Gadamer e Müller: a retomada do problema hermenêutico fundamental da aplicação/concretização

Resumo: O presente artigo pretende em linhas gerais e de forma não exaustiva elucidar apontamentos que aproximam o pensamento do filósofo Hans-Georg Gadamer e do jurista Friedrich Muller, inclusive na criação proposta por este, através dos métodos de trabalho do Direito Constitucional, que busca em síntese dispor uma metódica aplicável ao Direito Constitucional, que tem sua principal preocupação voltada para concretização da norma jurídica (constitucional).

Palavras Chave: Hermenêutica Constitucional – Muller – Gadamer – Hermenêutica Filosófica – Direito Constitucional

Abstract: This paper aims to broadly and is not limited to elucidate notes that approximate the thought of the philosopher Hans-Georg Gadamer and jurist Friedrich Muller, including the creation by this proposal, through the methods of work of the Constitutional Law, which seeks to synthesis have a methodical applicable to constitutional law, which has its main concern focused on implementing the rule of law (constitutional).

Keywords: Constitutional Hermeneutics – Muller – Gadamer – Philosophical Hermeneutics – Constitutional Law

Sumário: 1. Introdução. 2. A Hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. 3. A Metódica do Direito Constitucional de Friedrich Müller. 4. Conclusão

1. Introdução

Hodiernamente, nos encontramos postos diante aos relatos da problemática envolvida com a aproximação e o diálogo entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica, atendendo uma comunicação entre uma e outra, estabelecendo-se assim um dialogo hermenêutico que questiona a visão cientifica que estabelece uma crença no resultado ideal através do método. Diante de tal indagação, nos deparamos frente a frente perante duas proposições, na qual se apresenta de um lado as estruturas ideológicas (teoria), e do outro a realidade (aplicação). A perspectiva hermenêutica filosófica proposta por Gadamer busca desamarrar os limites impostos pelos hermeneutas tradicionais, desvinculando assim, a necessidade de um método para se obter a “verdade”. Trata-se da renúncia à interpretação via método único para se alcançar a verdade, mas admite tão somente que há uma pré-direção para ela, mediante o entendimento dos fundamentos lingüísticos. Na mesma esteira, Muller trabalha em sua metódica com fundamentos que salientam os aspectos propostos por Gadamer através da hermenêutica filosófica.

2. A Hermenêutica de Hans-Georg Gadamer

Hans-Georg Gadamer, figura decisiva na hermenêutica do século XX, influenciado pelas ideias de Martin Heidegger, de quem foi aluno e assistente na Philipis-Universitat Marburg, apoiado nos ensinamentos sobre o Dasein (ser-aí), o que quer dizer ser a condição do sujeito se ver imerso em um contexto histórico-linguístico, condição de possibilidade que molda e fornece um horizonte de sentidos[1], desenvolve a hermenêutica filosófica, contribuição ímpar para o estudo da hermenêutica e, sobretudo para a Ciência Jurídica. Firmemente posicionado nas conclusões expostas por Heidegger, Gadamer coloca-se contra o modelo de hermenêutica tradicional do século XIX, cujo axioma propõe que toda verdade é consequência lógica da aplicação de um método científico (clássico). Assim, faz renúncia expressa a interpretação através de um método único para se alcançar a verdade, porém admite unicamente que há uma pré-direção para ela, mediante a compreensão dos fundamentos linguísticos. Segundo Gadamer, a hermenêutica é um campo da filosofia que, além de apresentar um foco epistemológico, também estuda o fenômeno da compreensão por si mesmo (hermenêutica fenomenológica). 

O filósofo não se preocupa apenas com o fenômeno em tese, mas também com a operação intelectiva humana do compreender. Por isso, o ponto central da hermenêutica filosófica está na totalidade da inserção da existência do homem no mundo, ou seja, é a existência humana como ser no mundo, neste sentido adverte:

“A experiência do mundo sócio-histórico não se eleva ao nível de ciência pelo processo indutivo das ciências naturais. O que quer que signifique ciência aqui, e mesmo que em todo conhecimento histórico esteja incluído o emprego da experiência genérica no respectivo objetivo de pesquisa, o conhecimento histórico não aspira tomar o fenômeno concreto como caso de uma regra geral. O caso individual não se limita a confirmar uma legalidade, a partir da qual, em sentido prático, se poderia fazer previsões. Seu ideal é, antes, compreender o próprio fenômeno na sua concreção singular e histórica. Por mais que a experiência geral possa operar aqui, o objetivo não é confirmar nem ampliar essas experiências gerais, para se chegar ao conhecimento de uma lei – por exemplo, como se desenvolve os homens, os povos, os estados –, mas compreender como este homem, este povo, este estado é o que veio a ser; dito genericamente, como pode acontecer que agora é assim”[2].

O foco da hermenêutica filosófica é explicar como escapar do círculo fechado das opiniões prévias. Necessariamente, a compreensão do que está no texto, da linguagem, precisa da elaboração prévia de um projeto que será constantemente re­novado para que se tenha avanço na penetração do sentido. A proposta é manter um constante interpretar até que os concei­tos prévios deixem de sê-los, e ao longo da comunicação, sejam substituídos por outros conceitos novos mais adequados. O filósofo afirma que existe uma relação essencial entre a hermenêutica jurídica e a dogmática jurídica, entretanto a hermenêutica ocupa uma posição dominante em virtude de não ser sustentável a ideia de uma dogmática jurídica total, onde se pudesse baixar qualquer sentença por um simples ato de subsunção[3]. Desta sorte, não que a hermenêutica seja ametódica, ou antimetódica, o que ocorre é que ela trabalha em outra perspectiva, por hora o que podemos afirmar é que a metodologia adotada pela hermenêutica não é típica daquela matriz proposta pelas ciências naturais, a metódica causal-explicativa desenvolvida no âmbito das ciências naturais, obteve status de único caminho para a verdade, o que é inconcebível no seio das ciências humanas. Gadamer parte da inexistência de um sujeito que se encontra em visão privilegiada em relação ao objeto, tal fator possibilitou uma virada no significado moderno de método, em Descartes temos o método como único caminho que leva à verdade (epistemologia da Idade Média). Para Gadamer, quando se trata de ciências do espírito entram em jogo “valores de outro tipo, mais elevados”[4]. A proposta das ciências causais em aniquilar totalmente os pontos de vistas subjetivos não é hipótese plausível de se ter no mundo da vida, uma vez que, não ocorre na realidade, não se confirmando na vida social e cultural do homem.

Portanto, a perspectiva hermenêutica proposta por Gadamer no campo das Ciências Jurídicas, tem importância venal, destacando seu papel e relevância para atividade jurídica, sobretudo no que tange na necessidade de que a norma jurídica deve permanecer inacabada porque a vida que pretende normatizar é histórica, e, portanto, submetida a mudanças históricas, em especial a Constituição de um Estado não pode desconsiderar as mutações históricas. Tal fato, não significa dizer que a Constituição deverá permanecer indeterminada em seus fundamentos de ordem da comunidade ou quanto à estrutura do Estado.

3. A Metódica do Direito Constitucional de Friedrich Müller

Friedrich Müller, natural de Eggenfelden, Baviera, jurista alemão dedicado aos estudos do Direito Constitucional, foi professor e diretor na Universidade de Heidelberg, autor da obra “Métodos de Trabalho do Direito Constitucional”. Influenciado pelas ideias propostas por Viehweg em sua obra “Tópica e Jurisprudência” parte em busca por uma metódica que possa superar a velha dicotomia aberta entre positivismo e jusnaturalismo, pressupondo que para a resolução de um determinado conflito deve existir uma vinculação da resolução do problema à práxis e a realidade, evidenciando-se a problemática, nestes termos. Sob este enfoque, o jurista informa que “a tarefa da práxis é a concretização da constituição que primacialmente controla, mas ao mesmo tempo aperfeiçoa o direito na jurisprudência.”[5]

O autor na primeira parte de sua obra critica duramente o posicionamento do Tribunal Constitucional alemão, que segundo sua visão, programaticamente tomou partido da “teoria objetiva”, que busca realizar a vontade objetiva do legislador. Ainda neste aspecto, Müller aponta a insuficiência do modelo hermenêutico proposto pelo positivismo legalista, em seu aspecto metodológico quanto ao tratamento da norma. Explicita o jurista que na atualidade já não se é possível conceber a idéia de codificação como sistema fechado, compreensão e interpretação da norma pela norma, e que de igual modo, já não é mais aplicável ao Direito a dedução lógica que trata o ordenamento jurídico como um sistema completo e sem lacuna, na qual a tarefa do intérprete se resume a um movimento de subsunção silogística dos fatos à norma.

Neste aspecto, há uma aproximação clara entre as ideias propostas por Gadamer e Müller, a hermenêutica gadameriana tem contribuído sobremodo para a formulação do método concretista da interpretação do Direito. Assim, Konrad Hesse, partindo de Gadamer, propõe que o teor da norma (texto) somente se complementa no ato interpretativo. A concretização da norma pelo intérprete vai pressupor sempre uma pré-compreensão desta, essa compreensão pressupõe uma pré-compreensão. Em Müller temos que o teor literal da norma serve via de regra para formulação do programa da norma, o âmbito da norma é sugerido como um elemento co-constitutivo da prescrição. A normatividade não é produzida pelo teor literal da norma, pertence à norma enquanto entendimento veiculado pela tradição.

Portanto, a normatividade é composta por dados que são impossíveis de serem fixados no texto da norma jurídica, no sentido de garantia e pertinência. No aspecto da linguagem, tem-se que não é o teor literal da norma que regulamenta um caso jurídico concreto, o “conteúdo” da norma não está na ponta do ice-berg (texto da norma). Logo, não há identificação entre norma e texto da norma, a metodologia positivista legalista tradicional importou seus dados das ciências naturais, trata-se de uma possibilidade inversa à proposta elaborada pelo autor germânico, que distancia acriticamente o Direito da Realidade, quando expõe que na aplicação do Direito a atuação dos intérpretes está circunscrita no movimento de subsunção do conjunto de fatos a uma premissa maior de natureza normativa, confundindo assim norma e texto da norma, e conseqüentemente evidencia a não importância da normatividade.

No aspecto da linguagem, tem-se que não é o teor literal da norma que regulamenta um caso jurídico concreto, o “conteúdo” da norma não está no texto da norma, Müller assevera que cabe ao intérprete transcender o texto literal da norma, a decisão dos titulares de funções, deve ser laborada com base em um conjunto de materiais legais, materiais didáticos, comentários, estudos monográficos, precedentes e Direito Comparado. O que o texto da norma apresenta é uma limitação das possibilidades legítimas e legais da concretização materialmente determinada do direito no âmbito da norma[6].

4. Conclusão

O problema da concretização das normas jurídicas se apresenta com um desafio a ser encarado pela práxis hermenêutica com serena dedicação, perene investigação e certa dose de inconformismo. A ligação entre as ideias estabelecidas por Müller e a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer é notória, sobretudo no aspecto da pré-compreensão, da necessidade de prevalência da hermenêutica ocupando uma posição dominante, em virtude de não ser sustentável a ideia de uma dogmática jurídica total, onde se pudesse baixar qualquer sentença por um simples ato de subsunção (positivismo legalista), ainda no que tange a prevalência da pergunta sobre a resposta exposta por Gadamer, que se assemelha ao projeto de Viehweg ao destacar a prevalência da problemática, que fora incorporada nas ideias de Müller.

E por fim, na inseparabilidade entre compreender e aplicar, Gadamer esclarece que toda aplicação é uma autêntica compreensão, destarte, toda compreensão produz uma aplicação, de forma que aquele que compreende está inserido no sentido do que se compreendeu, quanto às normas jurídicas não há um distanciamento entre o aplicar e o compreender, pois quando o jurista concretiza a norma aplicando-a ao caso concreto, compreende tanto a norma como passa a compreender o significado dela em sua própria existência, recebendo então, o sentido do que foi compreendido.

 

Referências
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Notas:
[1]Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. […] A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do pregresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer (revisão da tradução de Enio Paulo Giachini). 7. ed. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: EDUSF, 2005. Coleção pensamento humano,  p. 452).
[2]GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer (revisão da tradução de Enio Paulo Giachini). 7. ed. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: EDUSF, 2005. Coleção pensamento humano,  p.38.
[3] F.Wiacker expôs o problema do ordenamento jurídico extralegal, partindo da arte de julgar, própria do juiz, assim como dos momentos que a determinam (Gesetz und Richterkunst, 1957). Apud GADAMER,
[4] GADAMER, Hans-Georg.: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 1ª Ed. Petropoles: Vozes, 1997.
[5] Müller, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Trad. Peter Naumann: Rio de Janeiro. Renovar, 2005, pg. 36.
[6] Âmbito da norma: é o recorte da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da norma “escolheu” para si como seu âmbito de regulação. (Müller, Friedrich, 2005, pg. 42)

Informações Sobre o Autor

Daniel Carreiro Miranda

Advogado, Mestrando em Direito pela UFMG


Equipe Âmbito Jurídico

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