo de Isac”, que se contrapõe ao complexo de Édipo, pois é o pai eliminando o filho e não o filho matando o pai pela posse da mãe e é tão fascinante como a figura edípica de Freud.
A propósito de filhos como vítimas, temos a interessante obra denominada O Filicídio de Arnaldo e Matilde Rashkovski.
A Profª. Lola Aniyar de Castro, famosa criminóloga venezuelana, em sua obra “Vitimologia” – tese de Doutorado publicada em 1969, citando Mendelsohn, sintetiza o objeto da Vitimologia nos seguintes itens:
1º) Estudo da personalidade da vítima, tanto vítima de delinqüente, ou vítima de outros fatores, como conseqüência de suas inclinações subconscientes.
2º) O descobrimento dos elementos psíquicos do “complexo criminógeno” existente na “dupla penal”, que determina a aproximação entre a vítima e o criminoso, quer dizer: “o potencial de receptividade vitimal”.
3º) Análise da personalidade das vítimas sem intervenção de um terceiro – estudo que tem maior alcance do que o feito pela Criminologia, pois abrange assuntos tão diferentes como o suicídio e os acidentes de trabalho.
4º) Estudo dos meios de identificação dos indivíduos com tendência a se tornarem vítimas; seria então possível a investigação estatística de tabelas de previsão, como as que foram feitas com os delinqüentes pelos casal Glueck o que permitiria incluir os métodos psicoeducativos necessários para organizar a sua própria defesa.
5º) A importantíssima busca dos meios de tratamento curativo, a fim de prevenir a recidiva da vítima.
Estes são os delineamentos básicos desta ciência nova – a Vitimologia, segundo Mendelsohn “tão útil à vítima, como ao acusado, que poderia ser parcial ou totalmente inocente”.
1ª) Classificação de Mendelsohn: Mecanismos Situacionais e Mecanismos Relacionais
Mecanismos Situacionais:
Do ponto de vista moral e jurídico
a) vítima que colabora
b) vítima que não colabora
c) vítima por ignorância
d) vítima que pratica o crime
Do ponto de vista psicossocial
a) vítima em cuja conduta está a origem do delito
b) vítima que resulta de consenso
c) vítima que resulta de uma coincidência
Mecanismos Relacionais:
Relações psicobiológicas, neuróticas e genobiológicas
a) vítima de crimes
b) vítima de si mesma, suicídio, auto-acusações, autopunições.
2ª) Classificação de Jiménez de Asúa
Vítima indiferente
a) O assaltante que ataca qualquer um
Vítima determinante (Ex.: crime passional por ciúmes)
a) vítima resistente (obstaculiza)
b) vítima coadjuvante (ajuda o criminoso)
3ª) Classificação de Lola Aniyar de Castro
a) vítima coletiva
vítima singular
b) vítima de crimes alheios
vítima de si mesma
c) vítima por tendência
vítima reincidente
vítima habitual
vítima profissional
d) vítima que age com culpa inconsciente
vítima consciente
vítima que age com dolo
Vítima no Código Penal:
1 – Relativamente a agravantes:
a) pelo fato da vítima estar impossibilitada de defesa.
b) vítima menor de 14 anos, presunção de violência – nos crimes contra os costumes.
c) vítima de idade avançada, enfermo ou com laços de parentesco ou coabitação, ascendente, descendente, irmão ou cônjuge.
d) meio cruel que faz a vítima sofrer mais.
e) por ocasião de desgraça particular do ofendido.
2 – Relativamente a atenuantes:
a) vítima que provoca injustamente o ato delituoso.
b) retorsão da vítima.
c) vítima por motivo nobre ou motivo de relevante valor social ou moral.
d) prestação de socorro à vítima.
e) o Novo Código faz referência à contribuição da vítima na aplicação da pena pelo juiz, o que constitui uma nova conquista da Vitimologia.
3 – A mulher como vítima – sujeito passivo: aborto (não consentido) estupro, sedução, rapto não consensual:
Suposta vítima
Quando a vítima atrai (ou seduz) o delinqüente à prática do crime e depois o acusa. (Recente filme na TV sobre estupro). É exceção à regra o estupro encoberto – não revelado).
Vitimização
É a ação ou efeito de alguém (indivíduo ou grupo) se autovitimar ou vitimar outrem (indivíduos ou grupos). A vitimização de grupos é mais séria que a nível individual.
Vítimas coletivas – grupos sociais – decorrentes de problemas sociais
Violam o mais comezinho dos direitos: o direito à vida e à qualidade de vida, condizente com a riqueza do ambiente e do contexto.
Crimes do colarinho branco, crimes econômicos (corrupção, medicamentos, alimentos, financeiras) – que lesam vítimas coletivas e em geral contam com a impunidade. São os crimes mais graves e pouco punidos.
Já pensamos na:
I – vitimização da mulher – no trabalho, explorada por salário menor, desrespeitado princípio da isonomia constitucional, ou constrangida a ceder no terreno sexual para conseguir ascender na carreira – mulheres espancadas e oprimidas;
II – vitimização do idoso – preocupação da geriatria – com o afastamento às vezes precoce do trabalho e do poder decisório; acusações gratuitas de senilidade, alcunhas de “esclerosado”, recusa de mercado de trabalho da sua mão-de-obra experiente e ridicularização da condição de “velho” (que deveria estar no asilo, esperando a morte);
III – vitimização da criança – espancamentos, lesões corporais, lesões psíquicas em crianças indefesas, constatados em poucos casos, a tempo de salvar de conseqüências funestas. Os consultórios pediátricos e psiquiátricos registram estórias incríveis sobre este assunto;
IV – vitimização do acusado – em todos os níveis, transformar o acusado em vítima, tentando comprovar que o seu ato foi gerado por coações de natureza psicológica individual ou social, econômico-políticas etc., cabíveis ou não estas alegações, e também a transformação do condenado em vítima da sociedade e do sistema na instituição prisional;
V – criminalização da vítima – a vítima colocada no banco dos réus. Acusação à vítima, muitas vezes feita na defesa do acusado, para eximi-lo. Utilização muitas vezes artificiosa da vitimologia para a ampliação do conceito de que a vítima também é culpada, na medida em que de algum modo contribui para o delito, mas na realidade é a inversão dos papéis – a vitimização do acusado e a criminalização da vítima que em geral já não pode se defender (ex.: caso de “Doca Street”).
“A vítima representou durante sempre, o papel de herói esquecido, no drama criminal seja antes, durante ou após o ato jurídico”.
Vamos terminar, citando o Professor Israel Drapkin em “O Direito das Vítimas”, com um clássico provérbio chinês que diz:
“Há sete emoções humanas básicas: Felicidade, Cólera, Ansiedade, Amor, Pena, Medo e Ódio. Quem não for vítima de nenhuma delas é um homem paciente…”.
O homem contemporâneo perdeu a paciência.
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