Desde os primórdios da humanidade as doenças e deformações congênitas insistem em atormentar a raça humana. Na busca desesperada pela cura, sobretudo das doenças emergentes, a Ciência tem se deparado com obstáculos muitas vezes intransponíveis, ao passo que, em algumas áreas, vislumbra-se um gigantesco desenvolvimento, porém, a passos lentos. Apesar do inegável avanço e benefícios hodiernos, ainda há um grande caminho a percorrer, deixando evidente que o homem, não importa quão bem intencionado e inteligente, ainda não consegue solucionar todos os seus problemas.
Além dos entraves no sistema de saúde, haja vista que o acesso à assistência e ao tratamento médico muitas vezes não alcança aqueles que realmente necessitam, infelizmente tornando-se um privilégio da classe mais abastada economicamente, o desrespeito à garantia insculpida na Constituição da República de 1988, com saúde de qualidade para todos, só tem contribuído para o agravamento do problema. O resquício deixado pelo lento progresso da Medicina muitas vezes recai sobre o Poder Judiciário, seja para garantir a tutela da continuidade de um tratamento clínico, seja para forçar o Poder Público a fornecer medicamentos vitais a pacientes em estado delicado. Ademais, as demandas judiciais não se resumem a isso, há problemas que transcendem os tratamentos, as cirurgias, os medicamentos, enfim, especialmente quando se trata de deficiências singulares, tal como os gêmeos siameses.
A expressão “gêmeos siameses” (xifópagos) tornou-se popular quando do nascimento dos irmãos tailandeses Chang e Eng, em 1811, unidos por um tecido na altura do abdômen. Eles se tornaram internacionalmente famosos como “Gêmeos Siameses”, viajando como parte do circo de Barnum. Atualmente, as gêmeas Abigail e Brittany, dos Estados Unidos, unidas pelo abdômen, conseguem estudar e levar uma vida “aparentemente normal”, demonstrando que apesar de serem duas pessoas distintas ocupando um mesmo corpo, conseguem exercer atividades comuns do dia-a-dia, ou seja, exercem os atos da vida civil dentro do possível.
É importante abordar os aspectos jurídicos dessa relação fraternal insólita, pois há gêmeos siameses que não possuem o mesmo desenvolvimento mental conjunto, ora com maior habilidade, ora mais desenvolvido que o outro o que influirá no tratamento jurídico a ser dado.
Embora hoje seja relativamente fácil definir direitos e obrigações e quais bens jurídicos devem ser protegidos, não é com a mesma facilidade que se determina a quem serão dirigidos esses direitos, ou quem deve cumpri-los, o que gera, inevitavelmente, em certos casos, injustiças. Nas searas comercial, trabalhista, administrativa e penal, discorrer sobre um caso envolvendo gêmeos siameses talvez deixe dúvidas até no mais erudito dos operadores do Direito. Como proporcionar um tratamento justo e adequado se duas pessoas compartilham apenas um corpo, ao passo que, do outro lado, são duas personalidades que têm vontades próprias que influem na do outro, forçando-o a fazer, por exemplo, o que não gostaria?
No Direito Comercial, haja vista possuírem documentos e personalidades diferentes podem ser os dois únicos sócios de uma sociedade empresária? A princípio, desde que preencham os requisitos do art. 972 do Código Civil, sim. “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”, assim disposto no art. 981 do mesmo Código. O requisito aqui primordial é a participação de duas pessoas, independentemente de formações, culturas, hábitos ou corpos diferentes. Regra geral da hermenêutica jurídica: onde o legislador não previu impedimento expresso não cabe ao intérprete restringir o alcance da norma.
Apesar da deficiência física, possuem capacidade civil. Parece, a princípio, uma questão tola, de fácil solução. Entretanto, e se um deles resolver sair da sociedade? Se, além dos gêmeos, existir ainda outro sócio que, discordando das idéias de um deles, resolve propor a continuidade da sociedade com apenas um dos gêmeos? Amparar o direito de um deles manter-se na sociedade afetará o do outro. Como seria isso possível se, inevitavelmente, esse gêmeo que deseja sair terá de participar de todas as reuniões e deliberações da sociedade? Ficará “condenado” a manter-se na sociedade empresária até para o benefício do outro irmão, infelizmente, aumentando o desgosto do terceiro sócio que ficará, também, forçado a aceitar aquele a quem já não confia mais, fazendo parte nos negócios de sua empresa.
O Direito existe para proteger a todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, ainda que numa vexata quaescio como essa. Gêmeos siameses têm suas necessidades básicas, precisam trabalhar, comer, vestir etc. E é a Ciência Jurídica que possui condições de socorrer e tutelar eventuais violações a essas garantias.
Quanto aos direitos trabalhistas, é sabido que uma das coisas que trazem satisfação é o trabalho gratificante. Um dos problemas dos deficientes é que os patrões, também, não raro focalizam sua atenção na deficiência, esquecendo que tais pessoas podem ser leais no serviço e atenciosas além do normal, equiparando-se aos demais trabalhadores em produtividade. Eis, então, a dúvida. Como estabelecer como paradigma gêmeos siameses a fim de se buscar uma equiparação salarial?
Paradigma é o valor do salário de empregado que exerce uma atividade servindo de modelo de equiparação para outro trabalhador, na mesma função, e em igual produtividade, perfeição e técnica, cuja diferença de tempo de serviço entre os mesmos não seja superior a dois anos. Evidentemente que, em que pese a deficiência física, se a mente de ambos os gêmeos forem sãs, estes levariam vantagem se comparado com outro trabalhador. Como se estabeleceria esse paradigma com igualdade no caso de serviços que exigem raciocínio se, de um lado, um corpo e uma mente trabalham, e do outro, um corpo com duas mentes pensando em conjunto? Ocorreria a desproporcionalidade que implicaria no impedimento à equiparação salarial? Como seria o tratamento, até porque não se pode indicar numa reclamação trabalhista mais de um paradigma?
Ademais, o intuitu personae, que estabelece que o mesmo trabalhador seja o prestador de serviço ao empregador, aparentemente ficará prejudicado. No caso de gêmeos xifópagos, duas pessoas ocupando um corpo, haverá então a descaracterização da pessoalidade? Noutra hipótese, se um deles adoecer e precisar faltar no trabalho? Por mais tolerante que seja o empregador, sua pretensão de estabelecer condições igualitárias de trabalho, entre os gêmeos e os demais empregados jamais, acredito, atingirá o nível de satisfação entre todos os empregados, até porque será extremamente difícil qualquer decisão quando efetivamente tiver de ser colocada em prática. O ideal possui uma distância imensurável do real.
Na seara do Direito Administrativo, podem os gêmeos fazer parte, apenas os dois mais um servidor, de uma comissão de licitação? Obedeceria ou não o art. 51 da Lei 8.666/93? Assim definido: “a habilitação preliminar, a inscrição em registro cadastral, a sua alteração ou cancelamento, e as propostas serão processadas e julgadas por comissão permanente ou especial de, no mínimo, 3 (três) membros, sendo pelo menos 2 (dois) deles servidores qualificados pertencentes aos quadros permanentes dos órgãos da Administração responsáveis pela licitação”.
A dúvida recai não apenas nos trabalhos da comissão durante o certame. Quando finalizada uma licitação, para o recebimento de material de valor superior ao limite estabelecido no art. 23 da Lei, para a modalidade de convite, poderá ser confiada aos irmãos e mais um o recebimento de tal material? E nos processos administrativos, como se aplicaria, por exemplo, uma exoneração a apenas um deles?
Imprescindível frisar que estas indagações não visam denegrir ou constranger quaisquer gêmeos siameses. Muito pelo contrário, as relações humanas se encontram em constante evolução, e como é cediço, o Direito nem sempre prevê todas as possibilidades, todas as conseqüências que podem afetar um direito alheio, mormente quando o assunto alcança a esfera criminal.
No Direito Penal é que o problema se agrava ainda mais. Esse assunto interessa não só àqueles cuja vida foi afetada pelo crime, mas a todos os operadores do Direito em especial. Embora ainda remota a hipótese, esta, porém, não é nem um pouco fantasiosa. Há poucos anos não havia crime pela internet. Hoje, inclusive, já se discute uma legislação específica para punir tais práticas ilícitas.
Euclides Custódio da Silveira, discorrendo sobre a questão dos gêmeos xifópagos, em “Direito Penal – Crimes Contra a Pessoa. São Paulo: Max Limonad, 1959”, entende que:
“Dado que a deformidade física não impede o reconhecimento da imputabilidade criminal, a conclusão lógica é que responderão como sujeitos ativos. Assim, se os dois praticarem homicídio, conjuntamente ou de comum acordo, não há dúvida que responderão ambos como sujeitos ativos, passíveis de punição. Todavia, se o fato é cometido por um, sem ou contra a vontade do outro, impor-se-á a absolvição do único sujeito ativo, se a separação cirúrgica é impraticável por qualquer motivo, não se podendo excluir sequer a recusa do inocente, que àquela não está obrigado”.
A regra é que se o fato típico for cometido por um dos irmãos, sem ou contra a vontade do outro, impor-se-á a absolvição do único sujeito ativo, pois, se para punir um culpado é inevitável sacrificar um inocente, a única solução sensata há de ser a impunidade.
Entretanto, por força de personalidades diferentes, um dos irmãos pode ser agressivo, forçando o outro a fazer suas vontades. Essa hipótese é perfeitamente aceitável porque, em certos casos, um dos irmãos pode controlar a maior parte dos movimentos e do corpo. O induzimento, a instigação à prática de um crime, por apenas um deles como real interessado no delito comprometeria o outro indiscutivelmente. Como admitir que um deles cometeu o crime sem a vontade do outro? Em outra vertente, como permitir que o irmão de personalidade mais forte e agressiva continue a praticar crimes mesmo contra a vontade do outro, se, pela regra, sabe que ficará impune?
Numa visão perfunctória da deficiência, o iter criminis só será possível com a participação intencional dos dois, ainda que contra a vontade de um deles. Nem sempre será possível evitar o resultado. Se uma mente controlar os movimentos o outro terá de obedecer até inconscientemente. Montesquieu já previa que “a injustiça feita a um homem é uma ameaça para a humanidade”, mas permitir a impunidade não se fará justiça e mais crimes poderão ocorrer. Não se pode condenar um inocente, é verdade, como da mesma forma como não se pode absolver um criminoso que, a pretexto de sua condição ímpar, se safa da justiça e fica livre para cometer novos crimes.
A complexidade do tema também não fica adstrita às searas já mencionadas. Embora seja relativamente fácil determinar que regras devem ser cumpridas, nem sempre é fácil prever que situações serão pacificamente aceitas. Num concurso público, por exemplo, se os gêmeos siameses forem aprovados, concorrentes que não conseguiram a aprovação, em vez de reconhecerem o esforço dos dois, sentirão, talvez, prejudicados, com sentimento de desequilíbrio, desproporcionalidade. Duas pessoas concorrendo a uma vaga, porém, essas duas pessoas fazendo uma prova levarão vantagem sobre as demais. É óbvio.
Qualquer deficiência é realmente trágica e exige coragem e determinação para enfrentá-la. Para os gêmeos siameses, saberem que são aceitos pelo que eles são e que são capazes já será um grande conforto. E eles realmente são capazes! Os gêmeos Chang e Eng deixaram o circo, casaram-se com duas irmãs do estado americano da Carolina do Norte, e tornaram-se, ao todo, pais de 22 filhos.
As questões jurídicas envolvendo esses gêmeos vão muito além das suas próprias limitações físicas, quanto a se aferir a real capacidade ou ainda a intencionalidade de cada um num crime, numa reclamação trabalhista ou num processo administrativo. A Constituição da República garante, em seu art. 5°, como direito fundamental, dentre outros, e independentemente de quaisquer limitações, quer física ou mental, a liberdade a qualquer indivíduo. E mais, “a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos“.
Julgá-los como incapazes por serem deficientes, sem promover-lhes a real condição de seu desenvolvimento é semear a ilusão, ou manter-se preso a pensamentos arcaicos, julgando-nos melhores, porém permanecendo inertes quando o assunto envolve a melhoria das condições de vida, locomoção, acesso a locais públicos etc.
Por conseguinte, dizer que o Poder Público é que tem o dever de garantir a igualdade entre pessoas “normais” e os gêmeos siameses é desconhecer que a capacidade estatal em muito é inócua sem o apoio da sociedade, por menor que seja a participação de cada um. E não só no que se refere ao Poder Público, mormente, também, às empresas particulares.
O Direito provavelmente vai evoluir e encontrar soluções, se é que já não existem, para casos dessa natureza. A solução mais almejada talvez seja a conscientização, porque independentemente de cometerem crimes ou não, os gêmeos siameses já são vítimas e irremediavelmente já sentem as seqüelas de uma condenação social pelo simples fato de serem “diferentes”. Todas as pessoas, quer tenham deficiências quer não, merecem respeito e proteção jurídica. E não haverá nunca uma satisfação de vida por qualquer pessoa se não forem dadas a ela condições de acesso à justiça, saúde, educação e garantias quanto aos seus direitos constitucionais fundamentais. Aliás, se pensarmos bem, a justiça e todos os outros direitos fundamentais estão para nós humanos como “gêmeos siameses”.
Acadêmico do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Oeste de Minas – FADOM/Divinópolis/MG
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