Resumo: O Direito de Família contemporâneo volta-se para a realização personalística da afetividade e o reconhecimento da união homoafetiva é o próximo passo de um caminho já trilhado por outras entidades familiares. Passos largos já foram dados na estrada do pleno reconhecimento, sendo a noção de sociedade de fato uma importante passagem, encontrando-se na analogia com a união estável um contexto mais próximo ao conteúdo da união homoafetiva – tendo-se em vista serem ambas as realidades uniões familiares não formalizadas. Em cumprimento do valor da dignidade da pessoa humana, pluralidade de entidades familiares, igualdade, liberdade, intimidade deve ser respeitado o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas, segundo sua peculiar forma de ser.
Palavras chaves: União homossexual – igualdade – liberdade de orientação sexual – direito de família – direitos humanos – tutela de minorias – direitos da personalidade –pluralidade de entidades familiares – constitucionalização das relações privadas.
1. INTRODUÇÃO:
A reflexão que se passará a desenvolver visa a contribuir para a análise e o debate necessários ao tema, almejando desenvolver o estudo de um assunto o qual apenas recentemente emergiu para a órbita jurídica mas que, contudo, já está a ultrapassar o silêncio eloqüente da indiferença.
Contanto, mesmo dentro da temática de defesa dos direitos dos homossexuais, vários campos de análise abrem-se, tais como: discriminação no ambiente de trabalho; criminalização das relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo; agressões físicas e morais oriundas do preconceito; procriação artificial por homossexuais; adoção e demais direitos de filiação para os parceiros do mesmo sexo; reconhecimento jurídico da união homoafetiva. Elegemos a última hipótese como objeto específico de nosso estudo, por acreditarmos em sua relevância. O reconhecimento da união homoafetiva, segundo Andrew SULLIVAN, “é mais importante do que qualquer outra instituição, já que é aquela mais central à natureza do problema, ou seja, o vínculo emocional e sexual entre um ser humano e outro”.[1]
O destaque, na construção dos fundamentos para a defesa dos efeitos jurídicos às parcerias homossexuais, encontra-se nos valores existenciais atualmente encartados como princípios norteadores do Direito Civil Contemporâneo aliados à noção de Direitos Fudamentais.
Assim, numa simbiose entre os princípios da igualdade – mais precisamente igualdade entre os sexos –, liberdade, intimidade e pluralidade familiar, informados pelo valor da dignidade da pessoa humana, edifica-se a estrutura principal para a defesa jurídica da união homossexual, de modo a propagar-se, no Direito, a fundamental igualdade – sem discriminações direcionadas à orientação sexual –, resguardando-se a todos o direito de serem diferentes do modelo enaltecido como predominante – em respeito aos valores existenciais daqueles que encontram, em pessoas de seu mesmo sexo, a realização afetiva.
2. Algumas soluções jurídicas à união homossexual – sociedade de fato:
Buscando-se o meio mediante o qual se reconheça a união homoafetiva, uma primeira manifestação surge, ainda que timidamente, com a noção de sociedade de fato.
A solução de atribuir a relações familiares o título de ‘relação ou sociedade de fato’ não é propriamente uma novidade. No tocante à chamada união estável, também houve essa fórmula no início das transformações.
A preocupação primeira em se valer do adjetivo “de fato” ou “não formal”, para uma determinada realidade, advém de uma possível interpretação de acordo com a qual determinadas relações têm importância somente para o mundo dos fatos e não para o Direito. Assim, realidade fática e Direito estabelecem uma comunicação dialética, a qual vem sendo estudada por juristas[2] – procurando-se dissolver uma separação absoluta entre o social e o jurídico.
Superada a idéia de uma faticidade sem efeitos jurídicos, surge o aspecto da nomenclatura para as uniões entre pessoas do mesmo sexo, confundida com instituto societário. Apesar da impropriedade ao se aproximarem questões tão díspares como sociedade – ligada ao Direito Obrigacional e ao Direito Comercial – e família – relacionada à expressão personalíssima da afetividade –, tal analogia parcialmente se justifica pelo esforço de procurar atingirem-se efeitos jurídicos num assunto não expressamente reconhecido por dispositivos legais.
No entanto, apesar da generosidade de se buscar tutela na idéia de sociedade de fato. Isto defende-se porque uma união afetiva não pode ter como justificativa, para sua tutela jurídica, a sociedade de fato, marcada pela busca de fins lucrativos e econômicos. Não se trata de sociedade de fato, mas sim de sociedade de afeto. São realidades iminentemente diversas.
Destaque-se a importância do papel da jurisprudência quanto ao assunto, podendo-se afirmar estar a superação da discriminação jurídica iniciando-se pela força criativa do judiciário.[3] Em razão da sensibilidade de nossos julgadores defronte da inegável realidade da vida, as decisões passam a conceder efeitos jurídicos às relações formadas por pessoas de orientação sexual tida como diversa das comumente verificadas.
Porém, obviamente, quando duas pessoas do mesmo sexo decidem unir-se em comunhão de vida – partilhando conquistas e dificuldades, realizando-se pessoalmente no prazer da convivência –, não têm elas em mente estarem criando uma sociedade. Esse projeto de vida certamente não terá para eles o mesmo valor de um outro eventualmente criado para o desenvolvimento de sua profissão.
A tentativa de se estabelecer uma semelhança, entre as relações mantidas na vida privada e íntima e as desenvolvidas na vida pública dos atos de comércio, não se justifica. É demasiado tênue o traço comum, qual seja: por um lado, a mera falta de um registro na junta comercial e demais formalidades próprias da criação de uma sociedade, e, por outro, a não existência de um começo formal para uma união afetiva. Na sociedade, se não realizado formalmente os requisitos de início da sua personalidade, tal fato deve-se a outro motivo, diverso da não possibilidade legal. Concernentemente aos parceiros de uma relação homoafetiva, não há a possibilidade da relação existir formalmente, não há uma relação jurídica ‘de direito’ correspondente à relação ‘de fato’ invocada.
Imputar a noção de sociedade de fato para tais relacionamentos soa de um artificialismo injustificável – conquanto seja eficaz para resolverem-se algumas questões. Contudo, adapta-se a união homossexual à figura jurídica da sociedade de fato, advinda do Direito Obrigacional, desconsiderando-se a relação social existente como formadora de família.
Acredita-se que, apesar do aspecto positivo de concederem-se alguns efeitos jurídicos com a transposição da noção de sociedade de fato para as uniões homossexuais, trata-se ainda da largada de sua caminhada rumo à consagração jurídica. Faz-se, agora, necessária a tutela dessa relação humana pelos reais motivos existenciais, quais sejam: amor, afeto, sexo, solidariedade, mútua assistência, entre outros.
Um aspecto negativo da forma de solução jurídica por intermédio da sociedade de fato está na questão de se ocultar o caráter afetivo, aspecto central da relação – sendo esse fator considerado irrelevante. A tutela dos interesses dos parceiros, num viés de inserção tão forçada, está dentro de um contexto o qual esconde a realidade vivificada. Tal solução, ainda que parcialmente eficaz, não é condizente com a visibilidade pretendida pelos movimentos homossexuais na busca de sua melhor aceitação social, na procura da não discriminação.
Percebe-se, pois, que o campo das uniões estáveis e amorosas entre pessoas do mesmo sexo não se trata mais de uma exclusão jurídica . Passos largos já foram dados na estrada do pleno reconhecimento, sendo a noção de sociedade de fato a ponte nesse caminhar – o qual há de prosseguir.
3.Analogia com a chamada união estável:
O transcurso histórico vem apresentando pontos muito comuns quanto ao que se passou com a união estável e ao que vem ocorrendo com a parceria homoafetiva. Logo, pode-se até tentar preverem-se os próximos passos dos efeitos jurídicos para a união entre pessoas do mesmo sexo, baseando-se no ocorrido na chamada união estável.
Destarte, em alguns países onde não há lei específica, levando-se em consideração os vários pontos em comum, há uma corrente a qual entende que, enquanto não se tiver o reconhecimento expresso das relações homoafetivas, devem-se analogicamente aplicar os textos legislativos relativos à união estável.
Contudo, diferentemente de se desejar um tratamento que simplesmente transporte a união entre pessoas do mesmo sexo para o universo já conquistado da união estável, acredita-se que se pode concluir estar, no feixe dos princípios do Direito Civil Contemporâneo, a parceria homoafetiva tutelada.
Mesmo assim reconhece-se a relevância de tal aproximação. Significa um avanço em relação à noção de sociedade de fato, pois mediante a idéia de união estável importa-se um estreitamento com o Direito de Família.
Verifica-se a proximidade existente entre a união estável heterossexual e a parceria entre pessoas do mesmo sexo. Entretanto, tal estreitamento está relacionado aos aspectos próprios da affectio maritalis. Deve-se estar atento ao respeito às diferenças existentes, para o Direito voltar-se personalisticamente ao assunto, tais como a possibilidade dos parceiros heterossexuais se casarem se assim desejarem, a eventual conversão da união estável em casamento, a menor probabilidade de hierarquia entre os parceiros, a adoção e as demais questões da filiação ainda muito debatidas para as uniões homoafetivas, a estabilidade e visibilidade do relacionamento, tidas como conteúdo diversamente considerado, entre outros.
Tais especificidades podem ser fruto do atual momento histórico. É provável – ao se mirar o exemplo da Holanda, adiante tratado, que a tendência de evolução do tema mostre a franca comunhão entre as uniões hétero e homossexual – sem necessidades de ressalvas.
Ocorre que o princípio da igualdade não pode ser considerado como um nivelamento sistemático. Não se devem, em nome da igualdade, aniquilar as diferenças. Ao lado do princípio da igualdade está o também relevante princípio da pluralidade familiar a informar essas realidades. Talvez, por isso, melhor seria denominar-se-o princípio da paridade, para ser destacado o tratamento diferenciado necessário ao tratamento de realidades sociais próximas, porém diversas.
A união estável, então, importa um contexto mais próximo ao conteúdo da união homoafetiva – tendo-se em vista serem ambas as realidades uniões familiares. Porém, deve haver sensibilidade para as especificidades atuais das uniões entre pessoas do mesmo sexo – de modo a tutelarem-se os aspectos existenciais que lhes são peculiar.
4 – A relevância dos princípios e valores do Direito Civil contemporâneo – Dignidade da pessoa humana:
Percorrendo-se os vários campos dessas transformações, pode-se perceber estar o Direito Civil contemporâneo voltando-se para os valores essenciais da pessoa humana. Tal movimento vem sendo denominado repersonalização ou simplesmente personificação do Direito Civil. Para ratificar esse pensamento, emprestam-se as palavras do professor Lamartine: “só uma concepção personalista do Direito, centrada em torno da dignidade ontológico-axiológica da pessoa humana, pode oferecer base segura à construção de um verdadeiro Estado de Direito”.[4]
Depreende-se, nesse contexto, que o valor da dignidade da pessoa humana traduz essa noção para o ordenamento legislado. Os aspectos personalísticos das pessoas devem ser o núcleo fundamental do sistema jurídico e a principal finalidade da proteção estatal. Assim, todas as demais normas do ordenamento devem cumprir essas unidades primeiras, sendo a dignidade do ser humano o elemento de convergência do sistema.
A repersonalização das relações familiares significa uma preocupação com o desenvolvimento da personalidade das pessoas, sendo fundamental, nesse caminhar, o núcleo afetivo do agrupamento humano.
Dessa maneira, as preocupações patrimoniais e as atenções à formalidade da constituição do vínculo que une as pessoas, como orientadoras das famílias, só encontram sentido ao atingirem o interesse precípuo do valor da dignidade.
Há, portanto, uma importante alteração axiológica, uma guinada nos valores essenciais a se tutelarem prioritariamente. Deve o Direito Civil cumprir seu verdadeiro papel: regular as relações relevantes da pessoa humana – colocar o homem no centro das relações civilísticas.
Tendo-se em vista esse prisma humanístico, o Direito Civil enfoca, de forma especial, as tutela dos valores da personalidade. Esta correlação é apontada por AGUIRRE Y ALDAZ.: “el Derecho civil no sólo aparece centrado funcionalmente en torno al concepto de persona, sino también teleológicamente: su sentido y su finalidade son la protección y el sevicio a la persona, entendida como ser humano.”[5]
Imputar o não reconhecimento da existência de uma relação familiar entre pessoas do mesmo sexo, tendo como fundamento a não possibilidade de procriação entre os parceiros envolvidos, não é coerente para com as demais formas de família já consideradas relações jurídicas familiares.
Nesse patamar, refletir sobre a inclusão jurídica da união afetiva e estável de pessoas do mesmo sexo está a seguir o influxo dessa tendência do Direito Civil, porquanto não é apenas a formalidade a responsável pela constituição do vínculo matrimonial a ser digna de tutela jurisdicional. O que importa, em verdade, é o enfoque personalístico da afetividade – da comunhão de vida, do exercício do ônus da criação dos filhos, da realização pessoal e do desenvolvimento da personalidade de seus membros –, podendo estar presente em diversas formas de constituição da família.
Além disso, quando se enfoca a repersonalização do Direito Privado, preconizada por vários mestres,[6] deve-se ter em mente, para atingirem-se os objetivos prelecionados, uma preocupação voltada aos sujeitos de direito, numa perspectiva de pluralidade.
Logo, dentro da reflexão em torno da civilística voltada aos valores da pessoa deve, necessariamente, haver espaço para a expressão das diferenças existentes – sobremaneira quando essas diversidades são expressão de um modo especial de ser.
Especificando essas idéias para o tema enfocado, a personificação do Direito para os sujeitos homossexuais só terá sentido de tutela existencial se não imposto, como único, o modelo heterossexual – tido como “normal’ pelo simples motivo de ser o mais verificado. A igualdade na diferença relaciona-se com a necessidade de ser respeitada a dignidade da alteridade.
Há de conhecer-se a dignidade existente na união homoafetiva. o conteúdo abarcado pelo valor da pessoa humana informa poder cada pessoa exercer livremente sua personalidade, segundo seus desejos de foro íntimo. a sexualidade está dentro do campo da subjetividade, representando uma fundamental perspectiva do livre desenvolvimento da personalidade, e partilhar a cotidianeidade da vida em parcerias estáveis e duradouras parece ser um aspecto primordial da experiência humana.
A exclusão de um rol de pessoas, em virtude de sua orientação sexual, da possibilidade de terem sua relação afetiva reconhecida impõe-se como um vertiginoso desrespeito à sua dignidade intrínseca. Constata-se, decorrentemente, como o preconceito ainda restringe direitos e como a reprodução do estigma social é incorporada ao âmbito jurídico. Tal fator determina-se em função da orientação sexual da pessoa envolvida. Estes aspectos estão a indicar o tratamento indigno direcionado a algumas pessoas, não se lhes conferindo a oportunidade de serem sujeito de direto devido a uma condição relacionada com sua identidade pessoal.[7]
Ao se falar em dignidade da pessoa humana, uma aproximação surge. Trata-se do diálogo que se estabelece, a partir deste referencial, entre Direitos da Personalidade, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos. São temas interligados que, para se estar em sintonia com uma concepção humanística da sociedade, não podem ser dissociados. Além do pregoado enlace entre os Direitos Civil e Constitucional, deve-se também buscar a aproximação deles aos Direitos Humanos, numa construção personalística sem fronteiras.
Sobre o tema em relevo, dentro do plano legislativo, igualmente merece destaque a força normativa concedida aos direitos e garantias advindos de Tratados Internacionais. [8]
A dignidade da pessoa humana deve encerrar um conteúdo normativo, e não tão-somente se resumir a um apelo ético. Logo, esse princípio está a informar a necessidade de providências que o implementem. O reconhecimento das relações homoafetivas pelo Direito vem a ser uma forma de concretizá-lo, além de representarem uma expressão da legalidade e da publicidade atribuídas a essa forma de união.
Portanto, não basta o aspecto negativo em busca da não violação da dignidade. Também se faz necessária sua promoção, a faceta positiva do princípio da dignidade da pessoa humana.
Normas que caminhem ao encontro das integridades física e emocional dos parceiros homoafetivos devem ser promovidas, em decorrência do valor da dignidade da pessoa humana. [9]
5- Pluralidade familiar e intimidade:
Os modelos de família presentes na realidade social devem ser reconhecidos pelo Direito sempre, para que haja respeito aos valores essenciais dos membros do grupo familiar, especialmente o da dignidade da pessoa humana. Conforme o escólio de Pietro PERLINGIERI: “la famiglia è valore costituzionalmente garantito nei limiti della sua conformità e comunque non contrarietà ai valori caratterizzanti i rapporti civili, in particolare al rispetto della dignità umana.”. [10]
Com base nos preceitos do professor italiano, pode-se afirmar dever o princípio da pluralidade no âmbito familiar receber uma interpretação ampla, respeitadora das diversas formas de união, a encontrar limite apenas na dignidade das pessoas. Não se deve, contrariamente e numa visão estreita do referido princípio, negar um digno tratamento aos diferentes modelos arraigados na sociedade por razões preconceituosas.
Faz-se mister, nesse ínterim, uma reflexão crítica, um repensar sobre onde a historicidade e a circunstancialidade do Direito devem estar presentes – ter em mente os valores sociais no tempo e espaço.
Com a tutela principal das relações familiares voltada para a realização personalística de seus membros, a pluralidade de entidades familiares se impõe. Respeitando-se tal clamor, as pessoas poderão conviver familiarmente conforme o modelo que melhor represente seus anseios pessoais.
Nesse contexto, a relação entre pessoas do mesmo sexo deve ser apreendida pelo jurídico como mais um modelo de entidade familiar, pois nada mais é que outro exemplo entre os ‘amores possíveis”, com os caracteres que comumente a sociedade tem conferido à família.
Dentro desse contexto, deve o operador do Direito dar aplicabilidade à indispensável possibilidade de existência de um espaço e um tempo reservados, em relação ao conhecimento dos demais, para a pessoa humana desenvolver sua personalidade de forma privada. Pois ao se traçarem as linhas mestras estruturadoras da tutela das uniões entre pessoas do mesmo sexo, outro princípio do Direito Civil Contemporâneo que merece atenção refere-se à defesa da esfera privada das pessoas.
Dessa maneira, necessária se faz a possibilidade de tutela jurídica de um espaço reservado ao desenvolvimento da personalidade e à proteção contra as tentativas de ultrapassarem-se as reservas de natureza íntima das pessoas.
Em decorrência, operadas as conquistas formais privilegiadoras do princípio da intimidade no que diz respeito à não repressão – significando para o Direito a não tipificação da homossexualidade como crime –, os esforços voltam-se para o aspecto positivo. Luta-se para um efetivo reconhecimento público da livre possibilidade de estabelecerem-se as dimensões afetivas, eróticas, sexuais e correlatas consoante uma orientação sexual tida como minoritária, mas que não pode ter sua forma específica de intimidade excluída por não acompanhar os ‘padrões sociais majoritários’.
Vários princípios jurídicos agasalham a tutela da parceria homoafetiva, sendo uma realidade a demandar igualmente uma solução jurídica positiva. Isto defende-se porque se acredita não haver nenhum empecilho de cunho axiológico para reconhecerem-se efeitos jurídicos a essa dimensão privada de formação de núcleos afetivos semelhantes aos modelos de famílias contemporaneamente reconhecidos.
A indignidade enfrentada pelos homossexuais, nos dias de hoje, resulta da reprodução de alguns valores expostos como morais, traduzindo discriminações que têm como causa uma característica fundante da pessoa. Para superar-se a exclusão jurídica, a reflexão em torno de um conceito amplo para o princípio de tutela à privacidade denota o caráter existencial a ser protegido mediante o reconhecimento da união homoafetiva no âmbito jurídico.
6. Igualdade e liberdade:
Os ideais de uma mesma lei universal para todos vincula-se à chamada igualdade formal, não devendo haver, portanto, discriminações expressas nas leis – uma vez que se alcança a igualdade formal por intermédio da aplicação da mesma lei para todos.
A igualdade na lei, no respeitante à orientação sexual, estaria a significar um tratamento jurídico não diferenciado para as pessoas, independentemente de sua orientação sexual. Por conseguinte, tanto heterossexuais quanto homossexuais devem receber o mesmo tratamento jurídico – não sofrendo discriminações em virtude de sua sexualidade. Segundo esse raciocínio, cessa-se a impossibilidade de uma identidade de casal para os parceiros homossexuais.
Um eventual tratamento diferenciado seria justificável apenas se fundado em motivos plausíveis a exigirem tutela especial – na procura da chamada igualdade material. Ficam juridicamente obstadas as não paridades oriundas de motivos fortuitos ou injustificados, ou incompatíveis com os demais valores superiores do sistema.
Entretanto, dentro do paradigma da igualdade, deve-se se levar em conta a preservação das diferenças. Não se intenciona um nivelamento sistemático das relações homoafetivas aos modelos já existentes. Guardando as especificidades, almeja-se um sistema paritário o qual não promova discriminações sob o critério da orientação sexual. “A fidelidade ao princípio da igualdade formal exige que se reconheça em todos, independentemente as orientação homo ou heterossexual – a qualidade de sujeito de direito; isto significa, na prática, não identificá-lo com a pessoa heterossexual.” [11]
Acredita-se na necessidade de buscar-se a igualdade às questões de orientação sexual, igualdade esta a qual não se pode traduzir em nivelamento com as regras tradicionalmente postas do Direito de Família. Primordial se faz o respeito às diferenças existentes.
Por conseguinte, destaca-se – além dos anteriormente mencionados princípios da pluralidade familiar, da intimidade e da igualdade – a livre expressão da pessoa.
A pessoa humana pode desenvolver suas atividades, na vida social, dentro dos parâmetros exigidos pelo ordenamento legal e pode afastar os eventuais impedimentos colocados sem motivo legítimo a justificar o óbice à sua livre ação.
Deve-se respeitar, assim, a possibilidade das pessoas livremente desenvolverem sua sexualidade, em harmonia com as características próprias de seu modo de ser. As pessoas devem ter a liberdade de expressar sua sexualidade, sua afetividade, sua formação familiar, de acordo com as diversas orientações, no espaço privilegiado da intimidade.
Imperar exclusões jurídicas, fundamentadas em tabus repressores à manifestação da sexualidade, é procurar limitar a liberdade no desenvolvimento de questões de esfera íntima para, em seu lugar, fazer apologia a modelos de família tradicionais.
Cada um deve ter a liberdade de partilhar sua intimidade segundo seus desejos de foro íntimo, independentemente da orientação sexual. Impor um determinado modelo, impossível para uma parcela significativa da sociedade, é negar a liberdade de desenvolvimento à personalidade dessas pessoas. Os parceiros das uniões homossexuais não se enquadram nos critérios heterossexistas exigidos para a formalização de sua união afetiva, por motivos alheios à sua vontade. São as razões fundantes de sua personalidade – as características especiais de seu ser – quem determinam a não contemplação de sua união familiar o que se manifesta contrário à liberdade do estabelecimento de sua expressão afetiva.
Na construção de um Direito Civil Contemporâneo, centrado nos valores dos seres humanos, merece a liberdade um papel especial, em detrimento do modelo exclusivamente heteropatriarcal como informador de uma pretensa moralidade.
CONCLUSÃO:
Visou-se a defender os efeitos jurídicos das uniões homossexuais, tendo-se em vista a transformação do direito de família, que, de um modelo codicista, abriu-se para as possibilidades plurais de formação afetiva – relevando-se os valores existenciais. Nesta esteira, a separação judicial, o divórcio, a igualdade entre homem e mulher, a igualdade entre os filhos e a união estável marcam um novo modelo jurídico familiar – o qual, nada obstante, encontra-se em constante mutação. Dentro deste contexto de mudanças, outras vozes ecoam a reivindicar também para si o reconhecimento jurídico: a união afetiva de pessoas do mesmo sexo. Se a abertura já se fez sentir em outros campos da família clássica, ainda há um caminho a ser percorrido para a superação do modelo familiar heteropatriarcal.
Contemporaneamente – com um Direito de Família voltado para a realização personalística da afetividade e do desenvolvimento da personalidade, bem como para um melhor atendimento à dignidade da pessoa humana –, deve-se superar o preconceito e propagar-se a paridade de direitos para as parcerias homossexuais.
O Direito Civil, em determinada época, manteve-se distante das realidades de seu tempo – trancafiado em seu formalismo tipicicista –, formando várias situações ditas ‘de fato’. Hoje, almejam-se, a partir dos seus princípios, soluções para as questões latentes – aproximando-se Direito e relações sociais.
Seguindo essa trilha, pretendeu-se, no presente trabalho, a apresentação de reflexões sobre como o chamado Direito Civil Contemporâneo pode responder às questões das uniões de pessoas do mesmo sexo, e, deste modo, escutar aquela voz que clama por seus direitos e que já não pode ser ignorada – num panorama de respeito à diversidade, diante da dimensão personificada do Direito Privado.
Os princípios da igualdade – especificamente igualdade entre os sexos –, da liberdade, da intimidade, da pluralidade familiar, do desenvolvimento da personalidade, e, de modo central, da dignidade da pessoa humana – devem ser considerados sustentáculos legais suficientes para a concessão de efeitos jurídicos às parcerias entre pessoas do mesmo sexo, quer na falta de legislação específica, quer de modo a informar a criação e a interpretação da legislação nos países que já caminharam neste sentido.
Partindo-se da tutela jurídica de um espaço reservado para o desenvolvimento da personalidade, chega-se a um conceito amplo do direito à privacidade nas relações familiares, direcionadas à realização de seus membros, descobrindo-se, no princípio da pluralidade familiar, a oportunidade de as pessoas conviverem familiarmente segundo o modelo que melhor retrate seus anseios pessoais. Impor unicamente um determinado modelo, impossível para uma parcela significativa da sociedade, vem a ser o mesmo que negar a liberdade de desenvolvimento existencial a essas pessoas. Igualmente, para que alguém possa exercer sua personalidade de forma digna, não deve estar sujeito a um tratamento diferenciado, especialmente quando as razões dessa discriminação derivam de preconceito a um modo especial de ser.
As latentes questões das parcerias entre homossexuais devem receber soluções análogas às das demais entidades familiares, por serem semelhantes as realidades afetivas. No entanto, precisa-se estar atento às diversidades existentes, como, por exemplo, à possibilidade de uma conotação diversa para a questão da estabilidade e da notoriedade das famílias homossexuais na realidade do momento. Muito embora isso, cremos que estas singularidades do modelo de família homossexual aos poucos perderão a relevância, pois tanto as famílias heterossexuais como as compostas por pessoas do mesmo sexo incorporarão diferenças em sua retratação jurídica, de modo a induzir-se uma simbiose entre os modelos.
Assim, busca-se a construção de um Direito de Família sem excluídos, atento aos Direitos Fundamentais, consoante com os Direitos Humanos bem como tutelador desta minoria que somente expressando sua forma de amar alcançará sua parcela de cidadania.
Professora-pesquisadora NUPECONST-Unibrasil, Professora Adjunta de Direito Civil da UFPR, pós-graduada em Teorias Críticas do Direito e Democracia pela Universidade Internacional de Andalucia – Espanha, tutora da matéria Filosofia do Direito pela Universidade de Pisa – Itália, mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, autora das obras As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina e União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais
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